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Torto arado e o Brasil profundo

O livro Torto arado foi publicado em 2018 pela editora Leya e em 2019 pela editora Todavia, recebendo prêmios cobiçados em literatura, o Jabuti, LeYa e o Oceanos, e está em primeiro lugar na venda de livros em 2020 e em 2021. Escrito por Itamar Vieira Junior, geógrafo com doutorado em estudos étnicos pela UFBA, escritor de livros de contos como Dias,1 1 Publicado em 2012 pela editora Caramurê Produções. e A oração do carrasco.2 2 Publicado pela editora Mondrongo em 2017, finalista do 60º Prêmio Jabuti na categoria “conto”. Em algumas entrevistas diz ser o livro fruto de suas pesquisas, de muitas horas de entrevistas gravadas.3 3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-CbV5BI9SM4>.

O livro se insere na característica de (re)construção da história da colonização do Brasil. Trata da força e dos desmandos de proprietário rico a que a população pobre vivente das entranhas da terra está à mercê, como é possível ver em vários outros lugares. Tendo sido tão bem escrito, descreve o sertão semiárido do Nordeste, e ressalta a força da percepção da diferença do local, sertão da Bahia, na região da Chapada Diamantina, próximo à bacia hidrográfica do Rio Utinga.

Traz a problemática do mundo rural brasileiro, as raízes profundas de nossa sociedade, relativamente às condições de trabalho e de acesso à terra, e muito acentuadamente a vivência da população pobre, sem terra, sem direitos, que “vive de morada”, no Nordeste, mas aplicável a várias outras regiões do Brasil. Mostrando a história e colonização do território pelo lugar de fala dos que, em geral não falam, não têm nome, ou não têm voz, na historiografia nacional.

A análise do texto (Candido, 2005CANDIDO, A. Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.) se fará primeiro em aspectos gerais da narrativa, do cenário e depois na estrutura e em três eixos considerados centrais no livro. O cenário do livro é a fazenda Águas Negras. O autor optou por não ter um único narrador do início ao fim da história. Adota um artifício literário interessante em que o texto é falado na primeira pessoa, mas são três narradoras, figuras femininas que se revezam entre si com a sua presença narrativa. O resultado é a sensação de uma expressão única de sentimento e pensamento da narração, unificando nos diferentes personagens da trama visões do feminino, do divino, da experiência silenciada e da voz que reivindica.

Em relação à trama do texto ela tem como fio central um acidente com uma faca quando duas crianças de 6 e 5 anos, Bibiana e Belonísia, a colocam na boca e uma tem sua língua decepada, marcando-a no lugar de silenciada, e a outra tem somente cortes que serão suturados com auxílio médico, ocupando o lugar da voz que grita para sair da invisibilidade e serão as duas primeiras vozes narrativas do texto.

A estrutura textual é composta por três grandes partes intituladas: Fio de corte, com 15 capítulos, Torto Arado, com 24 capítulos, e Rio de Sangue, com 14 capítulos.

O acidente abre o capítulo inicial da primeira parte, Fio de corte, assim como está presente no capítulo que fecha a primeira parte, com a memória do acidente, e a sua consequência para pelo menos a que perdeu a língua - “a liberdade da prisão que pode ser o silêncio”.

Na segunda parte, Torto Arado, o primeiro capítulo volta ao acidente de forma onírica e avança para imagens que somente no fim do livro as entenderemos completamente. O sonho que se repete para a silenciada durante anos tem no elemento central o punhal, somado ao homem branco bem-vestido, a cerca e o sangue que brota do chão.

Esses elementos constroem o conjunto de símbolos da história que contam as experiências com a terra, da exclusão de quem nela trabalha, refletindo as relações conflituosas resultado da ausência histórica da reforma agrária. Aquela inexistente que produz e mantém o arado velho rasgando a terra, o arado torto que se tornou a ausência de voz, reforçando a ausência de coragem de gritar contra as injustiças, a massa de silenciados, assim como de uma vida como gado, trabalhando sem ter nada em troca. E ainda as palavras tortas, os maus tratos com as mulheres, preparadas para gerar novos trabalhadores para os senhores. Contrabalançado com a voz que grita sobre as injustiças, as lideranças e a condução das pessoas por caminhos incertos e tortuosos. A segunda parte finaliza com a fenda aberta dos tempos que aparenta trazer novos ares, mas que continua a resolver os conflitos no fio do corte e no extermínio de lideranças.

