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ENTREVISTA COM ODILE CISNEROS

Nascida no México e tendo vivido na Europa entre os anos de 1991 e 1997, ao retornar à América, no seu doutorado pela Universidade de New York (1997-2003), Odile Cisneros pesquisou sobre o nacionalismo nos movimentos de vanguarda no México e no Brasil. Atualmente a Dra. Odile é professora Associada do Departamento de Línguas Modernas e Estudos Culturais da Universidade de Alberta, localizada na cidade de Edmonton, na província de Alberta no Canadá. Ao lado de Richard YoungYoung, Richard; Cisneros, Odile. Historical dictionary of Latin American literature and theater. Lanham: Scarecrow Press, 2010., a Dra. Cisneros publica no ano de 2011 o Historical Dictionary of Latin American Literature and Theater. Também, em parceria com A.S. Bessa, é coeditora e tradutora de Novas: Selected Writings of Haroldo de Campos (2007). Além disso, a Dra. Cisneros traduziu obras dos poetas Régis Bonvicino, Haroldo de Campos, Sérgio Medeiros e Jaroslav Seifert. Sua tradução para o inglês de Galáxias, de Haroldo de Campos, tem previsão de publicação no ano que vem pela casa editora Ugly Duckling Presse (Brooklyn). Apresentando o tema “Tradução e poéticas radicais: o caso de Octavio Paz e o grupo Noigandres”, a Dra. Cisneros fez a palestra inaugural do primeiro semestre de 2020 do Programa de Pós-Graduação em Estudo da Tradução (PPGET) da Universidade de Santa Catarina, onde atuou como professora visitante ministrando uma disciplina intensiva sobre ecopoesia e tradução e a disciplina regular sobre a tradução da literatura brasileira no cenário mundial. Em isolamento social juntamente com sua família em Florianópolis em meio à pandemia de Covid-19, ela gentilmente aceitou nosso convite de conceder de forma remota esta entrevista sobre a tradução de poesia.

Cadernos de Tradução (CT): Como surgiu seu interesse em pesquisar literatura brasileira, particularmente a poesia concreta e o grupo Noigandres?

Odile Cisneros (OC): Quando estava na graduação, descobri a literatura brasileira quase por acidente. Sempre tive um fascínio com o Brasil. Lá pelo começo da década de 1990, quando eu era estudante universitária em Boston, me apaixonei pela música popular brasileira escutando um programa de rádio chamado “Coração Brasileiro”. Não havia aulas de português na minha universidade, mas eu procurava todos os eventos que tivessem a ver com o Brasil. Num desses eventos, assisti ao filme A hora da estrela, de Suzana Amaral, baseado no romance da Clarice Lispector. A história me cativou, e então passei a procurar os livros da Clarice, lendo primeiro em tradução, e depois no original português com (ou sem!) dicionário. Já no doutorado, tive a primeira oportunidade de viajar para o Brasil. Nessa viagem eu pretendia pesquisar a obra da Clarice no Rio, mas acabei descobrindo a poesia brasileira do modernismo e contemporânea. Na pós-graduação tive a sorte de encontrar professores e tradutores maravilhosos como Richard Sieburth, também estudioso de Ezra Pound, e Eliot Weinberger, tradutor do Octavio Paz. Eles me incentivaram a procurar os poetas concretos e contemporâneos do Brasil. Graças ao estímulo e apoio de Richard Sieburth, grande tradutor do francês e do alemão, com um colega da pós, Sérgio Bessa, começamos a organizar uma antologia em inglês das obras (poesia e ensaios) de Haroldo de Campos. Conhecer esse grande poeta e tradutor do Brasil foi um dos maiores privilégios da minha vida. O visitei algumas vezes em sua casa no bairro de Perdizes em São Paulo enquanto organizávamos o volume Novas, que ele infelizmente não chegou a ver publicado, uma vez que veio a falecer quando o volume se encontrava em processo de edição. A generosidade com que ele me recebeu e apoiou o projeto me marcou muito.

Cadernos de Tradução (CT): Como a senhora avalia a contribuição dos concretistas aos estudos poéticos e à tradução de poesias no contexto da América latina e da literatura mundial?

