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Regularização fundiária e direito à cidade: as transformações na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá na cidade de Pelotas (RS)

Land tenure regularization and the right to the city: the transformations in the daily life of the residents of the Loteamento Barão de Mauá in the city of the Pelotas (RS)

Resumo

Nesta pesquisa, busca-se analisar quais foram os impactos e as transformações sociais na vida cotidiana dos moradores removidos de áreas consideradas “irregulares” e depois, com seu reassentamento em um loteamento denominado “Barão de Mauá”, no município de Pelotas (RS). Para tanto, a análise enfoca os recentes processos de planejamento urbano e de regularização fundiária no contexto brasileiro; especificamente na realidade de Pelotas, pretende-se verificar de que modo a transformação do espaço urbano alterou também o dia a dia dos moradores e moradoras do loteamento. A pesquisa foi efetuada segundo a perspectiva teórico-metodológica de vida cotidiana de Henri Lefebvre, de remoção e reassentamento de Raquel Rolnik, de planejamento urbano de Ermínia Maricato, de memória e identidade de Maurice Halbwachs e de direito à cidade de David Harvey. Utilizou-se a metodologia qualitativa com aporte em entrevistas abertas, observação e diário de campo na investigação da percepção e do sentido que os(as) moradores(as) apresentavam a respeito das novas moradias e, sobretudo, do processo de regularização fundiária realizado pelo poder público municipal. Por meio dessas narrativas, foi possível perceber a ocorrência de conflitos no espaço do loteamento, resultantes das imposições do poder público municipal, o que acabou por transformar o cotidiano dos(as) moradores(as) e redefiniu as relações sociais e de convivência entre os habitantes e o espaço. Com base na análise realizada com aporte nos dados coletados em campo, problematizamos as práticas cotidianas enquanto formas e possibilidades de reivindicar o direito à cidade, isto é, atividades de trabalho, lazer e, principalmente, modos de estar inscritos ao viver no loteamento e as relações de solidariedade e disputa entre moradores(as) que foram removidos(as) e realocados(as).

Palavras-chave:
Espaço Urbano; Regularização da Terra; Vida Cotidiana; Loteamento; Direito à Cidade

Abstract

In this research, the objective was to analyze and understand the impacts and changes in the daily lives of residents removed from areas considered “irregular” and then resettled in a subdivision called “Loteamento Barão de Mauá” in the municipality of Pelotas (RS). Thus, in this work, the central question is: How did the recent urban planning and regularization processes take place, in the Brazilian context considering the reality of Pelotas? In order to carry out the research, Henri Lefebvre’s theoretical-methodological perspective of everyday life was analyzed, as well Raquel Rolnik’s removal and resettlement, Ermínia Maricato’s urban planning, Halbwachs’ memory and identity and David Harvey’s right to the city. We used the qualitative methodology to conduct open interviews, observation and field diaries in the investigation of the perception and the sense that the residents presented about the new housing and, above all, about the regularization process that was carried out by the municipal government. Through these narratives, we perceive the occurrence of conflicts in the allotment space, due to the impositions of the municipal public power, which transformed the daily lives of the residents and redefined the relations between the inhabitants and the space. As a result of the analysis carried out with input from the data collected in the field, that daily practices are forms and possibilities way so claiming the right to the city, that is, activities of work, leisure and, above all, their way so being when living in the allotment, as well as solidarity and dispute relations between residents who have been removed and relocated.

Keywords:
Urban Space; Land Regularization; Everyday Life; Allotment; Right to City

INTRODUÇÃO

O direito à moradia no Brasil foi garantido no ordenamento jurídico da Constituição Federal de 1988, com um capítulo dedicado à política urbana. Na sequência, foram anos de debates e mobilizações sociais até a regulamentação da política urbana no país. No ano de 2001, a regulamentação ocorreu pelo chamado Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001 (BRASIL, 2001BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Estatuto da Cidade. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 11 jul. 2001. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm . Acesso em: mar. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). Entre as diretrizes estabelecidas pelo Estatuto foram incluídas as normas para a regularização fundiária na agenda da política urbana e habitacional nos municípios.

Com base no Estatuto da Cidade foi criado, em 2003, o Programa Nacional de Regularização Fundiária (BRASIL, 2005BRASIL. Regularização Fundiária. Brasília: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Programas Urbanos, 2005.), que estabelece a competência do poder público municipal para avaliar as áreas “irregulares” do município passíveis de regularização fundiária e habitacional. Contudo, das áreas consideradas em situação de irregularidade pela prefeitura, nem todas podem ser regularizadas.

Alguns dos assentamentos são reconhecidos como áreas de risco1 1 “Áreas de risco são regiões onde é recomendada a não construção de casas ou instalações, pois são muito expostas a desastres naturais, como desabamentos e inundações.” Disponível em: https://www.unicamp.br/fea/ortega/temas530/ricardo.html. Acesso em: 3 maio 2020. . Nesses casos, o poder público municipal realiza a remoção e efetiva o reassentamento da população em outro local. Foi o que ocorreu com as populações realocadas para o Loteamento Barão de Mauá, localizado no município de Pelotas (RS), construído em 2013. Ele faz parte do Programa Municipal de Regularização, promovido pela prefeitura.

