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O AUGE E A CRISE DO “NOVO MERCOSUL” NO PERÍODO PÓS-HEGEMÓNICO (2003-2016)1 1 Este trabalho foi apoiado pelo projeto Unam-Papiit IA300320, “Regionalismo latino-americano: crise e resiliência”.

THE RISE AND CRISIS OF THE “NEW MERCOSUR” IN THE POST-HEGEMONIC ERA (2003-2016)

Resumo

Este artigo analisa o período pós-hegemónico do Mercado Comum do Sul (Mercosul), descrito como um “novo Mercosul”, que se inicia em 2003 devido às mudanças políticas na Argentina e no Brasil e acaba em 2016. “Pós­-hegemónico” alude ao ciclo do regionalismo na América Latina na qual governos de esquerda adotaram uma estratégia que se afastou do regionalismo aberto e do novo regionalismo predominante na última década do século XX. Examinam-se as causas do surgimento do chamado “novo Mercosul”, suas principais propostas de políticas e sua evolução. Em seguida, analisam-se as causas da crise do “novo Mercosul” e as lições aprendidas de período pós-hegemónico do bloco.

Palavras-chave:
Mercosul; Regionalismo; Pós-Liberal; Pós­Hegemónico

Abstract

This article analyzes the post-hegemonic period of the Southern Common Market (Mercosur), which begins in 2003 due to political changes in Argentina and Brazil and ends in 2016 and it is described as a “new Mercosur”. Post-hegemonic refers to the cycle of regionalism in Latin America, in which left-wing governments adopted a strategy that moved away from open regionalism and the new regionalism prevalent in the last decade of the 20th century. The causes of the emergence of the so-called “new Mercosur”, its main policy proposals and its evolution are examined. Subsequently, I analyze the causes of the crisis of the “new Mercosur” and the lessons learned from the post-hegemonic period of the bloc.

Keywords:
Mercosur; Regionalism; Postliberal; Posthegemonic

Introdução

Na última década do século XX foi aceito pela liderança dos países da América Latina um modelo descrito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (Banco Interamericano de Desarrollo, 2002BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO. 2002. Más allá de las fronteras: el nuevo regionalismo en América Latina. Washington: Banco Interamericano de Desarrollo.) e por académicos do Banco Mundial (De Melo e Panagariya, 1992DE MELO, Jaime; PANAGARIYA, Arvind. 1992. O novo regionalismo. Finanças & Desenvolvimento, v. 12, n. 4, pp. 37-40.) como “novo regionalismo económico”. A Comissão Económica para América Latina (Comisión Económica para América Latina, 1994COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA. 1994. El regionalismo abierto en América Latina y el Caribe: la integración económica al servicio de la transformación productiva con equidad. Santiago: Cepal.), por seu lado, tentou importar o conceito de regionalismo aberto da Ásia-Pacífico misturado a ideias neoestru­turalistas de transformação produtiva com equidade. Em ambos os casos, o regionalismo era considerado um mecanismo comercial que visava uma melhor inserção dos países da América Latina na economia mundial.

Essa situação muda a partir de 1999, com a chegada ao poder de Hugo Chávez em Venezuela. Iniciou-se um ciclo político de governos de esquerda, chamado “progressista”, que foi realmente consolidado em 2002 e 2003 com as vitórias eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Néstor Kirchner na Argentina. Bolívia, Equador, Nicarágua, Uruguai e Paraguai seriam posteriormente parte de essa onda de governos progressistas, a qual, contudo, apresentava matizes. Duas tendências podem ser observadas: a primeira estava ligada à abordagem estruturalista e de desenvolvimento da integração regional, na qual o livre comércio era complementado com uma agenda social e produtiva para promover políticas de inclusão social e um programa regional de industrialização; a segunda tendência promoveu uma abordagem mais política, que rejeitou a ideia de que a economia e o livre comércio deviam ser o fundamento da integração, como no caso de Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua.

Não obstante, todos os governos de esquerda compartilhavam uma crítica ao modelo neoliberal implementado na década de 1990. Isso teve consequências na forma de entender o regionalismo e a integração regional, que deixaram de ser considerados sinônimos de livre comércio e mecanismos para a inserção internacional. Contudo, este argumento deve ser relativizado, pois o regionalismo nunca deixou de ser entendido pelos governos de esquerda como um mecanismo de ganhos para inserção “extrarregional”, como nos casos de Nicarágua, Uruguai ou Brasil. Este não foi o caso da Venezuela ou da Argentina, cujos governos não conceberam o regionalismo como um mecanismo de inserção internacional.

Pedro da Motta Veiga e Sandra Rios (2007VEIGA, Pedro da Motta; RIOS, Sandra. 2007. O regionalismo pós-liberal, na América do Sul: origens, iniciativas e dilemas. Santiago de Chile: Cepal. (Serie Comercio Internacional, 82).) e José Antonio Sanahuja (2010SANAHUJA, José Antonio. 2010. La construcción de una región: Suramérica y el regionalismo posliberal. In: CIENFUEGOS, Manuel; SANAHUJA, José Antono (ed.). Una región en construcción: Unasur y la integración en América del Sur. Madrid: Fundación Cidob, pp. 87-136.) chamaram esta nova etapa de “regionalismo pós-liberal”. Veiga e Rios (2007VEIGA, Pedro da Motta; RIOS, Sandra. 2007. O regionalismo pós-liberal, na América do Sul: origens, iniciativas e dilemas. Santiago de Chile: Cepal. (Serie Comercio Internacional, 82).) argumentaram que para os governos de esquerda a liberalização do comércio e dos investimentos começou a ser considerada um obstáculo para a implementação de políticas nacionais de desenvolvimento. Por isso, os governos de esquerda preferiam acordos regionais úteis para promover o desenvolvimento económico endógeno e a equidade. Para Sanahuja (2010SANAHUJA, José Antonio. 2010. La construcción de una región: Suramérica y el regionalismo posliberal. In: CIENFUEGOS, Manuel; SANAHUJA, José Antono (ed.). Una región en construcción: Unasur y la integración en América del Sur. Madrid: Fundación Cidob, pp. 87-136.), o regionalismo pós-liberal foi caracterizado por fatores como a volta da agenda de desenvolvimento, o retorno da cooperação política, um papel crescente dos atores estatais e sociais e o fomento da cooperação Sul-Sul por meio de plataformas regionais. Pia Riggirozzi e Diana Tussie (2012RIGGIROZZI, Pia; TUSSIE, Diana. 2012. The rise of post-hegemonic regionalism in Latin America. In: RIGGIROZZI, Pia; TUSSIE, Diana (ed.). The rise of post-hegemonic regionalism. Dordrecht: Springer, pp. 1-16.) preferem a categoria “regionalismo pós­-hegemónico”, que, para elas, era relevante porque propunha narrativas diversas a respeito do modelo de regionalismo e integração e cooperação regional. Na década de 1990, o neoliberalismo e o novo regionalismo compar­tilhavam uma narrativa única, hegemónica, sobre os processos regionais: eram mecanismos comerciais para a inserção num mundo globalizado. O regionalismo na era de predomínio dos governos de esquerda muda porque já não existia uma narrativa única. O regionalismo já não era apenas a integração económica, mas um processo complexo que incluía também formas de cooperação e concertação política. A ideia mesma de integração económica também muda, uma vez que já não se tratava apenas do comércio, mas também de formas de integração produtiva, financeira, social e das infraestruturas. Isto não implicava argumentar o fim do neoliberalismo ou do regionalismo centrado no comércio. Riggirozzi e Tussie (2012RIGGIROZZI, Pia; TUSSIE, Diana. 2012. The rise of post-hegemonic regionalism in Latin America. In: RIGGIROZZI, Pia; TUSSIE, Diana (ed.). The rise of post-hegemonic regionalism. Dordrecht: Springer, pp. 1-16., p. 10, tradução nossa) asseveram expressamente:

isto não significa que o capitalismo, o liberalismo e as formas de integração associadas ao comércio deixem de existir ou de mobilizar a agenda regional. O que significa é que a sua centralidade está a ser deslocada com novas alternativas, válidas e genuínas à integração aberta e neoliberal.

