Acessibilidade / Reportar erro

Esquerda, direita e eleições presidenciais no Brasil

RESUMO

O artigo analisa dados dos programas eleitorais apresentados para as eleições presidenciais no Brasil de 1994 a 2018, para descrever como as candidaturas se posicionaram ideologicamente. Os dados produzidos e disponibilizados pelo Manifestos Project permitiram quantificar os conteúdos de esquerda e de direita abrigados nas suas plataformas e sua variação no tempo. A análise aponta que conteúdos de esquerda e de direita convivem lado a lado nos programas, ao mesmo tempo que confirma a distinção ideológica entre as alternativas. Além disso, aplica as medidas de ideologia para calcular e comparar o grau de polarização em cada eleição e identifica o seu súbito aumento em 2018.

PALAVRAS-CHAVE:
Ideologia; Competição eleitoral; Manifestos; Eleições presidenciais

ABSTRACT

The article analyzes data from electoral programs for presidential elections in Brazil from 1994 to 2018 to describe how candidates stand on the ideological scale. The data produced and made available by the Manifesto Project allow measuring their leftist and rightist content and its variation over time. The analysis shows that leftist and rightist content coexist side by side in the platforms while confirming the ideological distinction among the alternatives. In addition, it applies ideology measures to compute and compare the polarization index in each election and shows its sudden increase in 2018.

KEYWORDS:
Ideology; Electoral competition; Manifestos; Presidential elections

Introdução

A competição pelo mais alto cargo executivo do país mobiliza profundamente partidos e eleitores em todo o Brasil a cada quatro anos. O sistema eleitoral de dois turnos teoricamente gera incentivos à apresentação demais numerosas e mais variadas candidaturas do que seria de esperar se a eleição do presidente fosse por maioria simples. Entretanto, o quanto as candidaturas representam alternativas realmente distintas umas das outras é uma questão empírica que pode ser respondida com a comparação das suas posições ideológicas.

Este artigo se propõe a essa tarefa buscando nos programas eleitorais elementos para a identificação da sua posição ideológica e calculando a partir de tais posições o grau de polarização das eleições. Como a ideologia raramente aparece objetiva e diretamente expressa nesses documentos, os conteúdos dos textos precisam ser convertidos em medidas de ênfase e prioridade.

A análise de conteúdo de manifestos é a ferramenta que conta hoje com amplo reconhecimento na ciência política para fazer essa operacionalização. A validade das medidas assim produzidas repousa no argumento da saliency theory (Klingemann; Hofferbert, 1994KLINGEMANN, H.-D.; HOFFERBERT, R. I. E. A. Parties, policies, and democracy. Boulder: Westview Press, 1994.; Klingemann et al., 2006; Robertson, 1976ROBERTSON, D. B. A theory of party competition. London; New York: J. Wiley, 1976.) de que partidos escolhem estrategicamente quais temas mais lhes convêm enfatizar. Assim, as ênfases temáticas, expressas na proporção de texto dos manifestos dedicadas a categorias de conteúdo, são utilizadas para refletir prioridades e preferências dos atores políticos.

Este artigo se vale da análise de conteúdo conduzida e disponibilizada pelo MP - Manifesto Project (Burst et al., 2020aBURST, T. et al. The Manifesto Data Collection: South America. (MARPOR), M. P. Berlin: Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB) 2020a.) para comparar posições de candidaturas presidenciais brasileiras em várias dimensões ideológicas e para calcular o grau de polarização em cada eleição presidencial de 1994 a 2018. Os resultados da análise apontam para a consistência da distinção ideológica entre os competidores e para o aumento abrupto do grau de polarização em 2018.

Ideologia nos manifestos e competição eleitoral

A natureza unidimensional da competição política é um artifício de simplificação herdado da teoria econômica da democracia (Downs, 1999DOWNS, A. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999.) que se tornou clássica na ciência política. O posicionamento dos competidores ao longo de um contínuo que vai da esquerda à direita tem servido para prever desde comportamentos dos eleitores até políticas públicas dos eleitos. Há maneiras diferentes de definir esquerda e direita (Madeira; Tarouco, 2011MADEIRA, R.; TAROUCO, G. Esquerda e Direita no Brasil: uma análise conceitual. R. Pós Ci. Soc., v.8, n.15, jan./jun. 2011.) mas dois critérios se destacam na literatura contemporânea. O primeiro é o grau desejável de intervenção estatal na economia, segundo o qual uma economia totalmente planejada seria o polo esquerdo e uma economia de mercado totalmente livre seria o polo direito (Downs, 1999). O segundo critério é a importância relativa conferida aos valores de igualdade, justiça social e redistribuição, priorizados pela esquerda, em contraste com a liberdade individual, priorizada pela direita (Bobbio, 2001BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.; Luna; Kaltwasser, 2014LUNA, J. P.; KALTWASSER, C. R. The Resilience of the Latin American Right. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014.). Ambos costumam ser amplamente aceitos na ciência política e produzem classificações em geral equivalentes.

