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QUAL VIA PARA A ANÁLISE DO DISCURSO?: UMA ENTREVISTA COM JEAN-JACQUES COURTINE

Quelle voie pour l’analyse du discours: un entretien avec Jean-Jacques Courtine

Resumos

O percurso de Jean-Jacques Courtine no campo da Análise do Discurso de linha francesa bem como as contribuições do autor para a teoria já são bastante conhecidos pelos estudiosos do domínio. Como é comum aos grandes pensadores, o pensamento desse estudioso das ciências humanas não permaneceu o mesmo, nem tampouco os espaços pelos quais ele circulou academicamente (França, EUA e, atualmente, Nova Zelândia). De Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos à História da Virilidade, muitas problemáticas foram enfrentadas por Courtine. Nesta entrevista inédita, o autor nos fala sobre sua história no campo da Análise do Discurso de linha francesa; sobre os anseios, expectativas e perspectivas comuns aos anos 1960 e que influenciaram a Análise do Discurso; sobre aspectos de sua relação com Michel Pêcheux e os caminhos que seus trabalhos tomaram após os anos 1980. Tudo isso nos leva a refletir sobre a complexidade, a importância e a atualidade do discurso como objeto de investigação.

Análise do discurso; Antropologia histórica; Epistemologia; Semiologia histórica


Le parcours de Jean- Jacques Courtine dans le domaine de l’analyse française du discours ainsi que les contributions de l’auteur à la théorie sont bien connus par les chercheurs de ce domaine. Comme il est courant pour les grands penseurs, la pensée de ce savant des sciences humaines n’est pas restée la même, ni les espaces dans lesquels il fit le tour académique (France, USA et actuellement Nouvelle Zélande). De L’Analyse du discours politique: le discours communiste adressé aux chrétiens jusqu’à L’histoire de la virilité, de nombreuses problématiques ont été rencontrées par Courtine. Dans cette interview inédite, l’auteur nous raconte son histoire dans le domaine de l’analyse française du discours; sur les aspirations, les attentes et les perspectives communes de 1960 qui ont influencé l’analyse du discours; sur les aspects de leur relation avec Pêcheux et les chemins qui ont eu leur travail après les années 1980. Tout cela nous amène à réfléchir sur la complexité, l’importance et la pertinence du discours comme objet d’investigation.

Analyse du discours; Anthropologie historique; Épistémologie; Sémiologie historique


It’s commonly known among researchers the importance of Jean-Jacques Courtine’s route in the Discourse Analysis of French tradition and his contributions to the theory. As it is common to the great thinkers, the thought of this scholar of the humanities has not remained the same, nor the spaces through which he circulated academically (France, USA and currently New Zealand). From the work done about the communist discourse addressed to Christians to the recent work History of virility, Courtine has faced many problems. In this unprecedented interview, the author tells us about his story in the field of Discourse Analysis of French tradition; aspirations, expectations and common perspectives from the 1960s that influenced Discourse Analysis; he tells about aspects of his relationship with Pêcheux and the paths that their work has taken from the 1980s on. All this leads us to reflect upon the complexity, importance and relevance of the discourse as an object of investigation.

Discourse analysis; Historical anthropology; Epistemology; Historical semiology


João Kogawa: Podemos considerar Análise automática do discurso, publicado em 1969, como marco inaugural da Análise do Discurso (doravante AD) na França. No entanto, há outros textos de M. Pêcheux nos quais ele não parece ter a mesma preocupação. Refiro-me a Ideologia e história das ciências, em colaboração com M. Fichant e aos artigos publicados sob pseudônimo de Thomas Herbert (“Reflexões sobre a situação teórica das ciências sociais, especialmente, da psicologia social” e “Observações para uma teoria geral das ideologias”). Qual a relação entre esses textos?

