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Análise de dois setores no mercado de trabalho: efeitos do Plano Real* * Gostaríamos de agradecer a André Urani e a Marcelo Neri pelas sugestões, isentando-os de qualquer erro presente neste trabalho.

Analysis of two sectors in the labor market: effects of the Real Plan

RESUMO

O plano econômico do governo brasileiro denominado “Real” afetou o mercado de trabalho dos setores comercializáveis e não comercializáveis de diferentes maneiras. A política cambial e o processo orientado para o livre mercado adotado provocaram mudanças nos preços relativos em favor do setor não comercializável. Este artigo mostra o aumento da força de trabalho neste setor e uma redução da diferença entre a renda do setor comercializável e não comercializável. Além disso, mostra a melhoria dos indicadores de pobreza da força de trabalho, especialmente aqueles relacionados ao setor informal. Este artigo é baseado em dados do PME-IBGE (região metropolitana de São Paulo, 1994, 1995 e 1996FIBGE. (1994-6). Pesquisa Mensal de Emprego (PME).).

PALAVRAS-CHAVE:
Ocupação; diferencial de salários; pobreza; Plano Real

ABSTRACT

Brazilian government economic plan named “Real” affected the tradable and non- tradable sectors labor market in different ways. The exchange policy and the free-market oriented process adopted provoked changes in relative prices in favour of the non- tradable sector. This article shows the increasing of the labor force in this sector and a reduction of the gap between tradable and non-tradable sector income. Furthermore, it shows the improving in labor force poverty indicators, specially those related to the informal sector. This article is based on data from PME-IBGE (metropolitan region of São Paulo, 1994, 1995 and 1996FIBGE. (1994-6). Pesquisa Mensal de Emprego (PME).).

KEYWORDS:
Occupation; wage differentials; poverty; Real Plan

I. INTRODUÇÃO

O processo de estabilização econômica iniciado em 1994 promove, em um primeiro momento, a expansão do nível de atividade, em decorrência do aumento do dispêndio agregado, em particular consumo e investimento. A política cambial adotada e o aprofundamento do processo de abertura comercial contribuem para promover mudanças nos preços relativos em favor do setor de bens não-comercializáveis. A combinação desses efeitos repercute sobre o mercado de trabalho, incrementando a ocupação nesse setor e reduzindo o diferencial de rendimentos entre trabalhadores.

A partir de 1995, a manutenção de déficits no balanço de pagamentos associada ao aquecimento da demanda, levam o governo a adotar política monetária contracionista, influindo negativamente sobre o nível de atividade e, por extensão, de emprego.

No que concerne à pobreza individual, os indicadores têm apresentado resultados razoáveis, evidenciando ser o processo inflacionário um mal maior para o segmento menos protegido da população.

Na verdade, verifica-se a presença de um “paradoxo”, na medida em que aumentam as taxas de desemprego e a participação do setor informal na absorção de mão-de-obra e, ao mesmo tempo, uma melhoria no nível de rendimento dos segmentos da cauda inferior da distribuição de renda.

O texto pretende contextualizar esse “paradoxo”. Para tanto, está dividido em quatro partes. Na primeira, descreve-se a metodologia a ser adotada. Em seguida, analisa-se a política macroeconômica no período 1994 a 1996, enfocando variáveis relativas ao câmbio, moeda e demanda agregada. Nas seções posteriores, avaliam-se os efeitos dessa política sobre o mercado de trabalho e a pobreza, tendo por referência a divisão de setor bens comercializáveis e não-comercializáveis.

2. METODOLOGIA

A presente análise segue uma metodologia em dois estágios, tal como descrita por Addison e Demery (1994ADDISON, T. & DEMERY, L. (1994). “The poverty effects of adjustment with labor market imperfections”. HORTON, R.K. & BIBAK, M. (orgs). Labor market in an era of adjustment. Washington: Banco Mundial.). Através dela, observa-se, inicialmente, os impactos de políticas macroeconômicas sobre o meso e, em seguida, os impactos deste sobre a dimensão micro.

O meso abrange três componentes: os mercados, podendo ser de fator ou de produto, nos quais as unidades microeconômicas transacionam; a infraestrutura físico-econômica e alguns serviços não providos pelo mercado (telecomunicações, energia etc.); a infraestrutura social, fundamentalmente serviços de saúde e educação. Para fins desta pesquisa, a análise do meso restringe-se apenas ao mercado de trabalho. Neste âmbito, busca-se avaliar os efeitos do Plano Real sobre os níveis de ocupação e de rendimento, segundo os setores bens comercializáveis e não-comercializáveis, por posição na ocupação.