Cruzando perpendicularmente o contínuo esquerda-direita estaria a dimensão conservador-progressista, definindo um plano político bidimensional (Tarouco; Madeira, 2013aTAROUCO, G.; MADEIRA, R. Esquerda e direita no sistema partidário brasileiro: análise de conteúdo de documentos programáticos. Debates, v.7, n.2, p.93-114, 2013a.). Outra dimensão faria do próprio eixo esquerda-direita um de seus polos: na dimensão do pós-materialismo as questões econômicas que definem esquerda e direita se opõem ao polo das questões sobre valores de autoexpressão e qualidade de vida, tais como questões ambientais, de identidades e do direito à diferença por exemplo (Madeira; Vieira; Tarouco, 2017; Musa, 2006MUSA, A. Was There a Silent Revolution? A Comparative Analysis of Party Manifestos in Ten European Countries. Politička misao, v.XLIII, n.5, p.121-46, 2006.).

Um recente debate na literatura acrescentou à lista de posicionamentos ideológicos a categoria da nova direita, que combinaria ultraliberalismo econômico com uma reação conservadora contra o liberalismo nos costumes e contra o avanço de pautas progressistas (Câmara et al. 2020CÂMARA, R. et al. O que há de novo na direita brasileira? Um olhar sobre as opiniões dos congressistas. In: 44º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2020.; Cowan, 2014COWAN, B. A. “Nosso Terreno”: crise moral, política evangélica e a formação da ‘Nova Direita’ brasileira. Varia História, v.30, n.52, p.101-25, 2014.; Cruz; Kaysel; Codas, 2015CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (Ed.) Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.; Löwy, 2015LÖWY, M. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc., n.124, 2015.; Mayka; Smith, 2021MAYKA, L.; SMITH, A. E. Introduction - The Grassroots Right in Latin America: Patterns, Causes, and Consequences. Latin American Politics and Society, v.63, n.3, 2021.; Moddelmog; Santos, 2020MODDELMOG, L.; SANTOS, P. A. G. Religion and political parties in Brazil. In: HAYNES, J. (Ed.) The Routledge handbook to religion and political parties. London: Routledge, 2020.; Pierucci, 1987PIERUCCI, A. F. As bases da nova direita. Novos Estudos, n.19, 1987.; Quadros; Madeira, 2018QUADROS, M. P. D. R.; MADEIRA, R. Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, v.24, n.3, p.486-522, 2018.; Quadros; Madeira, 2020; Rocha, 2021ROCHA, C. Menos Marx, mais Mises? o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021.; Santos; Moddelmog, 2019; Smith, 2019).