Odile Cisneros (OC): Não é exagero dizer que a poesia concreta não apenas mudou o rumo da poesia de vanguarda no Brasil no pós-guerra. Ela também teve um grande impacto em divulgar as ideias da vanguarda brasileira fora do Brasil. Não diria que foram os primeiros poetas a serem conhecidos fora do Brasil—João Cabral morou na Espanha e Murilo Mendes na Itália, e ficaram conhecidos naqueles países. Mas os poetas concretos, através de viagens e de uma assídua correspondência, conseguiram criar uma extensa rede de contatos literários, não apenas na Europa, mas também nos Estados Unidos e até mesmo no Japão. Eles foram tanto poetas quanto intelectuais e teóricos. Embora adotassem posturas às vezes radicais (transcriação, por exemplo, e a declaração da autonomia da tradução poética perante ao original), o programa deles é perfeitamente coerente e sistemático. E eles eram rigorosos em tudo. Traduziram de muitas línguas e períodos, em parceria e individualmente. Tanto na tradução quanto nas discussões teóricas sobre tradução, seus textos, especialmente os do Haroldo e do Augusto de Campos, viraram referências em estudos da tradução e uma grande lição e inspiração para todos nós tradutores!

(CT): Haroldo de Campos concebe a tradução poética como sinônimo de tradução artística, utilizando-se do termo transcriação (entre outros), conceito que Augusto de Campos prefere chamar de tradução-arte. A senhora concorda com esta forma de tradução do texto poético? Se sim, quais seriam os elementos balizadores no trabalho de recriação poética para que o texto recriado mantenha o status de tradução, não sendo considerado apenas uma tradução livre?

(OC): Concordo, sim! Tanto para Haroldo quanto para Augusto, no caso da poesia (e da literatura em geral), tradução é criação. O ensaio fundamental nesse sentido é “Da tradução como criação e crítica”, no livro Metalinguagem de Haroldo de Campos. Haroldo argumenta nesse ensaio que o fato da impossibilidade, na arte verbal, de separar forma e sentido é o que concede licença ao tradutor para sua (re)criação poética. Haroldo trabalhou a ideia de transcriação de muitas maneiras, e para cada autor criou um novo termo, transluciferização (na tradução do Fausto de Goethe), transparadização (na tradução do Paraíso de Dante). Augusto também, nos ensaios que acompanham muitas das suas brilhantes traduções (lembro-me, por exemplo do prefácio às traduções de E. E. Cummings), expõe os vários mecanismos através dos quais procura um efeito semelhante ao original usando meios diferentes. Na prática tradutória, os poetas concretos se inspiraram bastante na tradição de Pound do “Make It New.” Pound contemplava a tradução como um exercício prévio à escrita original. Também, para Pound a tradução é uma espécie de “homenagem” ao poeta, ou também uma “persona” (máscara, em latim) em que o poeta-tradutor “empresta” sua voz para o outro poeta poder falar. Nesse processo há necessariamente mudanças e criação. Não sei se os poetas concretos concordariam que, no caso de textos poéticos, “tradução” se separa de “tradução livre”. Acredito que para eles a liberdade faz parte da criação – a “licença” poética, por assim dizer. Não há uma linha divisória fixa entre elas. No último livro de poesia de Augusto, Outro, ele apresenta “versões” de muitos poetas (de Catulo até Erykah Badu) que realmente poderiam ser apropriações, homenagens, criações inspiradas nos poetas traduzidos. Os recursos são verbais, mas também visuais, inclusive as fontes tipográficas... Os termos com que ele designa esses textos são “intraduções” e “outraduções”, jogos verbais muito ricos que implicam conceitos de intimidade, interioridade, “outredade”, assim como referências musicais ao termo “outro” (uma faixa extra num disco, um “bônus”).

(CT): A senhora já experimentou recriar poesias em sua prática tradutória? Se sim, quais foram seus maiores desafios no processo de recriação poética?

(OC): Já traduzi muita poesia, sim, e, sem dúvida, trata-se de uma tarefa exigente. Dependendo do autor e do texto, os desafios são diferentes. Posso falar de alguns exemplos. Há alguns anos traduzi para o inglês algumas estrofes do “Inferno de Wall Street”, um canto do Guesa errante, longo poema épico de Joaquim de Sousândrade. Sousândrade foi um grande inovador do século XIX no Brasil, embora pouco reconhecido em seu tempo. Traduzi-lo foi um grande desafio pelas inúmeras referências ao contexto da história brasileira, mas também ao momento que ele viveu em Nova York (ele fala dos escândalos da bolsa no chamado Gilded Age americano do fim do século XIX). Para traduzi-lo, tive que pesquisar muitas coisas sobre o contexto—tradução também é pesquisa! Também a forma fixa e o esquema de rimas que ele usa foram difíceis de reproduzir, sobretudo em inglês, já que a poesia contemporânea em língua inglesa se afastou das rimas e das formas fixas. Na tradução, você quer que Sousândrade possa falar para os leitores do século XXI sem soar como um limerick do século XIX... O som da poesia talvez represente o maior desafio— rimas, ritmos, aliterações, enfim, todos os recursos sonoros, especialmente onde há pouco espaço. Na tradução para o português de alguns haikus do poeta mexicano José Juan Tablada, existem aspectos da sonoridade que não há como traduzi-los de maneira satisfatória. No célebre poema “El saúz”, Tablada altera, de maneira poética, o nome da árvore “sauce” (salgueiro) para “saúz”. É uma árvore ribeirinha com ramos longos que pendem até o chão e folhas leves. Quando você lê esse poema de apenas oito palavras, você entende o porquê dessa mudança criativa:

Tierno saúzcasi oro, casi ámbar,casi luz...