A dimensão micro, por sua vez, compreende as condições de domicílio e individuais como nível de pobreza, distribuição da renda pessoal ou familiar, entre outras. Essa abordagem micro é feita no contexto individual, enfocando a influência das mudanças macro e meso sobre o bem-estar, medido pelas condições de pobreza.

A divisão por setor justifica-se pela ênfase do plano de estabilização na âncora cambial que, associada à abertura comercial, tende a promover mudanças significativas no perfil da absorção doméstica. Definimos por setor comercializável todos os ramos industriais e por não-comercializável, todo o setor serviços. Trata-se de uma agregação genérica1 1 Dentro da indústria, existem vários ramos que não produzem bens destinados à exportação, como alimentos, têxtil etc. A agricultura e a indústria extrativa não são consideradas porque são inexpressivas na esfera urbana (Barros et al., 1996). , em virtude da necessidade de facilitar a análise de dados e por não ser objetivo do trabalho criar uma tipologia específica.

Posição na ocupação está definida pelos grupos empregados com carteira assinada e “outros”. Este último engloba os empregados sem carteira, empregadores2 2 A categoria de empregadores, tal como conceituada nas pesquisas domiciliares, refere-se a pequenos empresários, empregadores de até aproximadamente vinte trabalhadores, caracterizando-se, portanto, como típica do setor informal. Por outro lado, o setor formal da economia é definido como sendo composto por todos os trabalhadores que têm registro profissional. e trabalhadores por conta própria. O propósito dessa agregação é destacar a segmentação formal/informal do mercado de trabalho, utilizando um dos conceitos existentes.

Os dados utilizados são extraídos da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE (PME-IBGE)3 3 A PME traz desvantagem na mensuração da pobreza porque considera apenas os rendimentos do trabalho. Outras pesquisas, como a PNAD, incluem outras fontes de renda: benefícios previdenciários, aluguéis e do capital em geral. Essa maior abrangência possibilita avaliar o verdadeiro nível de renda das famílias e o grau de solidariedade entre seus membros, fatores importantes para a determinação do nível de pobreza (Rocha, 1996). A escolha da PME, no entanto, atende ao interesse do trabalho de captar um período mais recente e, além disso, os quadrimestres dos respectivos anos. A última PNAD disponível é a de 1995 e essa pesquisa só fornece informações para um mês do ano, setembro. para a região metropolitana de São Paulo (RMSP). A referência é o primeiro quadrimestre dos anos 1994, 1995 e 1996.

A escolha da RMSP justifica-se por ser o polo mais desenvolvido do país e, portanto, sujeito a sofrer, com maior intensidade e rapidez, os impactos de políticas macroeconômicas. Em termos de cenário nacional, São Paulo se destaca pela maior participação da produção industrial, especialmente a destinada ao mercado externo. Uma vez que as políticas implementadas ao longo deste período alteram os preços relativos entre os setores industrial e de serviços, o nível de atividade econômica recebe um impacto maior nessa região.

Ademais, a reestruturação do setor industrial, consolidada na década de 90, atinge a RMSP não só por exigir maior reorganização interna das empresas, mas também por redirecionar a instalação de novas plantas industriais para outras áreas além da fronteira paulistana4 4 Rocha (1996). .

3. CAMINHOS DA POLÍTICA MACROECONÔMICA NO PLANO REAL

Desde o início dos anos 80, o Brasil convive com altas e persistentes taxas de inflação. Vários programas de estabilização implantados não foram bem-sucedidos. O Plano Real vem se diferenciando dos anteriores por registrar taxas de inflação mais baixas por um intervalo de tempo maior.

O rápido decréscimo da taxa de inflação observado pós-Plano se deve a uma combinação de medidas econômicas no contexto nacional, especialmente monetárias e cambiais, e a uma conjuntura internacional favorável.

Nesta seção, procura-se evidenciar as principais medidas desse arranjo macroeconômico e os efeitos sobre a demanda agregada nos períodos correspondentes a três fases selecionadas do Plano: primeiros quadrimestres de 1994, 1995 e 1996, respectivamente.

