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Dor total e teoria do conforto: implicações no cuidado ao paciente em cuidados paliativos oncológicos

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre possíveis conexões entre a Teoria do Conforto de Katharine Kolcaba e o conceito de Dor Total de Cicely Saunders e suas implicações no cuidado ao paciente em cuidados paliativos oncológicos.

Método:

Estudo teórico-reflexivo baseado em revisão de literatura realizada em maio de 2020, nas bases de dados PubMed e LILACS que buscou responder à questão: “Existem conexões teórico-conceituais entre a Teoria do Conforto de Kolcaba e o conceito de Dor Total de Saunders?”

Resultados:

O conhecimento dos conceitos apresentados permite redirecionar o foco do cuidado para ações individualizadas com fortalecimento do paciente e sua participação nas escolhas das intervenções de conforto.

Conclusões:

Compreender as conexões entre o conceito e teoria apresentados proporciona ao paciente em cuidados paliativos oncológicos um cuidado individualizado e qualificado, focado na pessoa e não na doença podendo contribuir para uma maior resolutividade das intervenções de enfermagem direcionadas para o alívio do sofrimento.

Palavras-chave:
Cuidados de enfermagem; Conforto do paciente; Cuidados paliativos na terminalidade da vida; Cuidados paliativos; Dor

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the possible connections between Katharine Kolcaba's Theory of Comfort and Cicely Saunders’s concept of Total Pain and the implications to the care of the oncology palliative care patient.

Method:

Theoretical reflection based on a literature review carried out in May 2020, in the PubMed and LILACS databases, which sought to answer the question: “Are there any theoretical-conceptual connections between Kolcaba's Theory of Comfort and the concept of Total Pain by Saunders?”

Results:

The knowledge of the concepts presented allows redirecting the focus of care towards individualized actions to strengthen the patient and his participation in the choices of comfort interventions.

Conclusion:

Understanding the connections between the concept and theory presented provides the patient in oncology palliative care with individualized and qualified care, focused on the person and not on the disease and can contribute to a greater effectiveness of nursing interventions aimed at the relief of suffering.

Keywords:
Nursing care; Patient comfort; Hospice care; Palliative care; Pain

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar acerca de las posibles conexiones entre la Teoría del Confort de Katharine Kolcaba, el concepto de Dolor Total de Cicely Saunders y sus implicaciones para la atención al paciente en cuidados paliativos oncológicos.

Método:

Estudio teórico-reflexivo basado en una revisión de la literatura realizada en mayo de 2020, en las bases de datos PubMed y LILACS, que buscaba dar respuesta a la pregunta: “Existen conexiones teórico-conceptuales entre la Teoría del Confort de Kolcaba y el concepto de Dolor Total de Saunders?"

Resultados:

El conocimiento de los conceptos presentados permite reorientar el foco de atención hacia acciones individualizadas para fortalecer al paciente y su participación en las elecciones de intervenciones de confort.

Conclusiones:

La comprensión de las conexiones entre el concepto y la teoría presentada proporciona al paciente en cuidados oncológicos paliativos un cuidado individualizado y calificado, enfocado en la persona y no en la enfermedad y puede contribuir a una mayor resolución de las intervenciones de enfermería orientadas al alivio del sufrimiento.

Palabras-clave:
Atención de enfermería; Comodidad del paciente; Cuidados paliativos al final de la vida; Cuidados paliativos; Dolor

INTRODUÇÃO

Estima-se que, no Brasil, no triênio 2020-2022, ocorram anualmente 625 mil casos novos de câncer (450 mil se não forem considerados os casos de câncer de pele não melanoma). Apontado como importante problema de saúde pública, o câncer encontra-se entre as quatro causas principais de morte da população brasileira antes dos 70 anos de idade. O processo de envelhecimento, o crescimento populacional e o aumento de fatores de risco, associados ao desenvolvimento socioeconômico, com mudanças no estilo de vida da população e engajamento em comportamentos associados ao sedentarismo e alimentação inapropriada, estão entre os fatores responsáveis pelo aumento de sua incidência e mortalidade11. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (BR). Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2019 [citado 2020 jun 10]. Disponível em: Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/estimativa-2020-incidencia-de-cancer-no-brasil.pdf
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. Principalmente nos países menos desenvolvidos, estima-se que uma grande proporção dos pacientes com câncer seja diagnosticada, já em estágios avançados da doença, necessitando de acompanhamento de uma equipe de cuidados paliativos22. World Health Organization (CH). Palliative Care. Cancer control: knowledge into action: WHO guide for effective programmes. Geneva: WHO; 2007 [cited 2020 Jun 20]. Available from: https://www.afro.who.int/publications/palliative-care-cancer-control-knowledge-action-who-guide-effective-programmes
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) .