Nesta seção o objetivo é descrever a competição eleitoral presidencial no Brasil em termos dos posicionamentos das candidaturas na dimensão esquerda-direita. Para isso, este artigo analisa dados produzidos pelo MP - Manifesto Project (Burst et al., 2020aBURST, T. et al. The Manifesto Data Collection: South America. (MARPOR), M. P. Berlin: Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB) 2020a.) a partir da análise de conteúdo de programas eleitorais. O método aplicado para quantificar os conteúdos é a codificação manual de cada sentença dos textos a partir de um esquema unificado de categorias de assunto pré-definidas (Budge et al., 2001BUDGE, I. et al. Mapping policy preferences: estimates for parties, electors, and governments 1945-1998. New York: Oxford University Press, 2001.; Burst et al., 2020b). O esquema de codificação hoje conta com 76 categorias de conteúdo, que vão desde relações exteriores até grupos sociais, passando por economia, bem-estar social e sistema político. Apesar das reconhecidas limitações do método de análise manual de conteúdo (Tarouco; Madeira; Vieira, 2022TAROUCO, G.; MADEIRA, R.; VIEIRA, S. Manifestos and ideology: methodological issues and applications to Latin America. RBCP, v.37, p.1-42, 2022.), o esquema único de categorias e o protocolo uniforme de codificação aplicados por codificadores homogeneamente treinados permitem comparar as medidas resultantes (Jorge; Faria; Silva, 2020JORGE, V. L.; FARIA, A. M. T. D.; SILVA, M. G. D. Posicionamento dos partidos políticos brasileiros na escala esquerda-direita: dilemas metodológicos e revisão da literatura. Revista Brasileira de Ciência Política, 2020.).1 1 O Manifesto Project contrata e treina codificadores que segmentam os textos dos documentos em sentenças e classificam cada uma de acordo com alguma das categorias do protocolo. Os documentos brasileiros foram distribuídos entre três codificadores, ficando cada um encarregado de duas a três eleições completas, cada uma com três ou quatro programas. Para os propósitos deste artigo, o fato de que o mesmo codificador ficou responsável pelo conjunto dos programas de cada eleição reduz o risco de que critérios distintos tivessem orientado a escolha das categorias entre os programas que estavam competindo uns com os outros na mesma eleição, e permite, portanto, comparar as medidas resultantes entre os adversários. Para os fins deste artigo foram selecionados os dados referentes a 23 documentos apresentados nas eleições presidenciais brasileiras de 1994 a 2018, listados no Quadro 1.2 2 O banco de dados do MP contém apenas programas de candidatos que tenham obtido pelo menos 5% dos votos. A eleição de 1989, apesar de listada no banco do MP, não foi incluída nesta análise porque alguns dos programas cujos candidatos atingiram o requisito de votação não estão codificados.

O banco de dados do Manifesto Project apresenta cada categoria de conteúdo como uma variável que mede a porcentagem das sentenças do texto que receberam seu código. A partir dessas porcentagens, o MP calcula outras variáveis, agregando categorias em dimensões, também medidas em porcentagem de texto. As dimensões do MP utilizadas neste artigo estão descritas no Quadro 2.3 3 O MP também calcula a escala RILE, da dimensão esquerda-direita, que não foi incorporada na presente análise por já ter sido questionada em outros trabalhos (Martins; Moreira; Tarouco, 2021; Tarouco; Madeira, 2013b; Tarouco; Madeira; Vieira, 2022).

Quadro 1
Programas para as eleições presidenciais codificados pelo MP
Quadro 2
Escalas calculadas pelo MP

Adicionalmente, este artigo propõe um indicador de conservadorismo, construído a partir da agregação das categorias moralidade tradicional - positiva (per603), lei e ordem - positiva (per605_1) e multiculturalismo geral - negativo (per608_1). Enquadram-se na categoria 603 menções favoráveis a valores morais, tradicionais, religiosos; proibição, censura e supressão da imoralidade e do comportamento indecente; manutenção e estabilidade da família tradicional; apoio ao papel das instituições religiosas no Estado e na sociedade. Enquadram-se na categoria 605_1 menções favoráveis à aplicação rigorosa da lei e ações mais duras contra o crime; aumento de apoio e recursos para a polícia; atitudes mais duras nos tribunais; importância da segurança interna. Enquadram-se na categoria 608_1 menções de imposição ou encorajamento da integração cultural e apelos à homogeneidade cultural na sociedade (Burst et al., 2020bBURST, T. et al. The Manifesto Data Collection: South America - Codebook. (MARPOR), M. P. Berlin: Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB) 2020b.).

Com essas quatro variáveis sobre os 23 programas eleitorais as próximas seções comparam as candidaturas à presidência de acordo com o conteúdo ideológico de suas plataformas e mensuram o grau de polarização de cada eleição.

Esquerda e direita nas plataformas presidenciais brasileiras

Do ponto de vista do critério econômico, competidores posicionados à esquerda da escala ideológica apoiam uma economia mais planejada pelo Estado e um mercado menos livre, enquanto aqueles à direita preferem mercado mais livre e menos intervenção estatal na economia. Seria então razoável esperar uma correlação alta e negativa entre os posicionamentos dos candidatos nestas duas dimensões. Entretanto não é isso que os dados revelam,4 4 A correlação de Pearson entre as categorias Planeco e Markeco é de -0.3, com p = 0.17. como pode ser visto nas Figuras 1 e 2.