Existe uma diferenciação entre “pós-liberal” e “pós­-hegemónico” ao analisar o regionalismo latino-americano na era dos governos de esquerda. “Pós-liberal” refere-se em concreto às medidas políticas implementadas por blocos regionais para superar o modelo neoliberal que prevaleceu na era do “novo regionalismo”, como o Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul, aprovado em 2011. Por sua vez, “pós-hegemónico” é uma ferramenta heurística usada para explicar um período na história do regionalismo latino­-americano caracterizado pela ausência de uma narrativa única e hegemónica respeito à integração e à cooperação regional. Por exemplo, a União de Nações Sul-Americanas emergiu na era pós-hegemónica e adotou políticas pós­-liberais, como a criação do Banco do Sul. A Aliança do Pacífico também nasceu na era pós­-hegemónica, mas continuou comprometida com o neoliberalismo (Briceño-Ruiz, 2018BRICEÑO-RUIZ, José. 2018. Times of change in Latin American regionalism. Contexto Internacional, v. 40, n. 3, pp. 573-594.).

Este artigo analisa o Mercado Comum do Sul (Mercosul) do período do regionalismo pós-hegemónico, que se inicia em 2003 devido às mudanças políticas na Argentina e no Brasil e acaba em 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff. Examinam-se as causas do surgimento do chamado “novo Mercosul”, suas principais propostas de políticas e sua evolução. Em seguida, analisam-se as causas de sua crise e as lições aprendidas do período pós-hegemónico do bloco.

As críticas ao Tratado de Assunção e o surgimento do “novo Mercosul”

O Mercosul nasceu em um momento de hegemonia do regionalismo aberto e isso fica evidente nas metas estabelecidas no Tratado de Assunção, assinado em março de 1991. Já no preâmbulo do Tratado de Assunção foi reconhecida “a importância de lograr uma adequada inserção internacional”, e seu artigo 1º propõe

a livre circular de bens serviços e fatores produtivos […]; o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados […]; a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados Partes.

Depois de quase uma década de sucesso, especialmente no campo do livre comércio e incremento da intensidade da interdependência comercial regional entre 1991 e 1997, o Mercosul entrou em crise em 1999 (Bouzas, 2001BOUZAS, Roberto. 2001. El Mercosur diez años después: ¿proceso de aprendizaje o déjà vu? Desarrollo Económico, v. 41, n. 162, pp. 179-200.; Carranza, 2003CARRANZA, Mario E. 2003. Can Mercosur survive? Domestic and international constraints on Mercosur. Latin American Politics and Society, v. 45, n. 2, pp. 67-103.; Schvarzer, 1999SCHVARZER, Jorge. 1999. Un bloque exitoso en crisis: el Mercosur y un socio demasiado grande. Nueva Sociedad, n. 162, pp. 92-108.). A desvalorização do real em Brasil em janeiro de 1999 teve efeitos negativos nas trocas regionais, especialmente devido às restrições unilaterais impostas pelo governo argentino para compensar o impacto negativo da desvalorização da moeda brasileira. A posterior crise na Argentina em 2001 também teve consequências negativas para o bloco regional (Carranza, 2003CARRANZA, Mario E. 2003. Can Mercosur survive? Domestic and international constraints on Mercosur. Latin American Politics and Society, v. 45, n. 2, pp. 67-103.; O’Connell, 2001O’CONNELL, Arturo. 2001. Los desafíos del Mercosur ante la devaluación de la moneda brasileña. Santiago: Cepal .).

Autores como Samuel Pinheiros Guimarães (2000GUIMARÃES, Samuel Pinheiros. 2000. Argentina e Brasil: integração, soberania e território. Instituto de Estudos Avançados de Universidade de São Paulo, 30 jun. 2000. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3eiSD2P >. Acesso em: 21 dez. 2020.
https://bit.ly/3eiSD2P...
, p. 20) consideravam que a crise que atingia a estrutura e os mecanismos do Mercosul era apenas “um reflexo das crises econômicas, sociais e crescentemente políticas vividas nos países do Cone Sul”. O problema então era a natureza neoliberal do bloco criado pelo Tratado de Assunção em 1991. Guimarães (2000GUIMARÃES, Samuel Pinheiros. 2000. Argentina e Brasil: integração, soberania e território. Instituto de Estudos Avançados de Universidade de São Paulo, 30 jun. 2000. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3eiSD2P >. Acesso em: 21 dez. 2020.
https://bit.ly/3eiSD2P...
, p. 20) asseverava que

o caráter essencialmente neo-liberal do Mercosul (abertura radical sem política industrial ou de reorganização setorial) não podia prever que um processo de integração econômica, isto é, de criação de um território econômico único entre quatro países tão distintos, levaria necessariamente a desequilíbrios econômicos setoriais e regionais como decorrência do maior dinamismo de uma economia ou de outra em diferentes estágios de industrialização.

Outros especialistas, como Aldo Ferrer (1997FERRER, Aldo. 1997. El Mercosur: entre el Consenso de Washington y la integración sustentable. Comercio Exterior, v. 47, n. 5, pp. 347-354., 2007FERRER, Aldo. 2007. El éxito del Mercosur posible. Brazilian Journal of Political Economy, v. 27, n. 1, pp. 147-156.), também criticavam o viés comercial do bloco. Ferrer (1997FERRER, Aldo. 1997. El Mercosur: entre el Consenso de Washington y la integración sustentable. Comercio Exterior, v. 47, n. 5, pp. 347-354.) considerava que desde seu nascimento o Mercosul tinha vivido sempre sob o dilema do Consenso de Washington e a integração sustentável, mas a crise do real e o default argentino tinham aprofundado as fraquezas do Mercosul. Em um artigo publicado em 2007, Ferrer criticava a limitada visão comercial e salientava a necessidade de resolver o problema das assimetrias no bloco. Hélio Jaguaribe (1996JAGUARIBE, Hélio. 1996. Significação e alcance de Mercosul. Aportes para la Integración Latinoamericana, v. 2, n. 3, pp. 15-29., 2003JAGUARIBE, Hélio. 2003. Mercosul e a nova ordem mundial. In: GRUPO DE REFLEXÃO (ed.). Prospectiva sobre o Mercosul. Brasilia: Funag, pp. 41-46.) abordava o assunto de forma mais pragmática, pois considerava que mesmo se o Mercosul tinha sido um sucesso comercial, existiam problemas distributivos e institucionais. Assim, afirmava que o Mercosul precisava se revelar conveniente para todos os participantes do bloco. Era indispensável que fosse claro, para todos, que era melhor pertencer ao Mercosul do que não pertencer (Jaguaribe, 1996JAGUARIBE, Hélio. 1996. Significação e alcance de Mercosul. Aportes para la Integración Latinoamericana, v. 2, n. 3, pp. 15-29.). Também recomendava “elevar o nível de institucionalidade do sistema” (Jaguaribe, 2003JAGUARIBE, Hélio. 2003. Mercosul e a nova ordem mundial. In: GRUPO DE REFLEXÃO (ed.). Prospectiva sobre o Mercosul. Brasilia: Funag, pp. 41-46., p. 45). Iris Laredo (1995LAREDO, Iris Mabel. 1995. Trasfondo político de la integración económica. Aportes para la Integración Latinoamericana , v. 1., n. 1, pp. 99-112.), experta argentina da Universidade de Rosário, escreveu que o Mercosul tinha já no Tratado de Assunção várias limitações: a peremptoriedade dos prazos estabelecidos no acordo, o princípio de reciprocidade, o modelo “comercialista”, a ausência de instituições comunitárias e a falta de partici­pação social.

