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Cartografias das línguas: glossários para livros de literatura

RESUMO

Com este artigo pretende-se contribuir para uma compreensão do funcionamento dos glossários. Considera-se, para este fim, aqueles produzidos para livros de literatura e tem-se como aporte teórico a História das Ideias Linguísticas na articulação com a Análise de Discurso. O artigo porta uma reflexão sobre glossários para livros de literatura centrando-se naqueles produzidos pela posição escritor e trazendo algumas das suas marcas. Propõe-se tais glossários como metatexto que afeta a escrita do autor, por um lado, e como um dizer a mais sobre a língua cujo texto não esgota. Em seguida, são evidenciadas diferenças entre a produção de um glossário feito pela posição escritor e aquele elaborado pela posição editor, mostrando marcas distintas no funcionamento dos dois tipos de glossários. Para a reflexão sobre o segundo tipo, quatro livros de um escritor angolano em língua portuguesa são analisados. Algumas das conclusões a que se chega são: embora se funde na ilusão de desopacização do texto, glossários comportam uma posição sobre a língua que revela tensões na língua. Ademais, é possível compreendê-los também como instrumentos de gramatização da língua portuguesa em países africanos bem como instrumento de gramatização de línguas africanas em território africano.

Língua; Glossários; História das ideias linguísticas

ABSTRACT

With this article we aim to contribute to the understanding of how glossaries function. In this work we consider glossaries produced for literature books and we use the History of Linguistic Ideas in conjunction with Discourse Analysis as theoretical support. This article is a reflection on glossaries for literature books, focusing on those produced from the position of the writer and which show some of his marks. It is proposed that these glossaries work as metalinguistic texts, that they influence the author’s writing, and that they also work as an additional commentary about language. Differences between the production of glossaries created from the position of the writer and from the position of the editor are also shown, highlighting the way the two types of glossaries function. To elaborate on the second type of glossary, four books written in the Portuguese by an Angolan writer are analyzed. Some of the conclusions reached here are: although they are based on the illusion of making the text clearer, glossaries contain a position on language that reveals tensions in the language. Furthermore, it is possible to understand them as an instrument of grammatization of the Portuguese language in African countries as well as an instrument of grammatization of African languages in African territory.

Language; Glossary; History of Linguistic Ideas

Palavra do autor

“As palavras são o diabo”, avisa Saramago (2011SARAMAGO, J. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p.211), “Somos sem dúvida o eco de vozes mais antigas”, fala Agualusa (2010AGUALUSA, J.E. Milagrário pessoal. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010., p.142), “O que as palavras nos dizem no interior de onde ressoam?” pergunta Novarina (2003NOVARINA. V. Diante da Palavra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003., p.14), “Entre a palavra e a coisa /o salto sobre o nada.”, alerta Paulo Brito (1997BRITO, P. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p.15), “Cada palavra é uma metáfora morta”, recupera Borges (2000BORGES, J. L. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p.31), ou, porque é preciso terminar a lista, “A palavra é talvez tudo o que podemos conhecer do real”, lembra Cendras (CASTELO, 2009CASTELO, J. Coluna José Castelo. O Globo, 25 abr. 2009. Caderno 2, p. 4.), a quem diríamos, é tudo que se pode conhecer do real já que o real é inatingível. São enunciados que denunciam o fascínio pela palavra e a luta na busca do dizer. São dizeres sobre a palavra que sabemos ser o cerne do glossário, objeto da pesquisa da qual este artigo faz parte. Com o glossário, a palavra, por vezes, toca ou torce a sintaxe; outras vezes, tange, açoda a oralidade; por vezes, impõe a escrita outra: nova pele, nova ortografia. Em todos, denuncia a delicada relação entre sujeito e língua.

O interesse neste estudo é sobre glossários feitos para o texto literário. Esses podem ser elaborados a partir de três posições discursivas: posição lexicógrafo, posição editor, posição escritor. Neste artigo, serão considerados glossários produzidos pela posição escritor para se se refletir sobre glossários produzidos pela posição editor em livros de literatura portuguesa contemporânea, de escritor angolano, publicados no Brasil, com o fim de confrontar o funcionamento destas duas posições na produção de glossários.

A presente reflexão se ancora no campo da História das Ideias Linguísticas no Brasil (AUROUX, 1992aAUROUX, S. Listas de palavras, dicionários e enciclopédias: o que nos ensinam os enciclopedistas sobre a natureza dos instrumentos linguísticos. Revista Língua e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n.20, p.9-23, 2008.) articulado ao da Análise de Discurso (ORLANDI, 2002ORLANDI, E. Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.). Tal articulação significa considerar a seleção lexical engendrada a partir do glossário como discursos sobre a língua na relação com sujeito; daí não se colocar em discussão a pertinência de certos verbetes ou ainda a ausência de outros. Implica compreender a definição de uma palavra como uma atribuição, conforme Nunes (2006NUNES, J. H. N. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes: FAPESP; São José do Rio Preto, SP: FAPERP, 2006., p.22), “[...] imaginária a uma porção do real, unidade que falha, desvanecendo-se logo e criando o desejo de complementação, de reformulação, de reedição, numa repetição que se desdobra na medida em que a história lhe dá lugar”. E, importa salientar, ainda consoante Nunes (2006)NUNES, J. H. N. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes: FAPESP; São José do Rio Preto, SP: FAPERP, 2006., tomar o lexicógrafo não como sujeito empírico, mas com posição constituída historicamente, que o permite e o faz dizer que “uma palavra X significa Y” (NUNES, 2006NUNES, J. H. N. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes: FAPESP; São José do Rio Preto, SP: FAPERP, 2006., p. 22). Uma vez que no caso dos glossários analisados não se está trabalhando somente com a posição do lexicógrafo, resulta desdobrar a posição daquele que produz o glossário: daí termos apontado as posições escritor e editor.

