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“Os evangélicos” como nossos “outros”: sobre religião, direitos e democracia1 1 Este artigo foi escrito em agosto de 2018, alguns meses antes das eleições que levariam Jair Bolsonaro à presidência do país. Pouco mais de um ano depois, em setembro de 2019, o texto passou por uma intensa revisão, na tentativa de incorporar as importantes sugestões advindas das avaliações das(os) pareceristas da revista, a quem já agradeço. Eu preferi, porém, não “atualizar” o artigo durante a revisão. Busquei respeitar o contexto pré-eleitoral em que ele foi escrito e acabei concluindo que o cerne dos seus argumentos e análises não se alterou substancialmente nesse período, talvez mesmo se haja ratificado. Uma primeira e bem menor versão deste texto foi apresentada, em outubro de 2017, por ocasião do IV Encontro de Antropologia México - Brasil (EMBRA), na Unicamp. Agradeço enormemente a Isadora Lins França pelo diálogo e pelo convite para compor uma das mesas do evento e a Maria Filomena Gregori pelo inspirador debate acerta do artigo. Enfim, agradeço a Regina Facchini, Francisco Sá Barreto e Mariana Azevedo, por suas leituras e provocações a respeito do que aqui procuro discutir. Sempre e muito, aprendo a seu lado.

“The evangelicals” as our “others”: on religion, rights and democracy

Resumos

Resumo: Neste artigo, problematizo as fronteiras da oposição “nós” e “os evangélicos”, operacionalizada nos conflitos em que militantes e acadêmicos se acham implicados diante de pautas mobilizadas por integrantes da bancada evangélica relativas a gênero e sexualidade. Tal problematização se dá a partir de três excertos narrativos, dois “etnográficos” e um “advocatício”. Seu tratamento analítico objetiva a) localizar as religiosidades entre as experiências que constituem relações de classe, gênero, sexualidade etc.; e b) tematizar as conexões entre essas religiosidades, especialmente as evangélicas, e processos de produção de direitos e a experiência democrática. Com isso, a oposição “nós” e “os evangélicos” é posta em questão enquanto é localizada no interior dos conflitos em torno das fronteiras da democracia.

Palavras-chave:
evangélicos; gênero e sexualidade; direitos; democracia


Abstract: In this paper, I problematize the boundaries of the opposition “we” and “the evangelicals”, operationalized in conflicts in which militants and academics are implicated in the political guidelines mobilized by members of the “evangelical bench” and related to gender and sexuality. Such problematization takes place from three narrative excerpts, two “ethnographic” and one “lawyer”. The analytical treatment of these excerpts aims to a) locate the “religiosities” among the experiences that constitute social relations of class, gender, sexuality etc.; and b) to thematize the connections between these “religiosities”, especially the “evangelicals” ones, and the processes of production of rights and the democratic experience. Thereby, the opposition “we” and “the evangelicals” is called into question as it is located within the conflicts around the boundaries of democracy.

Keywords:
evangelicals; gender and sexuality; rights; democracy


A palavra democracia não foi inventada por um acadêmico preocupado em distinguir por meio de critérios objetivos as formas de governo e os tipos de sociedades. Ao contrário, foi inventada como termo de indistinção, para afirmar que o poder de uma assembleia de homens iguais só podia ser a confusão de uma turba informe e barulhenta, que equivalia dentro da ordem social ao que é o caos dentro da ordem da natureza. Entender o que democracia significa é entender a batalha que se trava nessa palavra: não simplesmente o tom de raiva ou desprezo que pode afetá-la, mas, mais profundamente, os deslocamentos e as inversões de sentido que ela autoriza ou que podemos nos autorizar a seu respeito. Jacques Rancière, O ódio à democracia