J-J. Courtine: Para responder a esta questão, é preciso considerar o seguinte fato: no que ainda resta de Pêcheux, isso vale para a França, mas provavelmente para o Brasil também, sua atividade de analista do discurso esmagou, de alguma forma, o resto de sua bibliografia. Assim, fico impressionado com a utilização extensiva e intensiva feita no Brasil de todos os textos que tratam da AD muito mais do que do próprio trabalho filosófico. Ora, Pêcheux era filósofo e é disso que precisamos nos lembrar. Ele tinha duas faces: era filósofo de uma parte, e era um cara, de outra parte, que adorava fabricar e bricolar máquinas com a linguística e a informática. Ele realizava, então, um trabalho crítico de filósofo em uma perspectiva marxista, como aluno de Althusser que ele tinha sido e continuava a ser; ele efetuava também outro trabalho que implicava certas formas de bricolagem linguístico-informáticas que o conduziram a conceber a Análise Automática do Discurso (AAD). Para ele, as duas atividades estavam ligadas. A AAD era o prolongamento prático, metodológico e o braço armado, de alguma forma, do trabalho filosófico.

Ora, é esta segunda atividade que se manteve, parece-me, como seu legado essencial. É preciso não esquecer que ele era filósofo marxista althusseriano e é por isso, evidentemente, que ele escreveu seus trabalhos críticos sobre a história das ciências reinterpretando alguns historiadores ou filósofos da ciência – Bachelard em particular. É por isso que a noção de “corte epistemológico” ganhou um lugar particular. Pêcheux procura mostrar que os trabalhos de Saussure, primeiramente, e de Chomsky, igualmente, teriam operado tal corte. Para além da própria linguística, ele travava – enquanto filósofo marxista – o que na época se chamava uma “luta de classes na teoria” e é nesse contexto que se inscreve seu trabalho com Fichant, também camarada da Escola Normal e filósofo. Lembrar o uso dessa expressão, hoje expirada, explica o apagamento do trabalho filosófico de Pêcheux: aquele do próprio marxismo no mundo das ideias.

Pêcheux não trabalhou, como se tende a acreditar, apenas com linguistas e informáticos. Tal ideia, que omite a parte filosófica do seu trabalho, serve mais para dar sentido ao seu engajamento na AD. Ele realizou, naquela época, toda uma atividade crítica no domínio das ciências humanas e sociais, que atacava o que se fazia na universidade em nome de disciplinas como, por exemplo, a Psicologia Social: Pêcheux via aí verdadeiramente o ponto avançado do capitalismo nas ciências humanas. Os escritos de “Thomas Herbert” se inscrevem nessa perspectiva. Mas como ele devia, no mesmo momento, ingressar como pesquisador no CNRS – e aparecer como filósofo marxista não era uma estrada real para chegar lá – ele usou esse pseudônimo – que vem de uma história familiar – para assinar seus textos. Thomas Herbert era, se me lembro bem, um amigo da família e uma lembrança que tinha a ver com a guerra. “Thomas Herbert” era então, literalmente, tanto um nome de guerra quanto um “nome de caneta”. Isso diz muito sobre o ambiente que reinava nos afrontamentos políticos universitários. De qualquer maneira, é preciso que, nessa espécie de biografia póstuma que se constituiu dele, a parte da AD não tenha total precedência sobre o trabalho filosófico, crítico e político que lhe era próprio, a ponto de apagá-lo. É mais importante se lembrar de que Michel Pêcheux teve que, em um momento dado, escolher se rebatizar “Thomas Herbert” e compreender o porquê.

João Kogawa: Qual é a concepção de discurso que parece mais apropriada à compreensão de seus trabalhos atuais?

J-J. Courtine: Essa questão concerne tanto à natureza do trabalho sobre o discurso que podemos fazer quando empreendemos o trabalho histórico, o que é meu caso há bastante tempo, quanto ao que pude aprender de todo este período em que pratiquei AD. Posso dizer, a esse respeito, que não há uma continuidade absoluta entre esses dois momentos, mas que não há também uma descontinuidade radical. Parece-me que o que eu aprendi quando fazia análise do discurso me preparou para o trabalho crítico sobre os textos a que o historiador deve, evidentemente, estar aberto. Isto é, quando estudei questões como, por exemplo, a tradição médica e fisionômica da expressão das emoções entre os séculos XVI e XIX, a leitura de todo esse vasto corpus de textos se beneficiou, eu acho, do que aprendi fazendo análise do discurso. Quando temos que estabelecer genealogias de enunciados, conceber uma arqueologia de grandes conjuntos de discursos e somos confrontados a massas de documentos, reconhecemos a importância de noções como a de pré-construído ou a de interdiscurso. Contudo, ao mesmo tempo, isso é apenas uma parte do trabalho a ser realizado.