Naquele ano, o governo municipal identificou 161 áreas irregulares. Previu-se, então, que ao menos 31 delas deveriam ser regularizadas. Uma das regularizações propostas pelo poder público municipal acabou por gerar o Loteamento Barão de Mauá, onde foi realizada a pesquisa empírica, durante o período de março de 2015 a junho de 2016, que resultou na dissertação Regularização fundiária em Pelotas: as transformações na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá (ROSA, 2016ROSA, N. Regularização fundiária em Pelotas: as transformações na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá. 2016. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.), no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

A proposta de investigação inicial relacionada à temática de sociologia urbana surgiu com o interesse em compreender os recentes processos de “revitalização” que estavam ocorrendo em alguns espaços do município e que em grande parte compreendiam a remoção de populações em situação considerada “irregular” pelo poder público local. Desse modo, constava no Programa Municipal de Regularização Fundiária o objetivo de regularizar determinadas áreas classificadas como irregulares ou, se fosse o caso, remover as populações que se encontravam nessa situação. Diante desse contexto social, este trabalho objetiva compreender quais foram os impactos e as transformações sociais na vida cotidiana dos(as) moradores(as) removidos(as) e que passaram a habitar o Loteamento Barão de Mauá como resultado dos processos recentes de planejamento urbano e de regularização no contexto de Pelotas.

Acreditamos que, para compreender as dinâmicas sociais envolvidas na realidade do Loteamento Barão de Mauá, é preciso considerar a interdependência entre o contexto global e o local. A importância de abordar essa temática no atual momento histórico reside no fato de a questão do acesso à moradia ser recorrente na vida cotidiana de milhares de pessoas que se deslocam e vivem nas cidades brasileiras. Logo, a contribuição desta pesquisa consiste em pôr em foco e discutir as percepções dos(as) moradores(as) desse loteamento em Pelotas, evidenciando o modo como se desenvolvem os processos atuais de planejamento urbano no país, e, especificamente, no Rio Grande do Sul, que compreendem remoções e reassentamentos.

Para a construção dessa investigação, foi realizada uma análise com aporte nas teorias que abordam as cidades na produção capitalista do espaço e a vida cotidiana (Lefebvre); o direito à cidade (Lefebvre, Harvey), remoção e reassentamento (Rolnik), planejamento urbano (Maricato, Rolnik) e memória e identidade (Halbwachs). Por meio dessas perspectivas teórico-metodológicas, discute-se neste texto a concepção de planejamento urbano implementado pelo Governo Federal com base no Estatuto da Cidade. Analisam-se, em particular, a forma como o Programa de Regularização Fundiária se efetivou no município de Pelotas e as transformações sociais dele decorrentes no dia a dia dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá, assim como suas percepções sobre o processo de remoção e o reassentamento.

A vida cotidiana torna-se a categoria de análise central porque permite investigar os modos da vida nesse loteamento, no tocante à apropriação e ao uso do seu espaço. Também, pode ajudar a compreender os desdobramentos dos processos de urbanização global que se reproduzem no modo de vida local dos atores sociais. Assim, a vida cotidiana se apresenta como um conceito teórico-metodológico centrado na existência dos indivíduos que abrange as formas pelas quais o social reflete em suas vidas, mas sem esquecer a historicidade do cotidiano (LEFEBVRE, 2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011.).

A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a abordagem qualitativa, em que, de acordo com Minayo (2009MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2009.), o pesquisador atua com a matéria-prima das vivências, das experiências e da cotidianidade e analisa também as estruturas e as instituições, entendendo-as como ação humana objetivada. Além disso, o método qualitativo é empregado no estudo da história, das relações, percepções, representações e crenças, produto das interpretações feitas pelos atores sociais a respeito de seu modo de vida, da maneira como constroem o mundo e a si mesmos, uma vez que a investigação sociológica não se defronta com a realidade em si, e sim com as interpretações acerca dessa realidade (MINAYO, 2009MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2009.).

Compreendemos que o processo de transformação na vida cotidiana no Loteamento Barão de Mauá deveria ser investigado com base na perspectiva dos(as) interlocutores(as) de pesquisa. Por isso, fez-se uso dos procedimentos metodológicos de observação2 2 “A atividade de observação tem um sentido prático. Ela permite ao pesquisador ficar mais livre de prejulgamentos, uma vez que não o torna, necessariamente, prisioneiro de um instrumento rígido de coleta de dados ou de hipóteses testadas antes e não durante o processo de pesquisa.” (MINAYO, 2009, p. 70). , diário de campo3 3 “O principal instrumento de trabalho de observação é o chamado diário de campo, que nada mais é que um caderninho, uma caderneta, ou um arquivo eletrônico no qual escrevemos todas as informações que não fazem parte do material formal de entrevista em suas várias modalidades.” (MINAYO, 2009, p. 71). e entrevistas abertas4 4 Nas entrevistas, foi perguntado aos(às) moradores(as) reassentados(as) (i) se eles(as) se identificam com a moradia no Loteamento Barão de Mauá e (ii) quais são os modos de vida que eles(as) tinham na moradia anterior e se isso interfere na percepção que têm do loteamento em que se encontram atualmente. realizadas entre novembro de 2015 e março de 2016 no referido loteamento5 5 Com o objetivo de zelar pela identidade dos(as) entrevistados(as), em razão de o loteamento ser considerado uma área de conflito urbano e de disputas cotidianas, optou-se pela adoção de nomes fictícios. .

O Loteamento Barão de Mauá é constituído de 152 moradias distribuídas por seis ruas. Foram conduzidas 21 entrevistas entre os moradores dessas ruas. Na seleção dos entrevistados(as), pretendeu-se contemplar a diversidade de percepções e a diferente localização das casas. Assim, foi efetuada uma média de três a quatro entrevistas por rua do loteamento, intercalando as moradias. As entrevistas foram realizadas na habitação dos(as) moradores(as), na tentativa de construir um diálogo sobre o cotidiano deles no que se refere à remoção e ao reassentamento no loteamento, enfatizando os modos de habitar na antiga moradia e o novo cotidiano resultante da nova realidade.

Dessa maneira, foi analisada ao longo deste trabalho a produção do espaço urbano na sua relação com os processos de acumulação capitalista atual numa reflexão sobre as tramas que constituem a questão da moradia e seus impactos nas práticas cotidianas dos(as) moradores(as) do loteamento, isto é, atividades de trabalho, lazer, ocupação do espaço e, sobretudo, seus modos de estar inscritos no viver, bem como as relações entre os(as) moradores(as) que foram removidos(as) e realocados(as) em Barão de Mauá. Vale ressaltar que observamos essas práticas como ações que evocam formas de reivindicar o direito à cidade no contexto estudado.