No primeiro quadrimestre de 1994, os efeitos da estabilização são imediatos, ocorrendo rápida redução da taxa de inflação. A mudança no padrão monetário é acompanhada pela remonetização da economia, as expectativas inflacionárias dos agentes econômicos são minoradas e, consequentemente, o nível de confiança na nova moeda nacional aumenta.

Pelo lado do dispêndio agregado, ocorre contínua elevação dos níveis de investimento e do consumo das classes de renda mais baixas, favorecidas pela redução da taxa de inflação e pela maior oferta de crédito5 5 Boletim Conjuntural. IPEA. .

O aquecimento do dispêndio global leva as autoridades monetárias, em agosto de 1994, a contrair o crédito bancário. A expansão da oferta monetária poderia significar revigoramento de pressões inflacionárias e, sobretudo, contribuir para reduzir o diferencial entre as taxas de juros internas e externas, o que tenderia a enfraquecer o instrumento da âncora cambial no processo de estabilização econômica.

No final de 1994, a desaceleração na entrada de capital estrangeiro provocada pela crise cambial do México combinada ao aumento do volume de importações intensificam as dificuldades no balanço de pagamentos.

A resposta do governo é a desvalorização da moeda em 7% através da criação de uma banda cambial, o restabelecimento de diversas tarifas de produtos importados e mais um aumento das taxas de juros nominais.

Apesar da percepção do leve declínio da atividade econômica decorrente das políticas contracionistas, o primeiro quadrimestre de 1995 continua apresentando um desempenho superior ao ano anterior. Em contrapartida, a partir do segundo quadrimestre, os efeitos das medidas monetárias passam a refletir sobre as variáveis de dispêndio agregado.

Novamente, o governo redireciona a política monetária, no sentido agora de incentivar a demanda, flexibilizando as restrições de crédito e reduzindo a taxa de juros nominal. Em virtude disso, a produção industrial recupera-se lentamente, ainda mantendo, contudo, performance inferior ao mesmo período do ano de 1994.

Assim, a primeira fase do Plano descrita nessa seção, período de janeiro a abril de 1994, caracteriza-se por um momento de transição do padrão monetário, quando ainda se conviviam com elevadas taxas de inflação. No primeiro quadrimestre de 1995, obtém-se a consolidação da estabilização, combinada a euforia dos agentes econômicos, registrada no aumento do nível de demanda agregada. Na terceira fase, janeiro a abril de 1996, os efeitos das medidas contracionistas ainda são sentidos, apesar da flexibilização da política monetária. Retoma-se o crescimento, mas em um ritmo menos acelerado do que o observado no início de 1995.

4. EFEITOS SOBRE O MESO: MERCADO DE TRABALHO

As políticas monetárias, cambiais e fiscais adotadas têm efeitos no ambiente macro que, consequentemente, afetam o mercado de trabalho. Esse impacto é explicitado pelas modificações ocorridas nos níveis de emprego e rendimentos entre os setores de atividade e entre as posições na ocupação.

A valorização do câmbio, decorrente da opção de adoção da ancoragem dessa variável nominal, associada ao aprofundamento da abertura comercial refletem sobre a estrutura produtiva e ocupacional. A mudança dos preços relativos em favor dos setores não-comercializáveis é o melhor indicador desse processo. Há um aumento de custo de produção em dólares dos bens voltados para o mercado externo. Como os preços finais desses produtos não são passíveis de reajustes, em virtude da maior oferta de importados no mercado doméstico, ocorre uma redução das margens de lucros das empresas responsáveis pela geração de bens comercializáveis.

Diante da maior concorrência, esses ramos industriais e os segmentos de serviços a eles associados necessitam realizar mudanças na esfera produtiva com o intuito de melhorar os níveis de produtividade e qualidade de seus produtos6 6 “A abertura comercial influencia o comportamento da economia brasileira via dois canais fundamentais. Por um lado, a abertura traz uma profunda mudança nos preços relativos, os quais, por sua vez, induzem mudanças na estrutura da demanda da produção doméstica. Por outro lado, a abertura estimula a incorporação de novas tecnologias e métodos organizacionais, com repercussões diretas sobre a produtividade e competividade das empresas brasileiras. Esses dois canais levam a uma série de ajustes de curto e longo prazo no sistema produtivo e, por conseguinte, na estrutura de produção, do emprego e do salário na indústria.” Barros et al. (1996: 58). . Caso contrário, perdem parcelas de mercado para os produtores externos e optam por reduzir a força-de-trabalho empregada; em casos mais extremos, encerram a atividade produtiva.

