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O DEBATE SOBRE A CRISE DO CONDICIONAMENTO ARTÍSTICO: ARTE CONCEITUAL NO BRASIL (1964-1975)

THE DEBATE ABOUT THE CRISIS OF ARTISTIC CONDITIONING: CONCEPTUAL ART IN BRAZIL (1964-1975)

Resumo

O debate sobre a forma moderna e a autonomia marcaram uma geração de críticos e estetas no Brasil. Especialmente a partir dos anos de 1950 e 1960, a questão da autonomia da arte esteve presente na articulação entre liberdade artística e formação da nação brasileira a partir da internacionalização da arte moderna. A autonomia da arte passou a ser defendida nesse contexto como uma barreira erguida contra a instrumentalização governamental da arte ou a assimilação pelo mercado. São justamente essas duas opções e seu campo de batalha a partir de considerações de Antonio Candido e Mário Pedrosa nos embates discursivos da Guerra Fria. A partir do Ato Institucional de número 5, muitos artistas e Frederico Morais, crítico de arte, começaram a agir e interferir na produção de arte conceitual. Por estarem distanciados do mercado de arte, eles conseguiram se libertar de alguns condicionamentos do sistema artístico.

Palavras-chave:
Arte e autonomia; Antonio Candido; Mário Pedrosa; Guerra Fria; Frederico Morais; arte conceitual

Abstract

The debate on modern form and autonomy marked a generation of critics and aesthetes in Brazil. Especially from the 1950s and 1960s, the question of the autonomy of art was present in the articulation between artistic freedom and the formation of the Brazilian nation from the internationalization of modern art. The autonomy of art came to be defended in this context as a barrier erected against the governmental instrumentalization of art or assimilation by the market. It is precisely these two options and their battlefield from the considerations of Antonio Candido and Mário Pedrosa in the discursive battles of the Cold War. From the institutional act of number 5, many artists and Frederico Morais, art critic, begin to act and interfere in the production of conceptual art. By setting themselves apart from the art market, they managed to break free from some of the conditioning of the art system.

Keywords:
Art and autonomy; Antonio Cândido; Mário Pedrosa; Cold War; Frederico Morais; conceptual art

INTRODUÇÃO

A questão da forma esteve no cerne dos grandes momentos de disputas culturais no continente americano durante todo o século XX. A forma artística ganhou dimensões políticas muito específicas, no mesmo momento em que se confrontaram tanto modelos predominantes como outros menos influentes no cenário do continente. Nessas disputas de modelos políticos e socioculturais, três momentos podem ser evidenciados na produção dos novos rumos artísticos na América Latina, a saber: a Política da Boa Vizinhança, a Aliança para o Progresso e a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). São três momentos em que os próprios conceitos de arte latino-americana e brasileira foram colocados em questão. Esteve em jogo, em tais momentos, a crise e a produção de novos modelos na arte latino-americana, que ora se aproximavam dos modelos hegemônicos, ora se distanciavam deles.

Nos anos de 1960 e de 1970, intelectuais latino-americanos, sem deixar de observar o prejuízo do controle estatal da produção artística, no caso de alguns países do bloco socialista, em especial na URSS, problematizaram o lugar da arte autônoma, posta aparentemente fora da esfera da vida, das construções sociais e de seus condicionamentos políticos, econômicos, estéticos etc. Esse grupo de intelectuais, embora fosse pequeno, produziu teses originais sobre a inscrição da arte na sociedade, que passaram por caminhos de entendimento da relação dialética entre a forma artística e a matéria social.

A concepção formal da arte, referida acima, obedece às exigências intra e extraartísticas, podendo participar, por sua vez, da mudança das condições sociais. Se o formalismo artístico foi dominante nos anos de 1950 e de 1960, a partir especialmente da arte conceitual, ficou evidente que o debate sobre a forma artística estava ligado a questões não evidentemente formais. Abriu-se aí uma frente ampla de estudo interdisciplinar sobre a definição do que é a arte, qual sua mensagem e como ela se orienta praticamente na construção da realidade1 1 Ainda que Antonio Candido e Frederico Morais sejam fundamentais para a análise da produção artística no recorte histórico apresentado no artigo, dos anos de 1964 até 1975, chave para a interpretação da crise do condicionamento estético da arte moderna está nas reflexões feitas por Mário Pedrosa. Ele acompanhou Antonio Cândido na defesa da autonomia da arte, mas esteve próximo da produção das artes visuais (pois Cândido estava igualmente mais próximo da literatura); além disso, Pedrosa deu o tom sobre o significado e a crise do projeto moderno para uma nova geração de críticos e estabeleceu um patamar mais elevado no debate das artes, que marcou profundamente a nova geração de Frederico Morais. .

No Brasil, embora a arte conceitual tenha lançado a esfera política para o interior da arte, em muitos lugares prevaleceu a ideia de que, mesmo sendo política, a arte guardava uma autonomia em relação a ela. Isso se deve a um equívoco nos diversos significados existentes da palavra autonomia. Ela pode significar a existência de liberdade da mensagem da arte em relação às outras formas de construção simbólica; ou ainda, autonomia pode ser entendida como uma linguagem própria das artes visuais e consolidação como lugar de produção de objetos próprios; e, por fim, pode ser a franca liberdade do artista descomprometido com as relações de trabalho pré-definidas, isto é, em vez de obrigações servis, o artista moderno vivenciou a liberação para venda de sua mão de obra no mercado de trabalho. Essas três acepções estiveram presentes no debate sobre autonomia da arte depois do surgimento do conceitualismo. Em tempos mais recentes, essa discussão sobre a arte tornou-se expediente de debate amplo nos museus.

Conforme observa Annateresa Fabris (2015Fabris, Annateresa. (2015). O museu como espaço de pesquisa: o caso do MAC-USP. Caiana, 6, p. 44-51.: 47), o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) tem feito, especialmente depois da gestão de Walter Zanini, uma revisão crítica de seu acervo. Em 1995, foi realizada no MAC-USP uma exposição intitulada “Das vanguardas europeias e modernismo brasileiro à visualidade contemporânea no acervo do MAC-USP”2 2 A exposição “Das vanguardas europeias e modernismo brasileiro à visualidade contemporânea no acervo do MAC-USP” recebeu curadoria de Lisbeth Rebolo Gonzales e Daisy Peccinini e foi realizada na sede do Museu de Arte Contemporânea da USP, na Cidade Universitária, no ano de 1995. . Essa exposição pretendia trazer a público uma visão generalizada das obras do acervo do museu, que contemplava diversas fases da produção artística moderna e contemporânea. Tinha-se de tudo um pouco: de Max Ernst a Max Bill, de Picabia a Soulages, entre muitos outros. Interessante notar, além disso, a expografia nova que trouxe para o museu a pintura de painéis outrora brancos, com uso de várias cores. Naquela ocasião, a montagem foi criticada porque a visão de cubo branco predominava e se dizia sub-repticiamente que o colorido dos painéis interferiria nas obras.

Foi justamente nessa exposição a primeira vez que se apresentou fotografias, registros escritos e manifestos do artista francês Hervé Fischer no Brasil. Tratava-se de uma pequena seção do espaço expositivo da sede do Museu, sede essa que ainda se encontrava naquele momento na Cidade Universitária, em São Paulo. Na subdivisão do espaço expositivo havia um pequeno mostruário em vidro com estrutura de metal pintada de branco, de feição simples, com saquinhos de plástico com as pílulas de isopor de Fischer. Pílulas para cura de males sociais, pílulas de tomada de consciência e de ação política. A obra de Fischer, embora apresentada em mostruário, o que lhe retirava a força de ação performática das ruas, destoava do conjunto das obras apresentadas no espaço expositivo, dada sua quebra com o lugar cômodo da inserção da arte moderna no museu. Abria-se ali uma outra coisa, uma outra experiência que se afastava evidentemente do caráter meramente representativo da forma ideológica na arte.

Em 1975, Hervé Fischer vestiu um avental farmacêutico e montou uma banquinha de distribuição de medicamentos, suas famosas pílulas para as mais variadas ações. A performance de Fischer no Brasil ocorreu a partir de convite realizado pelo então diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP, o professor Walter Zanini, que garantiu o suporte de uma equipe de funcionários do museu para a montagem e desmontagem da banquinha com placa de Fischer, na Praça da República, em São Paulo. Recentemente, a obra de Fischer foi tema de uma exposição individual curada por Cristina Freire3 3 Cristina Freire, seguiu os passos de Daisy Peccinini, para realizar exposição sobre a obra de Hervé Fischer. Peccinini foi a primeira a apresentar em contexto de museu a obra de Fischer. Para mais informações, ver: Freire (2012). .