A terceira parte, Rio de Sangue, traz a voz da experiência do divino, ou melhor dizendo, da voz sobrenatural divina e feminina. Uma voz encantada que fala da história de muitos séculos do rio de sangue de nossa colonização e ocupação do território, da violência contra negros e índios, mas também de mestiços trabalhadores, de pobres quase brancos, das “mulheres miúdas”, mulheres “pegas a dente de cachorro”, “mulher-peixe”, um enredo onde os marcadores sociais da diferença se consolidam na manutenção daqueles Outros excluídos no limite, sem a possibilidade de construção de casas iguais aos donos (de alvenaria), sem banheiros nas casas, sem sapatos, sem luz elétrica, sem lugar nos planos dos novos donos da fazenda.

Somente a resistência ao ódio da aniquilação se mantém, seja através do rio de sangue e lágrimas, seja através da “viração”, da força dos entes sobrenaturais, ou mesmo supernaturais. A imanência da força dessa voz n(d)a natureza e a transcendência dos encantados parecem se reunir aqui para exibir uma força mágica, mística que traria a justiça divina na terra.

Por fim, no último capítulo da terceira e derradeira parte evidencia-se uma desidentificação, descorporificação das meninas e uma corporificação com o sobrenatural, unindo assim as três personagens em uma só construção de ação narrativa. A construção das narrativas ao longo do livro não reforça suficientemente a diferença entre essas, o que muitas vezes faz que o leitor não perceba a transição entre elas. Assim parece que a ausência de uma enfática diferenciação dessas, ou mesmo a construção de diferentes formas narrativas de modo a destacar as personalidades dos personagens narradores faz-se de modo a deixar crer que se trata de intenção do autor, que a construção da psique dos personagens narradores se faça não pela diferença, que o discurso construirá entre elas, mas exatamente ao contrário. A narrativa se fortalece pela polarização entre o dito e o não dito, pela interdição, uma concretamente, e outra socialmente, resultando, no final, uma superação encantada, através da fusão das três vozes narrativas, na construção da justiça terrena, na superação da interdição para a construção da afirmação. O dito, o não dito, afirmado por puro instinto de preservação e a força do pensamento mágico.

Vivências e experiências com a terra

São inúmeras as referências da relação com a terra como coisa e a sua oposição, a terra como experiência de existência. Na primeira ideia descortina-se um conjunto de relações capitalistas e colonialistas de dominação, como a escavação pelos escravos da terra na busca de diamantes, vê-se também a extensão da mercantilização da terra para os corpos dos escravos, obrigados a morrer na guerra que não é a deles.

No segundo caso, evidencia-se a terra como experiência e coexistência transpassando um conjunto de analogias em que a terra, o rio, a plantação reconhecem e respondem pela relação estabelecida com quem se lhes interpõe.

A diferença que se encontra na forma de inserção produtiva é explicada “esta terra que cresce mato, que cresce caatinga, o buriti, o dendê não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher”, tanto quanto explica o entendimento da terra como mercadoria. A terra é objeto de aprendizado, dá lições para produção de conhecimento, envolvendo integralmente esses aprendizes ao que uma das narradoras relembra os ensinamentos do pai: “ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas alumbrava no horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado” (cap.2, Parte II). O defeito físico que impede definitivamente a fala para Belonísia é comparado a um arado torto, uma anomalia da natureza que, como um grunhido estranho, faz também a ausência de voz para gritar contra as injustiças “de uma vida como gado, trabalhando sem ter nada em troca”.