No Brasil, atravessamos um momento em que se tornou praticamente impossível, ou a-histórico, associar as palavras “gênero”, “sexualidade” e “direitos” sem mencionar a palavra “evangélicos”, esta de regra combinada à palavra “conservadorismo”2 2 Neste artigo, ficcionalizei os nomes próprios de meus interlocutores de pesquisa e de determinados locais em que transitam, com vistas à sua proteção. Esses nomes próprios ficcionalizados se encontram em itálico, a exemplo de Cássio, Michele e Ocupação Horizonte. Mantive, no texto, os nomes originais de interlocutores acadêmicos, como Thiago Fernandes Lúcio e Francisco Sá Barreto, e de figuras públicas, como Joel da Harpa e Anderson Ferreira, então parlamentares. Por sua vez, mantive entre aspas as categorias êmicas e as expressões sob rasura - como “os evangélicos”, “nós”, “trabalho de base” e, em alguns momentos, “família” - assim como as falas dos interlocutores da pesquisa e as citações diretas a autores localizadas no corpo do texto. Como explicado no transcurso do artigo, a entrevista com Cássio e Michele contou com a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido e ocorreu em meio ao trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado realizada junto ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, sob a orientação de Regina Facchini. . Militantes de movimentos sociais, especialmente os feministas e LGBT, e os sujeitos ligados ao campo dos estudos de gênero e sexualidade se têm colocado (ou sido postos) em posição antagônica a “os evangélicos” em meio a conflitos que compreendem desde a validade de direitos humanos e, neles, dos direitos sexuais e reprodutivos até a mera possibilidade de tematizar gênero e sexualidade como problemas de pesquisa e objetos de conhecimento - objetos que, como notaram Sérgio Carrara, Isadora Lins França e Júlio Simões (2018CARRARA, Sérgio; FRANÇA, Isadora Lins; SIMÕES, Júlio Assis. (2018), “Conhecimento e práticas científicas na esfera pública: antropologia, gênero e sexualidade”. Revista de Antropologia, vol. 61, nº 1: 71-82. ) recentemente, não se confundem com mera “ideologia”. Uma das dimensões mais notórias desses conflitos encontra-se, de certo, nas instâncias estatais de produção legislativa, sobretudo em projetos de lei iniciados ou apoiados por parlamentares autointitulados “evangélicos”. Apenas a título de exemplo, poder-se-ia mencionar, dentre esses projetos no Congresso Nacional, os PLs do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), do Estatuto da Família (PL 6583/2013), da “Cura Gay” (PL 4931/2016), da “Mordaça de gênero” (PL 7180/2014 e PL 1859/2015), da Escola Sem Partido (PL 867/2015 e PL 7180/2014) e, inclusive, um projeto inusitado que pretende coibir a masturbação e a pornografia (PL 6449/2016).

Mesmo nas narrativas que nós próprios, militantes e acadêmicos, agenciamos no interior desses conflitos, “os evangélicos” - assim, genericamente tomados - não raramente exsurgem como nossos adversários mais explícitos. Eles consistem no nosso “outro” mais distante. Parte de nossas críticas, é verdade, direciona-se não propriamente aos evangélicos, mas à bancada evangélica, aos propositores dos mencionados projetos de lei, ou a determinadas figuras públicas estridentes e que pretendem representar segmentos religiosos, sobretudo pentecostais. No entanto, até essa mediação, que distingue pretensos representantes de pretensos representados, volta-se contra si e traz a figura englobante “os evangélicos” de novo à cena. Afinal, ainda que, seguindo Ronaldo de Almeida (2017ALMEIDA, Ronaldo de. (2017b), “Os deuses do parlamento”. Novos Estudos Cebrap, Especial: 71-79. a), nós estejamos cientes de que existe uma dessimetria entre uma maior transigência na vida cotidiana dos fiéis e uma maior intolerância dos que dizem representá-los no parlamento com relação a temas como a homossexualidade e o aborto; por mais que entendamos, igualmente segundo Almeida (2017a ALMEIDA, Ronaldo de. (2017a), “A onda quebrada - evangélicos e conservadorismo”. Cadernos Pagu, nº 50: e175001.), que muitos evangélicos destoam do mainstream conservador e que a categoria evangélico se encontra sob disputa entre os que se identificam dessa forma; nós estamos relativamente convencidos de que “os evangélicos” possuem substancial importância na eleição da bancada evangélica. Mais que isso. Tal qual Luiz Fernando Dias Duarte, estamos também relativamente convencidos de que as “posições morais sancionadas pelas instituições religiosas contemporâneas (pentecostais ou não) não emanam propriamente de sua disposição proselitista, mas se oferecem a parcelas da população que já se encontram predispostas a assumi-las e defendê-las” (2017:160-161).