Os cuidados paliativos devem fazer parte dos cuidados continuados integrados ao âmbito da Redes de Atenção à Saúde, seguindo um modelo de atenção compartilhada e serem ofertados na Atenção Básica, Domiciliar e Hospitalar tanto em nível ambulatorial quanto em serviços de urgência e emergência responsáveis pelo alívio dos sintomas agudizados33. Ministério da Saúde (BR). Comissão Intergestores Tripartite. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União. 2018 nov 23 [cited 2020 Jun 20];155(225 Seção 1):276. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=23/11/2018&jornal=515&pagina=276
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. A atuação do enfermeiro, em todas as modalidades de atenção, reforça a importância de sua participação na equipe com um planejamento e implementação de ações em prol da qualidade da assistência prestada e da construção de um saber científico. A presença de uma equipe multiprofissional mostra-se essencial quanto à complexidade e às várias dimensões implicadas neste cuidado44. Maciel MGS. Organização de serviços de cuidados paliativos. In: Gomes L, editor. Manual de cuidados paliativos. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Meridional; 2012. p. 94-110. .

Toda pessoa afetada por uma doença que ameace a vida, aguda ou crônica, é elegível para os cuidados paliativos a partir do diagnóstico dessa condição33. Ministério da Saúde (BR). Comissão Intergestores Tripartite. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União. 2018 nov 23 [cited 2020 Jun 20];155(225 Seção 1):276. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=23/11/2018&jornal=515&pagina=276
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. A inclusão dos cuidados paliativos de forma precoce, na prática clínica, por vezes, juntamente com o tratamento modificador da doença, favorece não só uma abordagem multidimensional de forma mais efetiva como também melhora a qualidade de vida, podendo contribuir para um aumento da própria expectativa de vida55. Murray SA, Kendall M, Mitchell G, Moine S, Amblàs-Novellas J, Boyd K. Palliative care from diagnosis to death. BMJ. 2017;356:j878. doi: https://doi.org/10.1136/bmj.j878
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.

Em 2002, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu os cuidados paliativos como sendo “uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, pela prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual”6:xv-xvi6. World Health Organization (CH). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2nd ed. Geneva: WHO; 2002 [cited 2020 Jun 10]. p. xv-xvi. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42494/9241545577.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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. Essa definição reafirma a importância do tratamento de outros sintomas angustiantes, além da dor, assim como o alívio do sofrimento, tendo como meta principal a promoção da qualidade de vida e bem-estar do paciente66. World Health Organization (CH). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2nd ed. Geneva: WHO; 2002 [cited 2020 Jun 10]. p. xv-xvi. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42494/9241545577.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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Apesar da abordagem dos cuidados paliativos ter como meta prover conforto e dignidade aos pacientes e suas famílias, muitos pacientes, enfrentando doenças avançadas, ainda experimentam desconforto por continuarmos a priorizar o conforto físico em detrimento de outros aspectos inerentes ao processo de adoecimento77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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A dor física continua tendo posição de destaque em publicações científicas, e quando se torna a principal meta no plano de cuidados, podemos negligenciar outros aspectos intrínsecos à multidimensionalidade desse fenômeno que estariam implicados com a construção do conceito de Dor Total por Cicely Saunders77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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-88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. .

Kolcaba define conforto em sua teoria como “uma experiência imediata de ser fortalecido por ter as necessidades de alívio, tranquilidade e transcendência atendidos em quatro contextos: físico, psicoespiritual, social e ambiental”99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Neste cenário, esta produção teórica visa refletir sobre as possíveis conexões entre o conceito de Dor Total de Cicely Saunders e a Teoria do Conforto de Katharine Kolcaba e suas implicações no cuidado ao paciente em cuidados paliativos oncológicos.