1. Regularização fundiária e o loteamento Barão de Mauá

O modelo de regularização fundiária recente, ao menos das três últimas décadas, vem sendo difundido na América Latina pela ação combinada de diferentes agências multilaterais (Organização das Nações Unidas e Banco Mundial) e de consultores internacionais, sobretudo catalães, cujo marketing demonstra de maneira sistemática o “sucesso” de Barcelona, Espanha, nesse processo (ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.). Projetos foram elaborados para as cidades se adequarem às novas diretrizes de reestruturação produtiva do mundo, aos novos tempos de ajuste das relações de subordinação e, ainda, às exigências que emergem do processo de acumulação capitalista. Ao lado do processo de financeirização, Rolnik (2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.) aponta o papel significativo do Banco Mundial na ampliação da política habitacional via mercado, pois, além da concessão de empréstimos aos países, sua influência se estende à construção e ao desenvolvimento do modelo urbano.

Esse modelo de “financeirização” da habitação tem gerado consequências em diversas sociedades, especialmente nos países capitalistas considerados “emergentes”, como é o caso do Brasil. A dinâmica de liberalização do mercado da terra intensifica a pressão do mercado sobre os espaços ocupados pelos grupos sociais de baixa renda. Os assentamentos urbanos que estão em desacordo com as normas do planejamento urbano estratégico são invisíveis e/ou ilegais nos mapas das cidades, o que pode acarretar a expulsão dessas populações mais pobres (ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.).

Para Rolnik (2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.), o aparato legal e o planejamento urbano têm o poder de declarar a suspensão da ordem urbanística e determinar o que é “legal” e o que não é, assim como os tipos de ilegalidades que deverão desaparecer e os que continuarão a existir. Essa classificação operada vai além da dimensão territorial, visto que o reconhecimento da cidadania dos(as) moradores(as) das cidades passa principalmente pelo reconhecimento do direito de propriedade privada. A compra e a venda da propriedade privada no mercado constituem a forma essencial de extração da renda fundiária e se configuram como elemento fundamental do regime de acumulação capitalista.

Deste modo, o discurso de reforma fundiária e titulação tem despontado nos últimos anos como um poderoso mecanismo de “combate” à pobreza e de desenvolvimento nos países mais pobres. Os programas de regularização de assentamentos “informais” balizados na relação entre redução da pobreza e segurança da posse se tornaram objeto da Campanha Global pela Segurança da Posse promovida desde 1999 pelo programa UN-HABITAT, com os chamados objetivos de desenvolvimento do milênio em 2000. Esse programa, promovido pela ONU, promove assentamentos humanos com o propósito de ajudar no desenvolvimento das cidades. De acordo com Vainer, Arantes e Maricato (2000VAINER, C.; ARANTES, O.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes , 2000.), entre os modelos de planejamento urbano que concorrem para ocupar a posição hegemônica pela derrocada do tradicional padrão tecnocrático-centralizado, há o chamado planejamento estratégico, que determina como “proibidas” formas de morar consideradas “irregulares”.

O debate sobre o papel da titulação na redução da pobreza recebeu destaque com a publicação, em 2001, do livro O mistério do capital, de Hernando De Soto (apud ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.). A perspectiva apresentada por De Soto (2001)DE SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001. alcançou grande sucesso nos círculos de Washington e Londres. Para o autor, existe correlação direta entre a propriedade privada da terra e da riqueza, em que se procura explicar a persistência da pobreza em países pobres em face dos regimes de propriedade “subdesenvolvidos” de que fazem uso. O que De Soto (2001)DE SOTO, H. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001. quer dizer com isso é que, sem títulos formais de propriedade, os grupos sociais de menor renda não podem utilizá-los como garantia para empréstimos destinados a investir em negócios.

Ao titular suas terras, esses grupos poderão ter acesso ao capital para melhorar suas casas, criar empresas e, portanto, sair de uma condição considerada de pobreza. Prontamente, as políticas de “legalização do ilegal” foram formuladas pelo Banco Mundial e diversos países têm sido pressionados pelos organismos internacionais para desenvolver programas de regularização fundiária em massa (FERNANDES, 2006FERNANDES, E. Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.). Segundo Rolnik (2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 203): “Apenas no âmbito do Banco Mundial, entre 1995 e 2014, foram mais de 40 projetos relacionados à regularização fundiária, titulação, registro imobiliário e/ou cadastro, apenas no meio urbano, em países da América Latina”.

Em 2003, o Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Política Urbana, lançou o Programa Nacional de Apoio da Regularização Fundiária Sustentável, denominado Papel Passado, com o objetivo de “apoiar estados, municípios, [...] na implementação de atividades de regularização fundiária [...] como forma de promover sua integração à cidade e de assegurar à população moradora segurança jurídica na posse” (BRASIL, 2013BRASIL. Papel Passado. Manual da Ação Programática 8866. Brasília, DF: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos, 2013. p. 4. Disponível em: Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/Sistematicas/2011/Manual_Papel_Passado_2013.pdf . Acesso em: 15 mar. 2020.
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). Ele contempla a regularização de assentamentos informais e sua preservação ambiental, com a finalidade de criar condições para os municípios formularem e implementarem seus programas de regularização fundiária, viabilizando recursos financeiros administrativos e parcerias com a iniciativa privada (ROLNIK, 2005ROLNIK, R. Regularização fundiária. Brasília: Ministério das Cidades, 2005.).

