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Machado de Assis: o historiador materialista e a tentativa de condensar na letra o vivido

Machado de Assis: the materialist historian and the attempt to condense life in writing

Resumos

Este artigo propõe uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas e uma reflexão acerca das experiências e veleidades desse filho abastado da elite brasileira do século XIX. Tais memórias ficcionais, escritas de além-túmulo, traduzem aspectos do "real vivido", enfatizando a falência moral, as injustiças e os privilégios praticados por toda uma classe social, que é personificada na figura do protagonista.

ficção; história; memória; narração; simulacro


This paper aims to read Memórias póstumas de Brás Cubas reflecting on the experiences and the velleities of this son of the Brazilian XIX century wealthy elite. Such fictional memoires, written from the grave, translate aspects of the "experienced real", emphasizing the moral failure, the injustices and privileges of a whole social class, personified in the figure of such character.

fiction; history; memory; narration; simulacra


ARTIGO

Machado de Assis: o historiador materialista e a tentativa de condensar na letra o vivido

Machado de Assis: the materialist historian and the attempt to condense life in writing

Luciana Brandão Leal

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

RESUMO

Este artigo propõe uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas e uma reflexão acerca das experiências e veleidades desse filho abastado da elite brasileira do século XIX. Tais memórias ficcionais, escritas de além-túmulo, traduzem aspectos do "real vivido", enfatizando a falência moral, as injustiças e os privilégios praticados por toda uma classe social, que é personificada na figura do protagonista.

Palavras-chave: ficção; história; memória; narração; simulacro.

ABSTRACT

This paper aims to read Memórias póstumas de Brás Cubas reflecting on the experiences and the velleities of this son of the Brazilian XIX century wealthy elite. Such fictional memoires, written from the grave, translate aspects of the "experienced real", emphasizing the moral failure, the injustices and privileges of a whole social class, personified in the figure of such character.

Keywords: fiction; history; memory; narration; simulacra.

O simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade

que oculta o que não existe. O simulacro é verdadeiro.

Eclesiastes 1 1 Citado por: BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Antropos,1981.

Jean Baudrillard, nas primeiras páginas do livro Simulacros e simulação, apresenta uma fábula de Borges como a mais bela alegoria da simulação. Nessa fábula, os cartógrafos do Império desenham um mapa de forma tão detalhada, que o mesmo acabava por cobrir o território representado – alegoria de como o duplo pode acabar se confundindo com o real.

"Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem."2 2 Idem p. 09. A primeira ação remete à presença, enquanto a segunda, à ausência. Para esclarecer o segundo caso, Baudrillard cita como exemplo alguém que simula ter uma doença, recolhe-se à cama e faz crer a todos que está mal. A simulação determina no sujeito algumas sugestões de sintomas. Logo, para Baudrillard, "fingir, ou dissimular, deixa intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário."3 3 Idem, p. 10.

É necessário refletir sobre a questão: "O simulador está ou não doente se produz verdadeiros sintomas?"4 4 Ibidem. O sujeito não pode ser tratado nem como doente, nem como não doente. Fica o impasse para a psicologia e para a medicina: já que qualquer sintoma pode ser simulado, então a doença também é simulável. Surgem então as doenças psicossomáticas, e os sintomas passam do domínio do orgânico para o domínio do inconsciente. Supõe-se que tal sintoma (agora no domínio do inconsciente) é verdadeiro, mais verdadeiro que o outro. O discurso de simulação não pode ser desmascarado, porque também não é falso. Limítrofe é a distinção entre o verdadeiro e o falso, do sintoma produzido e do sintoma autêntico. "Se ele imita tão bem um louco, é porque o é."5 5 Idem, p. 11.

A representação parte do princípio de equivalência do signo e do real – mesmo que tal equivalência seja utópica, é uma verdade primeira, um axioma fundamental. Ao contrário da representação, a simulação parte da utopia, do fundamento da equivalência, relegando toda referência. Sobre tal aspecto, reflete Baudrillard: "Enquanto que a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o próprio edifício da representação como simulacro."6 6 Idem, p 13.

