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DECLARAÇÕES ENQUADRADAS DE CORPOS “VADIOS”: LEITURA DE UM ARQUIVO DE REPRESSÃO POLICIAL À PROSTITUIÇÃO DE TRAVESTIS

RESUMO

O artigo propõe a leitura de um arquivo policial de repressão à prostituição de travestis na década de 1970, na cidade de São Paulo. O objetivo é analisar nos documentos de polícia jogos de estratégias de enquadramentos de corpos para a fabricação de indivíduos criminosos, na moldura do discurso penal sobre a contravenção da vadiagem. O corpus da pesquisa é formado por 316 termos de declaração lavrados pela Polícia Civil de São Paulo, textos de criminologia, leis e um manual de polícia, reunidos por meio da pesquisa documental. Uma base de referências multidisciplinares (linguísticas, históricas, jurídicas e filosóficas) fundamenta a leitura articulada dos materiais do corpus. As análises focam na construção do argumento penal, nas instâncias de enunciação e na observação de elementos formais que apontam para a criminalização das travestis por meio da mobilização de um aparato de linguagem para descrever física e moralmente seus corpos. As estratégias discursivas são interpretadas neste estudo como tecnologias de um poder pastoral, conforme a compreensão de Michel Foucault, que atua sobre a circulação de corpos no espaço urbano, no contexto em questão.

arquivo policial; prostituição de travestis; vadiagem; enquadramentos discursivos

ABSTRACT

This article examines a police file on repression of travesti prostitution in the 1970s in the city of São Paulo. The aim is to use police documents to analyze the strategy of having framing bodies to manufacture criminals, in the frame of the penal discourse on the vagrancy misdemeanor. The research corpus is 316 affidavits issued by the Civil Police of São Paulo, criminological texts, laws, and a police manual, gathered through documentary research. A multidisciplinary reference base (linguistic, historical, legal, and philosophical) is the basis for the integrated reading of the corpus materials. The analyses focus on the construction of the penal argument, the instances of enunciation, and the observation of formal elements that point to the criminalization of cross-dressing prostitutes by mobilizing a language apparatus to physically and morally describe their bodies. The discursive strategies are interpreted in this study as technologies of a pastoral power that acts on the circulation of bodies in urban spaces in the context in question, following Michel Foucault’s understanding.

police archives; travesti prostitution; vagrancy/loitering; discursive frames

Introdução

Em 16 de maio de 1977, a travesti1 1 O vocábulo “travesti” apresenta um histórico de usos no Brasil que envolve processos de estigmatização social (correlacionando identidade transgênero, classe social, prostituição e criminalidade) e movimentos mais recentes de ressignificação que estimulam novas conotações políticas não pejorativas. Patrícia foi detida na região central da cidade de São Paulo por policiais militares à paisana e prestou depoimento na Delegacia do 4º Distrito Policial, ao delegado Guido Fonseca. Sobre as circunstâncias de sua detenção, o termo de declaração lavrado na ocasião registra que ocorreu na avenida Ipiranga, onde, afirma-se, a declarante “se encontrava conversando com bichas” (SÃO PAULO, 1976-1977). No documento, ainda constam dados sobre trabalho, residência, uso de hormônios, a informação de que “não usa peruca mas usa os cabelos compridos” (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.-1977) e os valores de seus gastos mensais com “roupas femininas”. O termo faz parte de um conjunto documental com os registros de uma série de sindicâncias policiais contra travestis, realizadas entre 1976 e 1977, no centro da cidade de São Paulo.

O contato com essa documentação foi o estalo para a elaboração de um projeto com a proposta de refletir sobre a relação entre direitos humanos e linguagem a partir da leitura de documentos oficiais de arquivos de repressão. O interesse do recorte aqui apresentado é discutir, a partir de procedimentos de leitura dos documentos oficiais, algumas das formas pelas quais as tecnologias discursivas policiais atuam na construção de enquadramentos legais de corpos. A ideia de analisar os discursos de poder nesses documentos passa, portanto, não apenas por se debruçar sobre alguns aspectos linguísticos, mas principalmente, como propôs Foucault (2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005 [1974]. [1974]), interpretar seus jogos de estratégias. Essa compreensão de discurso como conjunto de estratégias situa o fato discursivo nas práticas sociais, particularmente aqui nas práticas judiciárias, o que nos permite, pela análise histórica, mais do que ler o funcionamento das instituições, “localizar a emergência de novas formas de subjetividade” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005 [1974]. [1974], p. 11).

Na estrutura deste texto, começamos com uma discussão de fundo teórico e metodológico sobre o trabalho com os documentos de arquivos de repressão e com a apresentação do corpus formado para a pesquisa. Na sequência, focamos a construção dos sentidos e os usos históricos da vadiagem como ilícito no Brasil e as incongruências jurídicas e discursivas desse tipo penal de autor (DUBBER, 2013DUBBER, M. D. Criminal Jurisdiction and Conceptions of Penality in Comparative Perspective. University of Toronto Law Journal, Toronto, v. 63, n. 2, p. 247-277, 2013. Disponível em: https://utpjournals.press/doi/citedby/10.3138/utlj.11117-2?role=tab. Acesso em: 01 fev. 2023.
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)2 2 Em contraste ao direito penal de ação ou ato (do alemão, Tatstrafrecht), o direito penal de autor (Täterstrafrecht) é uma concepção do direito penal baseada no princípio da personalidade ativa: a ação é “significativa apenas como um sintoma das características do autor” (DUBBER, 2013, p.272). . Na última parte do artigo, são desenvolvidas algumas análises articuladas dos documentos que compõem o corpus, buscando ler as estratégias que formam as tecnologias de um poder pastoral que atua sobre a circulação de corpos no espaço urbano, nos limites do contexto em questão.

Arquivos de repressão, leitura de documentos e o corpus da pesquisa

Dentro das formas institucionais de memória, os “arquivos de repressão” são usualmente compreendidos como uma reunião de documentos oficiais de instâncias de vigilância e repressão ao crime político. Esses documentos, tornados públicos em períodos posteriores aos de suas vigências, cumprem papel central em processos ligados aos direitos de Justiça de Transição.

Arlette Farge (2017FARGE, A. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2017 [1989]. [1989], 2019 [1997]) reflete sobre como os arquivos de naturezas judiciária e policial podem ser fontes para compreensão do sofrimento popular, pois, ao registrarem as ações de repressão, acabam por abrir a possibilidade de se “arranca[r] da obscuridade longas listas de seres ofegantes, desarticulados, intimados a se explicar perante a justiça”, por meio do trabalho historiográfico (FARGE, 2017FARGE, A. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2017 [1989]. [1989], p.31). Os “ditos de sofrimento” (FARGE, 2019FARGE, A. Lugares para a história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2019 [1997]. [1997], p. 14) e a voz repressiva não se apresentam, assim, apenas em situações que possam ser caracterizadas como “de exceção”, mas povoam os registros policiais dos eventos reles, das transgressões cotidianas, dos pequenos delitos enquadrados pelas ações, também rotineiras, de ordenação das cidades.

Articulando os apontamentos anteriores, tecemos aqui uma compreensão de “arquivos de repressão” para além da caracterização do crime político: em conjunturas autoritárias, até mesmo os “crimes menores”, as pequenas infrações, como as contravenções penais, são emoldurados politicamente sob o regime da violência de estado. O cotidiano popular é, assim, marcado por violências e interdições diversas sobre as vidas pessoais e sobre os corpos dos habitantes das cidades. Pensando nisso em um cenário histórico e social como o brasileiro, em que as formulações institucionais irrompem, de maneira abrupta, na vida cotidiana e na esfera íntima, os arquivos policiais e judiciários têm potências enunciativas das quais poderíamos extrair chaves para interpretar a repressão e o sofrimento na formação brasileira contemporânea.