Consta também no documento do Programa Papel Passado que a regularização fundiária tem o objetivo de tornar-se um instrumento para a promoção da “cidadania” mediante a concepção de que o “beneficiário” deixa de ser posseiro e passa a ter a propriedade, ou seja, obtém a garantia de segurança jurídica da posse na proteção contra eventuais despejos e possibilita o acesso a água, luz, educação, saúde, saneamento básico e financiamentos para melhorias no imóvel. Em grande parte, as remoções estão ligadas às narrativas da “proteção” do meio ambiente e da qualidade de vida da população. É importante destacar que, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), colhidos durante o Censo de 2010, em torno de 11,4 milhões de pessoas vivem em aglomerados tipificados como subnormais6 6 AGÊNCIA IBGE. Censo 2010: 11,4 milhões de brasileiros (6,0%) vivem em aglomerados subnormais. 17 maio 2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/14157-asi-censo-2010-114-milhoes-de-brasileiros-60-vivem-em-aglomerados-subnormais. Acesso em: 13 fev. 2021. .

Na Política Nacional de Regularização Fundiária, os municípios nesse processo assumem a função de protagonistas, uma vez que são os principais responsáveis pela formulação, aplicação e avaliação de sua política urbana, visando concretizar os instrumentos do Estatuto da Cidade. Está previsto que a regularização fundiária seja realizada pelo poder público municipal em conjunto com a população local, seguida do desenvolvimento de um trabalho social com as comunidades para que a população de fato participe do processo.

Com base no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) e no III Plano Diretor de Pelotas (PELOTAS, 2013PELOTAS. Caderno de regularização fundiária. Pelotas: Secretaria de Gestão e Mobilidade Urbana, 2013.), foi concebido o Caderno de Regularização Fundiária do município, com o objetivo de providenciar a regularização fundiária municipal, a fim de diminuir o número de loteamentos e ocupações em situação considerada irregular. Isso foi aplicado ao loteamento em que ocorreu a parte empírica deste estudo. No Caderno, está prevista a regularização de pelo menos 31 áreas em situação irregular de um total de 161 em condição de irregularidade no município. O projeto de regularização fundiária dessas áreas geralmente é conduzido pela Secretaria de Gestão da Cidade e Mobilidade Urbana por meio do Setor de Gerência de Áreas Especiais de Interesse Social, contando com o apoio dos profissionais do serviço social da Secretaria de Justiça Social e Segurança do poder público municipal.

De acordo com Rolnik (2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 246): “Quando as áreas objeto dos projetos são habitadas, seus moradores podem ter que enfrentar deslocamentos massivos, despejos forçados e demolição de suas casas”. Destacam-se as remoções especificas, como o caso das pessoas que viviam nas proximidades da BR 392, no município de Pelotas: os(as) moradores(as) não queriam ser removidos(as), entretanto não conseguiram resistir à pressão do poder público municipal. Outro exemplo trata das famílias que viviam no Pontal da Barra, no bairro Laranjal, no mesmo município: em 2010, elas foram removidas para locais que não possibilitavam a continuidade do trabalho da pesca. Um desses lugares foi o Loteamento Barão de Mauá. Nesse processo, comunidades inteiras são obrigadas a se deslocar para pontos distantes dos centros urbanos e de serviços públicos, o que pode gerar uma desarticulação das relações socioespaciais construídas historicamente.

No plano local, para fundamentar remoções, as narrativas de precariedade urbana e de proteção do meio ambiente são utilizadas em conjunção com as ideias de controle espacial e de ordenamento de áreas consideradas “precárias”. Para Acselrad (2009ACSELRAD, H. A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.), a política de regularização dos assentamentos classificados como precários e irregulares também está entrelaçada ao discurso de sustentabilidade urbana. Este tem, para o autor, dupla dimensão: a dimensão prática, que trata das mudanças desejadas na gestão das cidades para torná-las mais funcionais para o capital; e a dimensão retórica, que incorpora a questão ambiental para neutralizar a crítica ambiental, legitimando os agentes das políticas urbanas no processo da competição global. Nesse contexto, Pelotas tem apresentado diversos projetos de urbanização e revitalização “sustentáveis”, em processos que geram a remoção de comunidades locais, reassentadas em outras áreas do município.

O Loteamento Barão de Mauá foi projetado para realocar comunidades de Pelotas removidas por fatores específicos: um deles foi a obra de duplicação da BR 392; outro, a ocupação de áreas consideradas de risco. Em 2013, quatro anos depois da elaboração do projeto do Loteamento Barão de Mauá, iniciou-se a entrega das habitações para que nelas fossem reassentadas as famílias que viviam naquelas áreas, como resultado do programa municipal de regularização. As primeiras casas foram entregues para a população que vivia nas encostas do canal Santa Bárbara e da BR 392. As habitações restantes foram destinadas às pessoas provenientes do bairro Guabiroba (onde algumas casas foram demolidas para a construção de passagem de rua), do Pontal da Barra e da beira do canal São Gonçalo - todas identificadas como áreas de risco.

Ao longo das entrevistas, foi perguntado aos moradores e moradoras se os funcionários da Prefeitura Municipal de Pelotas haviam ido ao loteamento e como estavam ocorrendo os procedimentos relativos à documentação da habitação. Os relatos iniciais demonstraram a ausência de tais funcionários no loteamento durante o processo de remoção e realocação, já que a maioria dos(as) entrevistados(as) afirmou que somente teve contato com eles quando a habitação foi entregue.

Questionada sobre o Programa de Regularização Fundiária e a relação com a prefeitura durante esse período, a interlocutora Dionete afirmou: “Não sei nada. Não tenho documento nenhum e não me falaram nada disso. Atiraram a gente aqui como lixo e nunca mais vi eles”. Entretanto, foi relatado que alguns funcionários estiveram nas novas moradias para proibir a construção de muros e cercas em torno da habitação. De acordo com o morador Raul: “Eles vêm para reclamar da área que fiz na frente da casa. Vieram uma vez só, mas eu tive que fazer essa cerca porque aqui é tudo aberto e eu tenho cachorro e galinha em casa”.