Isto é, o trabalho do historiador deve aproveitar a totalidade do material da história. E nessa totalidade, é claro, não há apenas texto, não há apenas discurso. Minha perspectiva é então muito próxima daquela de Foucault em A arqueologia do saber (2004), com a condição que compreendamos bem que o termo “discurso” que ele emprega não quer dizer, no melhor dos casos, “texto”. Ele concerne aos materiais da história em geral. Isso implica que, no trabalho histórico que eu pude fazer na longa duração, quer seja sobre as emoções e as expressões do rosto, o corpo deformado, ou ainda a virilidade, as preocupações textuais constituem apenas uma parte. É preciso decifrar os textos, compreender as imagens, interpretar as listas e tabelas, reconstruir e dar nova vida a gestos e práticas. Enfim, dar sentido a tudo o que constitui a diversidade dos materiais da história.

Assim, as preocupações discursivas que uma vez tinham sido as minhas se inscrevem em uma perspectiva histórica e genealógica mais larga que, me parece, está bem mais próxima do que eu aprendi a fazer lendo de perto A arqueologia do saber que da própria AD, no sentido estritamente linguístico do termo.

João Kogawa: Em Mitologias (BARTHES, 1980BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL, 1980.), um pouco como você diz em Metamorfoses do discurso político (COURTINE, 2006COURTINE, J.-J. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Tradução de Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos: Claraluz, 2006.) (com textos escolhidos e traduzidos por Carlos Piovezani e Nilton Milanez), há a ideia de que, com o surgimento das grandes mídias, era essencial construir uma ciência da semiologia. Como você vê seu trabalho em relação ao de Barthes?

J-J. Courtine: Não tenho certeza de que deixei entender verdadeiramente que era “essencial construir uma ciência da semiologia”. E eu só empreguei o termo semiologia, quando o fiz, acompanhado do adjetivo “histórica”, pois, a meu ver, os objetos da semiologia, os signos com os quais ela se preocupa, têm, antes de tudo, uma existência histórica.

Contudo, se você me interrogasse sobre o projeto semiológico tal como foi formulado por Roland Barthes, particularmente na perspectiva de uma semiologia da imagem – pois, é isso que me interessou antes de tudo –, o que me impressiona é que o nascimento da semiologia é uma espécie de mistério histórico. Como é que um projeto que data do final do século XIX, que foi formulado no início do século XX no Curso de linguística geral de Saussure, sem suscitar nenhum interesse digno de ser notado durante aproximadamente meio século, reaparece de repente depois de um longo silêncio nos anos 1960, ou seja, no início do que os historiadores da cultura consideram como o segundo século XX? O que é certo, é que esse renascimento tem apenas parcialmente a ver com uma gênese interna da história da linguística e do estruturalismo que costumamos evocar frequentemente. Ele depende de outros fatores, em particular da maneira pela qual a sociedade foi subitamente inundada pelos mass media de forma bem mais massiva que tinha sido até então. Foi preciso pensar e forjar ferramentas para compreender isso. Eu penso que a semiologia das imagens, notadamente, tal como ela aparece nesse momento, só pode se explicar assim. Por que se começa a elaborar uma semiologia das imagens nos anos 1960? Porque temos a consciência, vaga inicialmente e depois cada vez mais precisa, de que a propaganda invade tudo, que as mensagens publicitárias se espalham por todo o canto, que a televisão penetra nos lares e que em nossas casas, na intimidade da vida privada, somos confrontados com o que, anteriormente, era restrito à esfera pública.

Há, então, duas razões que, a meu ver, explicam o surgimento da semiologia nesse momento. Há tanto a necessidade do próprio estruturalismo e do seu desenvolvimento (o que vemos bem em Barthes, particularmente em Elementos de semiologia (1999), e em seus textos inaugurais), quanto o fato de que novos objetos se impõem à análise, especialmente, a propaganda em todas as suas formas. É, aliás, pela mesma razão que, no mesmo momento, nasce uma análise da forma textual das ideologias, ou seja, uma análise de discurso. Todas essas coisas estão ligadas. Vemos bem que sua genealogia toma em parte questões que concernem às próprias disciplinas – a forma com que as disciplinas são “conquistadas” pelo estruturalismo – mas também fatores que são exteriores à esfera da ciência e que concernem mais geralmente ao contexto ideológico que era então o nosso e suas transformações profundas nos anos 1960.