Na proposição de Farge, há uma sinalização da capacidade de o gesto interpretativo do historiador transformar arquivos políticos em históricos. Aleida Assmann (2008ASSMANN, A. Canon and Archive. In: ERLL, A.; NÜNNING, A. (ed.). Cultural memory studies. Berlin: Walter de Gruyter, 2008. p. 97-107., p.102, tradução nossa) aponta a importância dessa distinção: na dimensão política, o arquivo serve “como ferramenta para a legitimação simbólica do poder e para disciplinar a população”3 3 No original: “They also served as tools for the symbolic legitimation of power and to discipline the population” (ASSMANN, 2008, p. 102). ; apropriado como materialidade histórica, ganha uma segunda vida, recontextualizado, como uma força capaz de formar “a base do que pode ser dito no futuro a respeito do presente, quando este tiver se tornado passado”4 4 No original: “The archive is the basis of what can be said in the future about the present when it will have become the past” (ASSMANN, 2008, p. 102). . O gesto de transformar o arquivo político em histórico opera na capacidade performativa dos documentos, com suas instabilidades de sentidos, o que Judith Butler (1997)BUTLER, J. Excitable speech: a politics of the performative. New York: London: Routledge, 1997. chamou de “temporalidade aberta do ato de fala” (“open temporality of speech act”), e pode corresponder, no trabalho de interpretação, à fabricação de lentes para ler as ações de poder que geraram o próprio arquivo. Dentro dessa armação, a leitura de documentos policiais poderia se fazer por dois caminhos, conforme descreve Farge: “tomar as falas individuais e compreender ao mesmo tempo sua ‘competência’ e sua função; estudar aqueles que têm autoridade para gerir a violência ou o despojamento, que reprimem, infligem ou perdoam” (FARGE, 2019 [1997], p.17).

Neste artigo, o foco definido é o de um movimento interpretativo que se aproxima do segundo caminho indicado por Farge, objetivando ler formas discursivas de construção da autoridade policial no enquadramento dos corpos destoantes da ordem no contexto urbano em conjuntura de violência de estado. O enquadramento é compreendido como uma ação discursiva, no sentido do construto frame de Judith Butler (2009)BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., apoiando-se no duplo sentido da palavra em língua inglesa (framed): “um quadro é enquadrado [emoldurado], mas também um criminoso é enquadrado [incriminado] (pela polícia), ou mesmo uma pessoa inocente (por alguém corrupto, muitas vezes, a polícia)” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p. 8, tradução nossa, grifo nosso)5 5 No original: “a picture is framed, but so too is a criminal (by the police), or an innocent person (by someone nefarious, often the police)” (BUTLER, 2009, p. 8). . As molduras dos discursos institucionais definem, assim, os contornos que fabricam o criminoso, é um direcionamento de interpretação sobre os atos, como explica a autora: “uma certa maneira de organizar e apresentar uma ação leva a uma conclusão interpretativa sobre a própria ação” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p. 8)6 6 No original: “Some way of organizing and presenting a deed leads to an interpretive conclusion about the deed itself” (BUTLER, 2009, p. 8). . Por esse sentido, o arquivo policial é apropriado aqui como locus potente para refletir sobre as tecnologias discursivas do enquadramento; no movimento de leitura desses documentos, podemos buscar maneiras de “expor o artifício que produz o efeito da culpa individual”7 7 No original: “which involves exposing the ruse that produces the effect of individual guilt” (BUTLER, 2009, p.8-9). (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p. 8-9).

Ler as estratégias de enquadramento de corpos criminosos no arquivo de polícia, ainda dentro da temática da sexualidade, pode permitir refletir sobre a forma como a mecânica de poder cria classificações disciplinares, às quais são atribuídas “uma realidade analítica, visível e permanente”, que se encravam nos corpos e orientam condutas (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988 [1976]. [1976], p. 44).

Corpus da pesquisa

O corpus documental da pesquisa é composto por 316 termos de declaração, lavrados nos anos 1976 e 1977, no 4° Distrito Policial, na Seccional do Centro de São Paulo. Esses termos foram produzidos em um contexto maior de um estudo de criminologia, conduzido por Guido Fonseca, delegado da Polícia Civil de São Paulo. Fonseca empreendeu, em meados dos anos 1970, um estudo sobre travestismo, prostituição e contravenção penal, com o objetivo de tipificação da prostituição masculina (na qual caracterizava a prostituição de travestis) como vadiagem. Nesse contexto, em 14 de dezembro de 1976, foi publicada uma portaria (nº 390/76), que permitia que policiais abordassem travestis na região conhecida como “Boca do Luxo”, no centro de São Paulo, e as levassem ao distrito para averiguação. A base legal para as abordagens era a tipificação da vadiagem como contravenção penal, mas também poderiam ser alegadas perturbação da paz ou prática de atos obscenos. As travestis abordadas que não apresentassem documento de identidade e carteira de trabalho com registro eram encaminhadas para interrogatório e tinham que assinar um termo de declaração, podendo ser levadas a cárcere, com o risco de se tornarem rés em um processo penal.

Esses procedimentos e o estudo de Fonseca estão ligados a uma ofensiva da polícia na década de 1970 sobre os “submundos” do centro de São Paulo, direcionada sobretudo às atividades de prostituição e aos espaços de sociabilidade de gays e lésbicas. Em uma sentença de 1977, aparece a informação sobre uma determinação de Erasmo Dias, secretário de segurança pública à época, para que policiais “passassem a coibir, de maneira mais rigorosa tais figuras contravencionais [importunação ofensiva ao pudor]” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p. 80). Em um cenário mais amplo, relacionam-se ao aparato de vigilância e controle da circulação pública pela ditadura militar.

Segundo um artigo de Fonseca, publicado na revista Arquivos da Polícia Civil, foram realizadas 460 sindicâncias e lavrados 62 flagrantes entre dezembro de 1976 e julho de 1977, quando esse trabalho foi encerrado. Esses termos de declaração compunham um arquivo especial, separado dos documentos relativos a outros inquéritos por vadiagem e a outros tipos de crime (GREEN, 2000GREEN, J. N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Tradução de Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Unesp, 2000 [1999]. [1999], p.405). Havia, provavelmente, o intuito de que esses termos resultantes das sindicâncias formassem um corpo documental que fornecesse dados ao estudo de Fonseca e pudesse ser usado como instrumento para vigilância e intimidação às travestis. Em entrevista ao historiador James Green, em 1995, Fonseca afirma que o intuito da polícia era criar empecilhos à prostituição e à circulação das travestis.

Mesmo que ele ficasse quatro ou cinco dias no xadrez, ele sofria prejuízo, porque não ganhava o suficiente para pagar o aluguel, a prestação do carro... Ele começava a se conscientizar de que aquilo que ele fazia não dava o suficiente para sobreviver. Ele tinha de ou sair da área do Quarto Distrito e ir para outra área onde não havia repressão, ou arrumar emprego e viver de outra profissão (FONSECA, 1995 apudGREEN, 2000GREEN, J. N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. Tradução de Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Unesp, 2000 [1999]. [1999], p.404-405).