Tanto no ano de 2000 quanto no de 2012, houve exposições do artista francês, ambas organizadas por Cristina Freire, e a segunda trouxe livro-catálogo com textos essenciais de Fischer sobre arte sociológica. Contudo, a primeira exposição, que reacenderia o interesse pela arte conceitual no MAC-USP, depois da passagem de Walter Zanini e seus salões da Jovem Arte Contemporânea4 4 Exposições de artistas novos organizadas pelo curador do MAC-USP, Walter Zanini, entre 1967 e 1974. Disponíveis em <http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/biblioteca/jac.asp>. , traria novamente à baila o debate sobre a obra de Fischer no museu. O artista francês veio ao Brasil no ano da Bienal Internacional do Livro de São Paulo e teve seu percurso completo com visita e promoção de ações vinculadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP. No ínterim de funcionamento da Farmácia Fischer & Cia na Praça da República, Fischer propunha para os organizadores do evento a realização de uma Bienal do ano 2000, onde se exporia os acontecimentos documentados da Bienal de 1975 sob um ponto de vista arqueológico.

Essa posição epistêmica de Fischer está relacionada à visão do lugar ocupado pela arte na sociedade atual. Sua condição de reprodução da divisão do trabalho, em que o lugar da arte está atravessado por novos condicionamentos dominantes, marcados pela comunicação social, por meios de massa, e pela organização mercantil da produção artesanal e artística. A arte sociológica seria a tentativa de formação de um ambiente que não se contenta em representar o social, mas aspira questionar fundamentos e conceitos utilizados para justificar uma interpretação do social. Para essa perspectiva, a pureza poética é a dissociação proposital da arte em relação à política, às condições sociais e econômicas de determinado período. Conforme afirmou Néstor García Canclini (1979Canclini, Néstor García. (1979). A produção simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 18), em comentário sobre posição de Fischer, que dizia ser a inocência poética um ardil para mistificação da responsabilidade política real:

O artista deve aproveitar o conhecimento sociológico para entender as relações entre as classes sociais, como operam os condicionamentos econômicos sobre a produção do imaginário, como estão constituídos os códigos coletivos de percepção e sensibilidade, em que medida podem ser modificados. E por sua vez o artista pode reparar em pontos especialmente sensíveis da vida social, pôr em evidência aspectos subjetivos e intersubjetivos das relações entre os homens, despercebidos pelo objetivismo científico, provocar experiências inesperadas e contribuir com seus próprios meios para que as pessoas tomem consciência das estruturas que as oprimem.

A atividade do artista, para Nestor Garcia Canclini, a partir dessas novas condições dadas à produção artística, nos anos de 1970, seria de abertura crítica para ampliar os pontos de vista sobre o lugar da arte na sociedade, liberando o artista de posições profissionais especializadas e permitindo a inserção do artista na formulação de significados coletivos, por meio de estruturas artísticas.

Para Canclini (1979Canclini, Néstor García. (1979). A produção simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), a arte deve ser entendida segundo a relação estabelecida entre estrutura e superestrutura. O lugar da arte está demarcado por duas direções: uma onde as relações de produção determinam as representações artísticas, o que anularia a autonomia artística e recolocaria a questão da arte como representação ideológica; e a outra que, sem abandonar a aproximação entre arte e ideologia, não deixa de enfatizar as condições específicas de produção da arte, ou seja, a forma econômica como determinante à forma de organização material da produção artística. Nesse sentido, torna-se claro que, segundo Canclini, a autonomia da arte é relativa e somente se realiza em sua relação necessária com a sociedade. Logo, segundo Canclini, deve-se evitar três abordagens que lhe parecem equivocadas:

Vemos que a correlação entre processos artísticos e processos sociais foi obstruída por três espécies de obstáculos. Em primeiro lugar, as posições idealistas e românticas que concebem a arte como um fenômeno espiritual, alheio às condições sócio-históricas, e reduzem seus estudos às obras, aos estilos e aos artistas. Os ‘criadores’ que reclamam para si a originalidade absoluta, os historiadores que examinam o desenvolvimento artístico como a sucessão isolada de indivíduos excepcionais e obras solitárias, opõem até hoje as mais obstinadas resistências ao reconhecimento das implicações sociais da arte (Canclini, 1979Canclini, Néstor García. (1979). A produção simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 50-51).

É importante compreender que a autonomia relativa da obra de arte diz respeito às particularidades do campo artístico na produção de uma obra ou em um processo artístico no momento que este produz imagens, obras ou processos a partir dos condicionamentos socioeconômicos; e será, justamente a partir da produção do artista, que se movimentará todo um setor da criação de sentido, que completa as elaborações ideológicas. De toda sorte, é necessário reconhecer que se há uma estrutura social e um lugar específico ocupado pela arte em determinada sociedade, também há uma organização material do campo artístico que se traduz em meios de produção e relações sociais de produção. Logo, em nosso caso específico, uma sociedade capitalista, a arte tende a perder sua autonomia, pois é pressionada por fatores extrínsecos determinantes, uma vez que a produção capitalista transforma a obra de arte em mercadoria, conforme diz Mário Pedrosa, em 1966:

Como já vimos, não se pode falar de produção sem falar no sistema de trabalho, nas formas de trabalho e, por fim, de criação. Nas condições sociais dadas (principalmente no Ocidente) que nos regem, toda atividade, mesmo a mais desinteressada, limitada ao círculo do individual, tende a ser absorvida pelo círculo do chamado trabalho produtivo, ou o trabalho que só produz para o mercado (Pedrosa, 2015Pedrosa, Mário. (2015). Arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify.: 355).

Para Mário Pedrosa, a questão da autonomia da arte perderia sua relevância quando a integração desta com a sociedade se completasse, em sentido de abolição da divisão entre trabalho intelectual e manual. Pedrosa acreditava que a arte tinha sua especificidade de campo, mas seu vínculo com a realidade social era irrefutável. Ocorre que a integração da arte com a sociedade se completou, no entendimento de a arte obedecer não a determinações do produtor individual independente, mas do trabalho funcionalmente ocupado pela eficiência e predisposição para atender objetivos de mercado. Ocorre que essa integração não se realizou pela mudança geral da sociedade promovida pela formação de consumo de massa e de relações de produtos venais. Se a integração não ocorreu de modo a atender a humanização da produção, a arte, longe de ser reduzida à cultura capitalista, com ela se identificou, na lógica de produção, recepção e consumo.

Em seu ensaio citado acima, “Crise do condicionamento artístico” (1966), Mário Pedrosa (1986Pedrosa, Mário. (1986). Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva , p. 87-92.) refletiria sobre a mudança dos condicionamentos que operam uma alteração do lugar da arte na sociedade:

O problema central da arte de nossos dias é o de sua integração na vida social como atividade legítima, natural, permanente e não apenas tolerada ou aceita, mas à parte, para certas ocasiões, em certos meios. […] ora, entre os homens que trabalham, que manejam ferramentas e materiais de trabalho, está o artista, ou ‘o supremo técnico’ […]. Este é com efeito um fazedor de objetos, um produtor de objetos, um produtor de coisas não expressamente solicitadas pelo mercado ou não para este diretamente produzidas. Trata-se de uma categoria de trabalhador social que nas economias pré-capitalistas ou não essencialmente competitivas era predominante, a do produtor individual independente. Hoje, no contexto socioeconômico essencialmente capitalista, e mesmo supercapitalista, é por assim dizer uma figura anacrônica […] (Pedrosa, 2015Pedrosa, Mário. (2015). Arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify.: 350-351).

Se o artista é uma figura anacrônica, quem ocuparia seu lugar na produção de imagens da sociedade contemporânea? Ou a produção imagética ficou a cargo da produção técnica, ou o artista passa a contestar o estatuto dos valores plásticos e imagéticos para estabelecer sua produção em outro nível de relação com o campo artístico - justamente na contramedida da aceitação confortável de valores imagéticos e plásticos. Ora, Pedrosa assinala que, no processo de divisão social do trabalho, entre trabalho manual e intelectual, o artista torna-se o produtor de objetos para atender encomendas de uma “clientela cada vez maior em um mercado indiscriminado” (Pedrosa, 2015Pedrosa, Mário. (2015). Arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify.: 353).