Esse processo tende a deteriorar as condições do mercado de trabalho, na medida em que esses são os segmentos produtivos que normalmente absorvem maior proporção de mão-de-obra qualificada, pagam salários mais elevados e mantêm vínculos formais de trabalho (Camargo, 1995CAMARGO, J.M. (1995). “Crescimento com Desemprego”. Boletim Economia, Capital e Trabalho. Rio de Janeiro: PUC, vol. 2, n. 4, jan.).

Além disso, a política de manutenção das taxas de juros elevadas compromete a saúde financeira de várias empresas, atingindo indiscriminadamente setores comercializáveis ou não-comercializáveis.

O mercado de trabalho paulistano é, talvez, o melhor exemplo dos efeitos do Plano Real, que ocorreram principalmente sobre o nível de absorção de mão-de-obra industrial e sobre a criação e manutenção dos postos de trabalho formais.

A região metropolitana de São Paulo apresenta significativa participação de trabalhadores com carteira assinada. Aproximadamente 51% da população ocupada desta região possui vínculos formais, enquanto o restante está à margem do mercado de trabalho registrado7 7 Boletim mercado de trabalho: conjuntura e análise, IPEA .

De acordo com a tabela 1, a participação de ocupados no setor comercializável é cerca de 26%, ao passo que no setor não-comercializável é aproximadamente de 74%. No caso da média das seis regiões metropolitanas8 8 Recife, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. , a participação relativa de mão-de-obra no setor de bens não-comercializáveis é cerca de 20% segundo dados da PME-IBGE.

Tabela 1
Absorção de Mão-de-Obra nos Setores Comercializável e Não-Comercializável Médias do Primeiro Quadrimestre

Quanto à evolução dos ocupados na RMSP, observa-se um aumento de 4% na absorção de mão-de-obra no setor comercializável no período de 1995 em comparação ao mesmo período de 1994, seguido por redução de 11% em 1996.

Tal comportamento sugere que o nível de atividade industrial em todo esse período é mais sensível às medidas monetárias do que a política externa propriamente dita. Mesmo com a efetivação de medidas favoráveis ao setor comercializável, como a desvalorização do real e o reestabelecimento de algumas tarifas comerciais, a inflexão ascendente da taxa de juros ocorrida no início do ano de 1995 tende a apresentar impacto negativo mais intenso sobre o dinamismo desse setor.

A flexibilização monetária no final de 1995 não é suficiente, no entanto, para recuperar a absorção de mão-de-obra industrial em patamar equivalente ao observado em 1994. A queda da demanda interna e o aumento dos custos de produção na indústria reduzem a taxa de lucro, desestimulando o investimento.

De outro modo, o acréscimo da participação de ocupados no setor de bens não-comercializáveis em 1996 deve ser explicado por esse setor não estar sujeito à concorrência internacional e, especialmente, por ser uma alternativa de sobrevivência aos desempregados, na medida que os instrumentos institucionais de apoio a esses trabalhadores não são eficientes.

A tabela 2 mostra um aumento do grau de informatização no mercado de trabalho paulistano, devido à redução da participação dos empregados com carteira assinada em ambos os setores. Em janeiro de 1994, no setor comercializável, empregados com carteira assinada representam cerca de 78% da força-de-trabalho ocupada e o segmento “outros” tem participação de 22%.

Tabela 2
Participação Pessoal Ocupado por Setor, segundo Posição na Ocupação (%) - Médias do Primeiro Quadrimestre

No setor não-comercializável, essas participações são de 46% e 54%, respectivamente. Dois anos depois, os empregados registrados reduzem sua participação em aproximadamente três pontos percentuais (tabela 2).

No tocante à renda média relativa, observa-se que o rendimento médio do setor comercializável em relação ao não-comercializável (tabela 3) reduz de 1,32 no primeiro quadrimestre de 1994 para 1,14 no de 1996. Parte desse decréscimo pode ser atribuída à mudança dos preços relativos em detrimento do setor comercializável.

Tabela 3
Renda Média Relativa Médias do Primeiro Quadrimestre

Dentro de cada setor, decresce a renda média dos empregados com carteira em relação ao segmento “outros”. O indicador de renda média relativa passa de 1,16 para 1,08, e de 1,18 para 0,94 nos setores de bens comercializáveis e não-comercializáveis, respectivamente.