Tablada está procurando uma rima, no último verso, com a palavra “luz”. A imagem que o poema cria é a de uma árvore vista numa atmosfera luminosa que altera sua cor. A árvore, por assim dizer, vai se “desmaterializando”: se transforma de ouro, que é sólido; para ámbar, também sólido, mas transparente; para luz, que é imaterial. Essa ideia vem se reforçar com a rima saúz/luz, o que, infelizmente, se perde em português—não há como transformar “salgueiro” numa palavra que rime com “luz”... No português, temos que ficar satisfeitos apenas com a sugestão da imagem, mas sem o reforço da rima…

(CT): Sua tradução de Galáxias, de Haroldo de Campos para o inglês encontra-se no prelo, com previsão de publicação para o ano que vem. Como é traduzir um poeta e teórico brasileiro para o público de fala inglesa?

(OC): Haroldo já é conhecido (e reconhecido) por poetas e estudiosos da vanguarda nos Estados Unidos e no Canadá. As suas atividades na época da poesia concreta e além também o tornaram uma referência para poetas interessados em inovação em outros países de língua inglesa como Inglaterra e Escócia. Muitos de seus ensaios foram traduzidos para o inglês e publicados em revistas ao longo dos anos, embora é verdade que ele demorou mais tempo para ser reconhecido no universo de língua inglesa que no âmbito de outras línguas. Em 2007, se publicou Novas, que reuniu textos teóricos e poesia vertidos para o inglês. No entanto, essa tradução de Galáxias é importante como uma “re-apresentação” do Haroldo para os leitores de poesia em inglês. O aspecto da sonoridade em Galáxias representa um grande desafio uma vez que o português e o inglês são línguas relativamente distantes. No entanto, nesse projeto da tradução de Galáxias, tenho trabalhado ao lado de grandes tradutoras de textos de vanguarda como Suzanne Jill Levine e Erín Mouré, com as quais aprendi muito.

(CT): A senhora coordena um recurso on-line e trilíngue denominado ecopoesia.com, junto à Universidade de Alberta, o qual mapeia relações existentes entre a poesia latino-americana contemporânea e o meio-ambiente. Na sua opinião, além de contribuir com a consciência ecológica, quais outras contribuições a poesia latino-americana e, particularmente a poesia brasileira, têm a oferecer à literatura mundial?

(OC): Cada poesia é uma visão única, uma versão particular do mundo, e tem joias para oferecer à literatura mundial. Já que minha preferência é a poesia de vanguarda do século XX, poderia dizer que nesse período e contexto existem grandes vozes que já deram sua contribuição à literatura mundial e outras que ainda precisam ser mais conhecidas. Foi um período muito rico no qual, em pouco tempo, surgiu uma constelação de poetas brilhantes como Huidobro, Vallejo e Girondo, que levaram a linguagem poética para rotas nunca antes navegadas. Posso dizer que algumas experiências deles com a linguagem ainda não foram ultrapassadas. Já poetas como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges e Octavio Paz ficaram conhecidos no mundo inteiro. A poesia brasileira também criou uma linguagem nova, começando com o modernismo de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, passando por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, até o construtivismo de João Cabral de Melo Neto e a poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari. Talvez o que distinga a poesia latino-americana desse contexto é uma procura pela novidade que também responde a um contexto nacional, embora a poesia nem sempre seja referencial. Essa particularidade, assim como a hibridez nas culturas de nossos países, tem criado tradições poéticas originais que precisam ser mais conhecidas. Curiosamente, também, precisamos estreitar mais os laços entre a poesia hispano-americana e a poesia brasileira. Nesse sentido, continuamos sendo “vizinhos distantes”. Poetas contemporâneos tão importantes como José Emilio Pacheco e Homero Aridjis são quase completamente desconhecidos no Brasil pela falta de traduções para o português. A poesia brasileira contemporânea, por sua vez, precisa de mais tradutores para o espanhol.

Referências

  • Young, Richard; Cisneros, Odile. Historical dictionary of Latin American literature and theater Lanham: Scarecrow Press, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
  • Publicado
    Mar 2023
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