Uma maior coordenação macroeconómica também era demandada. Argumentava- se que a crise de 1999 foi resultado da ausência de coordenação de políticas cambiais. Isso levou à adoção de uma série de medidas “defensivas” unilaterais (particularmente na Argentina), como licenças não automáticas, cláusulas de salvaguarda, perfurações à tarifa externa comum, direitos antidumping etc. (López e Laplane, 2004LÓPEZ, Andres; LAPLANE, Mariano. 2004. Complementación productiva en Mercosur: perspectivas y potencialidades. Montevideo: Fesur.). Era necessária então uma maior coordenação das políticas macroeconómicas. Em um artigo publicado em 2001, o economista chileno Ricardo Ffrench Davis argumentou que a crise do Mercosul foi impulsionada por fatores como sua fraqueza institucional, atrasos na adoção de um mecanismo eficaz de salvaguardas, falta de decisão política para remover barreiras não tarifárias e a persistência de apoio às exportações intrarregionais. Ffrench Davis (2001FFRENCH DAVIS, Ricardo. 2001. ¿Está Mercosur en crisis? Perspectivas Americanas, pp. 3-4.) também afirmou que o Mercosul experimentou uma liberalização comercial acelerada que não tinha sido acompanhada de uma harmonização política adequada.

Também existia uma preocupação pela ausência de políticas industriais no bloco (Jaguaribe, 2003JAGUARIBE, Hélio. 2003. Mercosul e a nova ordem mundial. In: GRUPO DE REFLEXÃO (ed.). Prospectiva sobre o Mercosul. Brasilia: Funag, pp. 41-46.; López e Laplane, 2004LÓPEZ, Andres; LAPLANE, Mariano. 2004. Complementación productiva en Mercosur: perspectivas y potencialidades. Montevideo: Fesur.). Assim, o Mercosul não avançou para o que alguns autores chamaram de cenário “industrialista”, no qual a integração é um mecanismo para estimular a reestruturação produtiva regional (López e Laplane, 2004LÓPEZ, Andres; LAPLANE, Mariano. 2004. Complementación productiva en Mercosur: perspectivas y potencialidades. Montevideo: Fesur.). O problema das assimetrias também foi amplamente discutido despois das crises de 1999 no Brasil e 2001 na Argentina, que tinham impactado as economias do Uruguai e Paraguai. O economista argentino Fernando Porta asseverava já em 2006 que as assimetrias estruturais no Mercosul tinham sido significativas, pois existiam diferenças no plano económico e populacional entre os quatro países. Existiam também divergências nos níveis de renda per capita e na diversificação da estrutura produtiva. Para Porta (2006PORTA, Fernando. 2006. Cómo reinsertar el Mercosur en una agenda de desarrollo: problemas y políticas. Cuadernos del Cendes, v. 23, n. 63, pp. 1-26.), nenhuma destas questões foi internalizada no desenho e nos regulamentos originais do bloco. Posteriormente, também não foram aprovadas políticas comuns ou consensuais para tratar os efeitos de tais assimetrias (Porta, 2006PORTA, Fernando. 2006. Cómo reinsertar el Mercosur en una agenda de desarrollo: problemas y políticas. Cuadernos del Cendes, v. 23, n. 63, pp. 1-26.).

Também se recomendava melhorar a institucionalidade do Mercosul (Jaguaribe, 2003JAGUARIBE, Hélio. 2003. Mercosul e a nova ordem mundial. In: GRUPO DE REFLEXÃO (ed.). Prospectiva sobre o Mercosul. Brasilia: Funag, pp. 41-46.). A crise de 1999 evidenciou que o bloco não contava com mecanismos institucionais para resolver os conflitos entre os países (Onuki, 1999ONUKI, Janina. 1999. Para onde caminha o Mercosul? Revista Multipla, v. 4, n. 6, pp. 99-109.). Argumentava-se que o centro do problema era a institucionalidade intergovernamental estabelecida no Tratado de Assunção. Assim, o processo de elaboração de normas no bloco era complexo, pois as regulações aprovadas nas instituições do Mercosul precisavam de posterior ratificação dos congressos dos países-membros. Por outro lado, os mecanismos de resolução de conflitos eram fracos e ineficientes. Pensava-se que essas instituições limitavam a integração profunda no Mercosul (Bouzas, 2004BOUZAS, Roberto. 2004. Mercosur: instituciones de gobierno regional, asimetrías e integración profunda. Washington: Interamerican Development Bank.; Peña, 2003PEÑA, Félix. 2003. Concertación de intereses, efectividad de las reglas de juego y calidad institucional en el Mercosur. Montevideo: Red de Investigaciones Económicas del Mercosur: Fundación Konrad Adenauer.; Vigevani, Mariano e Mendes, 2002VIGEVANI, Tullo; MARIANO, Marcelo Passini; MENDES, Ricardo Glöe. 2002. Instituições e conflitos comerciais no Mercosul. São Paulo em Perspectiva, v. 16, n. 1, pp. 44-53.).

Nesse contexto de crítica ao Mercosul do Tratado de Assunção, alguns especialistas, como Luiz Alberto Moniz Bandeira (1996MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. 1996. Política y relaciones internacionales en el Mercosur. Ciclos, v. 6, n. 11, pp. 103-121.), propunham fortalecer a dimensão política do processo regional. Para Moniz Bandeira (1996MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. 1996. Política y relaciones internacionales en el Mercosur. Ciclos, v. 6, n. 11, pp. 103-121.), era necessária uma maior coordenação política entre os quatro países do bloco, especialmente na área da política externa.