João Kogawa: Nilton Milanez realizou estudos sob sua direção em 2003 e, desde então, ele utiliza no Brasil o conceito de “intericonicidade”. Eu sei que se trata de uma parte de seu trabalho e uma de suas preocupações. Seria possível assimilar esse conceito ao de “interdiscurso” em Pêcheux?

J-J. Courtine: A ideia vem daí, sim. Mas a intericonicidade não pode ser diretamente superposta ao que entendemos por “interdiscurso”. Quando comecei a trabalhar sobre essa questão em 2003-2004, eu tinha, há muito tempo, um ceticismo sobre a possibilidade de aplicar modelos linguísticos à imagem. Eu percebia que uma semiolgia da imagem não podia ser de inspiração linguística; que as tentativas feitas na perspectiva de uma retórica da imagem, tal como Barthes a pensou, não funcionavam e não convinham; que a definição do signo linguístico não se encaixava com a natureza da materialidade icônica e só podia ser aplicada nesse domínio a preço de distorções consideráveis. Foi então que me perguntei se, no fundo, a imagem não combinaria mais com o discurso que com o modelo da língua, como a semiologia o concebia na época. É a partir daí que, procurando compreender a imagem a partir de um modelo discursivo, eu me perguntei, evidentemente, se o conceito de interdiscurso, ou seja, o fato que haja sempre palavras sob as palavras, discurso sob discurso, que haja “sempre um já lá do discurso”, como dizíamos então, não podia se aplicar à imagem. Sem dúvida alguma, há “sempre um já lá da imagem” e há imagens sob as imagens. E é a partir desse momento que comecei a considerar nas imagens sua dimensão genealógica e memorial. Isso significa que toda imagem faz ressurgir outras imagens. Quer se tratasse, aliás, de imagens exteriores ao sujeito – as imagens que podemos documentar na medida em que elas existiram materialmente, foram vistas, percebidas sobre suportes exteriores ao próprio sujeito – ou de imagens mentais, aquelas que povoam o imaginário do sujeito em questão. É nesses termos que concebi a intericonicidade. Toda imagem é uma relação de imagens, se inscreve em rede com outras imagens, quer se trate de imagens externas ou internas ao sujeito. Essa intuição foi compartilhada por outros, que a desenvolveram independentemente e à sua maneira: em um livro recente, que se intitula Diplopie, de Clément Chéroux (2009)CHÉROUX, C. Diplopie: l’image photographique à l’ère des médias globalisés: essai sur le 11 de septembre 2001. Paris: Le point du jour, 2009., encontramos uma utilização bastante parecida da mesma noção. Só que Chéroux considera que é entre as imagens externas, as quais, enquanto historiador da arte, ele se esforça por documentar a trilha, que podemos ver as relações de intericonicidade se produzirem. Sob as imagens do 11 de setembro, ele entrevê aquelas de Pearl Harbor. Isso me parece ser justo, mas, a meu ver, é preciso prever o lugar das imagens internas, o lugar que as imagens vêm ocupar no imaginário do sujeito. Há, na paisagem mental de cada um, na memória das imagens da qual cada um dispõe, uma parte individual e uma parte coletiva – algo que é da ordem da intericonicidade. Da mesma maneira que, para ler textos, é preciso fazer ressurgir a memória dos textos – é isso que chamamos interdiscurso, quer façamos reaparecer estes textos em sua forma documentária ou como simples traço de memória, pouco importa – há uma memória das imagens; imagens que podem estar simultaneamente sobre o muro, aqui, diante de vocês e na sua cabeça.

João Kogawa: Pêcheux, em O papel da memória (1999), propôs, de alguma maneira, perspectivas diferentes a essa questão. No Brasil, [a partir das discussões do GEADA, LABOR, e dos estudos de Nilton Milanez no LABEDISCO] vemos sua pesquisa como uma via para a AD. Como você vê esses trabalhos brasileiros que consideram sua pesquisa como uma possibilidade de transformação da AD?