Entendem-se a remoção e o reassentamento dos moradores e moradoras no loteamento como um processo de desenraizamento, de ressignificação dos referenciais que marcaram suas experiências históricas. São experiências cotidianas, pequenos fragmentos da vida individual, tão distantes das grandes transformações macroeconômicas do capitalismo. Contudo, é nessa “insignificância” de tempos, de espaços, de gestos e de relações que estão os elementos que fundamentam esta análise sociológica. Para Carlos (2007CARLOS, A. F. A. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH, 2007., p. 42): “Tudo isso significa dizer que é no plano do lugar e da vida cotidiana que o processo ganha dimensão real e concreta”. Esse movimento que se realiza no plano do local foi analisado no plano do imediato, no contexto e na vida cotidiana dos atores sociais no Loteamento Barão de Mauá.

2. A vida cotidiana no loteamento Barão de Mauá

Na investigação sociológica, são os limites e os extremos da realidade social que tornam fecunda a compreensão do que é considerado “insignificante”. O relevante está no ínfimo, no pequeno, na vida cotidiana fragmentária e aparentemente sem sentido (MARTINS, 2012MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Contexto, 2012.). Segundo Pais (2003PAIS, J. M. Vida cotidiana: revelações e enigmas. São Paulo: Cortez, 2003.), ao caminhar por caminhos que entrelaçam “rotina e ruptura”, a sociologia do cotidiano busca o que está aparente e o que pode estar escondido na rotina. Nesse processo, está aberta a tudo o que acontece, mesmo quando, visivelmente, nada ocorre. Pais (2003PAIS, J. M. Vida cotidiana: revelações e enigmas. São Paulo: Cortez, 2003., p. 31) afirma que “o verdadeiro desafio que se coloca à sociologia do quotidiano é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da ‘aparente’ rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica”. Para Lefebvre (2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011.), a vida cotidiana constitui a categoria de investigação teórico-metodológica que pode revelar os elementos dos processos mais gerais.

Durante a investigação, na pesquisa de campo, percebemos que alguns aspectos das moradias deviam ser destacados. As habitações entregues às famílias apresentavam características em comum, seguiam um modelo padronizado: todas as casas eram pintadas de branco, com um pequeno espaço de área na habitação, sem áreas de lazer, sem ruas asfaltadas - enfim, eram homogêneas. O que chamou a atenção na observação inicial foi a transformação do espaço por quem habita o loteamento. Todas as moradias sofreram alterações (na pintura da casa, na instalação de cercas de madeiras, nos “puxadinhos” erguidos com material coletado no lixo), ainda que fossem proibidas.

Ao mesmo tempo, quando os(as) entrevistados(as) foram questionados(as) sobre a mudança de local, houve momentos de silêncio, instantes de resgate das memórias, da busca das lembranças daquele momento de transição. Após a pausa, as narrativas indicaram a trajetória da remoção ao reassentamento no loteamento, em um movimento conflituoso de reconstituição da lembrança. Assim, o passado se retraduz no presente, num movimento de reconstituição pela memória que compreende percepções, esquecimentos, lapsos, omissões e constitui a recordação do passado conforme o olhar de cada narrador(a) (DELGADO, 2010DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.).

Nas narrativas, foi possível perceber as dificuldades de adaptação de todos(as) ao novo espaço e ao novo modelo de moradia. Os locais de habitação anteriores ao loteamento guardam relações sociais - família, vizinhos e amigos - construídas ao longo do tempo, o que gerou dificuldades na nova habitação. Para Carla, a moradia no loteamento tem uma estrutura que ela considera boa para sua família, porém, “tenho criança pequena e tive que levar no posto de noite. Não tem posto de saúde aqui, e é perigoso sair às três horas da manhã para ir no Posto de Saúde do Porto”. Cabe informar que todos os moradores e moradoras narraram a dificuldade de acesso ao posto de saúde. O mais próximo fica no bairro Simões Lopes, contudo o atendimento é restrito às famílias que ali habitam e àquelas que vivem no Loteamento Ceval.

A entrevistada Nalva declarou que na moradia tem muito rato, mosquito e muito fedor em razão dos cavalos: “Eu sou doceira e antes fazia bolos, mas aqui não posso. A casa é pequena e tem muito bicho aqui no loteamento e o esgoto fica a céu aberto, chamei a prefeitura, mas não vieram arrumar”.

Outro morador, Waldemar, relatou: “Aqui falta tudo, asfalto, iluminação, calçamento. De noite não dá pra sair de casa porque é muito escuro e perigoso aqui”. De acordo com Nílton: “A vida aqui é sem graça. Estou dentro de uma jaula e livre, eu queria voltar pra o Laranjal e viver na beira da água com os bichos”. A volta ao bairro Laranjal, onde muitos(as) moravam anteriormente, é impossível porque as moradias não existem mais. Com relação às áreas de lazer e convivência, foi indagado aos(às) entrevistados(as) se o loteamento dispunha desses espaços e como eram. De acordo com o morador Wilson: “Aqui no loteamento é calmo, mas no Guabiroba tinha pracinha e campo de futebol. Era melhor, eu conhecia todo mundo e, se precisasse de alguma coisa, um vizinho te ajudava, e aqui ninguém se conhece e se fala”.

Essas narrativas demonstraram uma percepção de estranhamento para com o loteamento, no desencontro entre cotidiano, lugar e identidade, resultante da rapidez das transformações na metrópole, que obriga a uma readaptação constante das “mudanças impostas pela produção espacial, [...] produzindo a sensação do desconhecido, do não identificado” (CARLOS, 2007CARLOS, A. F. A. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH, 2007., p. 83). Esse sentimento decorre, em parte, do modelo de estrutura adotado, bem como das relações entre eles(as), conforme o local de origem de cada sujeito social. As narrativas permitem observar que não havia espaços coletivos de encontro planejados, como uma praça, um bar, uma escola, associação de moradores. Lugares coletivos representam pontos de encontro do reconhecimento das pessoas, portanto, a ausência deles tendencialmente aprofundou o isolamento entre quem vivia naquele espaço.