Estas demandas de mudanças no bloco existiam não somente nos espaços académicos, mas também em diversos setores políticos, especialmente nos partidos de esquerda que chegaram ao poder a partir de 2003. O Mercosul e sua crise tinham sido tema de debate nos programas eleitorais do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil e da Alianza para la Victoria na Argentina. No caso do PT, existiam duas posições: um setor considerava que o Mercosul era um projeto neoliberal dos anos 1990 e devia ser abandonado em favor de um projeto político que incluísse todos os países da América do Sul; outro setor acreditava que o Mercosul deveria ser reformado para fortalecer suas dimensões sociais, culturais e políticas. Essa foi a tendência que prevaleceu quando o PT chegou ao poder (Dri, 2016DRI, Clarissa. 2016. Reinforcing or ignoring the supranational level during crisis? Brazilian parties’ views on regionalism. In: SAURUGGER, Sabine; TERPAN, Fabien (ed.). Crisis and institutional change in regional integration. Abingdon: Routledge, pp. 136-152.).

O kirchnerismo, por sua vez, chega ao poder como resultado do default de 2001 e do descrédito das políticas económicas implementadas na década de 1990. Para a coalizão kirchnerista, havia vários problemas que precisavam ser resolvidos: primeiro, o bloco não estava beneficiando todos os seus parceiros de forma igualitária (o problema das assimetrias); segundo, a integração tinha que incorporar outras dimensões e não se limitar aos aspetos comerciais; em terceiro lugar, o Mercosul tinha que estar vinculado ao projeto de desenvolvimento nacional (Ramos, 2016RAMOS, Hugo Daniel. 2016. Preferencias políticas en el campo de la integración regional (Mercosur) y políticas económicas: el caso del Frente para la Victoria en Argentina (2003-2007). Revista de la Red Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea, v. 3, n. 5, pp. 41-45.). Um dos objetivos da estratégia económica promovida pelo governo de Néstor Kirchner não só para a Argentina, mas para o Mercosul, foi a restauração de uma abordagem desenvolvimentista ou industrial. No caso específico do Mercosul, isso significava substituir a abordagem “comercialista” da integração por uma que incluísse políticas de integração produtiva (Russell e Tokatlian, 2015RUSSELL, Roberto; TOKATLIAN, Juan Gabriel. 2015. Implications of the global and regional changes for Argentina’s Foreign Relations. In: BURGES, Sean W. Latin America and the shifting sands of globalization. Abingdon: Routledge , pp. 77-93.).

No caso do Frente Amplio (2003FRENTE AMPLIO. 2003. Grandes lineamientos programáticos para el gobierno 2005-2009: porque entre todos otro Uruguay es posible. Diretrizes aprobadas no IV Congreso Extraordinario del Frente Amplio, Montevideo, 20-21 dez. 2003., p. 4, tradução nossa) em Uruguai, se demandava

a consolidação e o fortalecimento do Mercosul desde uma perspectiva mais ampla que inclua os aspectos sociais, políticos e culturais dos países-membros, promovendo uma relação que nos coloque no caminho da dinamização e da integração plena de toda a América Latina.

Igualmente, o Frente Amplio (2003FRENTE AMPLIO. 2003. Grandes lineamientos programáticos para el gobierno 2005-2009: porque entre todos otro Uruguay es posible. Diretrizes aprobadas no IV Congreso Extraordinario del Frente Amplio, Montevideo, 20-21 dez. 2003., p. 8, tradução nossa) propunha conceber o Mercosul “não apenas como uma integração comercial, mas como uma complementação económica, na qual a integração das cadeias produtivas e a máxima coordenação possível em políticas macroeconômicas sejam promovidas”.

O caso do Paraguai foi diferente, pois o país continuou sob o controle do Partido Colorado até 2008, ou seja, entrou tarde na onda de governos de esquerda. No entanto, isso não significou ficar fora dos processos de câmbio que estavam ocorrendo no Mercosul. O governo de Nicanor Duarte impulsionou uma nova agenda de integração. O Paraguai conseguiu introduzir em 2003 o conceito de assimetria no Mercosul e obter a aprovação de medidas diferenciais e favoráveis para as duas economias pequenas da região. Em 2004, foi aprovada a proposta paraguaia do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) (Masi, 2014MASI, Fernando. 2014. La integración regional en la vida democrática del Paraguay. Revista Debate, v. 1, pp. 13-16.). Com Fernando Lugo chegando ao poder em 2008, o Paraguai entrou na onda de governos de esquerda; no entanto, Lugo manteve críticas ao Mercosul pela assimetria e pela necessidade de ampliar a agenda integracionista e a reforma institucional. Como no caso da Frente Amplio uruguaia, Lugo exigiu um relançamento do eixo económico­-comercial e uma revisão das relações inter­-regionais (Ramos, Vaschetto e Capdevila, 2015RAMOS, Hugo Daniel; VASCHETTO Mariano; CAPDEVILA, Constanza. 2015. Preferencias políticas e integración regional: análisis comparado del FPV (Argentina), PT (Brasil), FA (Uruguay) y APC (Paraguay). Artigo apresentado nas XI Jornadas de Sociología, Buenos Aires, 13-17 jul. 2015.).

Houve então um consenso entre académicos e a liderança de esquerda respeito à necessidade de ir além do comércio no processo regional. As condições estavam dadas para iniciar una nova etapa no bloco regional.

Apogeu do “novo Mercosul” do período pós-hegemónico

Em outubro de 2003, Lula e Kirchner se reuniram na capital argentina e lá assinaram um documento que será conhecido como “Consenso de Buenos Aires”. Os aspectos centrais do Consenso são mostrados no Quadro 1, mas alguns deles merecem menção especial. O ponto 15 do Consenso (2003CONSENSO de Buenos Aires. 2003. Argentina, 16 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3egwGkT >. Acesso em: 10 jan. 2021.
https://bit.ly/3egwGkT...
, tradução nossa) afirma:

Confirmamos nossa profunda convicção de que o Mercosul não é apenas um bloco comercial, mas um catalisador de valores, tradições e futuro compartilhados. Dessa forma, nossos governos estão trabalhando para fortalecê-lo por meio da melhora de suas instituições nos aspectos comerciais e políticos e da incorporação de novos países.

O ponto 16 afirma: “Enfatizamos que a integração sul-americana deve ser promovida no interesse de todos, com o objetivo de conformar um modelo de desenvolvimento no qual se associam o crescimento, a justiça social e a dignidade dos cidadãos” (Consenso…, 2003CONSENSO de Buenos Aires. 2003. Argentina, 16 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3egwGkT >. Acesso em: 10 jan. 2021.
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, tradução nossa). Essas duas citações sugerem o início da virada que estava ocorrendo no Mercosul. Embora a dimensão comercial da integração não estivesse abandonada, ela começava a deixar de estar no centro da agenda regional. As questões políticas, produtivas e sociais marcariam as discussões regionais.

Quadro 1
Consenso de Buenos Aires: principais características

O desenvolvimento dessas dimensões sociais e produtivas de alguma forma significava um retorno do Estado ao processo de integração do Mercosul. Isso já foi estabelecido no Consenso de Buenos Aires (2003CONSENSO de Buenos Aires. 2003. Argentina, 16 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3egwGkT >. Acesso em: 10 jan. 2021.
https://bit.ly/3egwGkT...
, ponto 7, tradução nossa), no qual os Estados têm um papel estratégico no âmbito económico:

Estamos cientes do papel estratégico que nossos Estados devem desempenhar e vamos redobrar esforços para fortalecer suas instituições, profissionalizar a administração pública, melhorar sua capacidade de resposta, aumentar sua eficácia e garantir maior transparência nos processos decisórios.