O ficcional não tem em seu horizonte o compromisso com a verdade, entretanto, isso não significa dizer, absolutamente, que o ficcional abole a verdade. Luiz Costa Lima justifica que a contribuição do romance apenas se diferencia daquela que é esperada do filósofo e do cientista. "O operador destes, o conceito, tem por certo uma função crítica, auxiliar de sua 'vocação': em seu limite, estabelecer outra concepção e outra forma de atuação sobre o mundo."7 7 LIMA, Luiz Costa. Pensamento nos trópicos. Dispersa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 51. Já o texto ficcional não tem a função de nos "ensinar" melhores formas de convivência, e esse é seu mérito: "nunca operacionalizador, o texto ficcional só cumpre sua 'vocação' quando é potencialmente crítico."8 8 Ibidem. Como observa Costa Lima:

Sua possibilidade de ser decorativo só cessa quando a sua criticidade é atualizada. Desse ponto de vista, sua vantagem está na proximidade que guarda quanto às experiências do dia a dia. O que vale dizer, não tendo a verdade como seu horizonte, ele a reencontra em forma de questão. É a vida das personae que se põe em questão. Esta, observe-se, não é peculiaridade do romance, mas resultante do próprio distanciamento que todo o ficcional supõe. O ficcional se encontra com a verdade à medida que questiona as práticas da verdade.9 9 Ibidem.

São comuns na literatura latino-americana obras que tematizam o que não foi contemplado pela história oficial e se propõem a preencher as lacunas deixadas, recobrando o que poderia ter sido dito e não o foi. Romances que pretendem transmitir grandes e importantes revelações históricas, de surpreendente profundidade e amplitude. Como foi explicitado através das reflexões de Costa Lima (1991), não significa dizer que o romancista está ocupado em perseguir a verdade, o que é a função do historiador. Mas, ao representar o passado, os costumes e as ações dos homens, o romancista compartilha a tarefa do historiador, e o primeiro tem a seu favor a possibilidade de mostrar os fatos de forma mais sutil.

A objetividade da história não passa de um mito, uma vez que todo discurso é permeado pela ideologia de seu locutor. Em uma entrevista publicada no livro História e nova história, Georges Duby critica a abordagem puramente técnica proposta pelo historicismo, além de enfatizar que a busca por uma "verdade histórica objetiva" é uma tarefa vã. Duby assegura que "o historiador conta uma história, uma história que ele forja recorrendo a um certo número de informações concretas."10 10 DUBY, Georges. História e nova história. Tradução: Carlos da Veiga Ferreira. São Paulo: Teorema, 1986. p. 11. Assim, o estudioso recomenda que a nova história seja escrita a partir da reconstituição feita por "testemunhas", pois as narrativas constituem importantes relatos sobre a sociedade, as mentalidades e ideologias de uma época.

No célebre ensaio "Sobre o conceito de história", Walter Benjamin oferece uma distinção entre o historicista e o historiador materialista. Para ele, o historicista propõe uma imagem "eterna" do passado, enquanto o materialista faz desse passado "uma experiência única".11 11 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 231. O filósofo defende que nada pode ser perdido para a história, mesmo os pequenos acontecimentos. O historiador materialista sabe disso, portanto, não é aquele que narra uma história de sucessos, ao contrário, seus relatos explodem em fragmentos e estilhaços, em ruínas. "O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido."12 12 Idem, p. 224. A partir desse amontoado de ruínas, o historiador materialista escreve uma espécie de anti-história, a história da barbárie, sobre a qual se impôs aquela proveniente da cultura dominante. Jeanne Marie Gagnebin, em História e narração em Walter Benjamin, escreve:

O esforço do historiador materialista é no sentido de não deixar essa memória escapar, mas de zelar pela sua conservação, de contribuir na reapropriação desse fragmento de história esquecido pela historiografia dominante.13 13 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo; Campinas: Perspectiva; Editora da Unicamp, 1994. p. 72.

O autor berlinense destaca que articular historicamente o passado não se restringe a conhecê-lo como ele de fato foi. Significa, na verdade, apropriar-se de uma reminiscência, tal como um clarão, e fixar esta imagem do passado como ela se apresenta, acumulando "ruína sobre ruína".14 14 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, cit., p. 226. As revelações memorialísticas de Brás Cubas permitem a escrita da anti-história, aquela que ao invés de registrar o passado de forma definitiva, acabada e irremediável, busca o acréscimo de sentidos, conferindo-lhe caráter inacabado. Em "História de 15 dias", Machado de Assis antecipa o pensamento de Walter Benjamin:

Um contador de histórias é justamente o contrário do historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de história. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar.15 15 ASSIS, Machado de. História de 15 dias. Citado por: FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain. A morte em Memórias póstumas de Brás Cubas. In: FANTINI, Marli (Org.). Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 85.