Diante desse contexto, observou-se que lembrar não é somente reviver, mas também realizar a reconstrução entre a atualidade e as experiências do passado. Segundo Halbwachs (2004HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006., p. 75-76), a lembrança é “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada”. A lembrança é construída pelos materiais que estão à disposição no conjunto de representações que povoam a consciência atual. Para esse sociólogo francês, a memória fundamenta-se no passado vivido e não no passado apreendido com a história escrita.

Em relação às moradias, verificou-se que as transformações nas habitações do loteamento ocorreram de modos diferentes. Os(as) moradores(as) que trabalhavam com reciclagem, e que contavam com charrete e cavalo, transformaram as áreas do entorno da habitação em depósito de material e local para a criação de cavalos. Todos(as) passaram por transformações no cotidiano, em decorrência da limitação do espaço da moradia no loteamento, tendo em vista que muitos(as) trabalhavam com reciclagem e necessitavam de espaço amplo para acomodar a charrete, os animais e o material coletado.

Essas questões que envolvem o trabalho de alguns moradores e moradoras possibilitam a compreensão de que a remoção e o reassentamento em um local sem estrutura para a atividade de reciclagem dificultaram o armazenamento do material coletado. Ainda, por conta da ausência de um local adequado e amplo, muitos charreteiros não permaneceram no loteamento, conforme relatado durante as entrevistas.

Com base nesses relatos, é possível dialogar com o que Lefebvre (1999LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.) escreveu sobre o fato de o cotidiano ser composto de repetições de movimentos mecânicos que ocorrem no trabalho, na moradia, na cidade. As falas dos(as) entrevistados(as) permitiram compreender que a mudança para o loteamento transformou significativamente o dia a dia deles(as). Isso decorre, em certa medida, da perda ou mesmo da ressignificação dos referenciais espaciais que produziram suas identidades. O lugar que habitavam anteriormente foi a base identitária pela qual se consolidaram em termos históricos os elos e as relações sociais entre os(as) moradores(as).

Procedemos ao questionamento dos motivos da permanência dos(as) entrevistados(as) no local, apesar de tantas resistências e críticas à habitação no loteamento. Analisamos alguns aspectos levantados nas entrevistas, como a localização geográfica central do loteamento e a segurança de não serem removidos(as) do imóvel. Em virtude da impossibilidade de retorno ao local de origem, que não existe mais, ocorreu uma “adaptação” à nova habitação. Alguns entrevistados e entrevistadas veem a entrega da moradia como um benefício, razão pela qual se sentem na “obrigação de aceitar” o que lhes foi entregue.

A despeito de alguns(mas) informantes terem manifestado o desejo de permanência no loteamento, há os que manifestaram sua insatisfação com o modo de viver na nova moradia. Exemplo disso é dado pelo relato de que, no local anterior, as casas foram construídas por eles(as) ao longo do tempo e que as atuais, no loteamento, foram entregues “prontas”. No entanto, quem permaneceu no loteamento fez algum tipo de alteração infraestrutural na habitação, o que, em alguns casos, modificou profundamente o modelo original da moradia. As habitações passaram por mudanças significativas em sua estrutura, como a construção de cercas de madeiras, conforme o modelo das antigas moradias.

A estrutura das moradias está em permanente modificação pelos(as) moradores(as), e tais mudanças conectam-se à memória e à identidade com o lugar passado. A história de cada morador(a) pode ser compreendida no espaço do loteamento pelo estranhamento e pela maneira como se deu a transformação tanto dos espaços coletivos como da moradia. Isto é, percebeu-se que, na história deles(as), há uma dimensão do vivido na compreensão da apropriação pelo uso, quando expressam que anteriormente faziam suas casas, a praça e tantos outros espaços de encontro que não apenas estabeleciam relações próximas, como, sobretudo, permitiam a apropriação do espaço da cidade.

A transformação do espaço pela memória está relacionada ao que Lefebvre (2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011.) conceituou como “Habitar”, o que transcende a noção de habitação. Habitar está ligado aos usos e ao direito à cidade; trata-se da expressão da espacialidade das pessoas enquanto sua construção no mundo. Assim, habitar não está ligado à estrutura da casa, e sim, essencialmente, ao uso da moradia e da cidade. Realiza-se pela apropriação dos espaços dela. De acordo com Lefebvre (2008LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008., p. 79), “o homem habita como poeta”. Isso quer dizer que a relação do “ser humano” com a natureza e com sua própria natureza, como o “ser” e seu próprio ser, reside no habitar, nele se realiza e nele se lê.

Diante desse conjunto de experiências cotidianas no atual loteamento, as práticas e lembranças vividas no espaço anterior persistem e reaparecem em vários momentos na apropriação do novo espaço de moradia como resíduos de outro tempo, um tempo passado. Esse movimento relaciona o passado e o presente para revelar o possível inscrito no cotidiano da existência social. A redefinição da identidade pela memória na apropriação vivida pelo uso dessas pessoas - que habitam o espaço social concebido do loteamento - aponta para o possível, enquanto elemento do debate histórico sobre o direito à cidade. Então, questiona-se: “Quais atores e discursos disputam o direito à cidade?”; “Direito à cidade para quem?”.