A julgar pela extensão de texto dedicada a elas, as categorias indicativas de preferência por economia planejada convivem lado a lado nos programas eleitorais dos candidatos com aquelas indicativas da preferência por livre mercado. Isso ocorre por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque os programas eleitorais não precisam ser coerentes com os conceitos da ciência política, mas precisam conter conteúdos que rendam votos de eleitores5 5 Uma crítica que inicialmente a análise de conteúdo de programas eleitorais sofreu era que estes documentos não eram lidos pelos eleitores e, portanto, seriam irrelevantes na competição (Miguel, 2010). O desenvolvimento das pesquisas sobre manifestos mostrou que seus conteúdos são instrumentalizados nas campanhas pelos adversários e pela imprensa, além de serem publicados pelas elites partidárias como suas posições oficiais. com a maior variedade possível de preferências. Segundo, porque os programas são produto da acomodação possível entre parceiros de coligação eleitoral, que muitas vezes são ideologicamente distantes uns dos outros.

A Figura 1 mostra que ao longo do período a dimensão da economia planejada mereceu pouco espaço nos programas eleitorais, alcançando o máximo de 13,5% do texto no programa do PSOL em 2006, e estando completamente ausente do programa do PSL em 2018. A Figura 2, por sua vez, mostra o mesmo documento (PSL 2018) dedicando a maior proporção de texto (mais de 23%) às categorias da dimensão liberdade de mercado, que esteve completamente ausente dos programas das candidaturas do PT em 1998, do PSOL em 2006 e do PV em 2010.

Figura 1
Posição dos programas eleitorais na escala de economia planejada.

Figura 2
Posição dos programas eleitorais na escala de economia de mercado.

Outras dimensões da ideologia são o grau de apoio a políticas redistributivas e sociais e a defesa de valores tradicionais, aqui mensurados pelos indicadores de Welfare e de conservadorismo, respectivamente. A defesa de um estado de bem-estar social está associada a posições de esquerda tanto pela perspectiva da definição econômica quanto pela perspectiva de justiça e igualdade. Já a dimensão do conservadorismo é transversal, podendo variar de um polo a outro, mas é comum que esteja altamente correlacionada com posicionamentos de direita, enquanto posições mais progressistas costumam ser mais frequentes em atores políticos identificados com a esquerda. As Figuras 3 e 4 mostram a distribuição dos programas nas duas escalas.

É possível observar que em ambas as dimensões os competidores passam a se distinguir mais uns dos outros com o passar do tempo. Os destaques são as posições do PSL em 2018, com a menor ênfase em Welfare e a maior em conservadorismo, confirmando as expectativas teóricas que vinculam estas dimensões à posição na escala esquerda-direita.

Assim, podemos esperar que o cruzamento da preferência por livre mercado com o conservadorismo produziria uma escala de posições de direita e que o cruzamento da preferência por políticas de bem-estar com planejamento econômico produziria uma escala de posições de esquerda. As Figuras 5 e 6 combinam estas escalas em dois planos bidimensionais para captar a variação das candidaturas presidenciais em todas as eleições do período através de distintos aspectos da ideologia.

Figura 3
Posição dos programas eleitorais na escala de bem-estar social.

Figura 4
Posição dos programas eleitorais na escala de conservadorismo.

Figura 5
Posição dos programas eleitorais de acordo com as dimensões de direita.

Figura 6
Posição dos programas eleitorais de acordo com as dimensões de esquerda.

É possível observar que a maior parte dos programas se concentra em um dos quadrantes de cada plano, com poucos pontos isolados se destacando próximos aos demais vértices. Assim, o PSL em 2018 se destaca no vértice de posição mais à direita e o PPS em 1998 no de posição mais à esquerda.6 6 A correlação alta e significativa no gráfico da Figura 1 se deve ao efeito da posição isolada do PSL em 2018 que, quando removido, derruba a correlação para 0.22, com p = 0.33.

Até aqui a descrição não contraria outras mensurações de ideologia dos partidos brasileiros (Bolognesi; Ribeiro; Codato, 2021BOLOGNESI, B.; RIBEIRO, E.; CODATO, A. Uma nova classificação ideológica dos partidos políticos brasileiros. 2021. Disponível em: <https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/2552/version/2701>.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
; Tarouco; Madeira, 2015TAROUCO, G.; MADEIRA, R. Os partidos brasileiros segundo seus estudiosos: análise de um expert survey. Civitas, v.15, n.1, p.e24-e39, 2015.) e reforça o argumento de que há uma diferenciação ideológica razoavelmente consistente no sistema partidário brasileiro. Entretanto, resta saber se essa diferenciação afeta a dinâmica da polarização da competição. Este é o assunto da próxima seção.