É importante ressaltar que, na concepção de Alfredo Bosi, a historicidade que se inscreve em uma obra de ficção traz consigo dimensões da imaginação, da memória e do juízo crítico de seu autor. "Os olhos do romancista refletem os objetos de sua observação",16 16 BOSI, Alfredo. Machado de Assis – o enigma do olhar. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 14. mas valores culturais e estilos de pensar atravessam a visão de mundo do escritor, que, no caso de Machado de Assis, se afasta completamente da ideologia dominante, a fim de julgá-la. É por esse motivo que o romance é o reino das possibilidades, inclui tanto os fatos historicamente identificáveis quanto aqueles que poderiam ter acontecido, mas não aconteceram. O crítico literário esclarece:

A imaginação, mesmo quando parece mimética, é heurística: descobre na personagem de ficção virtualidades e modos de ser que a coisa empírica não entrega ao olhar supostamente realista e, na verdade, apenas rotulador.17 17 Idem, p. 32.

Os romances machadianos da segunda fase abordam diferentes etapas do desenvolvimento social e político do Brasil, no decorrer do século XIX. Em Memórias póstumas de Brás Cubas temos uma análise criteriosa de uma oligarquia bastante segura de si, fundamentada na escravidão e no domínio de classes – o que pôde ser mantido com certa tranquilidade, mesmo que tenha havido a necessidade da autojustificação. A obra, publicada em 1880/1881, buscou representar a classe senhorial no período em que vivera o ápice de seu poder e prestígio social, ou seja, de 1840 até a crise política que resultou na lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre.

Quem percorre tal narrativa identifica uma teia de relações sociais, familiares e da vida pública. São relações assimétricas, nas quais prevalece a disparidade. Alfredo Bosi propõe uma imagem bastante interessante para esclarecer melhor a lei imanente dessa formação social: uma escada composta por degraus de diferentes alturas, nos quais os indivíduos se posicionam conforme foram beneficiados pela "roda da fortuna"; ou seja, "em posições objetivamente assimétricas, nunca podem olhar-se ou falar-se como verdadeiros pares."18 18 Idem, p. 153.

Esta é uma estratégia para a compreensão das íntimas conexões que existem entre a obra de Machado de Assis e a história social do tempo que ela reflete. Sociedade em que o capital é adquirido comodamente através do trabalho escravo, e em que as relações de dependência qualificam-se como paternalistas. No livro Machado de Assis – historiador, Sidney Chalhoub propõe uma análise das estruturas de autoridade e exploração vigentes no Brasil no final do século XIX, e ressalta:

A ideologia de sustentação do poder senhorial incluía a imagem de que aquela era uma sociedade em que os pontos de referência – ou seja, de atribuição e formulação de consciência de lugares sociais – definiam-se todos na verticalidade. [...] No mundo construído por tal ideologia, mundo sonhado (pelos senhores), a medida do sujeito são as relações pessoais nas quais está inserido. Não existe lugar social fora das formas instituídas – formalmente, mas também pelo costume – de hierarquia, autoridade e dependência.19 19 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis – historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 60. Grifo do autor.

O paternalismo é a prática social que se ampara na autoridade dos senhores em relação aos servos, que podem ser escravos ou dependentes, desde que mantenham a linhagem hierárquica em que prevalece a submissão, combinando decisões arbitrárias e inquestionáveis com elementos sentimentais e concessões graciosas. Uma peculiaridade dessa prática é a tentativa de disfarçar a autoridade sob os véus da proteção, mas o que predomina é a vontade senhorial. Sidney Chalhoub reflete sobre esta tecnologia de dominação e faz considerações sobre o sistema paternalista:

O mundo era representado como mera expansão dessa vontade, e o poder econômico, social e político parecia convergir sempre para o mesmo ponto, situado no topo de uma pirâmide imaginária. O paternalismo, como qualquer outra política de domínio, possuía uma tecnologia própria, pertinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmação, práticas de dissimulação, estratégias para estigmatizar adversários sociais e políticos, eufemismos, e, obviamente, um vocabulário sofisticado para sustentar e expressar todas essas atividades.20 20 Idem, p. 58.

O império da vontade de Brás Cubas é aclarado quando o narrador descreve as personagens secundárias dona Plácida e o negro Prudêncio. A existência da primeira é marcada pelo sofrimento:

Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado pro outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez...21 21 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p. 161.