Dobras, desdobras e assinatura

Glossários para livro de literatura decorrem de um livro ou de uma obra de escritor; estão, portanto, de alguma forma presos ao texto. Nesse sentido, para além de constituírem uma metalinguagem, como é o caso do dicionário, pode-se dizer que funcionam, conforme Authier-Revuz (2014), como metatexto2 2 Esta observação adveio de conversas com Jacqueline Authier-Revuz (2014) sobre o objeto aqui em estudo. . Aí no glossário, se entrelaçam duas posições que diremos discursivas: a posição do escritor – que teceu o texto – e a posição do lexicógrafo – que produziu o glossário. Esta segunda posição volta-se sobre o fazer do primeiro e incide tanto sobre o texto quanto sobre a língua. Sobre o texto, na medida em que destaca o que a partir dele irá compor um glossário; e assim, indica neste gesto que tal texto porta algo sobre a língua. Não deixa a palavra correr solta; arranca-a de lá para formar outro corpo: um glossário que reenvia ao texto e denuncia assim um lugar de língua. Sobre a língua, uma vez que separa certo número de palavras, classifica-as e/ou sobre elas propõe sinonímias, definições, explicações. Não são todas as palavras de um livro de literatura que irão pertencer a um glossário: a completude, diferentemente do dicionário, não é efeito de seu funcionamento – e aqui recuperamos o que Orlandi diz acerca do dicionário. Este trabalha “o efeito da completude da representação da língua” (ORLANDI, 2002OTERO, L. G. O caminho das boiadas. 2.ed. São Paulo: GRD, 1984., p.103). A autora acrescenta: “Com efeito, consideramos que o dicionário assegura em nosso imaginário, a unidade da língua e sua representabilidade: supõe-se que um dicionário contenha (todas) as palavras da língua” (ORLANDI, 2002ORLANDI, E. Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002., p.103), e o que não comparece no dicionário ou faz parte de um passado de tal modo remoto que não é mais pertinente ou não pertence à língua. A marca do glossário é outra, a singularidade, e, conforme Auroux, a alteridade. Cito: “[...] o que faz deslanchar verdadeiramente a reflexão linguística é a alteridade” (AUROUX, 1992bAUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed. da Unicamp, 1992b., p.22, grifo do autor), considerando a escrita e apontando as listas de palavras ou de caracteres (caso dos chineses) como uma das primeiras práticas a configurar saberes linguísticos.

O glossário, ao separar algumas palavras do universo em que se tece o livro, diz do limite do pertencimento a uma língua e da forma desse pertencimento: ilumina algumas palavras e joga outras no já-posto sobre a língua. Aponta, então, fronteiras na escrita; diz das partições em uma língua (PETRI; MEDEIROS, 2013PETRI, V.; MEDEIROS, V. Da língua partida: nomenclatura, coleção de vocábulos e glossários brasileiros. Letras, Santa Maria, n. 46, p.43-66, 2013.). O glossário, para livro de literatura, toca a materialidade da escrita do escritor, seu texto, e toca a língua. Seu jogo é duplo: desdobra-se sobre o dizer/fazer ao mesmo tempo em que categoriza o dizer/fazer escrita.

Indo adiante, o fazer retornar ao texto, que é o próprio do movimento do glossário, afeta a escrita do autor: por um lado, impõe uma direção de leitura. Nesse sentido, concordamos com Zoppi-Fontana (1988)ZOPPI-FONTANA, M. Limiares de silêncio: a leitura intervalar. In: ORLANDI, E. (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1988. p.59-85. quando observa que as notas de pé de página em edições didáticas de textos literários funcionam como “censura encoberta dos processos de significação do texto literário” (ZOPPI-FONTANA, 1988ZOPPI-FONTANA, M. Limiares de silêncio: a leitura intervalar. In: ORLANDI, E. (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1988. p.59-85., p.64). Por outro lado, diremos que o glossário também se configura como um lugar de dizer a mais sobre a língua. Nesse caso, está se pensando aqui na posição escritor que se desdobra em posição lexicógrafo: é como se houvesse algo ainda a ser dito, a ser destacado, que não se esgota no texto e que se faz em outro lugar.

Há, no entanto, diferenças no funcionamento do glossário feito pelo escritor, pelo editor e pelo lexicógrafo3 3 Como dito, neste artigo, o foco reside no glossário produzido pela posição editor; as posições escritor e lexicógrafo são trazidas apenas no que concernem à reflexão da posição focalizada. . Uma delas diz respeito à assinatura. Na posição do escritor que se desdobra na posição do lexicógrafo, há uma assinatura que se mantém e que funciona entrelaçando as duas posições: o nome do autor se redobra sobre a escrita de um dizer em posição outra, do lexicógrafo. Essa assinatura, que porta o nome do escritor, produz efeitos outros no funcionamento do glossário: do que falta a dizer na língua, com a língua e sobre a língua e que se diz a mais no gesto desdobrado em lexicógrafo. Nas duas outras posições assinaladas, trata-se de se instituir como alteridade sobre o texto, que, diferentemente daquele, se marca pela diferença. Nelas não há um nome (con)fundindo posições. No caso da posição lexicógrafo, em que se tem um nome outro assinando o glossário, a assinatura funciona distintamente: confere a legitimidade que advém da autoridade de quem diz sobre a língua e se inscreve numa memória de um fazer filológico sobre o texto; um gesto do arqueólogo sobre a língua: aquele que retiraria do passado palavras com grafias, sintaxes e significâncias já adormecidas – aqui se está retomando a memória do fazer glossarístico de que nos fala Auroux (2008)AUROUX, S. Listas de palavras, dicionários e enciclopédias: o que nos ensinam os enciclopedistas sobre a natureza dos instrumentos linguísticos. Revista Língua e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n.20, p.9-23, 2008. ao se referir à prática do glossário sobre textos antigos cuja palavra se desconhecia. Já com a posição editor, por exemplo, no caso, a observada no século XXI na literatura em língua portuguesa, produzida por escritores africanos e editada no Brasil, não há assinatura e tem-se, assim, um efeito distinto: produz-se aí ilusão do é assim (tanto sobre o que não se assinala quanto sobre o que se apresenta em destaque no glossário), o efeito do já-posto que não carece de atestação.