Aos termos de declaração, juntam-se, na composição do corpus da pesquisa, o artigo assinado por Guido Fonseca, “Prostituição masculina em São Paulo”, publicado na revista Arquivos da Polícia Civil, em 1977. Também há o uso dos textos da Portaria nº 390/76 da Polícia Civil de São Paulo, da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) e um manual de polícia.

Vadiagem, poder pastoral e direito penal

O texto da Portaria nº 390/76 da Polícia Civil de São Paulo, publicada em 14 de dezembro de 1976, começava com o diagnóstico do aumento da circulação de “travestis” (grafado entre aspas) na região do 4º Distrito, no centro de São Paulo, “oferecendo triste espetáculo aos transeuntes pelo escandaloso ‘trottoir’ que praticam” (SÃO PAULO, 1976).

A portaria instruía que uma equipe de cinco policiais à paisana e um escrivão, sob a coordenação de Guido Fonseca, deveria atuar na “repressão ao ‘trottoir’ desses pervertidos” (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.). Com o objetivo declarado de sindicar “todos os ‘travestis’ que frequentam a área jurisdicional do 4º Distrito Policial” (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.), deveriam ser presos em flagrante indivíduos cujas condutas pudessem ser caracterizadas como transgressões aos artigos 59 (Vadiagem) e 61 (Importunação Ofensiva ao Pudor) da Lei das Contravenções Penais.

A vadiagem é um tipo penal com longo histórico de formulações e usos no Brasil. Os sentidos mais triviais do termo relacionam-se à ociosidade e à vagabundagem, e também como sinônimo de meretriz, na derivação “vadia”. Na tradição jurídica, a vadiagem aparece associada ao trabalho e a questões moralizantes de ordem pública (interdição à circulação). Na história do Brasil, a caracterização da vadiagem como ilícito é antiga; as Ordenações do Reino, no período colonial, prescreviam que vadios detidos em Portugal poderiam ser enviados ao Brasil (PIERONI, 2000PIERONI, G. Os excluídos do reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colônia. Brasília: UnB, 2000.). O Código do Processo Criminal de 1832 estabelecia que vadios, mendigos, bêbados, prostitutas e perturbadores do sossego público poderiam ser obrigados a assinar termos de bem viver, em que se comprometiam a viver honestamente (SOARES, 2017SOARES, J. de S. Considerações sobre uma polícia preventiva: discursos políticos e a natureza da atividade policial no Brasil oitocentista. Almanack, Guarulhos, n. 15, p. 71-105, abr. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-463320171504. Acesso: 15 jul. 2020.
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). Após a Abolição, apareceram várias propostas e políticas de controle social (tendo como alvo principal os libertos), como o projeto de repressão à ociosidade de 1888, que expressava a preocupação em “incutir no cidadão o hábito do trabalho” e era marcado por uma retórica moralizante que objetivava não “a punição pura e simples do indivíduo, mas sim sua reforma moral” (CHALHOUB, 2001CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Unicamp, 2001 [1986]. [1986], p. 71). O Código Penal de 1890 descrevia a vadiagem como infração e a aplicação desse código chegou a ser associada a políticas higienistas no fim do século XIX e início do XX, inclusive usando manicômios e asilos judiciários como locais de confinamento (ENGEL, 2001ENGEL, M. G. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001.).

Durante o Estado Novo, a polícia de costumes teve centralidade dentro do projeto político nacional (com base na ideia de criação do “novo cidadão brasileiro”). Nesse contexto, é formulada a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3688/1941), legislação mais recente sobre tema, que define a vadiagem, no capítulo VII (Das contravenções relativas à polícia de costumes).

Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses.

Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena (BRASIL, 1941BRASIL. Decreto-Lei nº 3688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Diário Oficial da União, Brasília, 3 out. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 2 jun. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de...
).

A lei de 1941 sofreu algumas modificações em seu texto, mas o artigo 59 ainda está em vigor8 8 Existem em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 4540/2021) e no Senado Federal (PL 1212/2021) propostas de revogação do artigo. , apesar de decisões recentes entenderem como inconstitucional a detenção por vadiagem (CRUZ, 2012CRUZ, E. P. Liminar proíbe detenção de moradores de rua por vadiagem. Carta Capital, São Paulo, 5 jun. 2012. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/liminar-proibe-detencao-de-moradores-de-rua-por-vadiagem/. Acesso em: 15 jul. 2020.
https://www.cartacapital.com.br/sociedad...
). Durante a ditadura militar, a vadiagem foi amplamente utilizada como instrumento de controle social, existiam inclusive delegacias especializadas. Relatos dão conta que trabalhadores pobres costumavam levar consigo a carteira de trabalho, pois havia o risco concreto de detenção por vadiagem, caso não tivessem o documento para apresentar em abordagens policiais. Em um manual de prática policial, o encaminhamento à delegacia, como suspeitas de vadiagem, de pessoas que não portem documentos que comprovem renda é descrito como procedimento policial rotineiro.

Falta de documento. Quando a pessoa não tiver documento nem comprovante de exercício de atividade lícita, será conduzida à Delegacia, onde será inquirida sobre o seu estado civil, profissão, local de trabalho e residência. Havendo suspeita de ser vadia e não ter renda própria que lhe assegure meios bastantes de subsistência, será elaborado boletim de ocorrência, para início de Sindicância de Vadiagem que posteriormente instruirá o competente Processo Contravencional (ROCHA, 1989ROCHA, L. C. Prática Policial. São Paulo: Saraiva, 1989 [1982]. [1982], p.78-79).

De acordo com um levantamento do jornal O Globo, a vadiagem era o segundo crime mais praticado na região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo estatísticas policiais de dezembro de 1975 (VILLELA, 2014VILLELA, G. Lei de 1941 considera ociosidade crime e pune “vadiagem” com prisão. Acervo O Globo, Rio de Janeiro, 04 dez. 2014.). Em 1977, uma reforma no Código Penal tornava a vadiagem e a mendicância contravenções inafiançáveis, conforme indicado no artigo 313 da Lei nº 6416 (OCANHA, 2016OCANHA, R. F. Travestis paulistanas na mira da Polícia Civil: a prática da Contravenção Penal de Vadiagem. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-SP, 23., 2016, Assis-SP. Anais [...]. Assis-SP, Unesp, 2016. Disponível em: http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/resources/anais/48/1475255809_ARQUIVO_RafaelOcanha-TextoCompleto.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/res...
).

Há leituras jurídicas contemporâneas que consideram que a Lei das Contravenções Penais é uma legislação marcada por vários tipos penais retrógrados e antidemocráticos que propiciam formas de discriminação social, tendo assim caráter inconstitucional. A contravenção da vadiagem (juntamente com a mendicância, descrita no artigo 60, revogado em 2009) é, provavelmente, uma das formulações legais mais incompatíveis com fundamentos do direito penal moderno. Pelo princípio geral da lesividade, que pauta as relações de exterioridade e alteridade no direito penal, deve-se excluir o uso de instrumentos penais para a educação moral dos cidadãos: “à conduta puramente interna, ou puramente individual – seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente – falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal” (BATISTA, 2007BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007 [1990]. [1990], p.91). Dentre as funções do princípio da lesividade, o jurista Nilo Batista pontua a de “proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais” (BATISTA, 2007 [1990], p.91), unicamente se admite a ideia de um direito penal de ação (ou do fato). O fundamento da lesividade impede, assim, “a imposição de pena (isto é, a constituição de crime) a um simples estado ou condição desse homem, refutando-se, pois, as propostas de um direito penal de autor e suas derivações mais ou menos dissimuladas” (BATISTA, 2007BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007 [1990]. [1990], p.93).