Ou seja, em outras palavras, ao menos aparentemente, “os evangélicos” não apenas contribuem decisivamente para a formação da bancada evangélica como acabam por ser aqueles que se opõem aos direitos, ou aos “nossos direitos”, do que se pressupõe que são também aqueles que se opõem a noções como as de laicidade e democracia. Levando ficticiamente ao extremo essa polarização narrativa em que nos encontramos implicados, poder-se-ia concluir que quase 29% da potencial população votante brasileira - conforme pesquisa do Instituto DataFolha realizada em dezembro de 2016INSTITUTO DATAFOLHA. (2016), “Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil - total da amostra”. Datafolha, dez. 2016. Disponível em: Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf . Acesso em: 22/08/2018.
http://media.folha.uol.com.br/datafolha/...
, esse é o número dos evangélicos entre os maiores de 16 anos no país3 3 Para conferir os resultados da pesquisa do Instituto DataFolha em sua integralidade, ver: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf. Acesso em: 22/08/2018. - participa, mais ou menos abertamente, dos ataques àqueles nossos direitos, ainda que alguns de nós duvidem de sua consciência política ou de sua clareza na escolha dos candidatos, o que justificaria alguma esperança de que “eles não entendem”, de fato, a agenda política da bancada evangélica. No extremo fictício dessa polarização, dessa forma, nossa defesa irrestrita dos direitos sexuais e reprodutivos supõe que eles - esse quase um terço de nossa população, “os evangélicos” - ou são contra os direitos, ou são incapazes de compreensão.

Extremidades fictícias, claro, não explicam conflitos sociais, não servem à sua análise. Entretanto, o que resta delas como fantasmagoria - o medo de que estejamos tão mergulhados nessa polarização que nos tornemos, nós mesmos, antidemocráticos supondo a ignorância alheia ou o seu atavismo - pode conduzir-nos à problematização das fronteiras entre “nós” e o nosso “outro” pretensamente mais extremo. Sim, porque essa polarização tende a incidir, como Paula Montero (1994MONTERO, Paula. (1994), “Magia, racionalidade e sujeitos políticos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , vol. 9, nº 26: 72-90. ) notou a respeito do campo de estudos sobre religiões e das frequentes análises sobre a relação entre secularismo e magia, na dualidade entre razão e emoção. Essa dualidade é tramada nos dualismos de que fala Fausto-Sterling (2001FAUSTO-STERLING, Anne. (2001/02), “Dualismos em duelo”. Cadernos Pagu , nº 17/18: 9-79. ), em relações desiguais de gênero, assim como, reciprocamente, em relações desiguais de racialização, na medida em que o “outro emotivo” e “racionalmente deficiente” tem suas capacidades intelectivas e, logo, sua humanidade sob suspeita.

No presente trabalho, reúno reflexões muitíssimo iniciais acerca dessas fronteiras constitutivas entre “nós” e “os evangélicos”. Digo “muitíssimo iniciais” porque não sou realmente um estudioso da religião, mas um militante e um pesquisador que, por força de sua atuação, acabou confrontando-se com “os evangélicos”. É dessa confrontação que advêm os investimentos analíticos que aqui tento desenvolver, sobremaneira a partir de três excertos narrativos, dois deles “etnográficos” e um deles “advocatício”. Os excertos narrativos etnográficos resultam do trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado - realizada junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob orientação de Regina Facchini -, mas principalmente do acompanhamento dos conflitos em torno da Ocupação Horizonte, uma ocupação de sem-teto então localizada no centro da cidade de João Pessoa, na Paraíba. Já o excerto narrativo advocatício deriva de minhas funções como acadêmico do campo jurídico e advogado. O tratamento analítico desses excertos objetiva a) localizar as religiosidades entre as experiências que constituem reciprocamente relações sociais de classe, de gênero, de sexualidade etc.; e b) tematizar as conexões entre essas religiosidades, especialmente a “evangélica”, e processos de produção de direitos.