Voltando à posição escritor, cabe indicar alguns tipos de glossários que compuseram nosso corpus, isto é, a parte que diz respeito à posição escritor:

(i) aquele feito posteriormente para o texto, caso de Buzo em Favela toma conta (MEDEIROS, 2012MEDEIROS, V. Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela. Revista Rua, Campinas, n. 18, 2012. Disponível em: <http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/lerArtigo.rua?pdf=1&id=132>. Acesso em: 18 mar. 2016.
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), entre outros que se inserem numa linhagem iniciada por José de Alencar em Diva (NUNES, 2006NUNES, J. H. N. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes: FAPESP; São José do Rio Preto, SP: FAPERP, 2006.), para ficar com dois exemplos de uma ocorrência majoritária;

(ii) aquele cujo glossário serve para a escrita do autor, isto é, que antecede o fazer num gesto do escritor que investiga o dizer, que recolhe palavras, expressões, sintaxe para compor sua obra, caso da caderneta de João Antonio, por exemplo, ao capturar palavras nas ruas para seus personagens (MEDEIROS, 2014aMEDEIROS, V. Memória e singularidade no gesto do escritor-lexicógrafo. Revista Confluências, Rio de Janeiro, n.46, p.143-156, 2014a. Disponível em: <http://llp.bibliopolis.info/confluencia/rc/index.php/rc/article/view/13/14>. Acesso em: 18 mar. 2016.
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), ou, ainda à guisa de mais um exemplo, de Leo Godoy Otero (1984)OTERO, L. G. O caminho das boiadas. 2.ed. São Paulo: GRD, 1984., em O caminho das boiadas, que investiga o falar dos ciganos no Brasil e refaz seu livro e seu glossário perseguindo durante mais de vinte anos a justa adequação do dizer;

(iii) aquele cujo glossário é composto como auxílio para tradução para outra língua e com o qual o escritor é convocado a retornar à língua para dela explicar um fazer outro em outra língua, caso de Guimarães Rosa que tece um glossário a partir das correspondências com seu tradutor italiano (MARTINS, 2014MARTINS, H. O dicionário como antologia lírica, romance autobiografia. Letras, Santa Maria, n. 24, p.69-85, 2014.);

(iv) aquele cujo glossário é a peça literária, caso, por exemplo, de Manoel de Barros (2013)BARROS, M. de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2013. em Glossário de transnominações em que não se explicam algumas delas (nenhumas) ou menos, e, neste caso, o jogo escritor-lexicógrafo não se faz como um dentro e fora do texto, mas um fora-dentro do texto, isto é, o glossário não é um anexo à parte, mas texto feito de onze verbetes, pospostos de uma metalinguagem indicando classe gramatical e gênero, que deslizam em sua polissemia e sonoridade. Nele o apêndice é também parte de sua composição.

Em suma, como se nota, trata-se de corpus heterogêneo. Em outro trabalho (MEDEIROS, 2014bMEDEIROS, V. Savoirs sur la langue et le sujet: les glossaires faits par l´écrivain. Apresentação de trabalho na Journée d´étude Langue, discours, histoire. Paris: Université Sorbonne Nouvelle Paris III, 2014b.)4 4 Savoirs sur la langue et le sujet: les glossaires faits par l´écrivain, trabalho apresentado na Journée d´étude Langue, discours, histoire, na Université Sorbonne Nouvelle Paris III em abril de 2014. , já havia sido assinalado que glossários para livros de literatura se localizam ao final do livro bem como podem ir se formando em notas de pé de página (são poucos os casos que compõem uma obra à parte). Se isto é um fator que traz dificuldades à pesquisa (é preciso folhear livros para encontrá-los e tal tarefa é interminável), por outro lado, permite observar duas das marcasde seu funcionamento: a esporadicidade e a localização do glossário. A estas duas marcas se acrescenta a heterogeneidade que se mostra na tipologia de textos, isto é, que decorre da feitura dos glossários como anteriormente mostramos, a saber, que se faz apêndice ou rodapé do texto, ou ainda que se faz texto à parte; que diz respeito ao tempo de elaboração (se posterior ou anterior ao texto); que advém do gesto produzido em direção à língua outra tecendo glossário em sua língua (caso de Guimarães Rosa); e, enfim, a heterogeneidade, como dito, que advém das diferentes posições discursivas que engendram o glossário.

À diferença dos dicionários, os glossários elaborados pela posição escritor, isto é, aqueles que carregam o nome do escritor, não têm continuidade nem relação uns com os outros, não fazem remissão uns aos outros, não repetem tampouco retomam outros. Neles, a memória na e da língua tem outros contornos: não a da cadeia que se tece pela repetição na formulação e na retomada de verbetes, mas a que se tece na diferença ou na ausência em relação ao que se tem no dicionário. Os glossários para livros de literatura feitos na posição escritor trazem aquilo que é posto como próprio, singular ou único. Em outras palavras, o que se verifica, por um lado e com regularidade, é a falta na língua imaginária (ORLANDI, ١٩٩٠ORLANDI, E. Língua e conhecimento linguístico: para uma história das ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.). Orlandi propõe uma diferença entre língua imaginária e língua fluida que é importante para este trabalho. Por língua fluida, a autora entende “aquela que não se deixa imobilizar nas redes dos sistemas e das fórmulas”, por língua imaginária, “aquela que os analistas fixam com suas sistematizações” (ORLANDI, 1990ORLANDI, E. As formas do silêncio. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997., p.74). Elas trabalham a tensão entre a língua em movimento e a língua que vai sendo fixada nas gramáticas, normas, dicionários e instituições.