A contravenção da vadiagem, como tipo penal de autor, se assenta nas ideias de culpabilidade por conduta ou condição e de antecipação de pena com base no perigo que o vadio pode representar para a sociedade. Segundo Foucault (2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005 [1974]. [1974]), a periculosidade consolida-se na teoria penal do século XIX como proposição que enquadra o indivíduo criminoso não por seus atos, mas por suas virtualidades. É possível ler a construção do sentido de periculosidade na teoria penal como um dos instrumentos do que Foucault (1995FOUCAULT, M. O Sujeito e o Poder. In: RABINOV, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 [1982]. p. 231-249. [1982]) chamou de tecnologia de poder pastoral. Esse conjunto de técnicas de poder se origina em instituições cristãs e passa a ser integrado modernamente sob nova forma política. Consiste de técnicas de individualização e de procedimentos de totalização voltados para a salvação: na forma cristã antiga, o poder pastoral era fundado na ideia de uma salvação individual em outro mundo; na versão moderna, passa a ter “objetivos mundanos”, e a salvação ganha equivalência a noções de ordem pública, como bem-estar, saúde, segurança etc.

A principal instituição a administrar esse tipo de poder na forma moderna é a polícia, lembra Foucault: “a força policial não foi inventada (...) apenas para manter a lei e a ordem, nem apenas para assistir os governos em luta com seus inimigos, mas para assegurar a manutenção, a higiene e os padrões urbanos” (FOUCAULT, 1995 [1982], p.238). Assim, não apenas a justiça opera nesse enquadramento para o controle social, mas também uma série de “poderes laterais”, que englobam a polícia e outras instituições e instrumentos que desempenham a “função não mais de punir infrações, mas de corrigir suas virtualidades” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005 [1974]. [1974], p.86).

Análise do corpus

O conjunto documental com o qual trabalhamos neste artigo pode ser compreendido dentro de um campo de produção discursiva de caráter jurídico-técnico-científico. Nesse sentido, seria possível considerar duas tipologias principais nas formas de escritas desses documentos, a serem articuladas aqui no trabalho analítico: a do delegado (de caráter técnico-científico, argumentativa) e a do escrivão (de natureza técnica-judiciária, com fé pública). Há também o uso de textos de caráter injuntivo, como leis, portarias e manual, que formam um bloco documental secundário dentro do corpus.

Na primeira tipologia, classificamos o artigo de Guido Fonseca. O texto inscreve-se nas áreas das ciências policiais e da criminologia, sendo possível identificar marcas de abordagem positivista, principalmente no que se refere a utilização de métodos observacionais, da ênfase nos comportamentos que produzem o criminoso e na ideia de periculosidade. Essa criminologia, cujas origens remontam ao século XIX, é parte do corpo de saberes disciplinares que “nasce da observação dos indivíduos, da sua classificação, do registro e da análise dos seus comportamentos, da sua comparação, etc” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005 [1974]. [1974], p.121). A perspectiva positivista nesse campo defende uma visão formalista (o que lhe daria o status “científico”), cujo objetivo é a análise causal-explicativa do crime e dos criminosos, considerando o fato social de modo mecanicista, como compreende Batista: “tal criminologia necessariamente tende a tratar o episódio criminal como episódio individual e a respaldar a ordem legal como a ordem natural” (BATISTA, 2007 [1990], p.30).

No segundo descritor tipológico, ficam os documentos policiais propriamente, os termos de declaração, o que leva a considerar questões específicas desse gênero documental, bem como as estruturas internas da polícia, as funções e os procedimentos que atuam na lavra de documentos e nas formalidades processuais. O sentido da declaração enquadrada se constrói, primeiro, em uma situação de enunciação marcada por um contexto repressivo; segundo, na materialização em discurso relatado na textualidade “engessada” dos termos de declaração. A atividade do escrivão ganha foco aqui, podendo ser pensada em seu papel institucional, nas normas técnicas a que está submetida e nos contextos mais particulares das delegacias de polícia. Isso significa pensar o documento como resultado de um confronto entre a estrutura fortemente normalizadora e uma prática policial cotidiana. Consideram-se as normas não apenas o que orienta a “escrita”, em sentido estrito, mas todos os procedimentos que se relacionam a essa prática, e o principal deles é, sem dúvida, o próprio interrogatório. Nessa concepção, a atividade do escrivão toma forma de um trabalho tradutório das falas das travestis depoentes para a escrita forense; um “tradutor” com fé pública, que atua dentro de um contexto repressivo situado, sob um “comando” geral de sentido, dado pela portaria que instrui as sindicâncias.

A construção do argumento de Fonseca

“A prostituição masculina em São Paulo” é um artigo assinado por Guido Fonseca, publicado, originalmente, em 1977, na revista Arquivos da Polícia Civil e uma versão com algumas alterações foi transformada em capítulo do livro História da Prostituição em São Paulo (FONSECA, 1982FONSECA, G. História da Prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982.). Fonseca foi delegado e diretor da Academia de Polícia de São Paulo e é autor, além do livro sobre prostituição, de outros textos em ciências policiais, criminologia e história da polícia e do crime, publicados em revistas especializadas, e também do livro Crimes, criminosos e a criminalidade em São Paulo (FONSECA, 1988FONSECA, G. Crimes, criminosos e a criminalidade em São Paulo (1870-1950). São Paulo: Resenha Universitária, 1988.).

Como já dito anteriormente, o artigo de 1977 tem como objetivo principal defender a caracterização da prostituição masculina como contravenção penal de vadiagem, sujeita à pena de prisão. O texto começa com a afirmação sobre a pouca atenção que os estudiosos da área dariam ao fenômeno da prostituição masculina em contraste com a feminina. Apresenta, então, um apanhado de estudos que dão conta da prática em várias partes do mundo e um pequeno histórico de registros criminais de pederastia em São Paulo, desde o fim do século XIX. Ele observa que esses dados mais antigos são vagos, pois ficham apenas a “pederastia passiva, o que, de modo algum se confunde com a prostituição masculina” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.67).

Depois, a partir de estudos e relatórios das décadas de 1930 e 1940, traça um perfil parcial da prostituição daquela época e estabelece uma comparação com o seu contexto mais próximo (a década de 1970), já enquadrando a prática com um parecer moral: “Os mais audaciosos vestiam-se de mulheres. (...) Mesmo assim, era ainda uma prostituição, por assim dizer, envergonhada. Não tinham os prostitutos a audácia dos atuais. Hoje, não parecem sentir vergonha de sua anormalidade” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.69, grifo nosso).

A “audácia dos atuais” e a “anormalidade” parecem dizer respeito ao uso de trajes femininos e à exibição de seus corpos em espaços públicos. Na sequência apresenta um panorama sobre a prostituição masculina em São Paulo nos anos 70. Depois, informa que, em dezembro de 1976 (antes da publicação da portaria), estavam fichadas 243 travestis no 4º Distrito Policial. Desse universo, Fonseca seleciona uma amostra de 100 casos para produzir um quadro estatístico relativo a cor, idade, naturalidade e profissão. No tocante às atividades profissionais, diz que a maior parte não apresentou documentos comprobatórios e, ainda, que “todos exercem a prostituição (...) e não demonstram a intenção de abandoná-la”, justificando que “devido suas aparências por demais afeminadas, as chances no mercado de trabalho são limitadas”, conforme declaração de algumas das travestis fichadas, segundo o autor (FONSECA, 1977, p.72).