Além da vida de trabalhos, doenças e falta de perspectivas, dona Plácida serve ainda de alcoviteira para que Brás e Virgínia possam desfrutar do amor adúltero, em uma casinha alugada na Gamboa, planejada para manter as aparências. "Obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiros."22 22 Idem, p. 162. Essa passagem elucida a prática do "favor", bastante comum nas relações paternalistas. O acordo entre as personagens, edificado sob a ótica do "favor", é um exemplo do exercício do poder e da inviolabilidade da vontade senhorial, numa forma peculiar de domínio, na qual os caprichos de Brás ficam evidentes.

A arbitrariedade do narrador triunfa sobre a impotência das outras personagens, permitindo uma assimilação do antagonismo de classe em nosso país. A cáustica ironia que permeia a narrativa desnuda uma vida que é fruto da "conjunção de luxúrias vadias". "É de crer que dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para que me chamastes?".23 23 Idem, p. 161. No capítulo CXLIV, "Utilidade relativa", Brás Cubas considera a única utilidade de D. Plácida, pois, sem a interferência dela, "talvez os seus amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência."24 24 Idem, p. 242. A conclusão do protagonista é que a pobre mulher viera à vida exclusivamente para servir a suas veleidades. "Utilidade relativa", ele reflete, esbanjando ironia, "mas que diacho há absoluto nesse mundo?".25 25 Ibidem.

Com Prudêncio, nota-se como a estrutura social se incorpora ao indivíduo, pois essa personagem revela-se uma alegoria da mentalidade senhorial. O negro foi escravo de Brás Cubas e sofreu, na infância, humilhações e espancamentos da parte do senhor. A rotina de ambos, quando crianças, é assim descrita pelo protagonista:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – "ai, nhonhô!" – ao que eu retorquia: – "Cala a boca, besta!"26 26 Idem, p. 52.

A impunidade das diabruras do pequeno Brasinho é um traço recorrente, que se estende pela vida adulta. Aliás, quando adulto, ele não contradiz o "menino diabo" que sempre foi. Desde a infância, a educação do rebento é marcada pela ausência de limites e pela inexistência de qualquer lei ou autoridade. O Sr. Bento Cubas, diante das maldades do filho, pouco lhe repreendia, considerava que aquelas atitudes eram apenas travessuras e dava-lhe pancadinhas na cara enquanto exclamava: "Ah! brejeiro! Ah! brejeiro!".27 27 Idem, p. 53. O pai justificava que a educação permissiva do rebento era fruto de um novo sistema educacional, próprio e superior.

O tratamento dado ao escravo pelo pequeno "nhonhô" acentua, sobretudo, as atitudes agressivas do protagonista, além da classificação utilitária que o adulto Brás Cubas impõe às pessoas ao seu redor, como no caso de D. Plácida.

Prudêncio compra sua liberdade e, em determinada ocasião, Brás Cubas o encontra, depois de alforriado, e o vê açoitando um escravo que desobedecera a suas ordens. "Era um preto que vergalhava o outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!".28 28 Idem, p. 153. Após breve espanto, exclama o narrador: "Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos antes."29 29 Ibidem. Usando de sua autoridade senhorial, Brás Cubas pede a Prudêncio para parar logo com aquilo, no que é prontamente atendido: "Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede."30 30 Ibidem. Prudêncio não hesita em atender ao pedido de seu ex-dono, com quem não tinha mais nenhum tipo de dívida, nem tinha a obrigação de obedecer.

Como se observa na passagem acima, Prudêncio tinha passado a ser dono de escravo e, desfrutando dessa condição privilegiada, tratava outro ser humano como ele próprio fora tratado anteriormente, como um animal. "Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro."31 31 Idem, p. 154.

Eu, em criança, montava-o, punha-lhe o freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!32 32 Ibidem.

Sobre esses homens e mulheres encontrados no Brasil Império e denominados por Alfredo Bosi "avatares literários",33 33 BOSI, Alfredo. Machado de Assis – o enigma do olhar, cit, p. 17. temos as seguintes considerações de Plekhanov:

A psicologia das personagens adquire enorme importância aos nossos olhos, exatamente porque é a psicologia de classes sociais inteiras, ou pelo menos de certas camadas sociais; e, sendo assim, podemos verificar que os processos que se desenvolvem na alma das diferentes personagens são o reflexo consequente do movimento histórico a que pertencem.34 34 Citado por: BOSI, Alfredo. Machado de Assis – o enigma do olhar, cit, p. 13.