Continuando, nestes glossários pelo escritor o que se tem é a falta como diferença e/ou acréscimo, bem como o possível ainda não possível na língua: outros jogos de palavra, outras formações, outras grafias e, mais raramente, outras sintaxes. Nos vários casos estudados, esta falta se marca pela busca da legitimidade da palavra outra. Esse uso e função do glossário tem início com o primeiro glossário por escritor brasileiro, José de Alencar, que, em sua segunda edição de Diva, vai buscar no latim a justificativa para a língua que ali produz, respondendo assim a críticas que o acusam de galicismo ou de afastamento da língua de Portugal (NUNES, 2006NUNES, J. H. N. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas, SP: Pontes: FAPESP; São José do Rio Preto, SP: FAPERP, 2006.; MEDEIROS, 2014aMEDEIROS, V. Memória e singularidade no gesto do escritor-lexicógrafo. Revista Confluências, Rio de Janeiro, n.46, p.143-156, 2014a. Disponível em: <http://llp.bibliopolis.info/confluencia/rc/index.php/rc/article/view/13/14>. Acesso em: 18 mar. 2016.
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).

Para além do gesto de desopacização da palavra, função primeva que nos indica Auroux (2008)AUROUX, S. Listas de palavras, dicionários e enciclopédias: o que nos ensinam os enciclopedistas sobre a natureza dos instrumentos linguísticos. Revista Língua e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n.20, p.9-23, 2008., em vários dos glossários estudados, a saber, aqueles feitos pelo escritor brasileiro e publicados no Brasil, foi possível observar o glossário como arena na língua imaginária; ou melhor, funcionando como espaço de tensões e disputas na língua na medida em que registra muitas vezes aquilo que não comparece em dicionários da língua, em que traz à baila embates em solo brasileiro. É neste sentido que glossários compõem cartografias da(s) língua(s). É também no sentido de captura daquilo que não consta no dicionário que tais glossários são propostos como um dizer a mais sobre a palavra ao dizer em outro lugar aquilo que não se encontra inscrito ou que se encontra proscrito ou ainda que se inaugura como dizer; afinal, a palavra, para voltar ao mote inicial, não cessa de intrigar e instigar.

Da posição editor

Nos glossários feitos pelo editor em terras brasileiras, o funcionamento é diferente daquele engendrado pelo escritor. Sempre posteriores ao texto, neles pode se dar a repetição do verbete bem como muitas vezes daquilo que nele se predica. Se a palavra na posição escritor pode ser pensada como própria, singular, única; aqui, singular ou única não parecem caber; o que está em jogo é diferente. É o que se pode observar em alguns glossários feitos para livros de literatura em língua portuguesa para escritores africanos no século XXI publicados no Brasil; iremos nos ater, no entanto, a um escritor.

Sobre os glossários feitos na posição escritor foi dito que são esporádicos (aparecem em certos momentos, em certos autores e em certas obras); isto não significa, contudo, que não tenham condições de produção. Um dos fatores, como já apontado, é o imaginário de língua que o recorte dos verbetes nos permite compreender (conferir, por exemplo, MEDEIROS, 2012MEDEIROS, V. Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela. Revista Rua, Campinas, n. 18, 2012. Disponível em: <http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/lerArtigo.rua?pdf=1&id=132>. Acesso em: 18 mar. 2016.
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); outro fator são políticas linguísticas: entram em jogo, então, acordos sobre a língua bem como a colonização e descolonização linguística, ou ainda os momentos revolucionários.

Mariani (2011MARIANI, B. Língua, colonização e revolução: discurso político sobre as línguas em Moçambique. In: ZANDWAIS, A.; ROMÃO, L. (Org.). Leituras do político. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2011. p.105-126., p.109) lembra que, no início do século XX, “[...] línguas africanas faladas em Moçambique começam a ganhar forma escrita, instaurando uma circulação de sentidos opacos a portugueses”. Esta escrita que se dá na imprensa ocorre, acrescentamos, também na literatura e, a partir dela, adentra os glossários, materializando a resistência, conforme Mariani (2011MARIANI, B. Língua, colonização e revolução: discurso político sobre as línguas em Moçambique. In: ZANDWAIS, A.; ROMÃO, L. (Org.). Leituras do político. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2011. p.105-126., p.109), “seja na modalidade oral, seja na modalidade escrita”.

No que concerne à língua portuguesa, o século XXI se abre com a questão (posta no final do século XX) da reforma ortográfica, que traz à cena uma suposta (desejada?) homogeneidade linguística a partir de uma diversidade linguística. A lusofonia, como sabemos, se ancora na ilusão de um idioma comum a despeito das diferenças históricas, geográficas, sociais e ideológicas, a despeito da historicidade da língua em cada espaço de enunciação (GUIMARÃES, 2002GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.). Por espaço de enunciação, compreende-se

[...] espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços ´habitados´ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocidade própria do acontecimento: da deontologia que organiza e distribui papéis, e do conflito, indissociado desta deontologia, que redivide o sensível, os papéis sociais. O espaço de enunciação é um espaço político, no sentido que considerei há pouco o político. (GUIMARÃES, 2002GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002., p.18-19).