Isso significava equilibrar o excessivo viés comercial do Mercosul original. No “novo Mercosul”, o Estado desempenharia um papel fundamental e abriria espaços para novas estratégias de transformação produtiva e promoção da equidade (ou pelo menos fortalecer a dimensão social do bloco regional).

O Consenso de Buenos Aires foi bem recebido nos diversos espaços críticos do Consenso de Washington e do novo regionalismo, mas também houve críticas. John Williamson, que formulou a ideia de um Consenso de Washington, questionou o Consenso de Buenos Aires numa entrevista para a BBC Brasil em outubro 2003 (Starobinas, 2003STAROBINAS, Marcelo. 2003. CONSENSO de Buenos Aires “traria riscos para o Brasil”, diz Williamson. BBC Brasil, 10 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bbc.in/3sBYbuz >. Acesso em: 18 dez. 2020.
https://bbc.in/3sBYbuz...
). Williamson afirmou que “o presidente Lula está correndo um risco ao fazer este documento com a Argentina, porque os mercados internacionais têm bastante confiança no Lula mas nenhuma na Argentina hoje em dia” (Starobinas, 2003STAROBINAS, Marcelo. 2003. CONSENSO de Buenos Aires “traria riscos para o Brasil”, diz Williamson. BBC Brasil, 10 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bbc.in/3sBYbuz >. Acesso em: 18 dez. 2020.
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). Ele disse também que “o Consenso de Washington tem sido reformulado para abarcar temáticas sociais e que, assim, o Consenso de Buenos Aires, [sic] poderia não acrescentar muito ao debate e ser mais uma peça retórica que um instrumento prático” (Starobinas, 2003STAROBINAS, Marcelo. 2003. CONSENSO de Buenos Aires “traria riscos para o Brasil”, diz Williamson. BBC Brasil, 10 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: https://bbc.in/3sBYbuz >. Acesso em: 18 dez. 2020.
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). O diplomata Paulo Roberto de Almeida (2015ALMEIDA, Paulo Roberto de. 2015. Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: una sombra pronto seras… Uma Certa Ideia do Itamaraty, 10 jan. 2015. [Não paginado]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x3xzG6 >. Acesso em: 8 jan. 2021.
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) também disputou a relevância do Consenso. Para ele, o Consenso de Buenos Aires tinha alto grau de generalidade, o que “tende a transformá-lo numa lista de boas intenções, com escassa expli­citação dos meios ou medidas concretas que seriam eventualmente mobilizados para tornar essas intenções credíveis ou realizáveis” (Almeida, 2015ALMEIDA, Paulo Roberto de. 2015. Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: una sombra pronto seras… Uma Certa Ideia do Itamaraty, 10 jan. 2015. [Não paginado]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x3xzG6 >. Acesso em: 8 jan. 2021.
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). Do mesmo modo, Almeida (2015ALMEIDA, Paulo Roberto de. 2015. Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: una sombra pronto seras… Uma Certa Ideia do Itamaraty, 10 jan. 2015. [Não paginado]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x3xzG6 >. Acesso em: 8 jan. 2021.
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) debatia sobre a natureza realmente consensual do documento:

Seria preciso começar disseminando este documento e recolher então a opinião dos demais, antes que ele possa efetivamente apresentar-se como “Consenso”. Não se deveria, entretanto, esperar adesão inquestionável dos demais, pois isso significaria talvez uma espécie de “imposição unilateral” de dois países sobre os demais, que provavelmente teriam, ou terão, suas próprias contribuições e comentários a fazer ao documento. O teste da história significa que um documento com tal pretensão tende a ser incorporado como um dos referenciais de políticas, internas e externas, a serem seguidas por esses países: o tempo dirá se o destino efetivo do documento confirmará suas pretensões, de resto legítimas, como todo texto que pretende ao bom senso.

Apesar dessas críticas, o Consenso de Buenos Aires teve uma recepção positiva nos espaços políticos do Mercosul. Contudo, o documento foi uma declaração bilateral dos Chefes de Estado da Argentina e do Brasil, não um ato formal do Mercosul. Devido à importância desses dois países no bloco regional, as ideias do Consenso começaram a ser incorporadas na sua agenda, mas na verdade alguns dos aspectos promovidos nele mesmo já tinham sido incorporados como objetivos do bloco. Na cúpula de Assunção, realizada em junho de 2003, quatro meses antes da cúpula de Lula e Kirchner, aprovou-se o Programa para a Consolidação da União Aduaneira e para o Lançamento do Mercado Comum: Objetivo para 2006. Este programa tinha quatro eixos: (1) político, social e cultural; (2) união aduaneira; (3) um programa de base para o mercado comum; e (4) nova integração. Nele se mantém a dimensão comercial como o centro das atividades do bloco, mas ao mesmo tempo se procura fortalecer suas dimensões social, produtiva e política.

Observa-se, então, que houve uma mudança real na agenda do Mercosul, surgindo a ideia de um “novo Mercosul”. Essa denominação foi utilizada por alguns académicos em Argentina, Uruguai e Venezuela, em muito menor grau no Brasil e bem pouco no Paraguai. Na esfera política, no entanto, o PT no Brasil, o kirchnerismo na Argentina e o Frente Amplio no Uruguai repetidas vezes criticaram o viés neoliberal do Mercosul e propuseram um novo Mercosul. Mas Hugo Chávez, que estava no processo de incorporar a Venezuela como membro pleno do Mercosul, foi o maior propulsor da expressão “novo Mercosul”. Mesmo no Plano Nacional de Desenvolvimento de seu governo de 2007-2013 se incluía como um objetivo estratégico da política externa para América Latina e Caribe “participar da construção do novo Mercosul para a formação da Comunidade Sul­-Americana das Nações, com base na avaliação, revisão e reorientação dos conteúdos de integração” (Venezuela, 2008VENEZUELA. 2008. Líneas generales del Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación para el período 2007-2013. Caracas: Ministerio del Poder Popular para la Comunicación y la Información., p. 94).

Andrés Malamud (2018MALAMUD, Andrés. 2018. Book review: Regionalism with adjectives in Latin America. Latin American Policy, v. 9, n. 1, pp. 164-165.) argumenta que nunca houve realmente um “novo Mercosul”, porque um novo tratado nunca foi assinado para mudar a estrutura do bloco. Do ponto de vista jurídico-formal, é correto o que Malamud (2018MALAMUD, Andrés. 2018. Book review: Regionalism with adjectives in Latin America. Latin American Policy, v. 9, n. 1, pp. 164-165.) aponta, mas a realidade é que o Mercosul entre 2003 e 2015 foi, em muitos aspectos, bem diferente do Mercosul entre 1991 e 2002. No entanto, o “novo Mercosul” não era totalmente diferente do Mercosul da era do regionalismo aberto. Embora o bloco tenha nascido como quase exclusivamente comercial, como pode ser visto nas disposições do Tratado de Assunção, durante sua década inicial de existência conseguiu desenvolver uma forte dimensão trabalhista e educacional, ou seja, já havia um Mercosul social antes de 2003. Igualmente, houve uma dimensão política específica na adoção do Protocolo de Ushuaia para a Defesa da Democracia em 1998. O que foi realmente inovador no período pós-hegemónico do Mercosul foi a adoção de uma lógica que pode ser descrita como “pós-liberal” em questões económicas, que procurava aplicar políticas públicas regionais alternativas ao modelo de regionalismo aberto. Isso implicou, por um lado, a aplicação da ideia de transformação produtiva, que se manifestou, por exemplo, no Programa de Integração Produtiva (PIP) (Conselho Mercado Comum, 2008CONSELHO MERCADO COMUM. 2008. Decisão nº 12/08: aprova o Programa de Integração Produtiva do Mercosul. San Miguel de Tucumán, 30 jun. 2008.) e, por outro lado, o apoio de outras formas de organização económica, como a economia solidária ou a agricultura familiar. Além disso, o bloco aprofundou sua agenda social e aumentou o ativismo político, na medida em que os atores envolvidos no processo se expandiram. A questão da assimetria, reivindicada pelo Paraguai e Uruguai, levou à criação do Focem. A questão comercial nunca foi abandonada, embora não fosse mais central para os governos de esquerda.