MÉTODO

Trata-se de uma produção teórico-reflexiva, que buscou responder a seguinte questão de pesquisa: “Existem conexões teórico-conceituais entre a Teoria do Conforto de Katharine Kolcaba e o conceito de Dor Total de Cicely Saunders? Para atender a essa questão, foi realizada uma revisão da literatura científica nacional e internacional, no período de maio de 2020, nas bases de dados eletrônicas PubMed e LILACS. Para a seleção dos descritores utilizados, foi implementada a consulta ao Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): comfort theory and pain and palliative care. Foi utilizado também o filtro autor, com emprego dos termos: Kolcaba, Katharine e Saunders, Cicely, em busca de suas obras seminais. Constituíram critérios de inclusão: artigos com abordagem às temáticas dor e conforto, publicados no recorte temporal de 2015-2020, nos idiomas: português, inglês e espanhol. Foram excluídas publicações com temáticas sem relação com cuidados paliativos oncológicos. Considerando esses critérios, foram identificadas seis publicações77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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,1070. Nuraini T, Andrijono A, Irawaty D, Umar J, Gayatri D. Spirituality-focused palliative care to improve Indonesian breast cancer patient comfort. Indian J Palliat Care. 2018;24(2):196-201. doi: https://doi.org/10.4103/IJPC.IJPC_5_18
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-1414. Lafond DA, Bowling S, Fortkiewicz FM, Reggio C, Hinds PS. Integrating the Comfort TheoryTM into pediatric primary palliative care to improve access to care. J Hosp Palliat Nurs. 2019;21(5):382-9. doi: https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000538
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e duas obras próprias das autoras88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. -99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Após a leitura e análise crítica do material, foram tecidas reflexões sobre as implicações dessas conexões para o paciente em cuidados paliativos oncológicos. Para isso, foram incluídos documentos da Organização Mundial de Saúde, do Instituto Nacional de Câncer e da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, referências para o desenvolvimento científico, ensino, divulgação e elaboração de diretrizes para a implementação da prática paliativa11. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (BR). Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2019 [citado 2020 jun 10]. Disponível em: Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/estimativa-2020-incidencia-de-cancer-no-brasil.pdf
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-22. World Health Organization (CH). Palliative Care. Cancer control: knowledge into action: WHO guide for effective programmes. Geneva: WHO; 2007 [cited 2020 Jun 20]. Available from: https://www.afro.who.int/publications/palliative-care-cancer-control-knowledge-action-who-guide-effective-programmes
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,44. Maciel MGS. Organização de serviços de cuidados paliativos. In: Gomes L, editor. Manual de cuidados paliativos. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Meridional; 2012. p. 94-110. . A Resolução nº 41 de 31 de outubro de 2018 que dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) serviu de referência para a compreensão do cenário nacional atual33. Ministério da Saúde (BR). Comissão Intergestores Tripartite. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União. 2018 nov 23 [cited 2020 Jun 20];155(225 Seção 1):276. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=23/11/2018&jornal=515&pagina=276
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.

A literatura identificada possibilitou a construção de três categorias temáticas: “Cicely Saunders e o conceito de dor total”, “Katharine Kolcaba e a teoria do conforto” e “Dor e conforto: singularidade do cuidado”. Proporcionando assim a análise crítica dos conceitos, a aplicação de seus referenciais na prática e a reflexão sobre interconexões entre as obras de Cicely Saunders88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. e Katharine Kolcaba99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003. e possíveis implicações para o cuidado paliativo oncológico.

CICELY SAUNDERS E O CONCEITO DE DOR TOTAL

Considerada pioneira no desenvolvimento do Movimento Hospice moderno, Cicely Saunders se qualifica como enfermeira, assistente social e finalmente como médica em 1957, estando essas diferentes experiências e habilidades profissionais no cerne de suas reflexões. Nessa época, a maioria das instituições dedicadas ao cuidado aos pacientes em fim de vida tinham preocupações focadas nos aspectos religiosos, filantrópicos e morais, com pouco envolvimento médico. Seu interesse com relação ao cuidado do paciente com câncer começou a despontar em 1948, ao cuidar de um emigrante judeu com câncer de reto. A partir de suas conversas, surgiu a ideia de um local em que pessoas como ele pudessem encontrar paz em seus últimos dias88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. .

Ao se qualificar como médica, trabalhou pelo desenvolvimento dessa nova modalidade de cuidado, buscando a integração da prática clínica com a pesquisa e o ensino sempre em prol do rigor científico, de forma compassiva, sensível, consciente do estado de vulnerabilidade inerente ao ser humano e da importância da valorização da espiritualidade. Seu trabalho com uma das mais pobres comunidades de Londres, no Hospice St. Joseph, mostra-se essencial para o início de um movimento mundial que transformaria as ideias e ações sobre o cuidado ao paciente em fim de vida e que culminaria na fundação do Hospice St. Christopher em julho de 196788. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. .

Suas reflexões quanto à multidimensionalidade do conceito de dor aparecem já em suas primeiras publicações, abrangendo não só os sintomas físicos, mas o sofrimento mental, o contexto social e biográfico em que o paciente estivesse inserido e suas dificuldades emocionais, sempre com ênfase à importância da escuta e compreensão da experiência do sofrimento a partir de uma abordagem holística88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. .