Atravessamentos de raça, classe e gênero

A questão da raça é central no livro, mas inusitadamente só na terceira parte de Torto arado temos a certeza de que Águas Negras, que tinha um rio da cor das pessoas que lá trabalhavam, teria certamente sido um quilombo. No entanto, é na dialética da afirmação pela voz que fala, e da negação pela interdição do segundo dono, “cor de areia ferrugem”, que temos a certeza.

Desde a vinda de Zeca do Chapéu Grande, filho de Donana, descendente direta de escrava, parido o filho na lida, no meio do milharal. Zeca, pai de Bibiana e Belonísia, tem o trabalho como sina ininterrupta, horas intermináveis de trabalho, suas mãos são grandes, desproporcionais “grossas de trabalho, como se tivesse muitas luvas de pele e de calos as calçando” (cap.17, Parte III). Na terceira parte faz-se uma surpreendente descrição das relações mesquinhas e violentas, impostas pelo branco colonizador e a expulsão dos índios e negros das terras. A mesma ideia de exploração se estende às mulheres. As metáforas com as palavras tortas, os maus-tratos no nível do simbólico, “o arado velho rasgando a terra”, “as mulheres da roça feitas para gerar novos trabalhadores para os senhores”, assim como, a perda da subjetividade, a falta de carinho, e a sujeição nas relações familiares, como ainda escravizados fossem.

Cotidiano e êxtase

Zeca Chapéu Grande virou curador por João Curador, que lhe ensinou os mistérios das ervas, da escuta dos doentes, do cuidado dos encantados, da atenção às obrigações de Deus; recebe em sua casa como se lá fosse um hospital para os aflitos do corpo e do espírito, os desesperados, evidenciando mais uma ausência de escuta dos excluídos. O Curador teria mesmo vivido o estado alterado por visões, desespero. O Velho Nagô, através de Zeca, mantém seu trabalho de muitas curas. As festas de Jarê são comandadas pelo Velho Nagô. Há também Oxossi, mãe d´água e da ventania e várias entidades manifestadas nas festas de Jarê, como Santa Rita Pescadeira. Essa última é a terceira voz da narrativa e relata muitos séculos de história dos sem história, os castigos, o sangue escorrido pela terra. Aqui cotidiano e êxtase são reunidos na ausência de interdição. Miúda, o corpo da encantada Pescadeira, pega a dente de cachorro, é uma mulher-peixe, tem uma relação com a água de encantamento, enfeitiça os peixes, dorme de madrugada na beira d´água do rio. Imita o som dos peixes e dos pássaros. Não usa sapatos, molha seus pés na beira dos rios. Pescadeira denuncia o abuso desrespeitoso estabelecido por séculos, a alteração da natureza do curso de rios, o desaparecimento dos peixes maiores e dos próprios rios. Encantamento, magia e realidade se fundem com os relatos da região.4 4 Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/4551-familias-ribeirinhas-do-rio-utinga-ba-sofrem-com-a-falta-de-agua-e-pedem-socorro>.

Enfim, o texto nos lembra livros épicos da literatura acrescido de um realismo próximo ao mágico. Lugar de fala dos sem escrita sobre a dureza da realidade brasileira, mostrando a luta por um sonho, o rio de sangue para consegui-lo, a resistência junto à religiosidade. A secura da terra, a abundância d´água, a apropriação desigual da terra, as estratégias de sobrevivência étnica para salvar o produzido da usurpação, a enunciação de um padrão de séculos cujos marcadores estão fincados com raízes intocadas nas instituições deste Brasil profundo. Além de uma literatura fluida, forte e bela.

Referências

  • CANDIDO, A. Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
  • JUNIOR, I. V. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019.

Notas

  • 1
    Publicado em 2012 pela editora Caramurê Produções.
  • 2
    Publicado pela editora Mondrongo em 2017, finalista do 60º Prêmio Jabuti na categoria “conto”.
  • 3
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-CbV5BI9SM4>.
  • 4
    Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/4551-familias-ribeirinhas-do-rio-utinga-ba-sofrem-com-a-falta-de-agua-e-pedem-socorro>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    31 Ago 2021
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