Advirto, de antemão, que a problematização das fronteiras constitutivas entre “nós” e “os evangélicos” não descarta os efeitos reais desse empenho de distinção nos conflitos políticos que vivenciamos. As expressões “nós” e “os evangélicos” são aqui tomadas como categorias êmicas, disponíveis nos jogos de acusação e nas narrativas características àqueles conflitos. No entanto, decerto, suas fronteiras operam muitos sentidos e, em determinados contextos, como tentarei apontar, produz-se um “nós” a se opor a “os evangélicos” e vice-versa. Porém, como também tentarei indicar, tanto “nós” quanto “os evangélicos” são profundamente circunstanciais, situacionais, maleáveis, elas próprias categorias sob disputa, irredutíveis a uma homogeneização interna. Isto porque suas fronteiras funcionam propriamente como fronteiras, aquelas que, nas palavras de Gabriel Feltran, estabelecem-se “justamente para regular os canais de contato existentes entre grupos sociais, separados por elas, mas que obrigatoriamente se relacionam” (2011:15). Com fronteiras, há comunicação e, portanto, porosidade, movimento e alguma reciprocidade, ainda que seus esforços de constituição e diferenciação se deem em condições de desigualdade.

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Excerto etnográfico 01. [19 de dezembro de 2013, apartamento de Michele e Cássio, Ocupação Horizonte, prédio do antigo Hotel Palácio, centro de João Pessoa, Paraíba]. “Eu? Pra autorizar homem com homem? Não autorizo, não. […] Eu sou a favor de Marco Feliciano. Foi um pregador que me ensinou…” - Michele argumentou, enfaticamente, com o termo de consentimento livre e esclarecido em mãos, após a entrevista de uma hora e meia que realizei com ela e CássioEntrevista com Michele e Cássio, 19 de dezembro de 2013., seu companheiro, a respeito de suas trajetórias de vida, de como teriam chegado à Ocupação Horizonte, dos conflitos, criminalizações e preconceitos que enfrentavam em razão de viverem em uma ocupação de sem-teto. No quarto em que ela e Cássio moravam havia dois meses, com as duas filhas dela, Michele se recusou a assinar a autorização que mencionava, em seu texto, o “Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”.

Aqui também tem mulher com mulher, jacaré, homem com homem, lobisomem. Mas eu não sou contra, não. Só ensino o que é certo. Porque Deus criou Adão e Eva, não foi Adão e Ivo. […] O certo é crescer e multiplicar. O homem foi feito pra casar com a mulher. A Bíblia diz que não serão dois, mas, sim, uma só carne. O homem e a mulher pra dar filho, crescer, desde o início, né? Adão e Eva. Satanás induziu as pessoas a colocar mulher com mulher, homem com homem. (entrevista com Michele, 19/12/2013)