A dimensão político-institucional

No campo político, o Tribunal Permanente de Revisão foi criado em 2004, e o Parlamento do Mercosul foi estabelecido em 2005. Desde a Cúpula de Córdoba de 2006, as Cúpulas Sociais foram realizadas como parte do Mercosul social e participativo. Em 2011, foi aprovada uma reforma do Protocolo de Ushuaia que ampliou os mecanismos de defesa da democracia. Finalmente, o Mercosul se expandiu aceitando a Venezuela e a Bolívia como membros plenos, dois países governados por dois líderes radicalmente críticos do neoliberalismo e do regionalismo aberto.

A dimensão produtiva

Em questões produtivas, segundo Molinari, De Angelis e Bembi (2013MOLINARI, Andrea; DE ANGELIS, Jesica Yamila; BEMBI, Mariela. 2013. Medición de la integración productiva en el Mercosur: un análisis desde la óptica del comercio intraindustrial y las cadenas de valor. Desarrollo Económico , v. 52, n. 207-208, pp. 511-544.), em 2004 foi criado o Focem (Declaração do Conselho Mercado Comum (CMC) nº 45/04), que visava mitigar a assimetria entre os membros por meio da “coparticipação” no uso de recursos, que era favorável para as economias menores do bloco (Paraguai e Uruguai), de modo que os países que mais contribuíram com recursos para o Fundo receberam menos dinheiro. No mesmo ano de 2004 foram aprovados o Acordo de Facilitação de Atividades Empresariais no Mercosul (Declaração CMC nº 32/04) e, em 2005, o Regime de Integração de Processos Produtivos em Diversos Estados Mercosul com Uso de Materiais Não Originários (Declaração CMC nº 03/05).

Na Cúpula do Mercosul em Córdoba, em 2006, o CMC foi instruído a definir um Plano Regional de Integração e Desenvolvimento Produtivo. Em 2008 foi aprovado o PIP e criado o Grupo de Integração Produtiva. Segundo o PIP,

um processo de integração entre países em desenvolvimento com economias assimétricas em seu peso e estrutura não deve se limitar a aspectos comerciais, devendo visar eliminar diferenças no desenvolvimento interno, e evitar a concentração dos benefícios da integração entre os atores maiores. (Conselho Mercado Comum, 2008CONSELHO MERCADO COMUM. 2008. Decisão nº 12/08: aprova o Programa de Integração Produtiva do Mercosul. San Miguel de Tucumán, 30 jun. 2008., preâmbulo)

Os objetivos do PIP são numerosos (Quadro 2).

Quadro 2
Objetivos do Programa de Integração Produtiva
Quadro 3
Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul

Também no campo produtivo, o Fundo de Apoio às Pequenas e Médias Empresas foi aprovado em 2008. Em 2012, foi criado o Mecanismo de Fortalecimento Produtivo do Mercosul, com o objetivo de ajudar a fortalecer e diversificar a estrutura produtiva do bloco, que procurou aumentar a competitividade por meio de grandes projetos e iniciativas estruturais em setores identificados por acordo comum entre os países-membros.

A dimensão social

No âmbito social, em 2005 o Uruguai apresentou a proposta Somos Mercosul, que, sob a presidência argentina tornou-se o Programa Regional Somos Mercosul. A partir desse ano, começaram as Cúpulas da Sociedade Civil, que foram realizadas em paralelo com as Cúpulas de Chefes de Estado. Também foi aprovado o Fundo de Educação do Mercosul em 2005.

Aprovaram-se normas sobre a mobilidade das pessoas. O Acordo de Residência do Mercosul foi assinado em 2002, sendo ratificado pelos governos de esquerda, e sua posterior implementação permitiu a livre mobilidade dos cidadãos do Mercosul no bloco com apenas seu documento de identidade nacional. A Argentina, por meio do Programa Pátria Grande, e o Uruguai aprovaram legislações que, respeitando o espírito do Acordo de Residência, facilitou a instalação dos cidadãos do Mercosul em seu território. Desde 2010, a aprovação do Estatuto de Cidadania no Mercosul tem sido discutida (Mondelli, 2018MONDELLI, Marcelo. 2018. Elementos para profundizar la agenda del Mercosur ciudadano. Revista Mercosur de Políticas Sociales , v. 2, pp. 34-59.). Em 2008, o Instituto de Política Pública de Direitos Humanos foi criado para implementar políticas de direitos humanos em questões como memória, verdade e justiça sobre violações de direitos humanos, violência e segurança ou proteção da comunidade LGBTI. Também foram criadas áreas institucionais para formas alternativas de organização económica, como agricultura familiar e cooperativas (Abramovich, 2013ABRAMOVICH, Víctor. 2013. Derechos humanos en el marco del proceso de integración regional en el Mercosur. Revista da Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão, v. 1, n. 2, pp. 351-361.; Mencato, 2019MENCATO, Stephany Dayana Pereira. 2019. Gênero, Agenda 2030 e Mercosul. Revista Mercosur de Políticas Sociales, v. 3, pp. 201-217.).

O desenvolvimento de um Plano Estratégico no âmbito social foi discutido na XX Cúpula de Córdoba de 2006, e um projeto foi apresentado na Cúpula do Mercosul em Salvador de Bahia em dezembro de 2008, que se materializou no documento Eixos, Diretrizes e Objetivos Prioritários do Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul (Peas), aprovado na Cúpula de Assunção realizada em 2011. O Peas é composto por dez eixos, 26 diretrizes e diversos objetivos prioritários, e “representa a primeira iniciativa conjunta de consecução de projetos sociais em nível regional” (Guilherme e Reis, 2018GUILHERME, Rosilaine Coradini; REIS, Carlos Nelson dos. 2018. Plano Estratégico de Ação Social do Mercosul: a transferência de renda em contexto de ofensiva neoliberal. Revista Katálysis, v. 21, n. 1, pp. 108-116., p. 112) (Quadro 3).

E a dimensão comercial?