Possivelmente, essa evolução do rendimento do empregado com carteira nos dois setores, em especial não-comercializável, está relacionada à ausência de política salarial, que é o mecanismo institucional regulador dos reajustes salariais do trabalho registrado. As modificações no nível salarial ficam sujeitas, portanto, à livre negociação que depende, em grande parte, da capacidade de organização dos trabalhadores. No caso do setor não-comercializável, essa situação é ainda mais perversa, dada a presença de sindicatos menos representativos.

Além disso, esse período não é favorável para a barganha salarial, devido ao aumento do desemprego. Em março de 1995, a taxa de desemprego pela PME-IBGE é 4,57%, em dezembro de 1995 passa a ser 6,29%.

Por outro lado, como no segmento ocupacional “outros”, o fluxo de renda é determinado mais pelo nível de atividade do que por mecanismos institucionais de reajuste. O maior volume de negócios, especialmente no setor de bens não-comercializáveis, favorece o nível de rendimento desse grupo.

Embora o rendimento médio dos trabalhadores com carteira no setor comercializável volte, em 1996, a ser superior ao rendimento do segmento “outros”, a dispersão da renda entre esses grupos não atinge o nível do início de 1994.

5. EFEITOS SOBRE A POBREZA INDIVIDUAL

O intuito da análise das tabelas 4 e 5 é avaliar o impacto das medidas macroeconômicas sobre a pobreza. Não há um consenso na literatura quanto à definição de pobreza. Geralmente, considera-se como pobre o indivíduo que recebe um nível de rendimento inferior ao necessário para prover as condições mínimas para sua sobrevivência - a linha de pobreza9 9 A linha de pobreza utilizada segue definição de Sônia Rocha, assumindo o valor de Cr$ 2.856,15 em setembro de 1987 e corrigido pelo INPC para os meses subsequentes. .

Tabela 4
Índice de Foster - Setor Comercializável Médias do Primeiro Quadrimestre
Tabela 5
Índice de Foster - Setor Não-Comercializável

Um dos mais completos indicadores de mensuração da pobreza é o índice de Foster, Greer e ThorbeckeFOSTER, GREER & THORBECKE (1984). “A class of decomposable poverty measures”. Econometrica, 52.. A composição desse índice permite o conhecimento de três aspectos da pobreza. O mais trivial entre eles é a proporção de pobres (PVO), ou seja, a participação do número de indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior à linha de pobreza no total da população. A intensidade da pobreza (PV 1) não só informa sobre a proporção de pobres como também sobre a diferença de renda do indivíduo em relação à linha de pobreza. O PV2 é uma combinação desses dois indicadores com o grau de desigualdade entre os pobres, através do somatório da potenciação dos hiatos de renda relativa a cada um dos pobres (Rocha, 1996ROCHA, S. (1996). Renda e Pobreza: Os impactos do Plano Real. Rio de Janeiro: IPEA, mimeo, mai.).

P V α = 1 / n i = 1 q Σ [ ( Y p - Y i ) / Y p α ]

onde:

  • PVα: índice de Foster. O parâmetro ex assume o valor 0, quando a intenção é medir a proporção de pobres; o valor 1, quando se deseja medir além da proporção, a intensidade da pobreza e, por fim, o valor 2, para considerar também a desigualdade entre pobres. Quanto maior o ex, maior o peso destinado aos indivíduos que percebem rendimentos mais baixos.

  • n: tamanho da população no grupo10 10 Consideram-se quatro grupos: empregados com carteira no setor comercializável; outros no setor comercializável; empregados com carteira no setor não-comercializável e outros no setor não-comercializável.

  • q: nº de indivíduos abaixo da linha de pobreza no grupo

  • Yp: linha de pobreza

  • Yi: renda dos indivíduos pobres no grupo

Na análise do impacto das mudanças no mercado de trabalho sobre a pobreza, faz-se uso do índice de Foster, calculado para todas as desagregações contidas nesse trabalho.

No setor de bens comercializáveis, a incidência e a intensidade da pobreza e a desigualdade entre os pobres é menor no segmento empregados com carteira assinada em comparação ao segmento “outros”. Pela tabela 4, pode-se verificar o efeito positivo do Plano Real sobre os aspectos analisados da pobreza, na medida em que todos os indicadores sofrem redução.