J-J. Courtine: Eu já respondi parcialmente essa questão em outra ocasião, mas vou abordá-la de outra maneira. Para a AD brasileira, eu diria que eu sou provavelmente um mau exemplo, pois, meu percurso consistiu em deixar de fazer AD. Então, se a AD ou alguns analistas do discurso brasileiros querem se inspirar em meu exemplo, eu acredito fortemente que eles correm o risco, como eu, de deixar de serem analistas do discurso. A menos que dermos, o que me parece ser ao mesmo tempo o caso no Brasil, uma acepção muito larga ao termo análise do discurso. Eu compreendo que queiramos dar à AD um sentido mais largo do que aquele que ela teve e continua tendo, que queiramos fazer entrar em nosso campo materiais que não são puramente textuais. Nesse caso, se estas preocupações estiverem fortemente inscritas no campo da História, se os materiais sobre os quais se trabalha são documentos não estrita e unicamente linguísticos, então, sim, por que não? Talvez a perspectiva que eu desenvolvo possa se inscrever no campo da AD. Mas é preciso ver o que isso implica: são condições pesadas que correm o risco de nos distanciar consideravelmente do campo necessariamente reduzido de uma análise linguística do discurso. Ao mesmo tempo, eu respondi acima de outra maneira a esta questão, dizendo que no trabalho histórico – no que Foucault chama genealogia ou arqueologia –, há um lugar para o trabalho linguístico. Há provavelmente, pontualmente e ocasionalmente um lugar para isso em função dos objetos, dos objetivos, do corpus de uma pesquisa, mas, sistematicamente, não. Eu não penso que o essencial do trabalho deva se focalizar em métodos linguísticos, quando o objeto da história transborda largamente tal enfoque. Eu acho que o linguístico pode intervir eventualmente como uma ferramenta. Por que não? Como quando fazemos trabalho documental em história. Criticamos fontes; fazemos isso para a imagem, para as práticas, para as séries estatísticas, e então, evidentemente, para os materiais textuais da história. No entanto, isso torna o que é estritamente linguístico apenas uma metodologia anexa ou auxiliar entre outras. A escolha está, então, bem aí. Se queremos verdadeiramente fazer história, se consideramos que o objeto é antes de tudo histórico, não podemos nos prender simplesmente a considerações de ordem linguística. Porque as materialidades das quais temos que dar conta transbordam largamente a questão do texto, e isso nos obriga a pensar, ao contrário, a relação entre diferentes tipos de materialidades. Listas, tabelas, imagens, fotografias, textos, mas também práticas, gestos, expressões. Aí está, parece-me, a resposta que podemos dar. Assim, tenho medo de que aqueles que estejam prontos a seguir essa via venham dar à AD um conteúdo muito próximo da história cultural ou da antropologia histórica.

João Kogawa: Você diz frequentemente, em seu curso sobre antropologia das imagens, “que não podemos ter medo de nos deslocar”, ou seja, que não devemos nos fechar em limites disciplinares de maneira radical. Por que, após a morte de Pêcheux, assistimos a uma espécie de “redisciplinarização” da AD em que o nomadismo não parece ter lugar?

J-J. Courtine: A resposta se encontra tanto no que foi a AD quanto no que ela se tornou. Houve originalmente um forte ar de liberdade interdisciplinar que Pêcheux, filósofo marxista e homem curioso apaixonado pela linguística e pela informática, encarnou largamente. É por isso que eu insisti anteriormente sobre o trabalho filosófico no qual Pêcheux estava inteiramente implicado. Não devemos pensar que ele estaria, antes de tudo, preocupado em fabricar uma disciplina que se chamava “Análise do Discurso”. Não era o caso; isso era apenas um dos aspectos do seu trabalho; talvez um dos adicionais de seu trabalho, mesmo sendo um dos elementos importantes. Mas não havia só isso. Como filósofo, ele estava extremamente aberto a numerosos domínios e os intercâmbios que fazíamos na origem eram intercâmbios em que filosofia, política, linguística, lógica matemática, informática e história estavam, evidentemente, implicados. É preciso não apagar isso, não mais que o projeto político que atravessava essa concepção da AD cujo papel central destaquei. Assim, eu era profissionalmente linguista na época, e ele era profissionalmente filósofo. Claudine Haroche fazia psicologia social no CNRS. Marandin era linguista e trabalhava com linguística formal; Françoise Gadet era também linguista e se interessava pela sociolinguística. Havia igualmente informáticos e lógicos que trabalhavam com a gente. Mas essas especializações, essas razões de ser profissionais não prevaleciam sobre a necessidade de encontrar um terreno comum e inédito.