Se houve um tempo em que o trabalho manual e o intelectual uniam-se em atividade, tal como se pode verificar na ligação entre atividade artística e industrial na formação generalizada de estilos ao longo do tempo, com o processo de divisão do trabalho, a arte passou a atuar em esfera autônoma de leis intrínsecas. A sucessão dos ismos funcionou dentro dessa lógica até que pressionada pela força externa da lei do aceleramento das expressões artísticas que se sucediam em movimento frenético, tal como a lei da obsolescência programada. Mário Pedrosa conclui:

Essa força externa atuante, verdadeira lei de aceleramento das experiências artísticas contemporâneas, é a expressão no domínio, até então de algum modo reservado, das artes da influência determinada do consumo em massa, do qual é hoje um dos setores mais importantes o chamado gebildet konsumieren (consumo conspícuo) de Marx (Pedrosa, 2015Pedrosa, Mário. (2015). Arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify.: 355).

A arte seria, de acordo com Pedrosa, na sociedade atual, apesar de ela ter de obedecer à corrida fatal dos modelos de carro ou de qualquer outro produto no mercado, algo que ainda possui a possibilidade de negar sua unidade intrínseca com a sociedade capitalista:

Saindo do domínio do que em certos setores, prenhes de nossos velhos ranços românticos, ainda se timbra em chamar de ‘arte industrial’, para o domínio puramente estético da obra de arte, que se verifica? Ela ser cada dia mais atraída ou forçada a fazer também a corrida fatal dos modelos no mercado. Mas pode ela ser submetida àquela contingência sem negar sua própria natureza unívoca? Sua natureza de ser no nosso condicionamento social o único objeto que não pode existir senão como produto em si mesmo? E jamais como produto de substituição, com seu equivalente de uso, em função das mesmas leis que determinam o styling no automóvel, na camisa, no biquíni? A obra de arte em sua essência não é objeto para consumo, […] ela só é ‘trabalho produtivo’, isto é, precipuamente feita para a venda em segundo grau, quando entra no círculo do mercado como uma commodity no sentido inglês, uma mercadoria. (Não se trata de impugnar os meios perfeitos de reprodução da técnica moderna; trata-se de negar sua unidade intrínseca.) (Pedrosa, 2015Pedrosa, Mário. (2015). Arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify.: 356-357).

Contudo, essas condições são as mesmas no centro e na periferia capitalistas? A questão dos países periféricos ou dependentes marca um novo ponto desse debate sobre a crise do condicionamento artístico em nossas sociedades. No caso específico da América Latina, um dos estudos inaugurais a relacionar estrutura social e produtos estéticos foi a famosa tese de doutorado em moda, intitulada O Espírito das Roupas, de Gilda de Mello e Souza (2019Mello e Souza, Gilda. (2019). O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras.), e o livro já muito debatido, Literatura e sociedade, de Antonio Candido (2001Candido, Antonio. (2001). Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha.), escrito em 19655 5 O ensaio de Antonio Candido estabelece, na crítica literária, a análise de cunho sociológico. Já O espírito das roupas: a moda no século XIX foi ensaio inovador de Gilda de Mello e Souza, originalmente publicado na Revista do Museu Paulista, em 1950. O ensaio, originado de tese de doutorado, orientada por Roger Bastide, descreve como a moda garantia e reforçava, no plano simbólico, a diferenciação de classes e de gêneros de maneira muito particular na sociedade brasileira. O ensaio de Mello e Souza resultou em um dos primeiros estudos sobre o fenômeno da moda no mundo. Para se ter uma ideia, o livro Sistema da moda, de Roland Barthes, é de 1967 (Mello e Souza, 2019). . Assim, um dos problemas centrais de Candido e de sua época foi entender como o movimento de generalização da forma moderna em um plano internacional produzia um movimento de influência de produção e pensamento que se orientava do centro para a periferia.

Assim como o modo de produção capitalista se espraiava pelo mundo com seu novo modo de vida na conquista de novos mercados, a arte moderna ganhou dimensão internacional. Ela chega tarde em várias partes do globo, mas ao chegar nesses lugares periféricos, a forma artística dos centros capitalistas deve adaptar-se às condições locais. Em seu livro, Candido comenta sobre o fato de a literatura produzida na periferia ter características particulares que a definem diferenciadamente, em comparação com a produção nos centros capitalistas do mundo. Ainda que haja um problema evidenciado de reprodução de formas dominantes dos países centrais do capitalismo nos países subdesenvolvidos, essas formas ganham outros significados e outros usos:

Interessante é o caso das vanguardas do decênio de 1920, que marcaram uma libertação extraordinária dos meios expressivos e nos preparam para alterar sensivelmente o tratamento dos temas propostos à consciência do escritor. Elas foram para nós todos, sinônimo de autonomia e autoafirmação. […] Sabemos pois que somos parte de uma cultura mais ampla, da qual participamos como variedade cultural. E que ao contrário do que supunham por vezes inocentemente nossos avós, é uma ilusão falar em supressão de contatos e influências. Mesmo porque, num momento em que a lei do mundo é a inter-relação e a interação, as utopias da originalidade isolacionista, não subsistem mais no sentido de atitude patriótica, compreensível numa fase de formação nacional recente, que condicionava uma posição provinciana e umbilical. […] Na presente fase, de consciência do subdesenvolvimento, a questão se apresenta, portanto, mais matizada. Haveria paradoxo nisto? Com efeito, quanto mais o homem livre que pensa se imbui da aspiração revolucionária - isto é, do desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo e promover em cada país a modificação das estruturas internas, que alimentam a situação de subdesenvolvimento. No entanto, encara com maior objetividade e serenidade o problema das influências, vendo-as como vinculação normal no plano da cultura. Apenas na aparência há paradoxo, pois de fato trata-se de um sintoma de maturidade, impossível no mundo fechado e oligárquico dos nacionalismos patrioteiros. (Candido, 2001Candido, Antonio. (2001). Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha.: 154).

De fato, Antonio Candido assinala bem o fato de haver uma generalização dos processos de modernização no mundo. Haveria, pois, um lugar para a assimilação recíproca da cultura:

[…] A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920; da intensa consciência estético social dos anos 1930-40; da crise de desenvolvimento econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes, começamos a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural […]. Isso não apenas dará aos escritores da América Latina a consciência da sua unidade na diversidade, mas favorecerá obras de teor maduro e original, que serão lentamente assimiladas pelos outros povos, inclusive os dos países metropolitanos e imperialistas. O caminho da reflexão sobre o desenvolvimento conduz, no terreno da cultura, ao da integração transnacional, pois o que era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca (Candido, 2001Candido, Antonio. (2001). Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha.: 154-155).

Ocorre que esse processo de generalização do fenômeno da indústria cultural, que colocou a arte no lugar-comum de outros condicionamentos do modo de vida dominante, não permite espaço para resistências e invenção de outras dinâmicas sociais em planos mais elevados de vida. A modernização seguiu invariavelmente modelos de dilaceramento entre técnicas de reprodução social e a mensagem utópica da arte. A produção de arte conceitual, que dessacralizaria o lugar confortável da estética na sociedade contemporânea, tornou-se ela própria mais um expediente de reafirmação do caráter acadêmico da arte contemporânea.

Entretanto, no Brasil, a produção conceitual apresentava um tom de intervenção mais política do que artística, fato que promoveu uma radicalização das propostas da arte nas periferias. Esse deslocamento da arte de sua esfera confortável para um embate com a dura realidade brasileira do golpe militar de 1964 fez com que a produção artística ocupasse um local marginal, distante dos circuitos e do mercado de arte, que naquela época era inexpressivo no Brasil. A marginalidade artística e as faltas de compromisso com o funcionamento capitalista do circuito das artes fizeram com que essa arte assumisse posição de crítica radical aos condicionamentos e ao status quo na periferia capitalista.

A crise institucional imposta pelo golpe militar de 1964 pôs fim às vanguardas construtivas e ao estabelecimento de um novo estágio de influências e de alternativas possíveis para a arte brasileira, processado como manifestação consequente de uma crise ética, política e social que assolou o País. Se a tendência construtiva da arte brasileira fez parte do período desenvolvimentista dos anos de 1950 e dramatizou sua crise, a partir da década seguinte, com o Golpe Militar e os anos que o sucederam, as sendas artísticas brasileiras estiveram ligadas ao movimento generalizado internacionalmente de nova figuração, de pop art ou de antiartes, e tiveram entre suas manifestações epígonas a arte conceitual, que acompanhou todo o processo de recrudescimento da repressão política nos anos finais de 1960 e durante a década de 1970.