A lusofonia entra como argumento que sustenta a mercantilização da língua que se faz prática também nas políticas editoriais em Portugal e no Brasil de publicação de livros de literatura em língua portuguesa por escritores africanos. Como assinala Zoppi-Fontana (2009ZOPPI-FONTANA, M. O Português do Brasil como Língua Transnacional. Campinas: Ed. Estante Ametista, 2009., p.37), as “línguas que sempre foram arma de dominação política nos processos de colonização, se tornam na contemporaneidade novo mecanismo de especulação financeira”, ou seja, a língua se torna mercadoria. É nesse cenário que tem aparecido, no século XXI, a publicação, tanto em solo brasileiro quanto em solo português, de livros de literatura em língua portuguesa por escritores africanos com glossários. Mia Couto, Agualusa, Ondjaki são alguns dos reconhecidos autores contemporâneos a cuja literatura se acrescenta, comumente ao final, um glossário feito pelo editor, isto é, um glossário sem assinatura. Não são esporádicos, como na posição escritor; advêm de medidas instituídas sobre a língua e da circulação de uma certa literatura: em língua portuguesa produzida em território africano. Isso não ocorre com livros de autores brasileiros em Portugal nem com livros de autores portugueses no Brasil. A presença de glossários em escritores africanos em língua portuguesa em contrapartida à ausência de uma política de glossários em livros de escritores brasileiros lá e de escritores portugueses cá produz o efeito de estabilização da língua tanto no Brasil quanto em Portugal, a ilusão ainda da mesma língua em Portugal e no Brasil, e, ainda, a ilusão da língua em se fazendo em países africanos que tem a língua portuguesa como oficial.

São vários os escritores africanos de diferentes nacionalidades publicados no Brasil. Neste artigo, serão tomados glossários de um escritor angolano, Ondjaki, a fim de promover uma reflexão sobre o glossário produzido pela posição editor.

Palavras capturadas

Do escritor angolano Ondjaki, foram analisados quatro livros com glossário de três editoras distintas: (i) Bom dia camaradas, pela editora Cia das Letras (ONDJAKI, 2004ONDJAKI. Bom dia camaradas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.), (ii) este mesmo livro, Bom dia camaradas, pela editora Agir (ONDJAKI, 2006ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.), (iii) Os da minha rua, pela editora Língua Geral (ONDJAKI, 2007ONDJAKI. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.), e (iv) Os transparentes, pela editora Cia das Letras (ONDJAKI, 2013ONDJAKI. Os transparentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Nos quatro livros, o glossário se apresenta ao final. Neles há verbetes comuns a todos, como é o caso de camba, em que se repetem definições (exemplos 1, 2 e 3) ou parte dela (4) nas três distintas editoras,

(1)Camba: amigo, companheiro (Bom dia camaradas, Cia das Letras),

(2)Camba: amigo, companheiro (Bom dia camaradas, Agir),

(3)Camba: amigo, companheiro (Os da minha rua, Língua Geral),

(4)Camba: amigo (Os transparentes, Cia das Letras);

bem como verbetes específicos a cada glossário, como se observa a seguir:

(5)Bofa: bofetada (Bom dia camaradas, Cia das Letras),

(6)Aldrabar: mentir (Bom dia camaradas, Agir),

(7)Esquebra: excedente (Os da minha rua, Língua Geral),

(8)Tundem: desapareçam (Os transparentes, Cia das Letras).

Nos glossários de Bom dia, camaradas, publicados pela Cia das Letras (ONDJAKI, 2004ONDJAKI. Bom dia camaradas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.) e pela Agir (ONDJAKI, 2006ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.), há repetições de verbetes e de definições (exemplos 1 e 2), bem como se encontram verbetes e definições próprias a cada um deles (como se pode observar nos exemplos de 5 e 6).

A repetição de entradas tanto do mesmo livro, caso de Bom dia, camaradas, como em livros distintos permite observar um funcionamento no glossário distinto daquele engendrado pela posição escritor, em que o verbete era sempre singular, como dito. Aqui o movimento se aproxima do dicionário, em que a remissão a outros é prática corrente. Já a diferença na eleição do léxico capturado mostra que o glossário, embora se funde na ilusão de desopacização do texto, comporta uma posição sobre a língua; afinal não são as mesmas palavras presentes e expressões constantes tanto em glossários de mesmo livro quanto dos livros do mesmo autor. Em outras palavras, isso possibilita dizer que cada glossário consiste em um gesto de leitura que se singulariza em uma posição sobre a língua: mostram-se certos elementos e não outros como sendo pertinentes e necessários.

Nesses glossários, uma de suas marcas é o registro da oralidade, que se faz presente de diferentes maneiras; por exemplo, nos verbetes aspeados que trazem a fala de personagens:

(9)“Abuçoitos” (“pedir abuçoitos”): pedir licença para se aposentar de um jogo ou brincadeira. (Os da minha rua, Língua Geral)

(10)“Goiabera”: camisa de estilo cubano (Os da minha rua, Língua Geral).

