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Algumas mãos de pintura

CRIAÇÃO / ARTES PLÁSTICAS

Algumas mãos de pintura

Lorenzo Mammì

NESSES ÚLTIMOS ANOS, o interesse de curadores e instituições internacionais esteve bastante afastado da pintura. Meios que pressupõem um maior distanciamento da matéria e do gesto individual – fotografia, vídeo, instalação, e os assim chamados mixed media –, pareceram atrair muito mais a reflexão teórica. No entanto, nesses mesmos anos, o Brasil (e sobretudo, até onde eu sei, São Paulo) assistiu ao desenvolvimento de uma produção pictórica importante. Na década de 90, a pintura paulista fixou algumas questões que já esboçara no final da década passada, questões que, a meu ver, a crítica não conseguiu avaliar com o devido destaque, porque seu instrumentário estava dirigido para outras áreas de produção artística.

Nas páginas que seguem mostramos obras recentes de pintores que atuam em São Paulo, e que chegaram a amadurecer sua linguagem ao longo desta década. Cada um dele possui um estilo próprio, bastante diferente dos demais. No entanto, há alguns traços em comum: todos eles trabalham com questões que dizem respeito à própria feitura da obra (linha, cor, matéria, sentido da superfície e ilusão de profundidade), criando relações que se resolvem dentro do plano do quadro, e independem da colocação do quadro no espaço. Em outras palavras, todos eles parecem preocupados em colocar e resolver problemas circunscritos num campo de ação autônomo e auto-suficiente – campo que se identifica, fisicamente, com a superfície do quadro e, idealmente, com o ofício de pintar.

Costumamos identificar essa reivindicação de autonomia com o conceito histórico de Modernismo, conceito que encontrou sua formulação mais forte e mais recente em Clement Greenberg. A idéia de que a arte precise definir claramente um campo autônomo de atuação, para exercer sua função crítica – idéia que é o cerne do pensamento modernista –, foi duramente criticada nos últimos 30 anos, e sobretudo na última década, a favor de uma concepção da arte mais aberta, indeterminada e "impura". Como interpretar, então, o ressurgir de comportamentos artísticos tipicamente modernistas, justamente agora, e justamente no Brasil? Uma primeira resposta poderia ser que, no Brasil, nunca existiu um campo específico da arte, sólido e claramente definido. A urgência de criá-lo, a partir de práticas próprias, irredutíveis a outros contextos, é portanto mais evidente entre nós do que em outros países, em que essa independência, pelo menos institucionalmente, parece garantida. A nova pintura, em suma, responderia à exigência de estabelecer uma forma mentis artística adequada, para alcançar finalmente uma modernidade sempre prometida e continuamente adiada.

Mas podemos ampliar a perspectiva: a década de 90 abriu-se na ilusão de que todas as grandes narrativas estivessem esgotadas. A hipótese do fim da história gerou naturalmente a hipótese do fim da arte: de fato, se a arte é fixação de um fato contingente irredutível a sistema, e se esse fato contingente não pode mais ser inserido numa narrativa, então a arte perde qualquer esperança de estabelecer um campo próprio de conhecimentos, que seja específico e relevante. Torna-se um aparato retórico, disponível para veicular um conteúdo qualquer. Nesse quadro, não faz muito sentido procurar os limites específicos de cada meio: quanto mais polivalentes e envolventes as obras, tanto mais persuasivo o discurso. Mas a década se fecha num clima, por assim dizer, de fim do fim da história – na sensação de que grandes questões, inclusive culturais, ainda não foram resolvidas. Parece-me que, nesse quadro, a tentativa de estabelecer uma área específica do saber estético possa voltar a ser relevante. Não surpreenderia, então, que esse esforço fosse mais evidente em países para os quais a história ainda deve muito.

Lorenzo Mammì, crítico de arte, é professor do Departamento de Música da ECA-USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 1998
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