Essas palavras reforçam a ideia de que seja possível estabelecer as íntimas conexões entre o enredo de Memórias póstumas de Brás Cubas e a história social do tempo que ele reflete, como "um vasto exemplário de partes e subpartes de um conjunto historicamente dado – de que a narrativa seria documento."35 35 Idem, p. 14. O discurso-história é um documento diferente daquele que interessa à historiografia dominante, porque sua função é revelar a história oficial a contrapelo, e privilegiar o sentido que se perdeu.

Ao resgatar as lembranças do herói morto, o romance machadiano culmina na batalha ficcional contra a morte e o esquecimento; e, além de preencher as lacunas da história oficial, configura-se como uma forma de resistência à historiografia dominante. A narrativa sobrevive, pois as palavras inscritas no papel impedem a ação do tempo. O próprio ato de escrever já representa uma forma de resistência, deseja-se que o passado não se perca, escreve-se para não morrer, pois a concretização do texto desafia o fim. A partir dessa concepção, encontramos a justificativa de por que o herói precisa estar morto: a enunciação se dá de um local subterrâneo, representando as vozes degradadas e relegadas ao silenciamento.

O narrador de Memórias póstumas está localizado "à beira da vida", o que lhe permite apreciar os fatos transcorridos de uma perspectiva estranha, "sem jamais se ver em sintonia com os próprios atos e suas mais íntimas sensações."36 36 CARDOSO, Wilton. Tempo e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte,1958. p. 160. A dicção subterrânea confere o tom diferenciado às memórias de Brás Cubas: aquele sentimento amargo e áspero, sobre o qual o narrador chama atenção no prólogo, e que mediará o diálogo com o leitor, mostrando-lhe, ao final, um saldo negativo.

O texto machadiano oferece ao leitor uma "multiplicidade de máscaras", que podem ser retiradas conforme a visão de cada época. O desdobramento do defunto-autor encontra seu correlato no leitor, para quem ele transmite sua "teoria das edições humanas". A morte como experiência-limite garante a Brás Cubas o aval necessário para decodificar tudo aquilo que permanecera insondável em vida. A partir do momento que o protagonista decide narrar suas memórias, partilhando suas experiências com o leitor, ele não apenas se desnuda frente ao seu interlocutor, como também, através da "projeção especular", permite que o leitor reflita sobre si mesmo.

Como o viajante que retorna mais sábio dos lugares por onde passou, ou o velho que traz em si as experiências vividas, Brás Cubas pode partilhar o conhecimento resultante da passagem de uma condição para outra, "com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século";37 37 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p. 34. e ganha autoridade para pronunciar-se sobre sua própria existência e sobre a condição humana. "O conhecimento recapitulativo lhe mostra sua face multiplicada entre os homens, seus julgamentos também os contaminam."38 38 SARAIVA, Juracy Assmann. O circuito das memórias em Machado de Assis. São Paulo: Edusp,1993, p. 54.

Mesmo partindo da intenção poética comprovada no texto, e considerando que essa é a instância decisiva para a interpretação da obra literária, acredita-se que há, em Memórias póstumas de Brás Cubas, verdadeiros sintomas de uma arguta leitura histórica e social. A finalidade deste estudo não se limita à identificação de possíveis correspondências entre o mundo da ficção, das pseudomemórias de Brás Cubas, e o mundo real, das supostas revelações sobre a sociedade brasileira do século XIX. Entretanto, ao se entregar ao mundo da ficção, baseado no conceito de simulacro, o leitor poderá surpreender o caráter específico de sua verdade, encontrar fora da realidade o segredo da própria realidade.

Através desse "simulacro de vida confessada", Machado de Assis, como genuíno homem de seu meio e de seu tempo, busca expressar, sob a forma de arte literária, a verdade histórica e social – aproximando, assim, a obra literária e o real vivido.

A leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas é sempre um exercício "radical", no sentindo estrito do termo, o de tomar as coisas pela raiz, ou seja, em suas verdades mais profundas e significativas. O drama que aí se encena, mesmo tratando de uma sociedade com questões e particularidades bem definidas, e reafirmando assim o compromisso de Machado de Assis com seu tempo e seu país, é universal, "podendo, pois, situar-se em tantos tempos e lugares quantos são aqueles nos quais se encontra o ser humano", como nos diz Melânia Aguiar.39 39 AGUIAR, Melânia Silva de. Entre o contingente e o universal. Texto inédito, a sair em 2013.

