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A cigarra e a formiga: uma reflexão sobre educação matemática brasileira na primeira década do século XXI

RESENHAS

A cigarra e a formiga: uma reflexão sobre educação matemática brasileira na primeira década do século XXI

Tatiane Taís Pereira da Silva

Graduada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru, SP, Brasil. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Tatiane Taís Pereira da Silva Rua Izabel Pietroforte Trindade, 2-15, Bauru 22 CEP: 17031-601, Bauru, SP, Brasil E-mail: tati_matematica@hotmail.com

CARDOSO, V. C. A cigarra e a formiga: uma reflexão sobre educação matemática brasileira na primeira década do século XXI. 2009. 212f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. Orientador: Antonio Miguel.

Em sua tese de doutorado, Virginia Cardia Cardoso1 1 Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC). teve como objetivo principal compreender os documentos produzidos, após a LDB/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), que fundamentam o Ensino da Matemática no Ensino Médio. O interesse por essa pesquisa surgiu quando, ao analisar as questões de avaliações nacionais como o ENEM - Exame Nacional do Ensino Médio - a autora percebeu que a disciplina matemática é abordada como uma aplicação a outras disciplinas, sendo trabalhada sempre de forma contextualizada. A pesquisadora buscou, então, por meio da análise de suas fontes de pesquisa, identificar como o Governo Federal propõe o ensino de Matemática para o Ensino Médio. Para atingir seu objetivo a autora analisou, com base no Paradigma Indiciário de Ginzburg (2003) e na Hermenêutica de Profundidade - HP - de Thompson (2000), os Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática para o Ensino Médio (PCNEM), PCNEM+ (complementação do primeiro documento) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio.

A tese é composta por cinco capítulos. No primeiro a autora apresenta as ideias gerais e as metodologias que subsidiaram a análise de sua investigação, os quatro últimos são dedicados à apresentação das análises: sócio-histórica, formal-descritiva, interpretação e re-interpretação, respectivamente, conforme a Hermenêutica de Profundidade propõe para a análise de formas simbólicas2 2 De acordo com Cardoso, formas simbólicas são "ações, falas, imagens e textos produzidos e reconhecidos como significativos para os sujeitos envolvidos nos contextos de produção, emissão e recepção" (2009, p. 26) e, por serem produzidos com alguma intenção, são passíveis de interpretações. Dessa forma, Cardoso considera as fontes principais de sua pesquisa como formas simbólicas. .

No primeiro capítulo da tese são apresentados os objetivos, o problema de pesquisa, a justificativa, a delimitação e o referencial teórico utilizado para o desenvolvimento da investigação, seguido por um texto em que são explicitados os métodos utilizados para desenvolver a pesquisa. A autora apresenta, ainda que resumidamente, alguns estudos sobre os referenciais metodológicos utilizados. Cardoso apresenta exemplos de trabalhos, em especial na Medicina, nos quais o Paradigma Indiciário é empregado. Essa metodologia se baseia em ler rastros, pistas, e, a partir desses sinais, formular uma conjetura, uma visão sobre o que essas pistas podem significar. Sobre a Hermenêutica da Profundidade, a autora defende, baseada em Thompson (2000), que a análise dos documentos de sua pesquisa seguem três dimensões: a sócio-histórica, a discursivo-formal e a interpretação/re-interpretação, dimensões segundo as quais a própria tese é estruturada - em cada capítulo um desses momentos analíticos é apresentado.

No decorrer do segundo capítulo a autora apresenta o primeiro momento da HP, proposto por Thompson para a análise das formas simbólicas: a análise sócio-histórica. Para realizar essa análise Cardoso buscou aspectos históricos da época em que as fontes principais da sua pesquisa foram elaboradas. Essa análise foi baseada em documentos que serviram de apoio para a formulação do material analisado, dentre eles a Constituição Nacional - 1988, a Lei de Diretrizes e Bases - 1996, o Plano de Desenvolvimento da Educação Nacional - 2001, Orientações Curriculares do Ensino Médio de 2004.