Fonseca ainda relaciona prostituição de travestis a práticas de violência, roubo, extorsão, lenocínio e uso de entorpecentes. Destaca que as travestis disputariam algumas áreas de prostituição com as mulheres (cisgênero), contra as quais usavam a intimidação física. Para traçar as relações da prostituição de travestis com a violência e os ilícitos, criou um sistema de diferenciação de classes de “prostitutos”, considerando que “nem todos os homossexuais prostitutos utilizam-se de manobras criminosas para alcançar seus objetivos econômicos” (FONSECA, 1977. p.74). Na “baixa prostituição”, define os principais alvos das políticas repressivas que defende: vestem-se “escandalosamente”, fazem o trottoir e são mais violentas. A “média prostituição” enquadrada as que se trajam “com certo apuro e fazem o ‘trottoir’ com alguma discrição” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.75). A categoria da “alta prostituição” descreve as travestis que atuam principalmente nas casas de espetáculo e se prostituem “nas horas vagas”, mas não fazem usualmente o trottoir.

A partir desse quadro apresentado sobre perfil da prostituição e do diagnóstico observacional de seu aumento na cidade, Fonseca apresenta o texto da Portaria nº 390/76 como um instrumento para “atenuar a consequência dessa expansão” (FONSECA, 1977, p.75). O argumento principal foca em afirmar que as prostituições feminina e masculina devem ser tratadas de formas diferentes pela legislação penal, pois a primeira teria “uma importante função social, qual seja, a de preservar a moralidade dos lares, a pureza dos costumes no seio das famílias” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.76). Assim, em sua argumentação, a compreensão dos tribunais em não considerar ilícita a prostituição feminina não deveria ser estendida para a masculina. Apresenta, como documentos para corroborar a sua tese, um acórdão de 1972 e uma sentença de 1977.

Nessa resenha geral, a ideia é mostrar o caminho argumentativo do autor na construção de sua tese penal: 1) caracterização da prostituição masculina como objeto pouco estudado; 2) diagnóstico do aumento da prostituição masculina em São Paulo e de sua grande visibilidade pública; 3) caracterização do perfil dos indivíduos que se prostituem, incluindo a associação com atividades criminosas em sua órbita; 4) defesa da diferenciação entre a prostituição feminina e masculina; 4) jurisprudência que considera o enquadramento da prostituição masculina como vadiagem.

Chamamos atenção agora de alguns pontos que sustentam esse trajeto argumentativo. Um ponto a ser destacado é uma marca de empirismo positivista identificável na apresentação de dados. A experiência do autor como delegado de polícia parece ser uma questão de fundo que permite muitos dos seus diagnósticos, o principal deles é sobre o aumento no movimento do trottoir na cidade de São Paulo – esse é inclusive o dado principal que justificava a publicação da portaria de 1976. O embasamento na prática policial é também percebido no procedimento de construção de perfis da prostituição de travestis e na ênfase na descrição visual dos corpos e dos vestuários em muitos dos argumentos apresentados. Observam-se, dessa maneira, estratégias de construir o argumento penal na lógica da administração do poder pastoral da polícia, com técnicas de individualização e procedimentos de totalização. A própria ação instruída pela portaria opera como parte dessas estratégias: orientações de identificação individual para repressão (tirar indivíduos de circulação) e a montagem do arquivo que colabora para a totalização, ou seja, configura um arquivo político como instrumento do aparelho de repressão.

Também no que tange à caracterização do “prostituto” os recursos de individualização e totalização são operacionalizados. Primeiro pela restrição do sentido de “prostituição masculina” no reconhecimento dos corpos de travestis. Néstor Perlongher, em seu trabalho dos anos 1980, propõe pensar em um continuum da prostituição homossexual, em graus de feminilidade e masculinidade, que teria em suas extremidades as figuras das travestis e dos michês, respectivamente. Para as figuras mais masculinizadas, cunha a expressão “prostituição viril”, que seria o foco de sua etnografia (PERLONGHER, 2008PERLONGHER, N. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008 [1987]. [1987]). Guido Fonseca constrói um entendimento da prostituição masculina como sinônima de prostituição de travestis, quase não fazendo menção a figuras viris, estas ficariam apenas subentendidas nas designações “homossexuais” ou “pederastia”.

“Travesti” é enquadrada, no texto de Fonseca, como figura que só tem existência em contexto de prostituição, a palavra é usada assim como sinônima de “prostituto”. Um outro elemento muito importante no sistema de construção dos perfis é a caracterização da forma mais extremada de prostituição masculina pela prática do trottoir. A prostituição que se exibe em espaços públicos é um dos indicadores principais de periculosidade no sistema classificatório de Fonseca. O trottoir de corpos que exibem o feminino e masculino em si ganha leituras patologizadas (“anormalidade”) e seria judicialmente punível, pelo exercício de um poder pastoral.

A partir dessa caracterização da prática do trottoir, seria possível supor a configuração mais direcionada à ideia de “ofensa ao pudor”, mas o enquadramento penal como “importunação”, expresso no artigo 61 da Lei das Contravenções Penais (revogado em 2018), não previa pena de prisão (apenas multa). Assim, entende-se que as ações de estado contra a prostituição de travestis induziam fortemente à caracterização da atividade como vadiagem, que era uma contravenção muito acionada pelo aparelho repressivo daquela época, mesmo com uma jurisprudência contrária à sua aplicação no caso da prostituição feminina. O artigo 61, aparentemente, poderia ter apenas um papel auxiliar na construção do argumento de acusação, potencializando os efeitos de sentidos relacionados à “imoralidade” e “obscenidade”. Ambas as contravenções incorrem em problemas no âmbito do princípio da legalidade no direito penal (além da questão da lesividade já discutida para o caso da vadiagem), que se relacionam diretamente à formulação de seus enunciados. Batista aponta algumas violações desse princípio, como a ocultação (que pode ser também uma espécie de camuflagem) do “núcleo do tipo”, ou seja, do verbo que exprime a ação, e também “o emprego do elemento do tipo sem precisão semântica”, formulações vagas que não permitem “um nível aceitável de ‘certeza típica”’ (BATISTA, 2007 [1990], p.82): como descrever os atos de “entregar-se habitualmente à ociosidade”? Como estabelecer limites da “ofensa ao pudor”?

Mesmo considerando a impossibilidade linguística de uma “pretensão” da linguagem jurídica em querer “estabelecer sentidos originários e unívocos para as expressões legais” (BATISTA, 2007BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007 [1990]. [1990], p.83), a aplicação desses tipos penais que violam a legalidade pela imprecisão demasiada dos enunciados permite o uso de argumentos morais e de julgamentos baseados em virtualidades e não em atos. Vejamos os parágrafos do acordão de 1972, reproduzido no artigo de Fonseca (1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.78): “(...) o vadio que diz viver precariamente do subsídio de sua imoralidade, há de ser considerado em verdade vadio, para os efeitos penais, pois a sua ociosidade constitui índice de perigo social, porque, não raro, vem aliar-se à mendicância e à criminalidade”.

A diferença penal entre prostituição feminina e masculina, defendida no texto, apoia-se na ideia naturalizada de um “mal necessário”, para o caso feminino, com base em uma “teoria dos impulsos latentes dos homens” que permitiu a incorporação nos desenhos urbanos, como descreve Park, de “regiões onde prevaleça um código moral divergente” (PARK, 1967 [1916], p.72). Na argumentação de Fonseca, o esforço é colar essa ideia apenas à prostituição feminina e vincular um maior potencial para criminalidade à atividade congênere praticada por travestis, o que do ponto de vista jurídico mostra toda sua fragilidade.