Sua escuta atenta, seguida de uma análise cuidadosa dos registros, possibilitou a identificação das dimensões física, emocional, social e espiritual descritas em seu conceito, evidenciando questões relacionadas à necessidade de segurança e ao reconhecimento de valores que transcendam a vida cotidiana. Tais achados reforçam a importância de uma abordagem de cuidado que englobe os vários aspectos inerentes ao ser humano, de forma não reducionista. A partir dessas escutas, cunha a expressão Dor Total, considerando as diversas dimensões do ser humano implicadas na dor. A introdução do conceito “Dor Total”, em suas publicações, acontece em 1964, baseada na reflexão sobre uma fala de uma paciente, quando, após ter sido questionada sobre sua dor respondeu: “All of me is wrong”88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. ,1515. Clark, D. ‘Total pain’: the work of Cicely Saunders and the maturing of a concept [Internet]. End of life studies Blog. Dumfries: University of Glasgow; 2014 Sep 24 [cited 2020 Jun 10]. Available from: http://endoflifestudies.academicblogs.co.uk/total-pain-the-work-of-cicely-saunders-and-the-maturing-of-a-concept/#_edn1
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A abrangência desse conceito permite a compreensão de que a dor é maior que as sensações físicas, e sua compreensão pode ser a chave para prover acesso a outras dimensões implicadas com o sofrimento (Figura 1), demandando múltiplas intervenções, para o seu controle e um cuidado implicado com a integralidade da pessoa, provendo dignidade e conforto até os últimos dias de sua vida88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. ,1515. Clark, D. ‘Total pain’: the work of Cicely Saunders and the maturing of a concept [Internet]. End of life studies Blog. Dumfries: University of Glasgow; 2014 Sep 24 [cited 2020 Jun 10]. Available from: http://endoflifestudies.academicblogs.co.uk/total-pain-the-work-of-cicely-saunders-and-the-maturing-of-a-concept/#_edn1
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Figura 1 -
Dor Total

KATHARINE KOLCABA E A TEORIA DO CONFORTO

Katharine Kolcaba finalizou sua graduação como enfermeira, em 1965, no Hospital Escola St Luke em Cleveland. Iniciou o mestrado, em 1987, já trabalhando em uma unidade de pacientes com demência (Alzheimer), no qual começou a teorizar sobre os possíveis efeitos do conforto no comportamento de seus pacientes. A partir de sua observação de que a menor mudança física ou emocional, imposta aos internos, poderia resultar em uma ruptura em seu equilíbrio, o que acarretaria, em períodos de agitação, brigas, recusas em cooperar e até mesmo momentos de violências e que, quando esses internos estavam, em uma situação de “conforto”, tornavam-se mais sociáveis e cooperantes, demonstrando mais contentamento, passou a denominar as ações que estariam sendo implementadas na unidade pelas enfermeiras, para prevenir ou tratar tais situações, como “intervenções ou medidas de conforto”99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Seu contato com a enfermagem oncológica aconteceu, durante a doença de seu irmão, um melanoma maligno, crescendo seu interesse ao que chamaria de “conforto holístico dos pacientes com câncer”. Sua dissertação, um estudo experimental com mulheres com câncer de mama, tem como objetivo medir a efetividade de uma intervenção de imaginação guiada no aumento do conforto dessas mulheres. Acredita poder demonstrar uma mudança no conforto mais facilmente, em um cenário de oncologia cujas necessidades de conforto sejam extremamente agudas99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Vários anos de análise, definição e operacionalização sobre a extensão do conforto do paciente, em diferentes circunstâncias, resultaram na construção de uma definição técnica do conceito multidimensional de conforto, como sendo “uma experiência imediata de ser fortalecido por ter as necessidades de alívio, tranquilidade e transcendência atendidos em quatro contextos: físico, psicoespiritual, social e ambiental”, com uma abrangência maior que a simples ausência de dor99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