3. O direito à cidade nas práticas cotidianas

O direito à cidade, segundo Lefebvre (2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011.), está relacionado aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos da vida, à utilização do tempo e ao uso pleno e inteiro desses momentos para o anúncio e a realização da vida urbana como reino do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca). Nessa dimensão, a cidade é concebida em decorrência da concretude das práticas cotidianas. Ou seja, as práticas espaciais dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá trazem à tona também uma das facetas da contradição entre apropriação pelo uso e privatização do espaço por meio do conflito entre o uso histórico do espaço de habitar e a propriedade privada do loteamento.

Ainda, de acordo com Harvey (2014HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.), somente o desejo coletivo pode gerar um poder coletivo no processo de construção de um direito à cidade para todos. O que significa reivindicar o poder sobre o processo de urbanização, isto é, disputar a forma como as cidades são construídas e reconstruídas para além do direito ao acesso individual aos recursos que elas apresentam. Desse modo, “o direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” (HARVEY, 2014HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014., p. 74).

Nas entrevistas com os(as) moradores(as) do loteamento, o direito à cidade não surgiu na identificação com a propriedade privada, uma vez que, nas narrativas, a escritura de propriedade do imóvel não foi considerada uma “preocupação” latente. Mas emergiu a questão da pertença ao espaço no tocante ao seu uso, à forma de apropriação da moradia, à reivindicação do espaço em torno da moradia e dos espaços de encontro, como a já mencionada atividade de reciclagem, que transformou a paisagem padronizada e homogênea do conjunto habitacional construído pela Prefeitura Municipal de Pelotas.

Nesse contexto, a moradora Vanessa declarou: “Lá era nosso lugar, aqui não é. A gente tá aqui porque não tem outro lugar pra ir, mas se eu pudesse voltava para o canal [canal São Gonçalo]. Lá a vida era muito melhor”. Essa fala revela a dificuldade de adaptar-se à moradia no loteamento, em face da disposição do espaço da nova moradia, da dificuldade de apropriação e uso. Assim, eles(as) acionam formas alternativas de habitar, o que é exemplificado pela apropriação dos espaços verdes do loteamento para armazenagem dos materiais coletados para reciclagem.

Esses elementos demonstram a reivindicação de um direito à cidade fundado sobre uma prática social que se encontra em conflito com a legislação urbanística. Com o reassentamento, inviabilizaram-se atividades antes realizadas, o que provocou dificuldades no viver o cotidiano para quem habita o loteamento. Para Rolnik (2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 378), “é no dia a dia dos conflitos sociais que se desenrola a guerra dos lugares. Está em cada prática de resistência a remoções e despejos, em cada luta contra a homogeneização do espaço, em cada apropriação do espaço coletivo”.

Tais práticas cotidianas requerem atenção e reconhecimento, pois os atores sociais exigem um espaço próprio, a criação das próprias paisagens culturais e geografias emblemáticas (ROLNIK, 2015ROLNIK, R. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.). Conforme apontado por Lefebvre, no que diz respeito à apropriação enquanto uso: “O Direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: [...] O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade” (LEFEBVRE, 2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011., p. 134).

Nessa perspectiva, Harvey (2014HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.) entende que a produção das cidades é uma relação social e política dinâmica e conflituosa que, em grande parte, se encontra sob a direção instável de grupos políticos e econômicos cujo intento é transformá-las cada vez mais segundo seus interesses. Quando se transformam a produção e a acumulação de capital, modifica-se a organização do espaço, e isso pode aprofundar desigualdades e conflitos sociais nos lugares, acelerando o processo de concentração econômica e geográfica. Para Lefebvre (2011LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro , 2011.), o espaço urbano é permeado por relações conflituosas e em alguns momentos ocorrem rupturas cujas contradições se manifestam “aparentes” no espaço.

No que diz respeito a esse ponto, na pesquisa de campo os(as) moradores(as) manifestaram desinteresse pela escritura de propriedade fornecida pela prefeitura e relataram desconhecer o processo de regularização fundiária e a necessidade de entrega desse documento. Em nenhuma entrevista houve registro de preocupação com a falta de documentação do imóvel.

Grande parte dos(as) moradores(as) relata somente a entrega da chave da moradia, sem nenhuma documentação. Revelou Diego: “Não sei sobre essa regularização. Entregaram o papel da posse e não falaram mais nada. A prefeitura nunca mais veio aqui desde que eu cheguei”. E Valdete: “Não tenho nada de documento, me entregaram só a chave e deu e não falaram sobre a regularização”.

Sobre a escritura, Alessandro esclareceu: “Não tenho documento, me entregaram a chave da casa e eles falaram que iria ser entregue o documento em dois anos, mas não deram prazo certo”. Raul: “Tenho uma documentação, mas o papel mesmo, disseram que só depois de cinco anos”; Nalva: “Só tem papel de posse, não tem escritura. Ouvi falar que em abril de 2016 vão fazer isso de regularização”. Nas entrevistas, é perceptível o desconhecimento acerca da escritura da habitação e também do processo de regularização. O que se verifica nos relatos é que os servidores da prefeitura estiveram no loteamento e não informaram as pessoas presentes no ato sobre o processo de regularização fundiária.

Diante desse conjunto de aspectos elencados, é possível observar falta de atenção no que tange aos dispositivos legais para garantia de direito à cidade, pois o foco do aparato jurídico estatal recai na garantia do direito de propriedade privada sobre o solo urbano, isto é, na base do valor de troca. Para Maricato (2014MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 188): “Esta construção ideológica do conceito de propriedade privada está tão arraigada que há uma inversão de papéis, as pessoas que deveriam se beneficiar das leis, na maioria das vezes, são acusadas de infringi-las”.

No cotidiano dos sujeitos da pesquisa, destacamos que as práticas espaciais de transformação do espaço urbano estão em conflito com o ordenamento legal sobre o território urbano. Conforme narrado em grande parte das entrevistas, alguns funcionários do governo municipal impuseram algumas proibições quando foram ao loteamento, sobretudo com relação à modificação das moradias. No entanto, os atores sociais que participaram da pesquisa as transformaram e reconstruíram segundo suas memórias de posseiros(as), utilizando materiais de reciclagem, ainda que isso estivesse em conflito com as diretrizes estabelecidas pelo poder público municipal.