Polarização da competição eleitoral presidencial

A polarização pode ser entendida ou como uma situação estática e categórica, ou como um processo ou ainda como um contínuo. Exemplo da primeira interpretação é o debate sobre as eleições presidenciais brasileiras que indicava que até 2014 a competição estava bipolarizada entre PT e PSDB (Limongi; Cortez, 2010LIMONGI, F.; CORTEZ, R. As eleições de 2010 e o quadro partidário. Novos Estudos Cebrap, n.88, 2010.; Melo; Camara, 2012MELO, C. R.; CAMARA, R. Estrutura da competição pela Presidência e consolidação do sistema partidário no Brasil. Dados, v.55, n.1, p.71-117, 2012.). A noção de polarização como processo, por sua vez, indica um período de transição de um momento anterior não polarizado para um momento posterior polarizado. Exemplo desse sentido da palavra é o diagnóstico corrente de que o sistema político teria se polarizado a partir da eleição de 2018.

A terceira acepção, adotada neste artigo, implica que em qualquer dimensão em que seja possível posicionar mais de um competidor é também possível medir o grau de polarização. Medir o grau de polarização em cada eleição permite comparar quão distintas e relevantes são as alternativas oferecidas aos eleitores, e como esta distinção varia no tempo. Pelas medidas das candidaturas nas dimensões relatadas na seção anterior, é razoável esperar que o grau de polarização na competição presidencial tenha aumentado através das eleições.

A medida de polarização adotada neste artigo é a proposta por Dalton (2008DALTON, R. J. The Quantity and the Quality of Party Systems Party System Polarization, Its Measurement, and Its Consequences. Comparative Political Studies, v.41, n.7, p.899-920, 2008.), calculada em razão das distâncias agregadas de cada competidor em relação à posição média do sistema, ponderadas pelo peso (em votos) de cada competidor.7 7 A formula do índice de polarização é: P = √ {Σ pi*([psi - sa]/5)2} em que pi é a porcentagem de votos do partido i, ps é a posição do partido i na escala, e sa é a média das posições dos partidos do sistema. Os dados necessários para esse cálculo foram coletados da base do Manifesto Project e estão descritos na seção anterior deste artigo. Como as quatro dimensões (Planeco, Markeco, Welfare e conservadorismo) são porcentagens, a medida de polarização em cada dimensão também pode variar de 0 a 100.8 8 O índice de polarização assumiria o valor de 0 caso todos os competidores estivessem na mesma posição da escala e 100 caso todos estivessem igualmente divididos entre as duas posições extremas. No caso das eleições aqui analisadas a polarização é maior na dimensão da liberdade de mercado que nas demais, como pode ser visto na Figura 7.

Figura 7
Grau de polarização das eleições presidenciais.

Em quase todas as dimensões a polarização diminui até 2010 e atinge o ponto máximo em 2018, exceto na dimensão de economia planejada. Dadas as medidas das candidaturas descritas na seção anterior, é possível concluir que os conteúdos do programa de Bolsonaro sejam os principais responsáveis pela polarização nas dimensões de conservadorismo e liberdade de mercado. Entretanto, na dimensão de bem-estar a polarização também aumentou em 2018 e está relacionada ao aumento da ênfase das suas categorias no programa do PT (de 14.4 em 2010 para 19.2 em 2018).

Considerações finais

A análise da variação da polarização ideológica ao longo da série de eleições presidenciais confirma tanto os diagnósticos sobre um ponto de inflexão na dinâmica da competição política em 2018 e quanto aqueles sobre a convergência das alternativas no período anterior (1994 a 2014).

O significado dessa dinâmica na polarização é uma questão de interpretação. Apesar de frequentemente apontados como perigosos para a estabilidade democrática, altos níveis de polarização política podem também indicar vitalidade da competição e ajudar os eleitores a identificar melhor as diferenças entre as alternativas (Dalton, 2021_______. Modeling ideological polarization in democratic party systems. Electoral Studies, v.72, n. online first, 2021.). Os eventuais riscos de impasse podem depender mais de outras variáveis (como a alta fragmentação do sistema partidário e a profusão de pontos de veto) do que da distância ideológica de adversários eleitorais.