A partir dessa definição, descreve os três tipos de conforto: alívio como sendo a experiência de um paciente que teve uma necessidade específica de conforto atendida, tranquilidade como um estado de calma, contentamento ou bem-estar e transcendência como o estado em que se eleva acima dos problemas ou da dor, quando a pessoa tem competência ou potencial para planejar sua vida, resolver problemas, ou seja, possui a capacidade de transcender situações de estresse, considerado o nível mais elevado do conforto99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Dentre os contextos, em que a experiência do conforto pode ser vivenciada, de acordo com sua teoria, destacam-se o contexto físico, que está conectado a sensações corporais e mecanismos homeostáticos que podem ou não estar relacionados a diagnósticos específicos; o contexto psicoespiritual, que dá significado à vida de um indivíduo e implica em sua autoestima, sexualidade, conceito de si e sua relação com uma ordem ou ser superior e o contexto ambiental, relativo ao ambiente externo, condições e influências. Já o contexto social refere-se a relacionamentos interpessoais, familiares e sociais, incluindo finanças, educação, suporte, história familiar, tradições, língua, costumes99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Descreve, ainda, as intervenções usadas para proporcionar o conforto, como sendo intervenções técnicas aquelas realizadas para manter ou recuperar funções fisiológicas e prevenir complicações (administrar analgésico, monitorar sinais vitais e níveis sanguíneos); coaching que constituem intervenções planejadas para aliviar ansiedade, fornecer segurança e informação, ter uma escuta ativa e ajudar em um planejamento realístico para a recuperação, integração ou morte e, por fim, a intervenção que define como sendo “alimento para a alma” que tem como objetivo a transcendência, quando o alívio e tranquilidade não podem mais ser alcançados: massagem, ambiente tranquilo e de paz, musicoterapia, imaginação guiada, resgate de memórias (valorizado como um ser biográfico)99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Com base na identificação de uma necessidade de saúde não atendida, o enfermeiro pode planejar uma intervenção que atenda a essa necessidade, proporcionando assim o conforto esperado. As variáveis que podem influenciar nesse cuidado (famílias disfuncionais, falta de recursos financeiros, diagnósticos devastadores, comprometimento cognitivo) devem ser levadas em consideração no planejamento das ações e na determinação dos resultados imediatos ou subsequentes. Com o conforto aumentado, os pacientes sentem-se fortalecidos, para se engajarem em comportamentos de “busca de saúde e bem-estar” que podem se expressar por comportamentos internos (mecanismos homeostáticos estáveis, melhora da imunidade, cura), externos (melhora do autocuidado, reabilitação, adesão ao plano de cuidados) ou mesmo alcançando a “boa morte”, uma morte pacífica e sem dor99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.. A Figura 2 descreve as etapas desse processo.

Figura 2 -
Teoria do Conforto

DOR E CONFORTO: SINGULARIDADE DO CUIDADO

Os contextos que integram a Teoria do Conforto (físico, psicoespiritual, ambiental e social) em que o paciente pode experimentar alívio, tranquilidade ou transcendência, assim como as dimensões que compõem o conceito de Dor Total, integram a abordagem dos Cuidados Paliativos descrita pela OMS. Sendo o conforto a meta principal dessa abordagem, a compreensão da complexidade e singularidade inerentes a esses conceitos é essencial para o planejamento de um cuidado individualizado ao paciente em cuidados paliativos oncológicos22. World Health Organization (CH). Palliative Care. Cancer control: knowledge into action: WHO guide for effective programmes. Geneva: WHO; 2007 [cited 2020 Jun 20]. Available from: https://www.afro.who.int/publications/palliative-care-cancer-control-knowledge-action-who-guide-effective-programmes
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,66. World Health Organization (CH). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2nd ed. Geneva: WHO; 2002 [cited 2020 Jun 10]. p. xv-xvi. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42494/9241545577.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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-77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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,99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.).

Apesar do objetivo dos cuidados paliativos ser o conforto, os pacientes continuam experimentando diferentes formas de desconforto, tanto a nível físico como também social, espiritual e ambiental77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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,1111. Coelho A, Parola V, Sandgren A, Fernandes O, Kolcaba K, Apostolo J. The effects of guided imagery on comfort in palliative care. J Hosp Palliat Nurs. 2018;20(4):392-9. doi: https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000460
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. A partir da compreensão da multidimensionalidade da dor, da subjetividade da percepção do que venha a ser conforto e quais suas implicações no cuidado oferecido ao paciente em cuidados paliativos, podem-se implementar ações de forma singular e individualizadas em que o modelo de cuidado seja adequado às necessidades e valores específicos de cada paciente.

Estudos têm demonstrado inconsistência e lacunas no conhecimento de enfermagem sobre o conceito de conforto, que tem sido definido de forma reducionista, predominantemente relacionado à dimensão física. A literatura continua a dar maior atenção ao conforto físico e pouca atenção a outros aspectos comumente observados entre esses pacientes, além de ignorar a experiência de conforto sob sua perspectiva77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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,1212. Pinto SMO, Berenguer SMAC, Martins JCA, Kolcaba K. Cultural adaptation and validation of the Portuguese End of Life Spiritual Comfort Questionnaire in Palliative Care patients. Porto Biomed J. 2016;1(4):147-52. doi: https://doi.org/10.1016/j.pbj.2016.08.003
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.