Um fato que se pode observar durante o período pós-hegemónico é que o fortalecimento das dimensões sociais e produtivas foi acompanhado por alguma degradação da dimensão comercial no processo de integração. Vários autores têm enfatizado que durante esse período pouco progresso tem sido feito no objetivo original de estabelecer um mercado comum. Por exemplo, no que diz respeito à área de livre comércio, foram estabelecidas medidas não tarifárias, como licenças de importação não automáticas e outros equivalentes, e medidas contrárias à concorrência económica, como salvaguardas, direitos antidumping e direitos de compensação (Zelicovich, 2015ZELICOVICH, Julieta. 2015. El Mercosur a 20 años del Protocolo de Ouro Preto: un balance de la dimensión comercial. Revista Latino americana deDesarrollo Económico , n. 24, pp. 97-120.). Também não houve avanços na união aduaneira, que continua sendo “imperfeita”; inclusive, a tarifa aprovada no Protocolo de Ouro Preto tem sido modificada devido a pedidos de exceções (Zelicovich, 2015ZELICOVICH, Julieta. 2015. El Mercosur a 20 años del Protocolo de Ouro Preto: un balance de la dimensión comercial. Revista Latino americana deDesarrollo Económico , n. 24, pp. 97-120.). Além disso, o outro elemento de uma união aduaneira, a política comercial comum, também não avançou durante o período pós-hegemónico, uma vez que não houve ação conjunta nas negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, e a assinatura de acordos comerciais com outros países ou blocos regionais ficou quase paralisada.

A crise do “novo Mercosul”

Pode-se argumentar que as dificuldades do Mercosul da era pós-hegemónica começaram com o golpe de Estado no Paraguai contra o presidente Lugo em 2012. O fim do governo de Lugo acabou com o consenso ideológico que existia desde 2008, e o novo governo de Federico Franco não mostrou sinais de adotar uma posição pragmática semelhante àquela seguida pelo governo de Nicanor Duarte. O golpe no Paraguai e a suspensão do país do bloco foram usados para formalizar a adesão da Venezuela como membro pleno. Embora o Protocolo de Caracas tenha sido assinado em 2006, ele não tinha entrado em vigor devido à recusa do Congresso paraguaio em aprová-lo. Na Cúpula de Mendoza de 2012, na qual o Paraguai foi suspenso, a Venezuela foi aceita como um novo membro pleno. Isso foi contestado pelo governo paraguaio, que rejeitou as decisões tomadas em Mendoza perante o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. No final, o Tribunal não validou as demandas paraguaias.

Existia também nos países do bloco um debate a respeito do suposto abandono da dimensão comercial. Em 2013, projetos de macrorregionalismo, como o Tratado de Parceria Transpacífico e o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento, pareciam ser a nova modalidade para impulsionar o comércio global. O Mercosul estava excluído desses processos ou da assinatura de acordos inter-regionais ou transregionais, como o Acordo de Associação com a União Europeia. No plano intra-Mercosul, enfatizou-se que o livre comércio intrabloco não estava avançando e que havia aspectos não resolvidos, como as medidas unilaterais do Brasil e da Argentina. Isso era válido, mas a questão do comércio intrabloco é mais complexa, pois embora seja verdade que o nível de intercâmbio da década de 1990 não tenha sido alcançado de novo, o comércio intrarregional teve períodos de crescimento. No Gráfico 1 pode-se observar o desempenho irregular do comércio de bens intra­-Mercosul entre 2007 e 2020. Entre 2007 e 2016, o último ano do período pós-hegemónico, o comércio foi irregular: alguns anos cresceu, outros decresceu.

O fim do “novo Mercosul” acelera-se com o triunfo de Mauricio Macri na Argentina e o impeachment de Dilma Rousseff e sua substituição por Michel Temer no Brasil. Na Argentina, Macri criticou a entrada da Venezuela e priorizou a dimensão comercial do bloco, promovendo mesmo sua transformação em uma área de livre comércio, o que permitiria aos países negociar acordos com terceiros unilateralmente. O Brasil também propôs flexibilizar o Mercosul, processo que era visto pelo chanceler José Serra como uma camisa de força para o país (Mello, 2016MELLO, Patrícia Campos. 2016. Valorização do real pode prejudicar retomada econômica, diz José Serra. Folha Digital, 25 maio 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x80Tvb >. Acesso em: 20 abr. 2021.
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). Além disso, o Brasil abandonou qualquer tentativa de exercer liderança regional não só no Mercosul, mas também na América do Sul, acabando com a estratégia que havia começado com Itamar Franco em 1994.

Gráfico 1
Comércio de bens intra-Mercosul (2007-2020)

FOB: Free on Board; US$: dólares americanos.


Em ambos os países, retomou-se uma lógica de regionalismo na qual o Mercosul era um mecanismo para inserir seus países na economia global. No caso do governo de Macri, foi promovido um discurso de inserção económica e de fim do isolamento político que o país teria experimentado na era kirchnerista. No caso de Temer, também foi salientada a necessidade de ampliar a inserção internacional. Assim, houve um retorno das iniciativas de integração norte-sul, como no caso da retomada e finalização das negociações de um acordo estratégico entre o Mercosul e a União Europeia, o interesse de Macri em aderir ao Tratado de Parceria Transpacífico, ou o desejo de assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos.

A agenda de integração mudou. O comércio estava mais uma vez no centro. A agenda social e produtiva passou para um segundo plano. Contudo, em vez de tentar resolver velhos problemas comerciais no interior do bloco, a nova estratégia priorizou as negociações externas. A finalização das negociações com a União Europeia e a convergência com a Aliança do Pacífico foram as prioridades iniciais, mas, em seguida, foi adicionada a negociação de acordos com a Associação Europeia de Livre Comércio, o Canadá, Cingapura e a Coreia do Sul, bem como o aprofundamento dos acordos de preferência comercial com a Índia e Israel. Na nova agenda, o progresso institucional e a defesa da democracia também foram interrompidos, devido à re­jeição do Paraguai ao Protocolo de Ushuaia II e a suspensão da eleição direta dos membros do Parlamento do Mercosul. Em respeito ao processo de alargamento, a velocidade no processo de entrada da Bolívia como membro pleno foi reduzida, enquanto a Venezuela foi suspensa do bloco em 2017.

Com a chegada ao poder de Jair Bolsonaro no Brasil e de Alberto Fernández na Argentina, o cenário do Mercosul pode ser diferente. Depois do triunfo de Alberto Lacalle Pou no Uruguai, a maioria dos governos liberais persiste, mas a dinâmica interna do grupo variou. Por um lado, o governo de Fernández pode tentar reordenar a agenda do bloco e fazer da integração intra-Mercosul o tema mais importante, procurando também reduzir a velocidade das negociações externas. Em maio de 2020, o governo argentino recomendou cautela nas negociações com países como a Coreia do Sul, enquanto Bolsonaro, Abdo Benítez e Lacalle Pou apoiam tais acordos. A presença de Bolsonaro representa um cenário de potencial conflito, pois ele e Fernández têm diferenças pessoais, o que não é positivo para um bloco fortemente presidencialista. O “hiperliberalismo” do grupo achegado a Bolsonaro propõe uma reforma comercial radical no bloco, que implica, por exemplo, uma redução da tarifa externa comum média de 14% para 7%. Esse tipo de reforma dificilmente será aceito pela Argentina. Também é retomada a ideia de “flexibilização” do Mercosul. Numa visita de Lacalle Pou a Brasília em fevereiro de 2021, foi anunciada esta “flexibilização”. Ainda não se sabe se Argentina apoiará esse projeto.