Eu tentei explicar que o termo de consentimento não a levava a “autorizar” a homossexualidade, por exemplo, apenas garantia segurança a Michele, que havia concedido uma entrevista e agora possuiria um documento comprobatório, assim como a assinatura do termo permitiria que eu me valesse, em minha tese de doutorado, das informações que ela e Cássio me apresentaram. Expliquei novamente, como já havia feito no início da entrevista, do que se tratava a pesquisa que então eu desenvolvia junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp. Falei de minhas preocupações com narrativas sobre violência mobilizadas por militantes de diferentes movimentos sociais, como movimentos de trabalhadores rurais, de trabalhadores sem teto, mas também do Movimento LGBT. Michele, entretanto, permaneceu inamovível em sua tomada de posição. Alegou que não discriminava, que inclusive sua mãe possuía dois irmãos “veados”, um deles até “aposentado”, “não dá mais porque tá velho”, mas que não assinaria o papel que falava sobre “isso aqui de lésbica, gay…”. Não era “a favor”. “Só Cássio assina”. Cássio, então, confirmou que assinaria o termo de consentimento, não havia problema em assinar o documento. No entanto, notou categoricamente: “eu também não sou a favor dessa história dos gays, não”. Justificou que não discriminava, somente “não sou a favor”. “Se me perguntassem assim, vamos supor, a população tem que decidir, os gays ficam ou saem? Saem. Mas se ficar, não vou estar discriminando, entendeu?”. Thiago, um orientando meu da UFPB que conduzira a entrevista ao meu lado4 4 Thiago Fernandes Lúcio (2014) era, então, estudante do curso de direito da Universidade Federal da Paraíba e realizava, sob minha orientação, a pesquisa que o levaria a escrever o seu trabalho de conclusão de curso intitulado Ambivalências entre trabalho e criminalização: uma análise a partir da experiência da Ocupação Alvorecer. Thiago e eu realizamos, juntos, duas entrevistas com moradores da Ocupação Horizonte - que ele preferiu chamar de “Alvorecer”. A entrevista com Cássio e Michele, em 19 de dezembro de 2013, foi uma delas. , esforçou-se para argumentar que a posição de Michele e Cássio - a de não serem “a favor” - consistia em discriminação. Num movimento retórico hábil, Thiago comparou o preconceito de que eles sofriam por habitarem uma ocupação de sem-teto, acerca do qual tanto falaram durante toda a entrevista, ao preconceito contra LGBT. “A gente tinha preconceito com alguém que ocupava um lugar, depois que você começa a conviver, vê que não é aquilo, que você estava completamente errado”. Cássio, contudo, com análoga habilidade retórica, contra-argumentou: “mas é diferente moradia pra sexo, né?”. Thiago ainda insistiu, “a base da discriminação é a mesma, você não conhece…”, sem sucesso. É que Michele, em verdade, achava-se mais atenta aos nossos posicionamentos sobre o pastor da Assembleia de Deus e deputado federal Marco Feliciano. “Mas, no caso, ele é contra Marco Feliciano. […] Marco Feliciano é o maior pregador depois de Jesus!”. Após uma pequena discussão sobre o pastor e suas declarações discriminatórias, acusadas até mesmo de racistas5 5 No ano de 2011, Marco Feliciano publicou, em seu microblog na rede social Twitter, uma postagem segundo a qual africanos são amaldiçoados. A afirmação levou o deputado a responder, junto ao Supremo Tribunal Federal, a um inquérito por indução ou incitação ao preconceito de raça, cor, etnia ou religião. , após o próprio Cássio problematizar a admiração de Michele pelo pastor, “diga assim, sou fã dele, aí é diferente”, Michele se fechou em copas e sentenciou: “a gente está no fim dos tempos, isso é o anticristo, tu já visse homem com homem?”. Enfim, eu me rendi exausto, conformado com a derrota. Já estava pronto para deixar a Ocupação sem a assinatura do termo de consentimento - e, portanto, sem a entrevista -, quando Michele voltou à questão: “mas não é pra assinar?”. Cássio então lembrou que eu era o professor da universidade, aquele que apoiava a luta, seguia com eles às delegacias de polícia, estava sentado no chão da casa deles, em suma, era “gente boa”. Michele decidiu assinar. “Eu vou porque é você”. Assinou.

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Excerto advocatício. [26 de abril de 2016, Assembleia Legislativa, Recife, Pernambuco].

Vem a mim, Roberto Efrem Filho, professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, doutorando em Ciências Sociais junto à Universidade Estadual de Campinas, mestre e graduado em Direito junto à Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco, advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, em sua seccional de Pernambuco, sob o nº X, brasileiro, convivente em união estável, portador de RG de nº Y / SSP-PE, de CPF de nº W, domiciliado ao endereço Z, no município do Recife, em Pernambuco, para análise, consulta requerida pela Deputada Estadual Teresa Leitão, com endereço profissional nesta Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, acerca da existência ou não de possibilidade de recepção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, do Projeto de Lei Ordinária 709/2016, proposto pelo Deputado Estadual Joel da Harpa, publicado em 08 (oito) de março de 2016 no Diário Oficial do Estado de Pernambuco, que intenciona proibir o “lecionamento de qualquer temática relacionada à ideologia de gênero no âmbito educacional do Estado de Pernambuco e traz outras considerações”. É o relatório.