O terror empregado pelos militares, implantado com o estabelecimento do Ato Institucional de nº5 (AI-5), a partir de 1968, evidenciou a pálida consciência da crise do projeto vanguardista no Brasil. Desse período, são exemplares a produção artística da Nova Figuração, de Gerchman, de uma mistura de pop art e de arte Povera, aquilatadas por Flávio Império e por Sérgio Ferro6 6 Marcelo Ridenti, em seu livro Em busca do povo brasileiro artistas da revolução, do CPC à era da tv, teve o mérito de introduzir, no debate acadêmico, a atuação de artistas, arquitetos e intelectuais em grupos de oposição ao Regime Militar e em grupos de Guerrilha nos anos de 1960 e de 1970. Ver: Ridenti, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2014. , e, logo em seguida, no início dos anos de 1970, as intervenções de Artur Barrio e de Cildo Meireles. Tratava-se do fim da arte que fazia da apreensão perceptiva a base de reformulação da dimensão estética da realidade, para a compreensão da arte como algo além da ênfase pura e simplesmente visual.

Essa arte que tomou o conceito como elemento poético principal teve como um de seus estimuladores o jovem crítico Frederico Morais, que concebeu e organizou o evento “Do Corpo à Terra”, em Belo Horizonte, no mês de abril de 19707 7 Ricardo Ohtake coordenou, no Instituto de Estudos Avançados da USP, mesa sobre a exposição “Do Corpo à Terra”, com relato pormenorizado de Frederico Morais. Cf: <http://www.iea.usp.br/midiateca/video/videos-2017/exposicoes-4-do-corpo-a-terra-domingos-de-criacao-e-como-vai-voce-geracao-80>. . Em um longo depoimento posterior, Morais dizia:

Na história da arte brasileira, é referido apenas com o nome Do Corpo à Terra. Mas, na realidade, foram dois eventos simultâneos e integrados, a mostra Objeto e Participação, inaugurada no Palácio das Artes, em 17 de abril de 1970, e a manifestação Do Corpo à Terra, que se desenvolveu no Parque Municipal de Belo Horizonte, entre 17 e 21 de abril do mesmo ano, promovidos pela Hidrominas - empresa de turismo do Estado de Minas Gerais (Seffrin, 2004Seffrin, Silvana (org.). (2004). Frederico Morais. Rio de Janeiro: Funarte.: 115-116).

Nos anos seguintes, Morais produziria um ensaio intitulado “A crise da vanguarda no Brasil”, onde foi feito um balanço sobre as principais iniciativas produzidas na arte brasileira, dos anos de abertura democrática ao fim do Estado Novo até os anos iniciais e fatídicos após o Ato Institucional nº 05. Nesse ensaio, Morais definiu a atividade de vanguarda como “atualização permanente”, isto é, fazia sentido falar ainda em arte de vanguarda no Brasil devido ao caráter transgressivo de suas propostas e ao entendimento de que a arte que se produzia naquele momento estava à frente das questões estéticas do status quo (tal como as vanguardas europeias tinham também cumprido esse papel anteriormente). Esse impulso tardio de afirmação do caráter vanguardista da arte brasileira tomou conta de gerações de intelectuais e de artistas, e foi resultado de um processo de ruptura com o modernismo da primeira metade do século XX.

O fim dos ismos, nos anos de 1970, decretou a obsolescência do conceito de vanguarda, muito ligado ainda à questão da inovação formal. Na definição de Frederico Morais (1975Morais, Frederico. (1975). A crise da vanguarda no Brasil. In: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 69-177.: 69), em A crise da vanguarda brasileira, o registro sobre a arte de vanguarda é outro: “A arte como ação e engajamento. O artista de vanguarda não se restringe a produzir obras. Ele luta por impor suas ideias, que não se esgotam, evidentemente, no campo estético”. Essa definição deixa entrever pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, o fato de Morais estar envolvido com a produção de arte conceitual no Brasil e, em segundo lugar, que a arte produzida - naquele momento - já não se identificava com a experiência, sobretudo estética (baseada na visualidade), da vanguarda construtiva no Brasil.

Nesse sentido, o termo vanguarda está posto para descrição tanto da vanguarda construtiva como da arte conceitual do final dos anos de 1960 e da década seguinte. Morais levanta os princípios que nortearam a promoção de vanguardas artísticas brasileiras e como elas estiveram envolvidas com a construção histórica e social de um novo projeto de Brasil, suas conquistas e derrotas. Daí, é possível identificar uma vanguarda proativa (construtiva) e outra retroativa (conceitual) na arte brasileira.

Depois de explicar o projeto da vanguarda artística brasileira, Morais aponta sua crise por causa das circunstâncias políticas do país e, por conseguinte, pela entrada do mercado como baliza de reordenamento da produção artística brasileira nos anos de 1970 em diante. Há pelo menos dois sentidos atribuídos por Morais ao termo crise: por um lado, o termo refere-se ao processo de inviabilização do projeto moderno brasileiro com a crise do desenvolvimentismo, que levou consigo os anseios depositados na potencialidade transformadora da arte moderna autônoma de cepa construtiva; por outro, a crise da vanguarda brasileira faz referência à falta cada vez mais generalizada de liberdade para a produção artística e à desestruturação do sistema das artes plásticas no Brasil (exílio da crítica, perseguição dos artistas, descrédito nas novas ocupações das instituições e dos museus etc.), em detrimento do incentivo das atividades ligadas ao principiante mercado de arte local.

Esses dois sentidos completam-se na verificação tanto da exaustão dos processos políticos e artísticos envolvidos na abertura de perspectivas e de potencialidades transformadoras da realidade como no processo de autocrítica, vivenciada por intelectuais e por artistas ligados ao mundo das artes, sobre a importância especial deste campo na transformação da realidade.

Para Morais (1975Morais, Frederico. (1975). A crise da vanguarda no Brasil. In: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 69-177.), a crise da vanguarda brasileira dava-se com o processo de interdição do funcionamento e da normalização do sistema local das artes (crítica, artistas, instituições), resultado dos anos de repressão sistemática ocorridos no Brasil, em que artistas, intelectuais e militantes foram atacados, reprimidos, mortos ou foram para o exílio forçado. O que ocorreu a partir daí foi uma mutação profunda do significado atribuído ao sistema das artes e ao seu funcionamento; se antes do Golpe Militar, a constituição de um público interessado e a consolidação da crítica de arte tinham fabricado as bases para ampliação de um ambiente estético particular no Brasil, que contava também com o apoio e estabelecimento de suas instituições modernas, a partir da crise do projeto moderno no país (cujo precedente poderia ser enunciado pelo apoio fundamental dos Estados Unidos para o estabelecimento aqui dos museus de arte moderna e cuja situação mais recente indicava o uso instrumental ou a incorporação das mais ousadas invenções da arquitetura funcionalista pelo regime militar), tanto artistas como arquitetos e intelectuais engendraram ou promoveram uma produção artística baseada na nova assimilação do moderno.

Em seu ensaio, Morais (1975Morais, Frederico. (1975). A crise da vanguarda no Brasil. In: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 69-177.) apontava a desrealização e o fim inconcluso da tendência construtiva na arte brasileira, fazendo relação entre o ideário artístico e o social. Embora com fim inconclusivo, a tendência construtiva brasileira apresentava-se tanto como uma projeção utópica quanto como uma tentativa frustrada, pois ilusória aos olhos do crítico. A referência ao discurso inaugural de Juscelino Kubitschek servia para enfatizar o peso que se depositou na construção de Brasília como símbolo de uma nova época:

Vejo, em nosso encontro, um símbolo. Nele reluz uma significação extraordinária. Sugere, ou antes, afirma, e veementemente, que o futuro tecnológico, econômico e social deste país não se construirá à revelia do coração e da inteligência, como tantas vezes ocorreu no passado e ainda sucede no presente, mas erguer-se-á sob o signo da arte, signo sob que Brasília nasceu8 8 Para um debate mais específico sobre o congresso da Associação Internacional de Críticos de Arte e a importância da atuação de Mário Pedrosa para a consolidação do projeto construtivo moderno brasileiro, ver o Seminário Mário Pedrosa 120 anos, Fundação Perseu Abramo: <https://www.youtube.com/watch?v=gdPLLFw_sBI>. (Morais, 1975Morais, Frederico. (1975). A crise da vanguarda no Brasil. In: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 69-177.: 80).