Termos de declaração e enunciação

A leitura dos documentos policiais que compõem o corpus da pesquisa deve ser realizada aqui em articulação com a argumentação construída no artigo de Fonseca. A produção desses documentos está relacionada a um comando, dado pela Portaria nº 390/76, mas a arquitetura geral que a subsidia é exposta, posteriormente, no texto do delegado que coordenou a ação.

Como já apresentado, o conjunto documental com que trabalhamos tem em sua composição 316 termos de declaração produzidos no contexto da ofensiva ao trottoir de travestis na região da avenida Ipiranga. Termo de declaração, doravante TD, é um gênero documental que tem um papel bastante importante dentro dos procedimentos que compõem a prática de Polícia Judiciária, a partir do qual se desenha a “possibilidade de indiciar ou inocentar um acusado ou um suspeito” (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009.. p.99). São textos de escrita considerada técnica, que registram “declarações de indivíduos que testemunham ou que são vítimas, acusados, informantes, infratores ou suspeitos em uma ocorrência de ilícito penal” (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009., p.101).

As condições de produção desse tipo de documento têm peso muito grande na sua compreensão como gênero e também de seus sentidos. Funciona no campo do que Paul Ricoeur chama de testemunho com uso jurídico, ou seja, seria um tipo de memória declarada, direcionada a um interlocutor (no caso, a autoridade policial) e sob a qual pesam relações de confiança e suspeita (testemunho aqui é entendido como um guarda-chuva para diversos gêneros e práticas de memória). Essa memória declarada ganha forma de registro escrito, logo é também arquivo e, nessa operação, aumenta o seu alcance: “como toda escrita, um documento de arquivo está aberto a quem quer que saiba ler; ele não tem, portanto, um destinatário designado, diferentemente do testemunho oral, dirigido a um interlocutor preciso” (RICOEUR, 2007RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Unicamp, 2007 [2000]. [2000], p.179).

Na forma do documento policial, a declaração oral passa, primeiro, para a condição de arquivo político (ou de uso jurídico, segundo Ricoeur) e ganha novos destinatários: policiais, advogado, promotores de justiça e juízes (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009., p.101). Dentro da tecnologia policial, TD é compreendido como uma “transposição da fala para a escrita, da forma mais rápida possível, considerando que as informações são oriundas do ato conversacional do depoente” (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009., p.105). Podemos, assim, compreender o trabalho do escrivão na confecção dos TD como atos de caráter tradutório, que transpõem discursos da oralidade para escrita, da fala testemunhal do depoente para o formato forense, sob normas técnico-judiciárias que orientam a sua escrita. Na materialidade textual resultante, a marca principal é a de formação de um discurso relatado, em modo indireto. Os TD que compõem o nosso corpus foram preenchidos no mesmo modelo de formulário.

Quadro 1
– Modelo de Termo de Declaração

O modelo do TD constrói uma representação da situação da tomada do depoimento, da qual participariam declarante, delegado e escrivão. O declarante, em termos discursivos, pode ser compreendido não como locutor, mas como sujeito falante, na acepção de Ducrot (1984)DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984., um indivíduo do mundo que fala e tem sua fala relatada na forma da linguagem policial. Na armação do texto do documento, o declarante é o sujeito do verbo (“declarou”), que tem força ilocutória dentro da situação em que seu depoimento foi proferido: a declaração prestada frente à autoridade policial juridicamente tem peso de ato. Nos documentos analisados, o papel de declarante é desempenhado pelas travestis encaminhadas ao distrito para averiguação e instadas a se declarar sobre a situação do “flagrante de vadiagem”, em um ambiente, que podemos supor, de forte intimidação.

A autoridade policial é o interlocutor da fala da declarante, mas não do enunciado do TD, sua presença é apenas referenciada e suas falas e atos no contexto da tomada de depoimento não são relatados ou “traduzidos” nos documentos. Guido Fonseca é o delegado identificado em todos os TD que integram o corpus, mas aqui o papel que ele desempenha não é mais o mesmo que observamos como autor de artigo de criminologia, não é um autor que argumenta, mas a autoridade que conduz o depoimento e toma decisões. O sentido de autoridade, no contexto institucional da polícia, se refere à figura de funcionários que encarnam a ideia do exercício do Poder Público. A legislação do estado de São Paulo compreende a autoridade policial como aquela que “preside os atos da Polícia Judiciária” e tem incluídas entre as suas atribuições: “prender em flagrante delito autores de crimes ou contravenção” e, atividades típicas de exercício de poder pastoral como “pôr em custódia os ébrios, os mendigos, os loucos e os turbulentos que, por palavra ou gesto, ultrajam o pudor, ofendam a tranquilidade pública e a paz das famílias” (ROCHA, 1989ROCHA, L. C. Prática Policial. São Paulo: Saraiva, 1989 [1982]. [1982], p.59).

Nos TD analisados, todos os escrivães identificados têm identidade masculina, o chassi do documento deixa em aberto a desinência de gênero, indicando que deveriam existir mulheres no exercício dessa função. O escrivão é o locutor do discurso registrado em documento, aparecendo inclusive, de forma explícita, o pronome: “eu, escrivão”. Essa sinalização bem marcada da primeira pessoa se deve ao instituto da fé pública. O escrivão é uma função de auxiliar de administração policial e tem caráter técnico. É a única designação policial que tem fé pública, o que em sua prática corresponde a um atestado de fidedignidade de seu trabalho tradutório. Esse caráter de transcrição fidedigna se constituiria em relação à situação comunicacional, a verdade do ato de enunciação: atesta que a declaração foi prestada tal qual o texto escrito relata.

Pulsam, assim, sobre esse tipo de documento concepções de verdade e realidade, ativadas pela configuração muito própria de heterogeneidades enunciativas em sua composição. É útil aqui a compreensão de que as heterogeneidades que constituem e são mostradas no discurso “representam duas realidades diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição” (AUTHIER-REVUZ, 1990AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidades enunciativas. Tradução de Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p. 25-42, 1990., p.32). A assinatura do agente com fé pública garante os sentidos de verdade e realidade na constituição do discurso no plano jurídico, com força ilocutória para os procedimentos judiciários.

Com relação àquilo que é declarado, há o peso testemunhal de suspeita e confiança. As declarantes, naquela situação, estão enquadradas no campo da suspeição: a abordagem policial, a condução à delegacia, a instância do depoimento frente à autoridade e a lavra do TD, atos que desenham a figura do suspeito. A confiança de um testemunho, segundo Ricoeur, partiria do “fato de que a asserção de realidade é inseparável de seu acoplamento com a autodesignação do sujeito que testemunha” (RICOEUR, 2007 [2000], p.172), ou seja, da capacidade de atestar o enunciado típico testemunhal: “eu estava lá” (que pode significar também “eu não estava em outro lugar”).

Como o nosso corpus é formado por TD de vadiagem, a fórmula de confiança da autodesignação sofre um abalo: a declarante não pode declarar o enunciado básico testemunhal (“eu [não] estava lá”) dentro do enquadramento de um tipo penal de autor, o que é exigido é que a declarante suspeita prove ser o que ela diz ser ou prove não ser o que a polícia a acusa de ser.

Visualização na linguagem e criminalização

Os textos do corpo da declaração nos TD têm formato bastante rígido, no que se refere à sua organização coesiva: basicamente um encadeamento de orações, interligadas pelo uso do conectivo que, em repetição (polissíndeto), para marcar, de forma ostensiva, o caráter relatado do texto ([declarante] declarou que...).