E havia, evidentemente, questões históricas que se colocavam, trabalhos de natureza histórica realizados. No meu caso, por exemplo, o trabalho que fiz sobre o discurso do Partido Comunista Francês era uma maneira de colocar questões históricas. Então, tudo isso coexistia no mesmo projeto e a interdisciplinaridade era central na fundação de alguma coisa nova. Estávamos em um ambiente, como diria Deleuze, de “desterritorialização” das formas de circulação que remodelavam os papéis e redistribuíam as fronteiras das disciplinas. Depois, de maneira bastante rápida, tudo deixou de ser assim: a AD se “disciplinarizou” rapidamente e o movimento se valeu da própria vida de Pêcheux.

Existiam também aqueles cuja preocupação era a disciplarização da AD e que não faziam parte do grupo do qual acabo de falar. Eles estavam, aliás, totalmente ocupados em escrever manuais de introdução, a sonhar com dicionários. Havia, então, um projeto pedagógico e disciplinar que se desenvolveu paralelamente a esta fundação inicial. Esse não era meu propósito, nem o propósito original de Pêcheux, ainda que ele, a meu ver, pouco a pouco – sobretudo no fim – tenha cedido, em certa medida, a isso. Entretanto, seria preciso ver a questão de perto, pois, ele tentou levar até o fim seu trabalho crítico de filósofo. O que é claro, em contrapartida, é que, para alguns, a AD só interessava como componente da linguística, apenas como disciplina no interior desta. Acho que desde que as coisas se reterritorializaram efetivamente, esse espírito interdisciplinar deixou de respirar. Esta é a razão pela qual eu me distanciei. Considero, com efeito, que o nomadismo, no plano intelectual, é algo precioso. Michel de Certeau, do qual eu era próximo, dizia sempre: “Pensar é passar”. Isso me parece ser uma verdade essencial. Isto é, o trabalho do pensamento consiste em se deslocar. Interpretei isso também como deslocamento no plano do espaço geográfico, razão pela qual, aliás, eu respondo a esta entrevista, pois, o que se passa no Brasil não me deixa indiferente porque eu pude constatar aí a marca profunda que a AD e os trabalhos de Pêcheux deixaram. Acredito na virtude teórica das viagens e dos deslocamentos e passei quinze anos da minha vida – quase a metade da minha carreira – nos Estados Unidos por essa razão. Isso me permitiu pensar, trabalhar, pesquisar, mudar. Mas podemos ser um grande viajante ficando em casa, como Montaigne em sua torre... podemos viajar sem nunca deixar Paris, este escritório, a Sorbonne. Existem formas de deslocamento, de flexibilidade, de plasticidade intelectual, que fazem com que alguns saibam se deslocar sem sair do lugar... É uma marca das ideias não poder ficar no mesmo lugar, de existir apenas na circulação. As pessoas que acreditam serem proprietárias das ideias estão sempre enganadas.

João Kogawa: No dia 30 de setembro de 2010, na Sorbonne, em um coquetel de abertura do ano escolar, você me fez uma brincadeira muito interessante em um momento em que eu falava de minha pesquisa. Isso se deu no contexto em que você me apresentava a uma de suas colegas de departamento. Eu lhe dizia que me interessava pela história da AD e pelos primeiros textos de Pêcheux. Você me disse, naquele momento, que eu procurava “ossos de dinossauros”. A seu ver, a AD, tal como Pêcheux a concebeu, possui um dispositivo analítico suficiente para compreender as formas de dominação da nossa atualidade?

J-J. Courtine: Essa é uma boa questão, João. Primeiramente, minha brincadeira era injusta para com os dinossauros: não é porque eles são extremamente antigos que não sejam interessantes. Pelo contrário. No entanto, seria justo para com a análise do discurso? Provavelmente não também. Depois de tudo, ela faz parte da história da Linguística e, igualmente, da história do estruturalismo e do marxismo nas ciências humanas. Suscita o mesmo interesse que qualquer outro objeto da história intelectual de nossos últimos cinquenta anos.