E o autor concluía, contrariando a atmosfera positiva de 1959:

Brasília, entretanto, é “aurora que não deu sol”. Decepcionou aqueles que a construíram ou que viram nela um símbolo. […] O sonho, enfim, desfez-se antes mesmo de entrarmos na metade da nova década. O Brasil não acompanhou a revolução de Brasília, ou melhor, não assumiu sua perspectiva utópica. O futuro do país está cada vez mais sendo construído à revelia do coração e da inteligência (Morais, 1975Morais, Frederico. (1975). Artes plásticas: a crise da hora atual . Rio de Janeiro: Paz e terra .: 80).

Em 1978, Morais voltava a tratar do tema do encontro e do desencontro entre o projeto sociopolítico e o estético da construção de Brasília. Ainda que o desenvolvimentismo tivesse esgotado sua perspectiva utópica, o mesmo não se poderia dizer da utopia construtiva na arte e de seu potencial socialmente transformador:

Não se pode inferir, porém, apressadamente que o fim do “sonho desenvolvimentista” seja também o fim do “sonho construtivo”, pois se os paralelismos existem, a arte está sempre à frente da realidade. O certo é que nas décadas de 40/50 há uma coincidência de objetivos entre as ideologias construtivas no plano cultural, o desenvolvimentismo no plano econômico e as alianças continentais no plano político (Seffrin, 2004Seffrin, Silvana (org.). (2004). Frederico Morais. Rio de Janeiro: Funarte.: 178).

É claro que a avaliação de Morais esteve, se não comprometida, pelo menos prejudicada pelas condições adversas do momento vivido no país: descrença no papel revolucionário das instituições, anseio de aproximação da arte com a vida, incerteza com relação ao futuro a médio e longo prazo no Brasil, já que não se sabia por quanto tempo a ditadura se manteria no poder. Esses fatores conjecturais e que dizem respeito à geopolítica do momento (no Brasil e no mundo) marcaram uma nova atitude da vanguarda na arte, isto é, a descrença no projeto moderno era também a descrença no sistema e nas instituições que faziam parte disso que chamamos de moderno. O moderno assumia no Brasil sua versão conservadora, identificada com a expressão “modernização conservadora”9 9 O pacto entre burguesia industrial e oligarquia rural explica o processo de modernização presenciado no Brasil após o golpe militar de 1964. Esse é o esquema geral estabelecido a partir do conceito de modernização conservadora por Barrigton Moore Junior. Para o estudo sobre o conceito na interpretação do Brasil, ver: Domingues (2002). .

Pode-se dizer que o insucesso da síntese não se devia apenas aos paralelismos, mas ao fato de o desenvolvimentismo atender interesses específicos do capital e aquiescer-se com o problema da terra no Brasil. Aliás, essa era uma das preocupações evidentes na fala de Mário Pedrosa, ao dizer no congresso promovido pela Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), em 1959:

Não tem sentido projetar uma cidade como esta num deserto como este, a mil quilômetros dos centros culturais do País, se não se fizer simultaneamente a planificação […], para tanto é preciso entrar pelo caminho das reformas profundas no país, a começar, por exemplo, pela reforma da estrutura agrária secular (Lobo & Segre, 2009Lobo, Maria da Silveira & Segre, Roberto (orgs.). (2009). Congresso internacional extraordinário de críticos de arte. Cidade nova: síntese das artes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.: 47).

Do fim das vanguardas construtivas às manifestações de arte conceitual, a crítica brasileira foi exilada de seu papel primordial na interpretação da arte e de sua significação social; os que sobreviveram e persistiram no ambiente cada vez mais mortalmente grosseiro e opressivo, sob o comando militar, tiveram de se adequar à diplomacia das meias-palavras e ao empenho involuntário e canhestro, com vantagens particulares ou não, de subordinação à nova ordem estabelecida. De toda sorte, a verve combativa da crítica politizada dos anos de 1960 é substituída progressivamente por outra, às vezes, mais impotente e servil ou, às vezes, pactuada com a ordem estabelecida, no que concerne aos apaziguamentos políticos ou institucionais, e que termina por fazer concessões tanto por sobrevivência como para manutenção da produção e das instituições artísticas no Brasil.

Nesse processo histórico, é possível acompanhar a mudança e a precariedade da condição de exercício da crítica brasileira. Uma atividade crítica em duas sendas, que passa de um papel ativo no ambiente cultural brasileiro dos anos de 1950 em diante para a sobrevida no início dos anos de 1970. Por uma via, a crítica exilada encontrava ressonância nas opiniões e denúncias feitas por intelectuais e artistas que aqui ainda permaneceram depois do estabelecimento do terror de direita. Esses intelectuais e artistas foram responsáveis pelas principais manifestações da vida política e cultural no decorrer dos anos de 1960 no país. É justamente a partir das iniciativas e das reflexões deles que muita coisa interessante e inovadora foi produzida no Brasil. Por outra via, entre os que ficaram por aqui, desenvolveu-se uma crítica ligada menos à realidade política do que à revolução dos comportamentos, dos costumes e do poder coercitivo e simbólico das instituições sociais.

Essas duas sendas pareciam combater o mesmo inimigo com perspectivas diversas, mas complementares, anunciando que o combate à ditadura deveria significar a luta contra a repressão política e contra a repressão dos comportamentos; pode-se dizer, decerto, que a primeira tarefa foi mais importante do que a segunda. O mote da época era libertação e liberdade; libertação das condições sociais e econômicas que nos relegavam à condição subdesenvolvida; libertação da opressão política da ditadura e do imperialismo norte-americano em favor da emancipação social em novo regime; liberdade necessária para a renovação dos comportamentos e dos costumes.

A tradição crítica estabelecida desde o início de 1950, passando pela construção de Brasília, até meados da década de 1960, representada em especial pela figura de Mário Pedrosa, tinha conseguido estabelecer um aporte direto na relação entre arte e sociedade, permitindo a mediação profícua entre a nova arte e o público. Se Brasília foi o ponto alto da realização última do projeto moderno no Brasil, toda a atividade cultural relacionada ao período desenvolvimentista ficou comprometida a partir do Golpe dos militares. Assim, a figura da crítica de arte representada, por Pedrosa, como sinônimo de interlocução entre arte e público, de discernimento entre produção social e artística, foi aos poucos perdendo sua importância e sendo substituída pela crítica interessada na transformação dos comportamentos (entendida como revolução, sobretudo simbólica), mas tão complacente com o mercado de arte quanto com a ocupação de espaços institucionais da arte de prestígio e legitimados pelas condições sociais preexistentes na finada era democrática e desenvolvimentista brasileira.

Se o golpe militar não provocou nenhuma reação imediata de artistas, com o decorrer da década de 1960 até a promulgação do AI-5, aconteceram pelo menos alguns eventos importantes: as mostras “Opinião”, no Rio de Janeiro, e “Propostas”, em São Paulo, ambas de 1965 e que tiveram reedição em 1966, e, logo em seguida, a exposição “Nova Objetividade”, no Rio de Janeiro, em abril de 196710 10 Para um estudo mais pormenorizado sobre as mostras “Opinião” (Rio de Janeiro), “Propostas” (São Paulo) e a exposição “Nova Objetividade”, ver: Peccinini (1978). . Em um primeiro momento, a aproximação entre arte e vida ocorreu pela chegada da onda pop art no Brasil. Essa manifestação artística tornava-se tanto referência da ascensão dos mass media no mundo e no Brasil como sinal da equivalência entre produtos distintos para o consumo generalizado de imagens. Com o passar dos anos, aconteceu a entrada cada vez mais decisiva do mercado de arte na lógica de funcionamento do sistema da arte brasileira.