O PV0 diminui cerca de 21 % no segmento empregados registrados no período analisado, apesar de um aumento de 9% em 1995. Possivelmente, o acréscimo na proporção de pobres no ano de 1995 se deve ao maior desemprego ocorrido entre os empregados com carteira. Por sua vez, a diminuição da pobreza ocorrida em 1996 pode estar associada ao aumento real do salário-mínimo em maio de 1995 (Neri, 1996NERI, M. (1996). “Estabilização, salário-mínimo e a redução recente da pobreza”. Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. Rio de Janeiro: IPEA, n. 2.).

Em relação ao grupo “outros”, a incidência da pobreza é reduzida também em 21%. Como não está sujeito a nenhum tipo de mecanismo institucional de reajuste de rendimentos, face ao aquecimento da demanda agregada, esse grupo reajusta o preço de seus serviços à revelia do processo de estabilização econômica, contribuindo para a diminuição da parcela de ocupados abaixo da linha de pobreza. A renda do ocupado no setor informal, particularmente trabalhadores por conta própria e empregadores, depende do seu poder de mercado, medido pelo tamanho da clientela, pelo tipo de produto e pela qualificação. Caso o indivíduo conte com vantagens em alguns desses quesitos, deterá um poder de mercado maior, o qual irá diferenciar o seu nível de rendimento em relação à média.

O PYl, que mede a intensidade e a proporção da pobreza, reduz-se em 44,84% e 14,80% nos grupos empregados registrados e outros, respectivamente. No caso de trabalhadores com carteira assinada, ocorre, na transição de 1994 para 1995, elevação de 15,56%. Essa evolução deve estar associada ao aumento da participação de pobres no grupo nesse período (9% conforme o PVO registrado na tabela 4).

O PV2 em todo o período diminui em ambos os grupos, com maior intensidade entre os empregados com carteira assinada (31,66%). O grupo “outros”, por sua vez, decresce em 3,87%. O menor ritmo de declínio desse indicador entre pobres no segmento “outros” pode ser atribuído à forma de determinação e ajuste de renda no setor informal.

A tabela 5, referente aos mesmos indicadores de pobreza da tabela anterior, agora para o setor não-comercializável, destaca-se da tabela 4 nas informações relativas: à proporção de pobres e intensidade de pobreza (PVl) no segmento empregados registrados; à dimensão do PVl e à redução do PV2 no segmento “outros”.

A maior proporção de pobres entre os trabalhadores com carteira assinada (em torno de 17%) e maior intensidade e proporção da pobreza (em média 4%) pode ser explicada pelo fato de o setor não-comercializável compreender os ramos dos serviços que tendem a pagar, em média, valores inferiores ao da indústria.

No segmento “outros” da mão-de-obra desse setor, a intensidade e proporção da pobreza (PV1) sofrem uma redução no período analisado, ao contrário do outro setor, que apresenta médias quadrimestrais similares nos anos de 1994 e 1995.

É interessante notar que o índice PV2 do segmento “outros” no setor de bens não-comercializáveis é menor comparativamente ao setor de bens comercializáveis. Esse indicador apresenta uma queda entre os primeiros quadrimestres dos anos de 1994 e 1995, permanecendo posteriormente constante.

Além disso, nesse setor verificam-se resultados semelhantes aos observados no setor comercializável. O índice de pobreza PV0 para o segmento de trabalhadores com carteira assinada se reduz. Em 1996, a proporção de pobres neste grupo diminui para 14%, apesar do aumento ocorrido em 1995 de dois pontos percentuais. Com relação aos indicadores PVl e PV2, as médias quadrimestrais têm um comportamento simi-lar, entretanto menos acentuado. O efeito da estabilização econômica sobre os diversos aspectos da pobreza parece ser favorável até o momento da análise.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O governo brasileiro, ao implantar uma política de estabilização com base em âncoras cambial e monetária, promove alterações no mercado de trabalho e no bem-estar da população. Os segmentos menos favorecidos da população ocupada apresentam melhorias nos níveis de rendimentos e redução dos indicadores da pobreza.

Na presente análise, essa evidência é mostrada pelo melhor desempenho do setor de bens não-comercializáveis, que é o mais beneficiado por esse tipo de política macroeconômica e, sobretudo, absorve cerca de 70% da mão-de-obra ocupada. No período estudado, além do acréscimo da ocupação nesse setor, ocorre uma redução no diferencial de rendimentos em relação ao de bens comercializáveis e um decréscimo mais expressivo nos indicadores de pobreza (PVl e PV2) no segmento informal desse setor.