Registrar uma palavra como verbete é torná-la signo autônimo, isto é, um signo que remete a ele próprio (AUTHIER-REVUZ, 2008AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.). As aspas podem produzir este efeito, por exemplo, quando se produz algo como: “Um dos verbetes do glossário é ‘abuçoitos’”. Nesse caso, elas são redundantes dado que indicá-la como verbete já produz a autonímia. Apenas no glossário de Os da minha rua da editora Língua Geral dois verbetes vêm aspeados (abuçoitos e goiabera); ambos antecedem os demais verbetes que se apresentam em ordem alfabética iniciada pela letra a, ou seja, depois de abuçoitos e goiabera encontramos o verbete aká sem aspas. Não são aspas que indiquem verbetes inseridos em personagens diferentemente dos demais itens lexicais selecionados. Em outras palavras, não podemos dizer das aspas em abuçoitos e goiabera que se tratam de aspas de autonímia, mas de aspas que fazem estranhar o verbete na relação com os outros uma vez que os demais não o portam. Palavras mantidas à distância (em referência ao artigo sobre as aspas por Authier-Revuz, 2004AUTHIER-REVUZ, J. Palavras mantidas à distância. In: AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p.217-237.). Uma oralidade que se assinala e se estranha nas aspas redundantes no verbete e na captura do texto entre parênteses, como se observa no exemplo 9.

De fato, o registro da oralidade é uma das marcas nos três glossários, seja nas aspas dos dois verbetes, seja escrita da sigla que indica como se fala,

(11)aká: metralhadora de fabrico russo (AK47). (Os da minha rua, Língua Geral),

seja na captura da exclamação apontada pela metalinguagem que classifica ou explica,

(12)Ché: interjeição de espanto (Os da minha rua, Língua Geral),

(13)Ché: expressa dúvida ou surpresa (Bom dia camaradas, Agir),

seja no estrangeirismo, apreendido pela escrita, que novamente traz a língua falada, e é denunciado como tendo sua origem corrompida,

(14)Bigue: corruptela do inglês (Os da minha rua, Língua Geral),

(15)Xuínga: corruptela de chewinggun (Bom dia camaradas, Agir),

(16)Bizno: negócio (corruptela de “business”) (Os transparentes, Cia das Letras),

seja na contração da fala que se assinala na escrita,

(17)masé: contração de “mas” e “é” (Bom dia camaradas, Agir).

É interessante observar que, no exemplo (17), indica-se como verbete uma contração que também se observa na língua portuguesa em solo brasileiro, embora não conste de nenhum dicionário ou glossário brasileiro por não configurar um item lexical.

Retomando a exposição, a oralidade se apresenta na ortografia, que lança mão da letra k: forma como em nossos dicionários se indica a palavra estrangeira5 5 Acerca deste funcionamento da letra K, indicando palavras estrangeiras, cabe recuperar a história que Yaguello (1990) faz das letras do alfabeto. Conforme a autora, por longo tempo a letra K era considerada maldita na língua francesa e se torna uma letra exótica para marcar palavras de outra língua, como Kiwi ou Klaxon (exemplos da autora em língua francesa. Estas palavras têm a mesma grafia em língua portuguesa). Ela explica que os romanos tomaram emprestado a letra K dos gregos, mas não foi o caso dos franceses. Estes, em lugar de integrar o K, o que evitaria problemas de ambiguidade como ocorre em francês com a letra C, deixaram-na para palavras estrangeiras e mantiveram letra C, por advir da língua latina. Em suma, podemos observar que em francês ela é marca de alteridade. , ou ainda como se grafa línguas ágrafas na ilusão de uma transcrição fonética:

(18)Kitaba: pasta feita de amendoim torrado (Os da minha rua, Língua Geral)6 6 O verbete Kitaba consta do glossário de Os transparentes da Cia Letras, mas, nele, apaga-se o modo como o amendoim forma a pasta. Aí se tem somente “pasta de amendoim”. ,

(19)Kibidi: perseguição (Bom dia camaradas, Cia das Letras),

e ainda na manutenção de uma pronúncia que se apresenta nas letras que se pospõem, diferentemente do que se dá em língua portuguesa, e que se indica como provindo de língua outra. Vale notar que os verbetes com os exemplos a seguir podem remeter a outros no glossário conferindo assim circularidade ao mesmo:

(20)Ndengue: diminutivo de candengue (Bom dia camaradas, Agir)

(21)Ndengue: (quimbumdo): criança (Os da minha rua, Língua Geral)

(22)Candengue: miúdo, mais novo. (Bom dia camaradas, Agir)

(23)Candengue (do quimbundo ndengue): criança. (Os da minha rua, Língua Geral)

Cabe, antes de prosseguir, fazer uma observação: quando se trata de indicar a origem, somente as palavras advindas do inglês são apontadas como corruptela (exemplos 14, 15 e 16); para aquelas advindas de línguas africanas diz-se somente a origem, cuja grafia também flutua (compare-se o nome da língua nos exemplos 21,23 com o 24):

(24)Dikota (Kimbundu): mais-velho; velho. (Os transparentes, Cia das Letras).

Portanto, aquelas estrangeiras advindas da língua inglesa corrompem; já as que advêm de línguas africanas adentram a língua produzindo o efeito do acréscimo à língua portuguesa e indicando ao mesmo tempo a potência da língua portuguesa em poder se amalgamar e crescer...

Explica-se com o glossário como usar a palavra em ambientes distintos na relação com a língua portuguesa. Observe-se que aí se lança mão de exemplos, algo raro nos glossários estudados:

(25)Male: “dói male” (dói muito); “vejo male” (vejo muito bem).