O processo descrito e analisado permite compreender que a apropriação e o uso influenciam as práticas espaciais das pessoas que vivem no loteamento. Logo, a habitação é transformada para esse fim e, se impossibilitada, essa prática gera a circulação e até a mudança para outras áreas da cidade. Até o fim da pesquisa (2016), não foi percebida a materialização do Programa Nacional de Regularização Fundiária no conjunto dos seus objetivos e políticas, por exemplo, para comunidades consideradas mais pobres, como as do Loteamento Barão do Mauá.

Considerações finais

A questão fundamental neste estudo foi a análise dos impactos e das transformações sociais da remoção na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá no município de Pelotas (RS). Apoiados nessa realidade, pudemos refletir sobre a problemática atual das cidades no Brasil. A análise ao longo da investigação foi construída com o propósito de compreender as práticas e as narrativas dos atores sociais que vivem nesse loteamento e de trazer à tona a complexidade das práticas socioespaciais.

Para a Prefeitura Municipal de Pelotas (PELOTAS, 2013PELOTAS. Caderno de regularização fundiária. Pelotas: Secretaria de Gestão e Mobilidade Urbana, 2013.), o objetivo de retirar as pessoas dos assentamentos considerados “precários” e “irregulares” para reassentá-las em conjuntos formalizados e regularizados era supostamente solucionar alguns problemas sociais e habitacionais, como acesso à moradia com saneamento e acesso a serviços públicos, em conformidade com o estabelecido no Programa de Regularização Fundiária. Porém, verificou-se que não foi realizado o devido acompanhamento social junto às famílias reassentadas. Segundo captado nas entrevistas, o que ocorreu, ao contrário do esperado, foi o abandono por parte da prefeitura. Além do mais, os serviços de infraestrutura estabelecidos no projeto inicial não haviam sido concretizados até o fim da pesquisa empírica, no ano de 2016.

Os dados coletados na pesquisa de campo junto às inter-relações com os autores possibilitaram articular nesta pesquisa alguns aspectos que subsidiaram a compreensão do que constitui o direito à cidade. Observamos as vivências históricas dos(as) moradores(as) na transformação do espaço da moradia no loteamento nas práticas espaciais apoiadas na memória de posseiros(as), constituindo, assim, a base identitária que se retraduz na apropriação e no uso do espaço, apontando resíduos na construção de um direito à cidade.

Identificamos que a remoção e o reassentamento transformaram a vida de quem habita o loteamento e, portanto, alteraram seu cotidiano, ao desarticular as relações construídas nos espaços de moradia anterior, ao dificultar a continuidade de uma atividade que lhes gerava renda, fosse na reciclagem, fosse na pesca, etc. - enfim, desconstruíram-se os espaços de convivência social. No entanto, a ocupação do novo espaço também modificou o espaço de moradia pelo uso, com base na memória e na identidade do vivido. Os(as) moradores(as), ao procederem a essa transformação, reinventam o espaço da cidade e o direito a ela. Observamos, ainda, que a reivindicação por moradia para os atores do loteamento não está associada à concepção de propriedade privada, e sim à identificação com o espaço vivido em meio à história e às memórias do lugar de que foram removidos.

Deste modo, as práticas cotidianas dos(as) moradores(as), ao se revelarem, manifestam-se enquanto potencial histórico de fazer os espaços da cidade na sua dimensão de valor de uso. Constatou-se que essas práticas espaciais são frutos da memória de posseiros das antigas moradias, que atualmente se manifesta na transformação da moradia e do espaço do loteamento. São nessas rupturas do cotidiano, enquanto reprodução, que se instaura o momento da criação, da transgressão. São nessas margens, fissuras e resíduos do dia a dia que se encontram a potência e as diversas possibilidades de um direito à cidade.

Referências

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  • 1
    “Áreas de risco são regiões onde é recomendada a não construção de casas ou instalações, pois são muito expostas a desastres naturais, como desabamentos e inundações.” Disponível em: https://www.unicamp.br/fea/ortega/temas530/ricardo.html. Acesso em: 3 maio 2020.
  • 2
    “A atividade de observação tem um sentido prático. Ela permite ao pesquisador ficar mais livre de prejulgamentos, uma vez que não o torna, necessariamente, prisioneiro de um instrumento rígido de coleta de dados ou de hipóteses testadas antes e não durante o processo de pesquisa.” (MINAYO, 2009MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2009., p. 70).
  • 3
    “O principal instrumento de trabalho de observação é o chamado diário de campo, que nada mais é que um caderninho, uma caderneta, ou um arquivo eletrônico no qual escrevemos todas as informações que não fazem parte do material formal de entrevista em suas várias modalidades.” (MINAYO, 2009MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2009., p. 71).
  • 4
    Nas entrevistas, foi perguntado aos(às) moradores(as) reassentados(as) (i) se eles(as) se identificam com a moradia no Loteamento Barão de Mauá e (ii) quais são os modos de vida que eles(as) tinham na moradia anterior e se isso interfere na percepção que têm do loteamento em que se encontram atualmente.
  • 5
    Com o objetivo de zelar pela identidade dos(as) entrevistados(as), em razão de o loteamento ser considerado uma área de conflito urbano e de disputas cotidianas, optou-se pela adoção de nomes fictícios.
  • 6
    AGÊNCIA IBGE. Censo 2010: 11,4 milhões de brasileiros (6,0%) vivem em aglomerados subnormais. 17 maio 2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/14157-asi-censo-2010-114-milhoes-de-brasileiros-60-vivem-em-aglomerados-subnormais. Acesso em: 13 fev. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2020
  • Aceito
    14 Dez 2020
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