Teresa, deputada estadual pernambucana pelo Partido dos Trabalhadores, assistira a uma pequena intervenção minha durante uma plenária da Frente Brasil Popular, na sede do Sindicato dos Bancários, às vésperas da deflagração do golpe que atravessa o país e se consolidou com a votação na Câmara de Deputados, em 17 de abril de 2016, da admissibilidade do processo de impeachment contra a Presidente da República Dilma Rousseff. Àquela época, Teresa havia se tornado relatora, no interior da Comissão de Constituição e Justiça da ALEPE, do projeto de lei proposto por Joel da Harpa, do Partido Republicano da Ordem Social (Pros), soldado da reserva da Polícia Militar, deputado pertencente à bancada evangélica e coordenador da Frente Parlamentar pela Segurança Pública, que se notabilizou por haver enfrentado contundentemente o Governo Eduardo Campos durante a greve da PM de 2014. Através de contatos com militantes do PT que me conheciam das lutas no Recife, Teresa me procurou e requisitou o que seria um “parecer jurídico e acadêmico” sobre o Projeto de Lei da “mordaça de gênero”, como ficaram conhecidos os projetos homólogos que se multiplicaram no país nos últimos anos, de regra iniciados por parlamentares autodesignados evangélicos. Aceitei o pedido. Na curtíssima justificativa do PL, o deputado Joel da Harpa afirmava, em resumo, que os artigos 226 e 227 da Constituição Federal preconizavam a obrigação estatal de proteção ao “modelo tradicional de família” e o compartilhamento de deveres entre família e Estado na garantia de direitos, como à educação, a crianças e adolescentes, o que validaria a necessidade do Projeto de Lei, tendo em vista que o ensino do que chama de “ideologia de gênero” fugiria das atribuições de Estado e invadiria o “âmago das famílias”. Segundo o deputado, portanto, isso que seria a “ideologia de gênero” atentaria contra o direito constitucional das famílias de decidir acerca dos valores que devem ou não se achar presentes na educação dos seus filhos. Fazendo as vezes de advogado, eu argumentei, no parecer endereçado à deputada Teresa Leitão, que a justificativa do PL incorria em alguns equívocos jurídicos e hermenêuticos; expliquei que, embora o artigo 226 da Constituição defina que a família detém proteção especial do Estado, disso não decorre a proteção a um hipotético “modelo tradicional de família”, de pronto porque inexistiria, no texto da Constituição Federal, qualquer pretensão normativa a determinar esse “modelo tradicional”, como interpretaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal durante os julgamentos, em 4 e 5 de maio de 2011, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, acerca da constitucionalidade das “uniões homoafetivas”6 6 Em outra ocasião (Efrem Filho 2014), tratei das relações de poder que atravessam os votos dos(as) ministros(as) do STF a propósito da decisão acerca das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Lá, eu pude ressaltar os esforços de estruturação da categoria “uniões homoafetivas” como correlatos a processos de familiarização, afetualização e dessexualização em que se tramam certos sujeitos de direitos. . Argumentei ainda, no parecer, que a ideia de proteção à família não engendra a proteção a valores morais ou religiosos - ditos “familiares” - que se oponham a direitos e à experiência democrática; e que a pretensão de existência de valores morais ou religiosos condizentes com um “modelo tradicional de família” não pode servir de orientação para políticas públicas ou serviços públicos, tanto porque há outras formas de organização familiar que ensejam proteção estatal quanto porque “valores” contrários a “direitos” não são recepcionáveis “pelo Estado”. Enfim, seguindo a pouquíssima expertise jurídica que acumulei durante os anos como estudante da Faculdade de Direito e como advogado popular, notei que o artigo 206 da Constituição é bastante claro a respeito da concepção de educação que baliza o Estado brasileiro, tratando-se de uma educação composta pela liberdade de ensinar e de aprender e pelo pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; e que, ademais, esses mesmos princípios se encontram previstos também no artigo 3o da Lei de Diretrizes e Bases, a Lei 9.394 de 1996. Eles significam, em síntese, que a escola deve oportunizar o acesso dos estudantes ao conjunto do “conhecimento cientificamente produzido”, em diálogo direto com o “conhecimento popular”, sendo essencial, para isso, a percepção da diversidade, de forma que até mesmo o ensino religioso, previsto no artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases, precisa responder à ideia de pluralidade, restando vedado o proselitismo religioso. No dia 10 de maio de 2016, Teresa levou o seu voto à Comissão de Constituição e Justiça e, através de convencimentos e articulações políticas que ultrapassavam em muito a minha competência jurídica ou a real eficácia de um parecer, os deputados componentes da Comissão rejeitaram o projeto de lei proposto por Joel da Harpa.