Mas a questão é outra: as ferramentas elaboradas pela AD na época permitiriam compreender o que se passa hoje? Tenho tendência a responder a esta questão de maneira negativa e afirmativa ao mesmo tempo. Podemos, certamente, encontrar na análise das formas linguísticas alguns elementos que permitam compreender parcialmente as formas de dominação discursivas contemporâneas. Contudo, eu acho que é preciso ir muito mais longe. As discursividades às quais somos confrontados hoje não se apresentam mais – ou muito raramente se apresentam assim – como discursividades puramente linguageiras. Vemos bem que as formas de dominação se exercem através de modos de comunicação mistos, em que imagens, falas, discursos escritos e efeitos de espetáculo se encontram imbricados. Por isso, eu não penso que a contagem estatística de palavras, tal como se opera ainda sobre o discurso político, nem mesmo, aliás, a atenção exclusivamente sintática ou lexical que lhe prestamos, esclareçam o que se produz atualmente.

Estas discursividades mistas são igualmente “líquidas”, como sugere Zygmunt Bauman, elas se apresentam sob a forma de uma circulação destas mensagens mistas em fluxo contínuo, que se caracterizam por sua velocidade, sua instantaneidade, e sua obsolescência. Isso implica que a memória coletiva, tanto das palavras quanto das imagens, é hoje um jogo político essencial.

A AD teria um papel a desempenhar na decifração das formas contemporâneas de dominação se, primeiro, ela insistir em assumir o papel crítico que estava em sua origem; se, em segundo lugar, ela se abrir à diversidade das materialidades verbais, quer sejam orais ou escritas, assim como da imagem, na qual são tecidas as formas de comunicação que atravessam e organizam a esfera pública; se, enfim, sua ancoragem histórica for tal que lhe permita conservar às palavras e às imagens sua filiação, ou seja, se ela souber restaurar a memória das representações coletivas, sempre mais fugazes, sempre mais fluidas. Dessa forma, a AD contribuirá para que o presente de nossas sociedades não apague sua história tornando-as ininteligíveis.

Bibliografia consultada

BAUMAN, Z. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CORBIN, A.; VIGARELLO, G.; COURTINE, J.-J. Histoire de la virilité. Paris: Seuil, 2011. v.3.

COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução de Christina de Campos Velho Birck et al. São Carlos: EDUFSCAR, 2009.

HERBERT, T. Remarques pour une théorie générale des idéologies. Cahiers pour l’analyse, Paris, n.9, p.74-92, 1968.

HERBERT, T. Sur la situation théorique des sciences sociales, spécialement, de la psychologie sociale. Cahiers pour l’analyse, Paris, n.2, p.174-203, 1966.

PÊCHEUX, M.; FICHANT, M. Sur l’histoire des sciences. Paris: Maspero, 1969.

Agradecimentos

À CAPES pela bolsa de estudos que nos permitiu a realização do estágio doutoral na França. Ao professor Jean-Jacques Courtine não só por nos conceder a honra de realizar este trabalho, mas também e principalmente pela acolhida na França.

REFERÊNCIAS

  • BARTHES, R. Elementos de semiologia Tradução de Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1999.
  • BARTHES, R. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL, 1980.
  • CHÉROUX, C. Diplopie: l’image photographique à l’ère des médias globalisés: essai sur le 11 de septembre 2001. Paris: Le point du jour, 2009.
  • COURTINE, J.-J. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Tradução de Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos: Claraluz, 2006.
  • FOUCAULT, M. A arqueologia do saber Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
  • PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD, P. et. al. (Org.). O papel da memória Tradução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p.49-57].
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    Essa entrevista foi feita com Jean-Jacques Courtine na Sorbonne, em dezembro de 2010, quando da realização de nosso estágio PDEE (Doutorado Sandwisch). Inicialmente, gravamos material audiovisual. Depois disso, fizemos a transcrição em francês do material audiovisual. Todo esse trabalho foi acompanhado e revisado pelo próprio professor Courtine. Por último, traduzimos o material transcrito em francês para o português para que, dessa forma, um maior público tivesse acesso às informações aqui apresentadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    Jan 2014
  • Aceito
    Jun 2014
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