No momento em que este artigo está sendo escrito, várias preocupações pairam a respeito dos desdobramentos da próxima eleição presidencial de 2022 e seus possíveis impactos sobre a democracia brasileira. A principal delas diz respeito não à polarização ideológica da competição, mas à incerteza sobre a própria sobrevivência da competição.

Referências

  • BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
  • BOLOGNESI, B.; RIBEIRO, E.; CODATO, A. Uma nova classificação ideológica dos partidos políticos brasileiros. 2021. Disponível em: <https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/2552/version/2701>.
    » https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/2552/version/2701
  • BUDGE, I. et al. Mapping policy preferences: estimates for parties, electors, and governments 1945-1998. New York: Oxford University Press, 2001.
  • BURST, T. et al. The Manifesto Data Collection: South America. (MARPOR), M. P. Berlin: Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB) 2020a.
  • BURST, T. et al. The Manifesto Data Collection: South America - Codebook. (MARPOR), M. P. Berlin: Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung (WZB) 2020b.
  • CÂMARA, R. et al. O que há de novo na direita brasileira? Um olhar sobre as opiniões dos congressistas. In: 44º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2020.
  • COWAN, B. A. “Nosso Terreno”: crise moral, política evangélica e a formação da ‘Nova Direita’ brasileira. Varia História, v.30, n.52, p.101-25, 2014.
  • CRUZ, S. V.; KAYSEL, A.; CODAS, G. (Ed.) Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.
  • DALTON, R. J. The Quantity and the Quality of Party Systems Party System Polarization, Its Measurement, and Its Consequences. Comparative Political Studies, v.41, n.7, p.899-920, 2008.
  • _______. Modeling ideological polarization in democratic party systems. Electoral Studies, v.72, n. online first, 2021.
  • DOWNS, A. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999.
  • JORGE, V. L.; FARIA, A. M. T. D.; SILVA, M. G. D. Posicionamento dos partidos políticos brasileiros na escala esquerda-direita: dilemas metodológicos e revisão da literatura. Revista Brasileira de Ciência Política, 2020.
  • KLINGEMANN, H.-D.; HOFFERBERT, R. I. E. A. Parties, policies, and democracy. Boulder: Westview Press, 1994.
  • KLINGEMANN, H.-D. et al. Mapping Policy Preferences II: Estimates for parties, electors, and governments in Eastern Europe, European Union and OECD 1990-2003. Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • LIMONGI, F.; CORTEZ, R. As eleições de 2010 e o quadro partidário. Novos Estudos Cebrap, n.88, 2010.
  • LÖWY, M. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc., n.124, 2015.
  • LUNA, J. P.; KALTWASSER, C. R. The Resilience of the Latin American Right. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2014.
  • MADEIRA, R.; TAROUCO, G. Esquerda e Direita no Brasil: uma análise conceitual. R. Pós Ci. Soc., v.8, n.15, jan./jun. 2011.
  • MADEIRA, R.; VIEIRA, S.; TAROUCO, G. Agendas, Preferências, Competição: PT e PSDB em disputas presidenciais. Caderno CRH, v.30, n.80, p.257-73, 2017.
  • MARTINS, R.; MOREIRA, D.; TAROUCO, G. Ideology and party competition in Brazil: polarization according to electoral manifestos. Associação Nacional de Pesquisa e pós-Graduação em Ciências Sociais, 2021.
  • MAYKA, L.; SMITH, A. E. Introduction - The Grassroots Right in Latin America: Patterns, Causes, and Consequences. Latin American Politics and Society, v.63, n.3, 2021.
  • MELO, C. R.; CAMARA, R. Estrutura da competição pela Presidência e consolidação do sistema partidário no Brasil. Dados, v.55, n.1, p.71-117, 2012.
  • MIGUEL, L. F. Os partidos brasileiros e o eixo “esquerda-direita”. In: KRAUSE, S. (Ed.). Coligações Partidárias na Nova Democracia Brasileira. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.
  • MODDELMOG, L.; SANTOS, P. A. G. Religion and political parties in Brazil. In: HAYNES, J. (Ed.) The Routledge handbook to religion and political parties. London: Routledge, 2020.
  • MUSA, A. Was There a Silent Revolution? A Comparative Analysis of Party Manifestos in Ten European Countries. Politička misao, v.XLIII, n.5, p.121-46, 2006.
  • PIERUCCI, A. F. As bases da nova direita. Novos Estudos, n.19, 1987.
  • QUADROS, M. P. D. R.; MADEIRA, R. Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, v.24, n.3, p.486-522, 2018.
  • QUADROS, M. P. D. R.; MADEIRA, R. M. A “nova direita brasileira” na prática: as proposições protocoladas pelo PSL na Câmara dos Deputados (2019). In: 44º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2020, online. ANPOCS.
  • ROBERTSON, D. B. A theory of party competition. London; New York: J. Wiley, 1976.
  • ROCHA, C. Menos Marx, mais Mises? o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021.
  • SANTOS, P. A. G.; MODDELMOG, L. Brazil’s Evangelical Caucus. In: Oxford Research Encyclopedia of Politics and Religion. online: Oxford University Press, 2019.
  • SMITH, A. E. Religion and Brazilian democracy: mobilizing the people of God. Cambridge University Press, 2019.
  • TAROUCO, G.; MADEIRA, R. Esquerda e direita no sistema partidário brasileiro: análise de conteúdo de documentos programáticos. Debates, v.7, n.2, p.93-114, 2013a.
  • _______. Partidos, Programas e o Debate sobre Esquerda e Direita no Brasil. Revista de Sociologia e Política, v.21, n.45, p.149-65, 2013b.
  • TAROUCO, G.; MADEIRA, R. Os partidos brasileiros segundo seus estudiosos: análise de um expert survey. Civitas, v.15, n.1, p.e24-e39, 2015.
  • TAROUCO, G.; MADEIRA, R.; VIEIRA, S. Manifestos and ideology: methodological issues and applications to Latin America. RBCP, v.37, p.1-42, 2022.