Conforme diria Mário Pedrosa (1975), o sistema das artes fechou-se na lógica do mercado: “a mostra de arte passa a ser feira de arte, e os marchands passam a dominar. As leis do mercado capitalista não perdoam: a arte, uma vez que assume valor de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer presunto” (Pedrosa, 1975: 257). Assim, no Brasil, com a crise do projeto moderno e principalmente com a política militar do AI-5, a crítica de arte foi exilada ou assumiu papel inexpressivo, em relação ao apoio de tendências artísticas no sistema das artes. Vários intelectuais próximos e companheiros de Mário Pedrosa, que fizeram parte do ambiente e das manifestações do projeto construtivo brasileiro, tiveram o mesmo destino que ele e, pressionados pela perseguição militar, acabaram por se exilar no exterior, tal como foi o caso de Ferreira Gullar e de Hélio Oiticica. Este último, por não ser alvo prioritário da polícia, foi responsável por ser porta-voz dos ideais e da força crítica da geração construtivista. Tanto Gullar como Oiticica partiram das experiências construtivas para a reflexão intelectual e poética sobre a especificidade brasileira, sobre o nacional e o popular no Brasil e sua relação com o campo internacional11 11 Para uma análise comparativa sobre a interpretação da cultura brasileira, feita respectivamente por Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, recomendamos o ensaio de Carlos Zilio (1982). .

A produção poética de Hélio Oiticica revela bem a contradição entre os elementos estruturantes da realidade social brasileira e a crise da vanguarda construtiva, embasada na ideia de reestruturação social a partir de princípios norteadores da arquitetura e das artes visuais no Brasil. Com o fechamento dessa perspectiva utópica comandada e principiada pela arte, a crítica de arte brasileira e os artistas se depararam com o golpe militar e a degenerescência das reformas do Estado liberalizante no sentido de garantir ampliação efetiva de direitos para as camadas sociais menos visibilizadas e favorecidas no Brasil. A geração mais nova de nossa crítica de arte e da produção artística do período - anos de 1960 - laborou ao lado da antiga geração e a partir dela tomou posição frente aos problemas estéticos contemporâneos; com o passar do tempo, essa geração mais jovem ocupou o vácuo deixado pelo exílio de muitos combatentes da geração construtiva.

Oiticica não foi só um dos articuladores do boicote à Bienal em 1969, mas também o idealizador e realizador de várias ações coletivas que organizaram os artistas daquele momento para formarem uma oposição unida contra o inimigo comum. Entre as ações realizadas por Oiticica estão: a participação na exposição “Opinião 65”, com moradores da favela Mangueira para questionar o abismo social (negros e brancos, pobres e ricos) e estético (arte e cultura dita erudita em oposição ao popular) da sociedade brasileira, dividida em classes; a participação na exposição “Opinião 66”; a realização da instalação Tropicália como alegoria da modernização contraditória brasileira na mostra “Nova Objetividade Brasileira”, sendo responsável pelo Manifesto da mostra, realizada no MAM do Rio de Janeiro, em 1967; ainda, no ano seguinte, organiza manifestação artística no aterro do Flamengo com a denominação de “Apocalipopótese”12 12 Manifestação artística, pensada por Hélio Oiticica, em que o povo poderia se manifestar livremente. Essa manifestação, que contou com Antonio Manuel, Lygia Pape e passistas da mangueira, foi filmada por Raymundo Amado. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=8klDYRlA0Tg>. .

No caso de Oiticica e de muitos outros artistas, tratava-se de pensar o espaço da arte para além dos museus e dos locais curatoriais tradicionais da arte moderna. Essa aproximação entre arte e vida fez com que a dimensão social do campo artístico ficasse mais evidente. Ainda que Morais acentue a revolução dos comportamentos, o que se evidenciava com mais contraste era justamente a dimensão da arte na vida terceiro-mundista brasileira. Sobre as manifestações do fenômeno artístico na rua nos finais de semana, Morais comenta:

Coincidindo com as passeatas, houve um aumento de manifestações de arte-na-rua. Antes de 1968 tivemos, os “parangolés” coletivos de Oiticica, no MAM do Rio e no Aterro da Glória. Em São Paulo, em 67, a exposição de bandeiras de Nelson Leirner e Flávio Motta, impedida de continuar em praça pública, porque a fiscalização alegou falta de alvará de licença […]. A mais importante promoção nesta faixa, em 68, foi “um mês de arte pública”, que o Diário de Notícias promoveu, em julho, no Parque do Flamengo. Durante todo o mês revezaram-se exposições de artistas de vanguarda ao ar livre (Dileny Campos, Mirian Monteiro, Ione Saldanha, Julio Plaza, Pedro Escosteguy e o grupo “Poema-Processo” […]. Paralelamente, ainda nos fins de semana, eram promovidas manifestações, como as de Roberto Morriconi, que estourou balões e vidros contendo água colorida, com tiros de espingarda, enquanto Oiticica comandou a manifestação final, denominada Apocalipopótese. Esta consistiu em acontecimentos simultâneos, sem qualquer lógica explícita, senão a criação em nível de participação geral do público: sementes de Ligia Pape, Apoliroupas, de Samir Mattar, As Três graças do apocalipse, de Roberto Lanari, Urnas Quentes, de António Manuel, show de cães amestrados, sob o comando de Rogério Duarte e Capas de Oiticica, vestidas por passistas da Mangueira, Portela e Salgueiro. A publicidade sobre Arte no Aterro, eminentemente popular, foi feita na base de volantes distribuídos aos milhares, nas ruas (Morais, 1975Morais, Frederico. (1975). Artes plásticas: a crise da hora atual . Rio de Janeiro: Paz e terra .: 94-95, grifo do autor).

Antes de seu exílio, Mário Pedrosa já tinha lutado em favor da mobilização de artistas e de intelectuais para boicotar a Bienal de São Paulo. Em pleno período de vigência do AI-5, a censura de obras “consideradas políticas” de artistas para a participação da IV Bienal de Paris, feita por censores militares, provocou o protesto da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), na figura de Pedrosa, e levou ao boicote em massa feito por artistas internacionais à Bienal de São Paulo de 1969. O clímax do agravamento de sua relação com o governo militar foi o episódio de sua viagem de estudo patrocinada pela Unesco; Pedrosa foi responsabilizado pelo governo militar de ter enviado carta-denúncia contra a tortura para a Unesco, o que foi considerado pelos militares um modo de ferir a imagem do Brasil no exterior. E então, inquirido pela investigação policial, se solidarizou com os presos e torturados, o que lhe valeu imediatamente um indiciamento. Em julho de 1970, Mário Pedrosa tem sua prisão decretada e inicia sua fuga para o Chile, onde tem uma breve participação na experiência socialista do governo de Salvador Allende no Chile, enquanto este durou. Esse foi o período do grande êxodo de artistas, intelectuais e militantes brasileiros, que, por força das circunstâncias, são obrigados a deixar o Brasil.

Mas afinal, o que podia se conceituar como vanguarda no Brasil dos anos pós-ditadura e de recrudescimento do terror militar? Não havia, por assim dizer, um anacronismo no uso do termo, quando se constata que já se tinha avançado para uma nova rotina da arte, denominada por Mário Pedrosa de arte pós-moderna? O termo vanguarda passou a ser usado nos fins de 1960 e início de 1970, como referência direta ao experimentalismo da arte brasileira em oposição à tradição nacional-popular, representada pela arte política ou engajada que, dando ênfase ao conteúdo em detrimento da forma, na suposição mecânica da separação desses termos, fazia do didatismo artístico uma tentativa de aproximação com as massas, em busca da valorização do elemento nacional inscrito nas diversas manifestações da cultura popular brasileira. Esses elementos de afirmação dos valores dessa cultura seriam posteriormente aclimatados e incorporados pela propaganda e pelo discurso ideológico da Ditadura Militar.

Na política, ainda que as decisões da ditadura estivessem atreladas aos interesses norte-americanos para o continente, o que consolidou principalmente, a partir dos anos de 1970, o interesse pela primazia ideológica do mercado na arte, intelectuais e artistas brasileiros andaram na contramão dessa tendência oficializada no Brasil. Devemos lembrar que nos anos de 1960, ocorre uma série de eventos no mundo que mudariam os sentidos tradicionais da política e dos comportamentos. Nesse período, destaca-se o maio de 1968, na França, e a campanha contra a Guerra do Vietnã, nos Estados Unidos; ambos os eventos ganharam irradiação para além das próprias fronteiras nacionais. O primeiro evento, a Revolução de Maio de 1968, marcou decisivamente o ensino superior tanto nas universidades francesas e europeias, como no mundo. A politização dos estudantes, que passaram a exercer papel central na formulação e na condução das principais atividades contraculturais no período, foi resultado, em parte, do processo que nos anos anteriores tinha levado, pelo menos na França, à incorporação de uma gama maior de jovens pertencentes a um amplo espectro social e a uma gama maior de indivíduos de classes sociais distintas dentro da universidade. A aposta de Frederico de Morais em uma arte que superasse os limites do espaço tradicional do sistema das artes realizara-se aos poucos, a partir de uma série de experiências que já estavam presentes nas experimentações neoconcretas e nas propostas de Hélio Oiticica, nas manifestações artísticas do Grupo Rex ou do próprio Nelson Leirner13 13 Para um estudo sobre a influência de Duchamp na arte brasileira e sobretudo em São Paulo, ver: Lopes (2009). .