A passagem da oralidade à escrita no Brasil implica a passagem de um espaço de enunciação a outro. Não se trata tão somente de mudança de um meio, mas de escrever inscrevendo e desinscrevendo na língua em solo brasileiro o conflito entre dois espaços distintos, dois espaços que dizem e significam diferentemente: Portugal e Brasil. Podemos notar tal embate também nestes glossários quando pensamos na oralidade e observamos as flutuações que neles se encontram. É possível, então, compreender estes glossários como instrumentos de gramatização7 7 Por gramatização, “[...] deve-se entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário.” (AUROUX, 1992b, p.65, grifo do autor). (AUROUX, 1992aAUROUX, S. Le processos de grammatisation et ses enjeux. In: AUROUX, S. Histoire des idées linguistiques. Tome 2. Liège: Pierre Mardaga, 1992a. p.11-64.) da língua portuguesa em Angola bem como instrumento de gramatização de línguas africanas em território angolano, na medida em que o que comparece é marcado como língua outra em tal território. Trata-se, pois, de dois movimentos distintos e simultâneos nas línguas. E, cabe acrescentar, a gramatização, conforme Auroux (1992a)AUROUX, S. Listas de palavras, dicionários e enciclopédias: o que nos ensinam os enciclopedistas sobre a natureza dos instrumentos linguísticos. Revista Língua e Instrumentos Linguísticos, Campinas, n.20, p.9-23, 2008., não deixa as línguas intactas.

Nos glossários dos livros de Ondjaki, como alguns verbetes mostram, ao menos uma língua outra, africana, quimbundo/Kimbundu, se denuncia como alteridade. Se, seguindo Mariani, a colonização linguística impõe um silenciamento sobre a língua do colonizado (está sendo tomado aqui seu estudo sobre Moçambique e considerada sua observação como hipótese também sobre a situação linguística em Angola), talvez possamos dizer que com tais glossários essa língua outra vai se gramatizando na língua nomeada como portuguesa e adentra um espaço, glossário, de institucionalização do dizer, isto é, um espaço em que se julga estabilizar o dizer: como outra, capturada por aquela, e como fazendo parte da língua portuguesa em Angola.

Palavras que fecham

Em outro trabalho (MEDEIROS, 2014bMEDEIROS, V. Savoirs sur la langue et le sujet: les glossaires faits par l´écrivain. Apresentação de trabalho na Journée d´étude Langue, discours, histoire. Paris: Université Sorbonne Nouvelle Paris III, 2014b.), foi dito que da mesma maneira que uma gramática não é somente uma representação de uma língua, um glossário não é somente representativo de um livro ou de um texto. Se, de uma gramática podemos dizer que fabrica uma língua (recuperando COLOMBAT; PUECH; FOURNIER, 2010COLOMBAT, B.; FOURNIER, J-M.; PUECH, C. Histoire des idées sur le langage et les langues. Paris: Klincksieck, 2010.), de um glossário pelo escritor foi dito que denuncia a língua imaginária que gramáticas e dicionários vão compondo como nacional. Um glossário pelo escritor vai indicar que algo falta àquela língua que se monumentaliza como língua nacional. Vai iluminar aquilo que ocorre ou pode ocorrer na língua e que, no entanto, não consta do dicionário.

De um glossário feito pelo editor para livros de autores africanos não podemos dizer o mesmo que afirmamos sobre aquele produzido pela posição escritor. Consideramos que com esses se dá a gramatização da língua outra na tensão com a língua portuguesa. Em outras palavras, com tais glossários pelo editor sobre livros de literatura africana em língua portuguesa, línguas outras em território africano vão se dando a saber e vão sendo legitimadas na língua portuguesa. Saem do silêncio que a língua outra, oficial, impõe. E, assim, é possível dizer que o glossário funciona como feixe de luz sobre aquilo que lá ocorre e que da literatura se destaca como outra língua. Em suma, se a colonização linguística, como lemos em Mariani (2011)MARIANI, B. Língua, colonização e revolução: discurso político sobre as línguas em Moçambique. In: ZANDWAIS, A.; ROMÃO, L. (Org.). Leituras do político. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2011. p.105-126., impõe um silenciamento de outras línguas e se o glossário, em língua portuguesa, faz saber a língua outra, podemos, então, pensar que tais glossários são instrumentos linguísticos que trabalham de alguma maneira a descolonização linguística.

Mas não se pode esquecer que se trata de glossário para livro de literatura...

Zoppi-Fontana (1988)ZOPPI-FONTANA, M. Limiares de silêncio: a leitura intervalar. In: ORLANDI, E. (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1988. p.59-85., em sua análise sobre as notas em edições didáticas de textos literários, observa que eles apontam uma falta no texto – de informação e clareza – e no leitor – de conhecimento – que resultam em necessidade contraditória: para dar a conhecer e, ao mesmo tempo, censura, pensada na dimensão do silêncio, tal como teoriza Orlandi (1997)ORLANDI, E. As formas do silêncio. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997. 8 8 A censura é pensada como silenciamento local na política do silêncio. .

As notas, segundo Zoppi-Fontana (1988)ZOPPI-FONTANA, M. Limiares de silêncio: a leitura intervalar. In: ORLANDI, E. (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1988. p.59-85., supõem o texto literário como referencial no trabalho ilusório de tudo captar, controlar. Não é diferente com o glossário, como se pode ler, por exemplo, quando se confronta o verbete daquilo que se julga não compreender com o fragmento no texto onde a palavra reportada ao glossário se acha. Observe-se o exemplo a seguir:

(26)dibinga: fezes (Os da minha rua, Língua Geral),

(27)“Chegamos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei à tia Rosa, “cuidado com as minas”, ela não sabia que “minas” era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto a ser pisado.” (Os da minha rua, Língua Geral, p. 20, grifo nosso).

Não parece, pois, ser o caso de aí se destacar tal palavra para que se pudesse compreender seu sentido...