A partir da análise desses documentos, a autora apresenta um panorama da História da Educação, ressaltando, devido à sua influência na política educacional do Brasil, o Liberalismo, que, assim como a educação proposta nesses documentos, busca desenvolver uma nação autônoma do Estado.

Com o objetivo de contextualizar as suas fontes principais, Cardoso compõe o terceiro capítulo da sua tese com as descrições desses documentos, no qual buscou explicitar as concepções de matemática e do seu ensino, bem como as relações dessa área de conhecimento com outras Ciências. Esse momento analítico caracteriza a segunda vertente da HP, a análise discursiva formal.

A autora destaca excertos dos documentos analisados que se relacionam a cinco categorias: O que é Matemática, Como ensinar Matemática no Ensino Médio, Como a Matemática Contribui para os objetivos do Ensino Médio, Relação Entre Matemática e outras Ciências e Propostas de Reformulação do Ensino Médio. Tais grupos foram levantados a partir da leitura dos documentos, ou seja, a pesquisadora não estabeleceu categorias prévias. A partir da análise dessas categorias a autora conclui que o ensino de Matemática no Ensino Médio é apresentado, no PCNEM e na Orientação Curricular, de três maneiras: como linguagem, como ciência e como instrumento aplicável, sendo que a ênfase recai nesse último.

Para subsidiar essa parte de sua análise Cardoso apresenta algumas ideias levantadas por Gottschalk (2000, 2008), que analisou os Parâmetros Curriculares Nacionais. Em seu trabalho, Gottschalk (2008) apresenta o ensino de Matemática numa Perspectiva Pragmática de Ensino3 3 Na Perspectiva Pragmática de Ensino os significados são construídos de acordo com os valores culturais dos alunos, sendo o professor responsável por introduzir paradigmas para que os alunos atribuam sentidos ao estudo da matemática. .

Cardoso ressalta que as três fontes de sua pesquisa visam ao ensino de matemática como ferramenta para outras ciências, sendo essa, inclusive, a justificativa do ensino dessa disciplina no Ensino Médio. A autora identifica, então, uma tendência do ensino de matemática: a tendência utilitarista.

Baseada nos estudos realizados nos capítulos anteriores, Cardoso apresenta, no quarto e no quinto capítulos, suas interpretações e reflexões sobre a valorização da matemática como instrumento e, assim, considera a terceira vertente de análise da HP: interpretação e re-interpretação.

Com o objetivo de compreender a tendência utilitarista do ensino de matemática, Cardoso ressalta, no quarto capítulo, como a concepção de técnica é abordada nas fontes analisadas. Os PCNEM/99 e PCNEM+/02 não apresentam uma crítica a esse método, porém a técnica é vista como processo e produto, enquanto que nas Orientações Curriculares, apesar de proporem um ensino que considere o cotidiano dos alunos, não há uma reflexão sobre o uso da técnica no ensino.

Cardoso realiza, ainda, um estudo sobre a Racionalidade Técnica4 4 Para Cardoso (2009), a Racionalidade Técnica é "[...] um defeito do currículo escolar tecnicista, constituído a partir de muitos conteúdos que devem ser treinados por meios de exercício repetitivos [...]" (p.169-170) , concluindo que essa característica utilitarista da matemática, apresentada nos documentos oficiais analisados e que fundamentam o ensino dessa ciência na Escola Básica, em especial no Ensino Médio, não atende aos objetivos encontrados nesses mesmos documentos: formar o aluno para a cidadania e o trabalho.

Finalmente, no quinto capítulo, a autora defende uma concepção dialética do ensino de matemática, segundo a qual a Matemática deve ser considerada como ciência, linguagem e instrumento para a resolução de problemas, em todos os momentos do seu ensino.