Esse déficit no conhecimento gera dificuldades na mensuração do conforto que, muitas vezes, não inclui a dor existencial. Uma avaliação acurada é importante tanto na prática clínica, para a avaliação da efetividade de intervenções de enfermagem, quanto para fins de pesquisa, o que pode impactar na sensação de bem-estar e qualidade de vida do paciente em cuidados paliativos oncológicos1212. Pinto SMO, Berenguer SMAC, Martins JCA, Kolcaba K. Cultural adaptation and validation of the Portuguese End of Life Spiritual Comfort Questionnaire in Palliative Care patients. Porto Biomed J. 2016;1(4):147-52. doi: https://doi.org/10.1016/j.pbj.2016.08.003
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.

A singularidade da percepção do conforto é destacada em um estudo, a partir de relatos de participantes sobre o que significa para cada um estar confortável ou desconfortável, apresentando resultados da experiência de conforto para além da satisfação das necessidades físicas77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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. Os contextos social, familiar, econômico, político e espiritual estão diretamente implicados com a qualidade de vida dos pacientes e familiares. Redes familiares complexas, dificuldades para a obtenção de opioides, barreiras para se conseguir avaliação e tratamento médico, baixa autoestima causada por questões relacionadas à evolução da doença foram algumas situações identificadas, em estudo realizado no Sul do Brasil, como responsáveis por aumento de dor e sofrimento1313. Corrêa SR, Mazuko C, Clark D. Primary palliative care in southern Brazil: the legacy of Cicely Saunders [editorial]. Palliat Care Soc. Pract. 2019;12:1178224219825874. doi: https://doi.org/10.1177/1178224219825874
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. Tais situações reforçam a relevância de uma avaliação e um cuidado que contemplem as várias dimensões do ser humano.

Os dois conceitos apresentados emergem de práticas envolvidas com a escuta, com a observação clínica atenta, com reavaliações contínuas do processo de cuidar e com a valorização da percepção pessoal do paciente acerca da totalidade de sua dor e de como buscar e conseguir conforto. Tanto Saunders como Kolcaba reforçam a importância da antecipação da situação geradora de desconforto, sem que haja necessidade de o paciente solicitar pela intervenção de alívio e como, a partir desta sensação de conforto adquirida, passe a se sentir fortalecido e a participar mais ativamente nas relações sociais e familiares e em comportamentos saudáveis99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.. Um desconforto pode gerar outra sensação desconfortável, não necessariamente dolorosa. Buscar o conforto quando a dor física não é a questão premente demanda uma compreensão do conceito de Dor Total assim como do entendimento da diferença entre alívio da dor e conforto total.

Prevenção e alívio do sofrimento, com uma identificação precoce, como indicado pela OMS, antecipação da queixa do paciente e do fator de desconforto nos vários contextos, (re)avaliações contínuas e implementações de intervenções que proporcionem conforto, em suas três formas, para problemas de natureza física, psicossocial ou espiritual são aspectos importantes em um cuidado centrado no paciente22. World Health Organization (CH). Palliative Care. Cancer control: knowledge into action: WHO guide for effective programmes. Geneva: WHO; 2007 [cited 2020 Jun 20]. Available from: https://www.afro.who.int/publications/palliative-care-cancer-control-knowledge-action-who-guide-effective-programmes
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,66. World Health Organization (CH). National cancer control programmes: policies and managerial guidelines. 2nd ed. Geneva: WHO; 2002 [cited 2020 Jun 10]. p. xv-xvi. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42494/9241545577.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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,88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. -99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.. Um planejamento com base na percepção do paciente de necessidades não atendidas, em que consideramos a complexidade e subjetividade de sua experiência pessoal, pode refletir no resultado das intervenções de enfermagem de forma positiva, com consequente aumento do conforto77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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.