Antes de concluir, há ainda uma distinção entre notas e glossário que merece relevo. A palavra que adentra o glossário pode vir marcada no texto, como uma forma de heterogeneidade marcada, por asterisco ou numeração, ou não marcada, como forma de heterogeneidade não marcada (AUTHIER-REVUZ, 1990AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n.19, p.25-42, 1990.)9 9 No quadro teórico, proposto por Authier-Revuz (1990), as formas de heterogeneidade mostrada se bifurcam em marcada e não marcada indicando a explicitação no corpo do texto do discurso outro. Nesse sentido, um discurso direto ou indireto, as aspas, por exemplo, se encontrariam no primeiro caso ao passo que a ironia ou a alusão seriam formas não-marcadas do discurso outro. . As notas se situam no primeiro caso ao passo que os glossários apensos ao final configuram o segundo caso. Aquelas se dão a ver como cicatrizes no corpo do texto10 10 Conforme apontado em Buzzo (MEDEIROS, 2012). denunciando ao leitor que se trata de um discurso outro – língua outra –, indicando um lugar outro de leitura e, ao mesmo tempo, configurando certo leitor: no caso em análise, aquele que desconhece o universo da(s) língua(s) em Angola. O glossário cuja palavra se apresenta na forma de heterogeneidade não marcada deixa ao leitor a opção da procura ao final do livro. Por um lado, uma suposta liberdade no movimento de consulta é seu diferencial; por outro, uma vez que não lhe impõe uma marca, mantém o significante em sua potência de sentidos no texto ou ainda em sua potência de enigma. Todavia, tanto com as notas quanto com o glossário se esquece de que algo sempre escapa, como podemos, como leitores brasileiros, ler no fragmento abaixo:

(28)“Não ia poder matabichar leite com café, como todos dias de manhã [...]” ( Bom dia, camaradas, Cia das Letras/ Os da minha rua,Agir)

O verbete matabichar, para dar um exemplo, não se encontra em dicionários brasileiros, público a quem se destina às publicações das editoras, tampouco em algum dos glossários dos livros analisados. Por que não comparece? Seria o caso de fazê-lo adentrar o glossário?

Como vimos, se por vezes a palavra é opaca no texto, muitas vezes não o é. Importa voltar à pergunta que também norteia esta investigação: por que grafá-las então? Por que não grafá-las?

Para além do argumento necessidade de desopacização, do nosso lugar, diremos que o gesto que move o glossário é atravessado pelo político na língua, entendido como divisão de sentido. Político no qual se inscreve o equívoco... observem-se, à guisa de fecho, mais dois verbetes:

(29)Giro: bonito, interessante (Os da minha rua, Agir)

(30)Sandes: sanduíches (Os da minha rua, Agir)

Giro e sandes são verbetes da língua portuguesa em terra portuguesa. Justificar como falha nos glossários pode ser uma saída. Mas, como analistas de discurso, sabemos que a falha é constitutiva do ritual: neste caso, do gesto que apreende a alteridade... e aqui a que se apresenta é a palavra do solo português em glossário de editora brasileira... Fica a provocação: faria parte de um glossário pelo editor brasileiro se o autor fosse português?

REFERÊNCIAS

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  • YAGUELLO, M. Histoires de Lettre Paris: Éd. Du Seuil, 1990.
  • 1
    Bolsa Produtividade CNPq e JCNE FAPERJ. O artigo contou com apoio da CAPES- Proc. BEX 4175/13-1.
  • 2
    Esta observação adveio de conversas com Jacqueline Authier-Revuz (2014) sobre o objeto aqui em estudo.
  • 3
    Como dito, neste artigo, o foco reside no glossário produzido pela posição editor; as posições escritor e lexicógrafo são trazidas apenas no que concernem à reflexão da posição focalizada.
  • 4
    Savoirs sur la langue et le sujet: les glossaires faits par l´écrivain, trabalho apresentado na Journée d´étude Langue, discours, histoire, na Université Sorbonne Nouvelle Paris III em abril de 2014.
  • 5
    Acerca deste funcionamento da letra K, indicando palavras estrangeiras, cabe recuperar a história que Yaguello (1990)YAGUELLO, M. Histoires de Lettre. Paris: Éd. Du Seuil, 1990. faz das letras do alfabeto. Conforme a autora, por longo tempo a letra K era considerada maldita na língua francesa e se torna uma letra exótica para marcar palavras de outra língua, como Kiwi ou Klaxon (exemplos da autora em língua francesa. Estas palavras têm a mesma grafia em língua portuguesa). Ela explica que os romanos tomaram emprestado a letra K dos gregos, mas não foi o caso dos franceses. Estes, em lugar de integrar o K, o que evitaria problemas de ambiguidade como ocorre em francês com a letra C, deixaram-na para palavras estrangeiras e mantiveram letra C, por advir da língua latina. Em suma, podemos observar que em francês ela é marca de alteridade.
  • 6
    O verbete Kitaba consta do glossário de Os transparentes da Cia Letras, mas, nele, apaga-se o modo como o amendoim forma a pasta. Aí se tem somente “pasta de amendoim”.
  • 7
    Por gramatização, “[...] deve-se entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário.” (AUROUX, 1992b, p.65, grifo do autor).
  • 8
    A censura é pensada como silenciamento local na política do silêncio.
  • 9
    No quadro teórico, proposto por Authier-Revuz (1990)AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n.19, p.25-42, 1990., as formas de heterogeneidade mostrada se bifurcam em marcada e não marcada indicando a explicitação no corpo do texto do discurso outro. Nesse sentido, um discurso direto ou indireto, as aspas, por exemplo, se encontrariam no primeiro caso ao passo que a ironia ou a alusão seriam formas não-marcadas do discurso outro.
  • 10
    Conforme apontado em Buzzo (MEDEIROS, 2012MEDEIROS, V. Um glossário contemporâneo: a língua merece que se lute por ela. Revista Rua, Campinas, n. 18, 2012. Disponível em: <http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/lerArtigo.rua?pdf=1&id=132>. Acesso em: 18 mar. 2016.
    http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    Mar 2015
  • Aceito
    Jul 2015
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