Buscando soluções para os problemas levantados, ou seja, para que seja possível que o ensino de matemática atenda aos ideais propostos nos documentos analisados, Cardoso propõe que sejam consideradas as concepções da Educação Matemática Crítica, defendidas por Ole Skovsmose (2000), que, segundo a autora, busca "aliar os objetivos educacionais de formação geral para o trabalho e para a cidadania com a postura crítica" (p.196), sendo essa a concepção de ensino de matemática defendida pela autora e que, ainda segundo ela, está ausente dos Parâmetros e Orientações Curriculares.

Por fim, Cardoso propõe que o ensino de matemática não seja como as atitudes das formigas, que pensam apenas nas suas necessidades de sobrevivência e valorizam a utilidade imediata das coisas, e que não seja, também, como as das cigarras, que desprezam o valor dos aspectos práticos: deve-se ser um tanto formiga, outro tanto cigarra.

Essa tese é de grande importância para a Educação Matemática, pois além de analisar minuciosamente os documentos oficiais que regulam o ensino dessa ciência, explicitando suas lacunas, a autora propõe modos de preenchê-las, enfrentando e ultrapassando as dificuldades para que se possa atingir o objetivo do Ensino de Matemática na Educação Básica, que é formar o cidadão e prepará-lo para o mercado de trabalho.

Ressalto, ainda, a importância da divulgação das interpretações e análises realizadas nesse estudo para professores da Educação Básica em exercício na rede pública, para que haja apoio, entre pesquisadores e professores, de modo que as divergências encontradas entre objetivos e métodos para o ensino de matemática, nos documentos que regulam o ensino público do Brasil, sejam, progressiva e conjuntamente, sanadas.

  • BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. Constituição da República Federativa do Brasil Brasília: Congresso Nacional, 1988.
  • BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: LDB 9394/96. Brasília: Congresso Nacional, 1996.
  • BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. Plano Nacional de Educação: PNE/01 Brasília: Congresso Nacional, 2001.
  • BRASIL, MEC - SECRETARIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Orientações Curriculares do Ensino Médio Brasília: MEC / SEB, 2004.
  • BRASIL, MEC - SECRETARIA DA EDUCAÇÃO MÉDIA E TECNOLÓGICA. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: MEC / SEMTEC, 1999b. (114 p.
  • BRASIL, MEC - SECRETARIA DA EDUCAÇÃO MÉDIA E TECNOLÓGICA. PCN plus - Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília: MEC / SEMTEC, 2002. (144 p.
  • GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • GOTTSCHALK, C. M. C. Uma Reflexão Filosófica sobre a Matemática nos PCN 2000, 166f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
  • GOTTSCHALK, C. M. C. A Construção e a Transmissão do Conhecimento sob uma Perspectiva Wittgensteiniana. Caderno CEDES, Campinas, v. 28, n. 74, p. 75-96, jan./abr. 2008.
  • SKOVSMOSE, O. Mathematical Education and Democracy. Educational Studies in Mathematics Netherlands, n. 21, p. 109-128, 1990.
  • THOMPSON, J. B. Ideologia e Cultura Moderna 5.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
  • Endereço para correspondência:

    Tatiane Taís Pereira da Silva
    Rua Izabel Pietroforte Trindade, 2-15, Bauru 22
    CEP: 17031-601, Bauru, SP, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).
  • 2
    De acordo com Cardoso, formas simbólicas são "ações, falas, imagens e textos produzidos e reconhecidos como significativos para os sujeitos envolvidos nos contextos de produção, emissão e recepção" (2009, p. 26) e, por serem produzidos com alguma intenção, são passíveis de interpretações. Dessa forma, Cardoso considera as fontes principais de sua pesquisa como formas simbólicas.
  • 3
    Na Perspectiva Pragmática de Ensino os significados são construídos de acordo com os valores culturais dos alunos, sendo o professor responsável por introduzir paradigmas para que os alunos atribuam sentidos ao estudo da matemática.
  • 4
    Para Cardoso (2009), a Racionalidade Técnica é "[...] um defeito do currículo escolar tecnicista, constituído a partir de muitos conteúdos que devem ser treinados por meios de exercício repetitivos [...]" (p.169-170)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013
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