Explicando o Mercosul da era pós-hegemónica e suas limitações

Especialistas como Paulo Roberto de Almeida (2015ALMEIDA, Paulo Roberto de. 2015. Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: una sombra pronto seras… Uma Certa Ideia do Itamaraty, 10 jan. 2015. [Não paginado]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x3xzG6 >. Acesso em: 8 jan. 2021.
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) criticaram desde o início a estratégia de aprovar uma série de objetivos novos sem ter concluído uma agenda pendente, especialmente no campo comercial. Por isso, Almeida (2015ALMEIDA, Paulo Roberto de. 2015. Brasil-Argentina e o Consenso de Buenos Aires: una sombra pronto seras… Uma Certa Ideia do Itamaraty, 10 jan. 2015. [Não paginado]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3x3xzG6 >. Acesso em: 8 jan. 2021.
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) afirma que no bloco estava se produzindo uma “fuga para frente”. Na verdade, mesmo se a ampliação de agenda para incluir temas sociais e produtivos não implicasse um abandono da agenda comercial, isso foi o que aconteceu em grande parte no período pós-hegemónico. No Mercosul existia (e ainda existe) uma agenda comercial não concluída. A união aduaneira é ainda imperfeita depois de três décadas; a eliminação das exceções na zona de livre comércio e um maior esforço na coordenação de políticas económicas são objetivos ainda não atingidos. Esses problemas foram deixados de lado. No período pós-hegemónico proliferaram medidas unilaterais, especialmente de Argentina e Brasil, que têm limitado o aperfeiçoamento da zona de livre comércio. Para Zelicovich (2015ZELICOVICH, Julieta. 2015. El Mercosur a 20 años del Protocolo de Ouro Preto: un balance de la dimensión comercial. Revista Latino americana deDesarrollo Económico , n. 24, pp. 97-120.), a implementação dessas medidas evidenciava uma preferência pelos mercados domésticos, o que resultou em diversas reclamações, confrontos e reivindicações entre os países do bloco. O unilateralismo - bilateralismo argentino-brasileiro e as evidentes assimetrias ao interior do bloco - provocaram demandas de parte de Paraguai e Uruguai, que consideravam que o bloco era cada vez mais assimétrico. Por isso, os dois países tentaram individualmente negociar acordos de livre comércio com Taiwan e Estados Unidos, respectivamente. Os acordos nunca foram finalizados devido às normas do Mercosul, que exigem negociações em bloco.

Houve também tensões políticas, como o conflito entre Argentina e Uruguai devido à instalação de uma fábrica de celulose perto das cidades fronteiriças de Fray Bentos e Gualeguaychu, as críticas à admissão de Venezuela como membro pleno do bloco e o bloqueio de facto a essa admissão feita pelo congresso paraguaio, e o golpe de Estado contra o presidente Lugo e a incorporação de Venezuela aproveitando a suspensão do Paraguai em 2012. Apesar das afinidades ideológicas, esses conflitos políticos afetaram o desenvolvimento da agenda pós-liberal do Mercosul.

Sem dúvida, a maior limitação do Mercosul pós-hegemónico tem sido os limitados avanços nas dimensões sociais e produtivas, os estandartes dos governos de esquerda. Os casos do PIP e do Peas servem como exemplos para explicar os obstáculos do “novo Mercosul”. Como se observa nos quadros 2 e 3, o Peas e o PIP são projetos maximalistas que pretendiam impulsionar grandes transformações sociais e produtivas no Mercosul - mas é valido perguntar se existiam condições políticas, económicas, financeiras e institucionais para atingir tais metas.

No caso do PIP e da implementação de políticas comuns de desenvolvimento, é necessária uma estratégia compartilhada tanto pelos Estados quanto pelos atores do setor produtivo, implicando forte vontade política. A integração produ­tiva está ligada à solução de problemas complexos, como emprego, assimetria entre os setores produtivos e entre países, e a formação de cadeias produtivas. Mais uma vez, isso demanda vontade política, recursos e instituições que o Mercosul não tem.

No caso do Peas, para apenas mencionar alguns dos eixos incluídos, foram estabelecidas metas como erradicar a fome, a pobreza e combater as desigualdades sociais; universalizar a saúde pública, a educação e erradicar o analfabetismo; garantir o acesso a direitos de trabalho e seguridade social (Quadro 3). O alcance dessas metas supõe a aplicação de políticas públicas regionais e recursos significativos. A primeira pergunta que surge imediatamente é: qual é a fonte desses recursos? O Mercosul não tem impostos comunitários para pagar os programas necessários para atingir essas metas, e nesse caso caberia aos Estados financiar esses eixos estabelecidos no Peas. Por fim, questiona-se se, apesar das Cúpulas Sociais, os atores da sociedade civil fizeram parte das negociações para estabelecer projetos de política social regional.

Conclusões

A revisão do modelo de integração era uma demanda compartilhada nos espaços políticos e académicos do Mercosul no início do novo milénio. Existia certo consenso a respeito da necessidade de fortalecer as dimensões sociais e produtivas do bloco, solucionar suas limitações no âmbito comercial e institucional e ampliar sua agenda política. Diversas ações no âmbito social e produtivo, em particular projetos como o PIP e o Peas, uma comprometida agenda política e algumas reformas institucionais foram implementadas na era pós-hegemónica. Isso era uma expressão de um grande voluntarismo e desejo de transformar o bloco.

Contudo, voluntarismo não é suficiente. Apesar da coincidência ideológica, existiam conflitos entre países. Os atores do setor produtivo não se sentiam envolvidos no projeto de um “novo Mercosul”, no qual a dimensão comercial parecia estar em segundo plano. Apesar das Cúpulas Sociais, organizações não governamentais e movimentos sociais também não foram decisivos na nova agenda social. Por outro lado, a adoção de grandes macroprojetos como o PIP e o Peas foi uma estratégia maximalista e irrealista em termos de sua possível implementação. Talvez os resultados tivessem sido diferentes se uma agenda mais limitada tivesse sido promovida, sobre certas questões específicas a respeito das quais havia consenso regional e viabilidade para avançar. O caso de Acordo de Residência é um exemplo disso.

Com a volta ao poder de governos de direita e centro­-direita, o Mercosul retomou a agenda do regionalismo aberto, ainda mais aprofundado. Cinco anos após o início desta nova etapa, o bloco, especialmente no campo comercial, permanece tão estagnado quanto na era pós-hegemónica. No entanto, as declarações de Lacalle Pou na Cúpula Virtual do Mercosul de julho de 2020 mostram que a demanda pelo Mercosul social permanece em vigor. Algo semelhante ocorre com as propostas de um Mercosul produtivo. Isso significaria que, embora a agenda do “novo Mercosul” possa não ter sido implementada da maneira mais adequada, ela continua sendo relevante para um projeto de região que acolha as demandas de todos os atores. Contudo, a proposta de “flexibilização” do bloco não é a solução e enfraquecerá ainda mais o projeto regional.

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    Este trabalho foi apoiado pelo projeto Unam-Papiit IA300320, “Regionalismo latino-americano: crise e resiliência”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2021
  • Aceito
    04 Mar 2021
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