Notas

  • 1
    O Manifesto Project contrata e treina codificadores que segmentam os textos dos documentos em sentenças e classificam cada uma de acordo com alguma das categorias do protocolo. Os documentos brasileiros foram distribuídos entre três codificadores, ficando cada um encarregado de duas a três eleições completas, cada uma com três ou quatro programas. Para os propósitos deste artigo, o fato de que o mesmo codificador ficou responsável pelo conjunto dos programas de cada eleição reduz o risco de que critérios distintos tivessem orientado a escolha das categorias entre os programas que estavam competindo uns com os outros na mesma eleição, e permite, portanto, comparar as medidas resultantes entre os adversários.
  • 2
    O banco de dados do MP contém apenas programas de candidatos que tenham obtido pelo menos 5% dos votos. A eleição de 1989, apesar de listada no banco do MP, não foi incluída nesta análise porque alguns dos programas cujos candidatos atingiram o requisito de votação não estão codificados.
  • 3
    O MP também calcula a escala RILE, da dimensão esquerda-direita, que não foi incorporada na presente análise por já ter sido questionada em outros trabalhos (Martins; Moreira; Tarouco, 2021; Tarouco; Madeira, 2013b; Tarouco; Madeira; Vieira, 2022).
  • 4
    A correlação de Pearson entre as categorias Planeco e Markeco é de -0.3, com p = 0.17.
  • 5
    Uma crítica que inicialmente a análise de conteúdo de programas eleitorais sofreu era que estes documentos não eram lidos pelos eleitores e, portanto, seriam irrelevantes na competição (Miguel, 2010). O desenvolvimento das pesquisas sobre manifestos mostrou que seus conteúdos são instrumentalizados nas campanhas pelos adversários e pela imprensa, além de serem publicados pelas elites partidárias como suas posições oficiais.
  • 6
    A correlação alta e significativa no gráfico da Figura 1 se deve ao efeito da posição isolada do PSL em 2018 que, quando removido, derruba a correlação para 0.22, com p = 0.33.
  • 7
    A formula do índice de polarização é: P = √ {Σ pi*([psi - sa]/5)2 2 O banco de dados do MP contém apenas programas de candidatos que tenham obtido pelo menos 5% dos votos. A eleição de 1989, apesar de listada no banco do MP, não foi incluída nesta análise porque alguns dos programas cujos candidatos atingiram o requisito de votação não estão codificados. } em que pi é a porcentagem de votos do partido i, ps é a posição do partido i na escala, e sa é a média das posições dos partidos do sistema.
  • 8
    O índice de polarização assumiria o valor de 0 caso todos os competidores estivessem na mesma posição da escala e 100 caso todos estivessem igualmente divididos entre as duas posições extremas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2022
  • Aceito
    13 Set 2022
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br