Encontramos, então, uma possível resposta para a célebre questão sugerida por Ítalo Calvino: por que ler os clássicos? "Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado."40 40 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 10. Um clássico da literatura se constitui como tal pela constante tensão entre questão e resposta, entre problema e solução, que pode provocar, apesar das sucessivas leituras, uma nova compreensão, e determinar a retomada do diálogo do presente com o passado. Na verdade, como nos diz Calvino, "um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer."41 41 Idem, p. 11.

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Recebido: 06.09.2013

Aprovado: 18.11.2013

Luciana Brandão Leal é mestre em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É professora de língua portuguesa e suas literaturas. Autora de diversos artigos acadêmicos publicados em diferentes revistas nacionais. Integra os Grupos de Pesquisas: "GEPOM – poesia e modernidade na América Latina" e "A educação estética do homem: o texto literário e a formação humanística", ambos coordenados por professores da PUC Minas. E-mail: <luciana_brandao@hotmail.com>.

  • AGUIAR, Melânia Silva de. Entre o contingente e o universal. Texto inédito, a sair em 2013.
  • ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Estabelecimento do texto, vocabulário, notas, estudos e comentários de Letícia Malard. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
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  • ______. Sobre o conceito de história. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 223-233.
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  • 1
    Citado por: BAUDRILLARD, Jean.
    Simulacros e Simulação. Lisboa: Antropos,1981.
  • 2
    Idem p. 09.
  • 3
    Idem, p. 10.
  • 4
    Ibidem.
  • 5
    Idem, p. 11.
  • 6
    Idem, p 13.
  • 7
    LIMA, Luiz Costa.
    Pensamento nos trópicos. Dispersa demanda II. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 51.
  • 8
    Ibidem.
  • 9
    Ibidem.
  • 10
    DUBY, Georges.
    História e nova história. Tradução: Carlos da Veiga Ferreira. São Paulo: Teorema, 1986. p. 11.
  • 11
    BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______.
    Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 231.
  • 12
    Idem, p. 224.
  • 13
    GAGNEBIN, Jeanne Marie.
    História e narração em Walter Benjamin. São Paulo; Campinas: Perspectiva; Editora da Unicamp, 1994. p. 72.
  • 14
    BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, cit., p. 226.
  • 15
    ASSIS, Machado de. História de 15 dias. Citado por: FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain. A morte em
    Memórias póstumas de Brás Cubas. In: FANTINI, Marli (Org.).
    Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 85.
  • 16
    BOSI, Alfredo.
    Machado de Assis – o enigma do olhar. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 14.
  • 17
    Idem, p. 32.
  • 18
    Idem, p. 153.
  • 19
    CHALHOUB, Sidney.
    Machado de Assis – historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 60. Grifo do autor.
  • 20
    Idem, p. 58.
  • 21
    ASSIS, Machado de.
    Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p. 161.
  • 22
    Idem, p. 162.
  • 23
    Idem, p. 161.
  • 24
    Idem, p. 242.
  • 25
    Ibidem.
  • 26
    Idem, p. 52.
  • 27
    Idem, p. 53.
  • 28
    Idem, p. 153.
  • 29
    Ibidem.
  • 30
    Ibidem.
  • 31
    Idem, p. 154.
  • 32
    Ibidem.
  • 33
    BOSI, Alfredo.
    Machado de Assis – o enigma do olhar, cit, p. 17.
  • 34
    Citado por: BOSI, Alfredo.
    Machado de Assis – o enigma do olhar, cit, p. 13.
  • 35
    Idem, p. 14.
  • 36
    CARDOSO, Wilton.
    Tempo e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte,1958. p. 160.
  • 37
    ASSIS, Machado de.
    Memórias póstumas de Brás Cubas, cit., p. 34.
  • 38
    SARAIVA, Juracy Assmann.
    O circuito das memórias em Machado de Assis. São Paulo: Edusp,1993, p. 54.
  • 39
    AGUIAR, Melânia Silva de. Entre o contingente e o universal. Texto inédito, a sair em 2013.
  • 40
    CALVINO, Ítalo.
    Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 10.
  • 41
    Idem, p. 11.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Set 2013
    • Aceito
      18 Nov 2013
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