Quando Morais organizou eventos no Aterro do Flamengo a proposta já era, tal como em Oiticica, a de eliminar a distância entre a arte contemporânea, seu significado social e as camadas populares. Aproximar as pessoas da arte, aproximar a arte da vida, esses foram alguns dos objetivos dos eventos que marcaram a démarche experimental dos anos de 1960 e de 1970. No caso específico das artes, o objeto (como categoria artística) tinha ganhado importância no processo de comunicação das linguagens visuais e tornou-se elemento-chave para a realização da exposição “Objeto e Participação”, no Palácio das Artes, em 17 de abril de 1970. Juntamente com a exposição, Morais pensou na realização de manifestações artísticas (arte vivencial, conceitual, efêmera etc.) no espaço do Parque Municipal de Belo Horizonte, conhecida como “Do corpo à Terra”, entre os dias 17 e 21 de abril de 1970.

As manifestações artísticas “Do corpo à Terra” envolviam uma nova concepção de arte, ligada à efemeridade, às vivências e à abertura do processo de significação em que o público e a arte estavam em um campo aberto para experiências possíveis, mas não obrigatórias. Essa abertura levava se não à abdicação do curador em vivenciar e presenciar todo o evento, pelo menos à experiência de submetê-lo a outro crivo, o crivo do conceitual e do anteriormente projetado. Afinal, tanto público como curador foram testemunhas de parte apenas dos eventos; essa impressão de fragmentariedade da experiência andou pari passu com a abertura de possibilidades de experimentar ou não o tensionamento entre arte e público. Diz Morais:

Foram vários os aspectos inovadores em ambos os eventos, a saber: 1- pela primeira vez, no Brasil, artistas eram convidados não para expor obras concluídas, mas para criar seus trabalhos diretamente no local e, para tanto, receberam passagem e hospedagem e, como os artistas mineiros, uma ajuda de custo; 2- se no Palácio houve um vernissage com hora marcada, no Parque os trabalhos se desenvolveram em locais e horários diferentes, o que significa dizer que ninguém, inclusive os artistas e o curador, presenciou a totalidade das manifestações individuais; 3- os trabalhos realizados no Parque permaneceram lá até sua destruição, acentuando o caráter efêmero das propostas; 4- a divulgação foi feita por meio de volantes, distribuídos nas ruas e avenidas de Belo Horizonte, bem como nos cinemas, teatros e estádios de futebol, tal como já ocorrera com Arte no Aterro (Morais, 2004: 117).

Na época, Morais escreveu um Manifesto que dava dimensão à atitude dos artistas, frente ao estado de coisas produzido pela ditadura:

Somos bárbaros de uma nova raça. Os imperadores da velha ordem que se guardem. Nosso material não é acrílico bem-comportado, tampouco almejamos as estruturas primárias higiênicas. O que fazemos são celebrações, rituais sacrificiatórios. Nosso instrumento é o próprio corpo - contra os computadores. Nosso artesanato é mental. Usamos a cabeça - contra o coração. Ao invés de “lasers” - imaginação. E as vísceras e o esperma se necessário. O sangue e o fogo purificam. Nosso problema é ético - contra o onanismo estético. […] Vanguarda não é atualização de materiais, não é arte tecnológica e coisas tais. É um comportamento, um modo de ser e de encarar as coisas, os homens e os materiais, é uma atitude definida diante do mundo (Morais, 1975Morais, Frederico. (1975). Artes plásticas: a crise da hora atual . Rio de Janeiro: Paz e terra .: 94-95).

É preciso lembrar que a Bienal de outubro de 1969 foi boicotada por artistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros. Quando Frederico Morais fala da relação entre arte e tecnologia, da arte tecnológica do início dos anos de 1970, provavelmente ele está se referindo à atividade paralela da Bienal, que foi a II Bienal de Ciência e Humanismo, a qual teve a participação de teóricos e pessoas ligadas ao mundo acadêmico. Nomes tais como Isaac Epstein, Vilém Flusser e tantos outros constam nos anais do congresso.

Digressões à parte, a negatividade propositiva da arte pós-moderna - segundo definição de Mário Pedrosa (1981Pedrosa, Mário. (1981). Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, p. 205-209.) - geraria uma arte que conseguiria vingar em um momento muito adverso no Brasil, em solo árido de tempos difíceis. Hoje se sabe que grande parte das principais manifestações de radicalidade inovadora da arte brasileira surgiram nesse período de ebulição política, social e artística. Além disso, sabe-se que, enquanto a vanguarda brasileira apontava para os horizontes da transformação social plena do país, o que veio a seguir foi uma resposta denunciadora da situação política e de poder na nação; com o passar do tempo, o sistema de arte brasileiro rumou para o adesismo cada vez mais tacanho à lógica de mercado.

Alguns anos depois “Do corpo à Terra”, em 1970, e dos encontros denominados “Domingos da Criação”, em 1971, Frederico Morais fez um balanço da arte de vanguarda no Brasil desde os anos de 1950 até o golpe militar e posteriormente à edição do AI-5. Morais considerou as manifestações “Do corpo à Terra” como conclusivas da atividade da Vanguarda no Brasil. No ensaio A crise da vanguarda no Brasil, Frederico Morais assume esquema propositivo em que a atitude contra a cultura vigente e suas instituições e, principalmente, contra a arte estabelecida em forma de antiarte marcou o compromisso propositivo da vanguarda brasileira da segunda metade da década de 1960 e durante a década seguinte. De um lado, a vanguarda era negatividade propositiva e, de outro, negação de possibilidades, crise de paradigma. Dessa dualidade, tem-se a crise da vanguarda, entendida como crise do moderno e proposição de negação dos paradigmas estabelecidos pelo moderno, para transcendê-los em um novo status para a arte e para a vida:

A contra-arte soma a contestação política à contestação da própria arte (sobretudo suas categorias tradicionais). Os novos artistas desta tendência têm em Oiticica e em Lygia Clark, ambos vivendo no exterior, seus modelos, mas sua arte é cada vez mais conceitual. O que fazem são rituais, celebrações, exercícios perceptivos, tensionamento dos sentidos, expedições, apropriações, trabalhos ecológicos. Surgidos repentinamente, vindos de outros setores, fazem uma arte selvagem, que tende ao nomadismo (fora dos museus e galerias, de preferência) e ao anonimato. Atuam imprevistamente, como guerrilheiros, sem anunciar, e onde menos se espera (Morais, 1975Morais, Frederico. (1975). A crise da vanguarda no Brasil. In: Morais, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e terra, p. 69-177.: 103-104).

Essa era a nova face da antiarte no Brasil. Uma antiarte que negava não somente a velha moral e os costumes burgueses de sua época (não se tratava apenas de uma revolução de comportamentos), mas que envolvia a ligação desses artistas com o agravamento da crise política e social vivida no país. Nesse momento, os artistas seguem o exemplo dos guerrilheiros e imergem na vida, fazem das táticas e do imprevisto grandes trunfos para se posicionarem contra o estado de coisas existente. As “trouxas ensanguentadas” de Artur Barrio, as urnas de Antonio Manuel, as galinhas queimadas vivas de Cildo Meireles e, logo depois, a confecção de coquetéis-molotovs com garrafas de Coca-Cola não deixam margem a qualquer dúvida sobre a aproximação dos artistas com os movimentos da ampla gama da esquerda, resistência política no Brasil nos idos de 1970.

Todos os acontecimentos artísticos curados por Morais no período (1968-1975) levaram em conta a efemeridade das propostas, não menos pela aproximação entre arte e vida que pela adesão às práticas muitas vezes individuais e potencialmente transformadoras da ordem estabelecida. Morais defendia a crítica de arte como atividade criativa (por extensão, podemos entender a posição do curador) em que o crítico ou o curador ocupavam-se com a criatividade, com a produção de experiências artísticas. É nesse sentido que Morais concebe os “Domingos da Criação”. Se Morais parece ceder ao otimismo das transformações comportamentais produzidas pela arte no contexto da participação estética e social em tempos de ditadura, a produção artística ou as intervenções dos artistas situavam-se para além do campo exclusivamente ético ou moralizante. Daí a força de proposições políticas assumidas pela arte conceitual no Brasil.