Em cenários no quais prevaleçam circunstâncias não susceptíveis de mudança, como em situações de doenças avançadas ou em contextos hospitalares, torna-se um desafio alcançar o Conforto Total. A meta passa a ser o conforto como tranquilidade, com sensações de contentamento ou bem-estar, ou mesmo como transcendência, uma forma de se colocar acima da dor física ou de outros problemas, contribuindo para que o paciente preserve dentro do possível sua autonomia e implemente ações de autocuidado99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.,1414. Lafond DA, Bowling S, Fortkiewicz FM, Reggio C, Hinds PS. Integrating the Comfort TheoryTM into pediatric primary palliative care to improve access to care. J Hosp Palliat Nurs. 2019;21(5):382-9. doi: https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000538
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-1515. Clark, D. ‘Total pain’: the work of Cicely Saunders and the maturing of a concept [Internet]. End of life studies Blog. Dumfries: University of Glasgow; 2014 Sep 24 [cited 2020 Jun 10]. Available from: http://endoflifestudies.academicblogs.co.uk/total-pain-the-work-of-cicely-saunders-and-the-maturing-of-a-concept/#_edn1
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). Um padrão de cuidado proativo pode ser estabelecido, se as necessidades de conforto forem acessadas, nos quatro contextos de forma holística, interconectadas, como uma Gestalt. O todo, ou Conforto Total seria então significativamente maior que a soma das partes isoladas99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

A dificuldade de identificar as dimensões relacionadas à Dor Total, tanto pelo paciente quanto pelo enfermeiro pode levar à valorização apenas de aspectos físicos, descritos, muitas vezes, como desconforto físico. Da mesma forma, a interconexão existente entre as necessidades de conforto pode dificultar ao paciente distinguir exatamente qual componente está causando a dor, se físico, psicossocial ou espiritual. Sendo assim, o resultado esperado com a intervenção de conforto pode não ser alcançado de forma efetiva. Mas, ao atendermos o aspecto referido pelo paciente como prioritário, a mesma interconexão de seus componentes pode levar a um alívio, relaxamento ou, em muitas situações, a uma transcendência, que irá refletir em melhora de sua qualidade de vida99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Implementar ações de conforto baseadas nas necessidades sentidas e relatadas pelo paciente, permite que este se sinta fortalecido e encorajado a exercitar suas próprias escolhas e a partir delas definir quais intervenções irão aumentar sua sensação de conforto, o que pode ajudá-lo a passar por situações de crises, dificuldades e mesmo tratamentos muitas vezes não desejados, mas necessários99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003.. Saunders constata uma redução da solicitação de analgesia pelos pacientes, ao se sentirem ouvidos e compreendidos, um cuidado focado na importância da escuta e compreensão da experiência do sofrimento88. Clark D. Cicely Saunders: a life and legacy. Oxford: Oxford University Press; 2018. ,1515. Clark, D. ‘Total pain’: the work of Cicely Saunders and the maturing of a concept [Internet]. End of life studies Blog. Dumfries: University of Glasgow; 2014 Sep 24 [cited 2020 Jun 10]. Available from: http://endoflifestudies.academicblogs.co.uk/total-pain-the-work-of-cicely-saunders-and-the-maturing-of-a-concept/#_edn1
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Ao ter suas necessidades atendidas permitimos ao paciente contemplar outras áreas de sua vida, como as relações pessoais e as questões existenciais. Assim, quando a cura não é mais a meta do cuidado, sentir-se confortável pode ser importante para que o paciente que enfrenta alguma doença ameaçadora da vida, participe de decisões relacionadas ao seu cuidado e possa ter uma morte pacífica, encontrando paz e sentido no momento presente99. Kolcaba K. Comfort Theory and practice: a vision for holistic health care and research. 1st ed. New York: Springer Publishing Company; 2003..

Buscando traçar um modelo que explique a relação entre fatores que poderiam afetar o conforto do paciente com câncer, um estudo destaca entre as variáveis, os recursos individuais do paciente. O suporte familiar, inserido nesses recursos, seria um componente fundamental aos cuidados paliativos pelo papel que desempenha no encorajamento e incentivo ao paciente, além de favorecer a continuidade do cuidado1070. Nuraini T, Andrijono A, Irawaty D, Umar J, Gayatri D. Spirituality-focused palliative care to improve Indonesian breast cancer patient comfort. Indian J Palliat Care. 2018;24(2):196-201. doi: https://doi.org/10.4103/IJPC.IJPC_5_18
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. As relações interpessoais são descritas como fatores relevantes na experiência de conforto do paciente77. Coelho A, Parola V, Bravo ME, Apóstolo J. Comfort experience in palliative care: a phenomenological study. BMC Palliat Care. 2016;15:71. doi: https://doi.org/10.1186/s12904-016-0145-0
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,1111. Coelho A, Parola V, Sandgren A, Fernandes O, Kolcaba K, Apostolo J. The effects of guided imagery on comfort in palliative care. J Hosp Palliat Nurs. 2018;20(4):392-9. doi: https://doi.org/10.1097/NJH.0000000000000460
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Considerando a multiplicidade de sintomas e as mudanças frequentes, no quadro clínico e na funcionalidade dos pacientes em cuidados paliativos, em diferentes momentos, os cuidados poderão ser oferecidos, em ambiente hospitalar ou em domicílio, sendo a inserção da família no processo de cuidar imprescindível à garantia da continuidade do cuidado. Neste contexto, o paciente, sua família e a equipe multiprofissional formam um tripé que sustenta o cuidado em toda a sua complexidade44. Maciel MGS. Organização de serviços de cuidados paliativos. In: Gomes L, editor. Manual de cuidados paliativos. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Meridional; 2012. p. 94-110. .