Vamos tomar o texto a seguir, reproduzido do corpo da declaração de um dos termos:

QUE, é travesti há cerca de seis meses, usando o nome de guerra “VERA”; QUE, desses seis meses par cá, vem se dedicando à prostituição, sendo que procura homens, para coito anal e atos libidinosos, na rua Teodoro Baima ou Av. Dr. Arnaldo; QUE, cobra dos homens, com quem mantem contatos libidinosos, a quantia de Cr$ 150,00, ganhando por mes, nesse metier, cerca de Cr$ 6.000,00; QUE, além disso, fez almofadas em sua residência, contudo, não tem qualquer documento que isso prove; QUE, paga por mes a quantia de Cr$ 600,00 de aluguel, no local onde reside, não sabendo o nome do proprietário do imóvel; QUE, a roupa que ora usa, própria de mulheres, pagou os seguintes preços: a blusa azul, pagou Cr$ 59,00, a calça comprida de mulher pagou Cr$ 125,00, a pulseira e o colar que usa pagou Cr$ 40,00, e a calcinha “biquíni” de mulher pagou Cr$ 45,00; QUE, o cabelo que usa, é próprio; QUE, a maquiagem que usa, o declarante foi que fez; QUE, a bolsa de mulher e o sapato de mulher que usa, ganhou de um “fregues”, quando fez um programa; QUE, tanto as unhas da mão como as unhas dos pés, são pintadas, de cores diferentes; QUE, usa hormonio PROGINOL, que é injetável, sendo que paga Cr$ 20,00 cada um com a aplicação, que é feita nas nadegas, sendo que lhe é aplicado em farmácias; motivo por que tem os seis desenvolvidos. Nada mais disse - nem lhe foi perguntado. Lido e achado conforme, vai devidamente assinado. Eu,[ ], Escrivão (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.-1977).9 9 A transcrição do corpo da declaração foi feita mantendo as formas textuais e ortográficas do documento, apenas desconsiderando casos de falhas de impressão do texto datilografado (letras apagadas no meio de palavras, por exemplo).

Essa marca coesiva geral é também observada em outro estudo, que analisou TD de inquéritos de homicídios, registrados em Porto Alegre nos anos 2000, o que podemos ler como um indício da cristalização dessa fórmula dentro da prática policial (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009.). A autora desse estudo aponta, ainda, outros parâmetros estruturais nesses textos, que marcariam as bases do trabalho investigativo, “todos os textos policiais devem contemplar os sete elementos da investigação policial, que são os seguintes: o quê; quando; onde; quem; por quê; de que modo; com que intensidade” (COSTA, 2009COSTA, M. I. P. da. A textualidade no termo de declaração de inquéritos policiais de homicídio sem autoria conhecida. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 38, p. 98-107, 2009., p.105). Claramente, esses sete parâmetros tiveram que ser adaptados no TD que reproduzimos anteriormente. Em todo o conjunto documental analisado, encontramos estrutura geral de sequencialização das informações, com pequenas variações na ordem e nos graus de detalhamento:

  1. há quanto tempo é travesti;

  2. o nome de travesti (normalmente indicado como “apelido”, “nome de guerra”, “alcunha”, “vulgo”);

  3. há quanto tempo se prostitui (ou se não se prostitui, se já prostituiu);

  4. onde se prostitui;

  5. quanto cobra e quanto ganha;

  6. referência a emprego ou atividades remuneradas que não sejam a prostituição;

  7. residência (se paga aluguel, valor do aluguel etc.);

  8. enumeração das peças de roupas que a declarante vestia e o valor pago (e em alguns casos, onde foram compradas) e

  9. referência ao uso de hormônios (frequência, valores pagos) e características físicas da declarante.

Como se observa, os parâmetros de investigação assumem um caráter mais descritivo, para a caracterização das declarantes e não para narrar um evento. Essa operação no formato dos depoimentos responde à necessidade de enquadrar as declarações na qualificação da contravenção da vadiagem. A ordem estável das informações observadas nos TD do corpus também permite identificar uma roteirização de interrogatório e uma performance que marca o papel de autoridade do delegado na produção dos discursos.

Há dois blocos principais, que destacamos nessa armação textual: um com foco em informações relacionadas ao tema “trabalho” e outra em características relacionada aos corpos. No primeiro caso, o direcionamento tem o objetivo de caracterização da vadiagem. Há o destaque para a prostituição como atividade organizadora para a sobrevivência da maior parte das travestis fichadas. Além disso, as informações sobre ocupação “lícitas”, que seriam aquelas passíveis de serem comprovadas, atendendo ao comando da Portaria nº 390/76, que previa que “a comprovação do trabalho deverá ser feita através de documentação hábil, acompanhada de xerocópia” e preservando a aparência da defesa assegurada (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.). A comprovação de trabalho não é algo muito simples nos contextos de informalidade, ainda mais para jovens transgêneros (como é possível perceber em boa parte das atividades de trabalho descritas nos TD), e de obstáculos para obter carteira de trabalho nos anos 1970 (OCANHA, 2016OCANHA, R. F. Travestis paulistanas na mira da Polícia Civil: a prática da Contravenção Penal de Vadiagem. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-SP, 23., 2016, Assis-SP. Anais [...]. Assis-SP, Unesp, 2016. Disponível em: http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/resources/anais/48/1475255809_ARQUIVO_RafaelOcanha-TextoCompleto.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/res...
). Fonseca, em seu artigo, associa as travestis a vários tipos de delitos, entre eles, à falsificação de documentos, afirmando que, quando sindicadas, “não vacilam em apresentar documentação falsa tentando provar ocupação ilícita” (FONSECA, 1977, p.73).

O segundo bloco que destacamos aqui é relativo a informações associadas aos corpos das declarantes. Há descrições sobre vestuário, cortes de cabelo, maquiagem e indicações sobre uso de hormônios, com as respectivas declarações de valores pagos pelos produtos e tratamentos descritos. A ênfase é clara nas peças de roupas femininas – em alguns casos, menções até mesmo sobre peças íntimas usadas pelas depoentes ou ainda a indicações de que “não usa bolsa e nem colar” ou “não usa peruca”. O realce descritivo nas declarações, principalmente das descrições físicas, aponta para o uso recursos textuais para construir a referência de visualização. No texto da portaria, há a instrução explícita: “sempre que possível, as sindicâncias serão ilustradas com fotografias desses pervertidos em trajes femininos que estiverem usando na ocasião, para que os MM. Juízes possam avaliar sua nocividade”10 10 Fotografias foram de fato produzidas no contexto das sindicâncias, tivemos contatos com algumas delas publicadas. No entanto, para esta pesquisa, decidimos, por questões éticas, não as utilizar pela impossibilidade de garantir a não identificação das pessoas fichadas. (SÃO PAULO, 1976SÃO PAULO. Polícia Civil do Estado de São Paulo. Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo. Seccional Centro. Portaria Nº 390 de 14 de dezembro de 1976. São Paulo, 1976.).

Interpretamos que há a formação ou o reforço de um discurso de criminalização pela aparência, através de mecanismos da linguagem e procedimentos forenses, que representam parte da ofensiva de vigilância sobre os corpos e a circulação pública durante a ditadura militar brasileira. A visualidade, em termos de comunicação semiótica, é um importante marcador de limites da moralidade pública, então a ênfase na caracterização da “anormalidade” dos corpos e na ofensiva à prática do trottoir. Margareth Rago observa, em contextos da prostituição feminina, como a “roupa se transforma num sistema semiótico e a preocupação em definir claramente a diferença entre as ‘honestas’ e as ‘mulheres de vida airada’” (RAGO, 2008 [1991], p.136). Perlongher (2008PERLONGHER, N. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008 [1987]. [1987]) aponta que os submundos urbanos possuem uma noção de territorialidade não só marcada por delimitações de regiões físicas da cidade (até porque se movem constantemente, como os próprios estudos de Fonseca demonstram), mas também por sistemas de códigos, que envolvem práticas, línguas e formas de se vestir e comportar, ajudando a formar as cartografias de moralidades. Nos TD, é possível identificar a articulação de marcadores geográficos (identificação de áreas onde as declarantes se prostituem) e de códigos visuais do travestismo e da prostituição.