O grande inimigo dos artistas era, como ressaltou Carlos Zílio14 14 Para assistir a uma entrevista sobre o período da ditadura, ver catálogo: Carlos Zilio: Arte e Política 1966/1976 (catálogo), MAM-Rio e MAM-SP, 1996. , a ditadura, com as ingerências do imperialismo norte-americano, de onde mais uma vez ressurge o tema do nacional e da brasilidade, de forma negativa, para reorientar o debate sobre artes visuais, cultura e política no Brasil. O que se queria agora era justamente trazer o tema do debate sobre o nacional e a brasilidade no sentido de afastar as ameaças de fetichização dos ícones nacionais, que se transformariam em símbolos-instrumentos da ideologia nacionalista construída pela ditadura: a seleção de futebol campeã, o ícone brasileiro Pelé, a primeira transmissão da Copa do Mundo pela TV em cores. Frederico Morais termina seu ensaio com visão conformista e até certo ponto basbaque com relação ao estabelecimento do mercado de arte brasileiro, embora identificando a desestruturação geral de nosso sistema das artes. Tudo estava posto para se manter na conservação das forças reacionárias, que se mostravam irmãs siamesas de um capitalismo que posava de virtuoso nos países centrais da economia ocidental. Essa situação não se resolveria até o encerramento do ciclo da Ditadura Civil-Militar no Brasil e a abertura política da Redemocratização do país.

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  • Ridenti, Marcelo. (2000). Em busca do povo brasileiro - artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record.
  • Seffrin, Silvana (org.). (2004). Frederico Morais. Rio de Janeiro: Funarte.
  • Zilio, Carlos. (1982). O nacional e popular na cultura brasileira - artes plásticas. São Paulo: Artepensamento: IMS. Disponível em <Disponível em https://artepensamento.com.br/item/o-nacional-e-popular-na-cultura-brasileira-artes-plasticas/ >. Acesso em 22 jul. 2022.
    » https://artepensamento.com.br/item/o-nacional-e-popular-na-cultura-brasileira-artes-plasticas/
  • Zilio, Carlos. (1996). Arte e política 1966/1976 (catálogo). São Paulo: MAM SP; Rio de Janeiro: MAM-Rio.

NOTAS

  • 1
    Ainda que Antonio Candido e Frederico Morais sejam fundamentais para a análise da produção artística no recorte histórico apresentado no artigo, dos anos de 1964 até 1975, chave para a interpretação da crise do condicionamento estético da arte moderna está nas reflexões feitas por Mário Pedrosa. Ele acompanhou Antonio Cândido na defesa da autonomia da arte, mas esteve próximo da produção das artes visuais (pois Cândido estava igualmente mais próximo da literatura); além disso, Pedrosa deu o tom sobre o significado e a crise do projeto moderno para uma nova geração de críticos e estabeleceu um patamar mais elevado no debate das artes, que marcou profundamente a nova geração de Frederico Morais.
  • 2
    A exposição “Das vanguardas europeias e modernismo brasileiro à visualidade contemporânea no acervo do MAC-USP” recebeu curadoria de Lisbeth Rebolo Gonzales e Daisy Peccinini e foi realizada na sede do Museu de Arte Contemporânea da USP, na Cidade Universitária, no ano de 1995.
  • 3
    Cristina Freire, seguiu os passos de Daisy Peccinini, para realizar exposição sobre a obra de Hervé Fischer. Peccinini foi a primeira a apresentar em contexto de museu a obra de Fischer. Para mais informações, ver: Freire (2012)Freire, Maria Cristina (org.). (2012). Hervé Fischer no MAC USP: arte sociológica e conexões. São Paulo: MAC USP..
  • 4
    Exposições de artistas novos organizadas pelo curador do MAC-USP, Walter Zanini, entre 1967 e 1974. Disponíveis em <http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/biblioteca/jac.asp>.
  • 5
    O ensaio de Antonio Candido estabelece, na crítica literária, a análise de cunho sociológico. Já O espírito das roupas: a moda no século XIX foi ensaio inovador de Gilda de Mello e Souza, originalmente publicado na Revista do Museu Paulista, em 1950. O ensaio, originado de tese de doutorado, orientada por Roger Bastide, descreve como a moda garantia e reforçava, no plano simbólico, a diferenciação de classes e de gêneros de maneira muito particular na sociedade brasileira. O ensaio de Mello e Souza resultou em um dos primeiros estudos sobre o fenômeno da moda no mundo. Para se ter uma ideia, o livro Sistema da moda, de Roland Barthes, é de 1967 (Mello e Souza, 2019Mello e Souza, Gilda. (2019). O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 6
    Marcelo Ridenti, em seu livro Em busca do povo brasileiro artistas da revolução, do CPC à era da tv, teve o mérito de introduzir, no debate acadêmico, a atuação de artistas, arquitetos e intelectuais em grupos de oposição ao Regime Militar e em grupos de Guerrilha nos anos de 1960 e de 1970. Ver: Ridenti, MarceloRidenti, Marcelo. (2000). Em busca do povo brasileiro - artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record.. Em busca do povo brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
  • 7
    Ricardo Ohtake coordenou, no Instituto de Estudos Avançados da USP, mesa sobre a exposição “Do Corpo à Terra”, com relato pormenorizado de Frederico Morais. Cf: <http://www.iea.usp.br/midiateca/video/videos-2017/exposicoes-4-do-corpo-a-terra-domingos-de-criacao-e-como-vai-voce-geracao-80>.
  • 8
    Para um debate mais específico sobre o congresso da Associação Internacional de Críticos de Arte e a importância da atuação de Mário Pedrosa para a consolidação do projeto construtivo moderno brasileiro, ver o Seminário Mário Pedrosa 120 anos, Fundação Perseu Abramo: <https://www.youtube.com/watch?v=gdPLLFw_sBI>.
  • 9
    O pacto entre burguesia industrial e oligarquia rural explica o processo de modernização presenciado no Brasil após o golpe militar de 1964. Esse é o esquema geral estabelecido a partir do conceito de modernização conservadora por Barrigton Moore Junior. Para o estudo sobre o conceito na interpretação do Brasil, ver: Domingues (2002)Domingues, José Maurício. (2002). A dialética da modernização conservadora e a nova história do Brasil. Dados, 45/3, p. 459-482..
  • 10
    Para um estudo mais pormenorizado sobre as mostras “Opinião” (Rio de Janeiro), “Propostas” (São Paulo) e a exposição “Nova Objetividade”, ver: Peccinini (1978)Peccinini, Daisy Valle Machado. (1978). Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado..
  • 11
    Para uma análise comparativa sobre a interpretação da cultura brasileira, feita respectivamente por Ferreira Gullar e Hélio Oiticica, recomendamos o ensaio de Carlos Zilio (1982)Zilio, Carlos. (1982). O nacional e popular na cultura brasileira - artes plásticas. São Paulo: Artepensamento: IMS. Disponível em <Disponível em https://artepensamento.com.br/item/o-nacional-e-popular-na-cultura-brasileira-artes-plasticas/ >. Acesso em 22 jul. 2022.
    https://artepensamento.com.br/item/o-nac...
    .
  • 12
    Manifestação artística, pensada por Hélio Oiticica, em que o povo poderia se manifestar livremente. Essa manifestação, que contou com Antonio Manuel, Lygia Pape e passistas da mangueira, foi filmada por Raymundo Amado. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=8klDYRlA0Tg>.
  • 13
    Para um estudo sobre a influência de Duchamp na arte brasileira e sobretudo em São Paulo, ver: Lopes (2009)Lopes, Fernanda. (2009). Experiência Rex: “éramos o Time do Rei”. São Paulo: Alameda..
  • 14
    Para assistir a uma entrevista sobre o período da ditadura, ver catálogo: Carlos ZilioZilio, Carlos. (1996). Arte e política 1966/1976 (catálogo). São Paulo: MAM SP; Rio de Janeiro: MAM-Rio.: Arte e Política 1966/1976 (catálogo), MAM-Rio e MAM-SP, 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2020
  • Revisado
    31 Dez 2020
  • Aceito
    01 Fev 2022
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