A Figura 3 traz um diagrama, para os cuidados paliativos, que aponta a necessidade de interconexão dos aspectos multidimensionais da Dor Total, com a dor e o sofrimento, dada a necessidade de conforto centrada no paciente, para além do manejo de sintomas isolados de uma doença. Assim, na dinâmica dos cuidados paliativos, o cuidado é para o conforto e o ponto de partida do conforto.

Figura 3 -
Dor total e conforto: aspectos da integralidade no cuidado aos pacientes em cuidados paliativos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão acerca da conexão entre o conceito de Dor Total e a Teoria do Conforto possibilitou o entendimento da complexidade e singularidade implicadas no cuidado ao paciente em cuidados paliativos. A aplicação desses conceitos, na elaboração do planejamento das ações, permite melhor gestão do cuidado, evitando ações inadequadas que resultariam em situações de sofrimento, como: uso inapropriado de altas doses de analgésicos, aumentando a possibilidade de efeitos adversos e com custos elevados; idas frequentes às unidades ambulatoriais ou entradas repetidas em Serviços de Emergência, com queixas de sintomas refratários, privando o paciente de maior convívio familiar e social; descontinuidade do cuidado por descrença na efetividade das ações e por não se sentir compreendido e possibilidade de adiamento no encaminhamento, para outros profissionais, quando necessário, incluindo suporte espiritual.

A inabilidade em capturarmos completamente a natureza da dor se deve ao fato desta ser uma experiência única e individual. Nossa resposta à dor não é necessariamente dependente de sua intensidade, mas também de fatores como cultura, experiências vivenciadas no passado, estado de espírito, além de aspectos psicossociais e espirituais. Dor e sofrimento são situações que devem ser compreendidas de forma diferenciada se quisermos cuidar quando a meta não é mais a cura.

Apesar do objetivo de os cuidados paliativos ser o conforto, os pacientes continuam experimentando diferentes níveis de desconforto, tanto em nível físico como também em nível social, espiritual e ambiental. Um planejamento das ações de enfermagem, a partir da valorização das necessidades relatadas pelo paciente, com a construção de um plano de cuidados de forma compartilhada com o paciente e sua família, proporciona um cuidado individualizado, qualificado e focado na pessoa e não na doença. Considerar a percepção do paciente sobre sua necessidade de conforto, de forma a orientar o cuidado na prática dos cuidados paliativos, contribui para maior resolutividade das intervenções de enfermagem direcionadas ao alívio do sofrimento, com uma melhoria da sua qualidade de vida. Sendo os pacientes os receptores do cuidado de conforto, sempre que possível devem participar ativamente, nesse processo dinâmico, podendo ser estimulados a buscar suas próprias formas de conforto, tendo a enfermeira como uma facilitadora.

O conhecimento dos conceitos apresentados nos ajuda a redirecionar o foco do cuidado para a pessoa em vez de apenas para o processo físico. Seu desconhecimento ou o negligenciamento de seus múltiplos aspectos pode ter um impacto destrutivo na possibilidade do paciente em gerenciar seu cuidado e até mesmo seu sofrimento ou sua morte.

Torna-se relevante que mais estudos com este tema sejam realizados para que esta temática seja mais discutida e, assim, a compreensão desses conceitos possa ser aprofundada, gerando um cuidado de qualidade em que as necessidades dos pacientes possam ser interpretadas de forma individualizada e seu conforto possa ser otimizado. O entendimento desses conceitos e sua aplicação na prática de enfermagem pode gerar um conjunto de dados relacionados à efetividade das intervenções de conforto, que irão subsidiar novas pesquisas na área dos cuidados paliativos, gerando, assim, evidências que contribuam para a qualidade de vida desses pacientes.

Como limitação do estudo, identificamos a necessidade de estudos mais amplos, que possam estender esta reflexão a outros grupos que apresentem realidades e experiências diferentes e cujas discussões e trocas possam contribuir para uma melhor compreensão e implementação dos conceitos aqui apresentados.

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Editado por

Editor associado:

Cíntia Nasi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2020
  • Aceito
    26 Fev 2021
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