Pela ótica da posição na ocupação, a categoria “outros” apresenta indicadores mais favoráveis. Como demonstrado na seção anterior, a proporção de pobres, a intensidade da pobreza e o nível de desigualdade entre os pobres sofrem redução ao longo do período em questão.

Dessa forma, observa-se a presença de um “paradoxo”, pois apesar do aumento das taxas de desemprego e da participação do setor informal na absorção de mão-de-obra, constata-se uma melhoria relativa das condições de pobreza.

A análise setorial do mercado de trabalho possibilita assim avaliar os efeitos de uma política macroeconômica que gera resultados bem diferenciados sobre a estrutura produtiva. Ademais, o mercado de trabalho torna-se fundamental para qualquer consideração a respeito de impactos de ajuste macroeconômico sobre nível de pobreza.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Dentro da indústria, existem vários ramos que não produzem bens destinados à exportação, como alimentos, têxtil etc. A agricultura e a indústria extrativa não são consideradas porque são inexpressivas na esfera urbana (Barros et al., 1996BARROS, R.P. et alli (1996). “O impacto da abertura comercial sobre o mercado de trabalho brasileiro”. Série Seminários, nº 3. Rio de Janeiro: IPEA.).
  • 2
    A categoria de empregadores, tal como conceituada nas pesquisas domiciliares, refere-se a pequenos empresários, empregadores de até aproximadamente vinte trabalhadores, caracterizando-se, portanto, como típica do setor informal. Por outro lado, o setor formal da economia é definido como sendo composto por todos os trabalhadores que têm registro profissional.
  • 3
    A PME traz desvantagem na mensuração da pobreza porque considera apenas os rendimentos do trabalho. Outras pesquisas, como a PNAD, incluem outras fontes de renda: benefícios previdenciários, aluguéis e do capital em geral. Essa maior abrangência possibilita avaliar o verdadeiro nível de renda das famílias e o grau de solidariedade entre seus membros, fatores importantes para a determinação do nível de pobreza (Rocha, 1996ROCHA, S. (1996). Renda e Pobreza: Os impactos do Plano Real. Rio de Janeiro: IPEA, mimeo, mai.). A escolha da PME, no entanto, atende ao interesse do trabalho de captar um período mais recente e, além disso, os quadrimestres dos respectivos anos. A última PNAD disponível é a de 1995 e essa pesquisa só fornece informações para um mês do ano, setembro.
  • 4
    Rocha (1996ROCHA, S. (1996). Renda e Pobreza: Os impactos do Plano Real. Rio de Janeiro: IPEA, mimeo, mai.).
  • 5
    Boletim Conjuntural. IPEAIPEA. (1994-6). Boletim conjuntural, todos os números..
  • 6
    “A abertura comercial influencia o comportamento da economia brasileira via dois canais fundamentais. Por um lado, a abertura traz uma profunda mudança nos preços relativos, os quais, por sua vez, induzem mudanças na estrutura da demanda da produção doméstica. Por outro lado, a abertura estimula a incorporação de novas tecnologias e métodos organizacionais, com repercussões diretas sobre a produtividade e competividade das empresas brasileiras. Esses dois canais levam a uma série de ajustes de curto e longo prazo no sistema produtivo e, por conseguinte, na estrutura de produção, do emprego e do salário na indústria.” Barros et al. (1996BARROS, R.P. et alli (1996). “O impacto da abertura comercial sobre o mercado de trabalho brasileiro”. Série Seminários, nº 3. Rio de Janeiro: IPEA.: 58).
  • 7
    Boletim mercado de trabalho: conjuntura e análise, IPEAIPEA. (1995-6). Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise, todos os números.
  • 8
    Recife, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre.
  • 9
    A linha de pobreza utilizada segue definição de Sônia Rocha, assumindo o valor de Cr$ 2.856,15 em setembro de 1987 e corrigido pelo INPC para os meses subsequentes.
  • 10
    Consideram-se quatro grupos: empregados com carteira no setor comercializável; outros no setor comercializável; empregados com carteira no setor não-comercializável e outros no setor não-comercializável.
  • 12
    JEL Classification: J21; J80.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1998
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