Nesses sistemas de reconhecimentos e leituras morais dos corpos e das sexualidades, “a homossexualidade apareceu (...) quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988 [1976]. [1976], p.43-44). Não apenas de forma “interior” ou na “alma”, as marcações visuais externas que condensam códigos de feminilidade e masculinidade nos corpos representam parâmetros para a construção de patologização social. Isso talvez fique perceptível na fabricação da taxonomia da prostituição de travestis por Fonseca, em que as categorias são formuladas com base na prática (ou não) do trottoir, nos ganhos financeiros e na aparência mais ou menos feminizada (o quanto se “passam” por mulheres cis).

Sobre a “baixa prostituição”, na qual Fonseca (1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p. 74) enquadra as travestis que considera mais “escandalosas”, ele descreve: “há os que além da calcinha feminina cobrem o corpo apenas com uma capa que é aberta, rapidamente, durante a passagem dos veículos” e, assim, “mostram os seios”. As travestis enquadradas nas categorias “média” e “alta” teriam alcançado “um de seus objetivos mais caros, ou seja, uma semelhança quase perfeita com a mulher” (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.74). Fica subentendida uma comparação de que “baixa prostituição” deixaria mais à mostra, no corpo, o “hermafroditismo da alma”, representando maior grau de periculosidade.

O argumento financeiro justificaria o registro dos valores gastos com vestuário femininos e tratamentos hormonais e colocava como objetivo principal e motor da prostituição de travestis a “operação para ‘mudança de sexo’”11 11 Há registro de cirurgia de transgenitalização no Brasil já em 1971 (OCANHA 2016). (FONSECA, 1977FONSECA, G. A prostituição masculina em São Paulo. Arquivo da Polícia Civil, São Paulo, v. XXX, p. 65-86, 1977., p.75).

Os elementos articulados nos TD buscavam atuar tanto para sustentação do argumento da vadiagem, em caso de desdobramento da ação policial em processo penal, como da caracterização da prostituição de travestis como patologia social, colaborando com a tese de que deveria ser enquadrada como atividade ilícita. O corpo “vadio”, assim, não é apenas um corpo sem trabalho, mas um corpo que representa perigo social.

Palavras finais

A vadiagem se configurou como um instrumento jurídico e policial muito acionado em políticas mais estritas de vigilância e controle de ordem pública urbana. Seu uso vai além da temática exclusiva do trabalho, sendo operacionalizada para várias formas de ordenamentos morais. Por se basear em enunciados legais quase ocos semanticamente, seus significados se formam inteiramente no uso, na figuração dos participantes, com força pragmática, dos inquéritos e processos penais e, antes ainda, nos procedimentos policiais de interrogatório e registros de autuações, detenções para averiguação e prisões correcionais.

Com relação ao arquivo, em uma primeira leitura daqueles documentos, nos chamou atenção a mobilização de um aparato técnico de linguagem para descrever, com certas minúcias, corpos e intimidades das depoentes. Justamente ali, na palavra da escritura policial, a vida íntima se mostrava tão violada pelos poderes públicos. Esse foi, então, o eixo que organizou este artigo.

No entanto, outras trilhas se abriram durante o trabalho, apontando para projetos futuros, na busca do que vai além do ato repressivo, a reminiscência, o não apagamento daquelas vozes fichadas, ouvir seus ecos e ler seus rastros deixados no próprio registro da repressão.

Agradecimentos

Agradeço a James N. Green, professor da Brown University (EUA), que propiciou o nosso contato com a documentação que serve de base para esta pesquisa.

REFERÊNCIAS

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  • VILLELA, G. Lei de 1941 considera ociosidade crime e pune “vadiagem” com prisão. Acervo O Globo, Rio de Janeiro, 04 dez. 2014.
  • 1
    O vocábulo “travesti” apresenta um histórico de usos no Brasil que envolve processos de estigmatização social (correlacionando identidade transgênero, classe social, prostituição e criminalidade) e movimentos mais recentes de ressignificação que estimulam novas conotações políticas não pejorativas.
  • 2
    Em contraste ao direito penal de ação ou ato (do alemão, Tatstrafrecht), o direito penal de autor (Täterstrafrecht) é uma concepção do direito penal baseada no princípio da personalidade ativa: a ação é “significativa apenas como um sintoma das características do autor” (DUBBER, 2013DUBBER, M. D. Criminal Jurisdiction and Conceptions of Penality in Comparative Perspective. University of Toronto Law Journal, Toronto, v. 63, n. 2, p. 247-277, 2013. Disponível em: https://utpjournals.press/doi/citedby/10.3138/utlj.11117-2?role=tab. Acesso em: 01 fev. 2023.
    https://utpjournals.press/doi/citedby/10...
    , p.272).
  • 3
    No original: “They also served as tools for the symbolic legitimation of power and to discipline the population” (ASSMANN, 2008ASSMANN, A. Canon and Archive. In: ERLL, A.; NÜNNING, A. (ed.). Cultural memory studies. Berlin: Walter de Gruyter, 2008. p. 97-107., p. 102).
  • 4
    No original: “The archive is the basis of what can be said in the future about the present when it will have become the past” (ASSMANN, 2008ASSMANN, A. Canon and Archive. In: ERLL, A.; NÜNNING, A. (ed.). Cultural memory studies. Berlin: Walter de Gruyter, 2008. p. 97-107., p. 102).
  • 5
    No original: “a picture is framed, but so too is a criminal (by the police), or an innocent person (by someone nefarious, often the police)” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p. 8).
  • 6
    No original: “Some way of organizing and presenting a deed leads to an interpretive conclusion about the deed itself” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p. 8).
  • 7
    No original: “which involves exposing the ruse that produces the effect of individual guilt” (BUTLER, 2009BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable?. London: Verso, 2009., p.8-9).
  • 8
    Existem em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 4540/2021) e no Senado Federal (PL 1212/2021) propostas de revogação do artigo.
  • 9
    A transcrição do corpo da declaração foi feita mantendo as formas textuais e ortográficas do documento, apenas desconsiderando casos de falhas de impressão do texto datilografado (letras apagadas no meio de palavras, por exemplo).
  • 10
    Fotografias foram de fato produzidas no contexto das sindicâncias, tivemos contatos com algumas delas publicadas. No entanto, para esta pesquisa, decidimos, por questões éticas, não as utilizar pela impossibilidade de garantir a não identificação das pessoas fichadas.
  • 11
    Há registro de cirurgia de transgenitalização no Brasil já em 1971 (OCANHA 2016OCANHA, R. F. Travestis paulistanas na mira da Polícia Civil: a prática da Contravenção Penal de Vadiagem. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-SP, 23., 2016, Assis-SP. Anais [...]. Assis-SP, Unesp, 2016. Disponível em: http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/resources/anais/48/1475255809_ARQUIVO_RafaelOcanha-TextoCompleto.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
    http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/res...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2022
  • Aceito
    29 Jul 2022
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