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Excerto etnográfico 02. [Fim de 2013, início de 2014, Ocupação Horizonte, prédio do antigo Hotel Palácio, centro de João Pessoa, Paraíba]. Cássio chegou à Ocupação Horizonte através de sua mãe, Marta. Quando ele e Michele decidiram não mais pagar aluguel onde moravam e se mudaram de fato para o prédio, a Ocupação já somava alguns meses e possuía uma estrutura mínima de organização interna, uma comissão composta principalmente por mulheres moradoras da Ocupação, dentre elas a própria Marta que, às noites, trabalhava como catadora de lixo. Como de regra acontece em ocupações urbanas de sem-teto, a comissão de moradores dialoga diretamente com o movimento social - no caso, o Movimento Terra Livre - que atua na organização das pessoas que deflagram as ocupações e, mais sistematicamente, na reivindicação pelo direito à moradia. Cássio chegou, inclusive, a participar da noite inaugural, em que os portões do antigo hotel, abandonado há uma década, foram arrombados para que os novos moradores estabelecessem a Ocupação Horizonte. Quando da mudança de Cássio e Michele, contudo, a comissão de moradores se encontrava fragilizada, reunia-se pouco e intervinha menos do que o desejado, pelas próprias integrantes da comissão, na organização da Ocupação. Cássio então passou a integrar as reuniões da comissão e, de acordo com o que militantes do movimento me disseram e ele mesmo assegurou, era “pau pra toda obra”. “Tinha um muro pra levantar, ele ajudava a levantar”. Usava seu carro - segundo ele, um “pelo menos”, “pelo menos não ando de ônibus” - para levar os moradores para atividades políticas, como as reuniões na Secretaria de Habitação do município de João Pessoa nas quais se discutia o futuro da Horizonte. Numa cena de que eu ouvi falar algumas vezes, Cássio mergulhou vestido na velha piscina do hotel, repleta de ferragens e água suja, para salvar uma criança que nela caíra acidentalmente e quase se afogara. Com seu trabalho cotidiano e sua disposição irrestrita, Cássio acabou adquirindo legitimidade entre os moradores da Ocupação Horizonte. Mas essa legitimidade advinha também das atividades religiosas que ele e Michele passaram a desenvolver na Ocupação. Michele era evangélica há muitos anos, tendo pertencido à Assembleia de Deus, onde “eu trabalhava com criança”. Não à toa, as primeiras ações religiosas de Cássio e Michele envolviam uma escolinha dedicada às crianças da Horizonte, à sua alfabetização, a práticas lúdicas, como uma batucada empregada nos atos públicos de que os moradores participavam, e exibições de filmes, desenhos animados. “Passava aqueles filmes daquelas formiguinhas crentes”, como me disse um militante. Essas ações religiosas para crianças logo viriam a se tornar “cultos de oração” realizados aos domingos e destinados às “famílias” da Ocupação. Os tais cultos, todavia, passaram a ocorrer nos mesmos horários antes usados, pelas integrantes da comissão de moradores e pelos militantes do movimento, para as atividades de formação política e para os mutirões. Com Cássio e Michele, vieram presentinhos para as crianças às vésperas do Natal, os lanches dos intervalos da escolinha, as cadeiras para o antigo auditório do hotel, bolsas de cestas básicas, o contato da prefeitura que trazia leite e pão para a Ocupação. Uma pequena parte disso advinha das economias de Cássio, que realizava serviços de marcenaria, mas ganhava pouco. “Acho que eu tenho noventa e sete centavos. Dinheiro na conta, nada” (entrevista com Cássio, 19/12/2013). A maior parte dos recursos decorria de doações. A maior parte dessas doações e contatos, contudo, vinha de um pastor da Igreja Nova Aliança. A essa altura, Michele não frequentava mais a Assembleia de Deus - “é rígida demais, não entendo muita coisa, não” - e, com Cássio, passara a participar dessa outra denominação. Segundo os militantes me contaram, Cássio e Michele estreitaram relações com o tal pastor que se interessou na Ocupação, mas o pastor era um candidato a vereador em construção, o que trazia muitas desconfianças para os militantes. A despeito dessa desconfiança, que se dirigia também ao próprio Cássio, o rapaz galgou mais e mais autoridade na Ocupação Horizonte e, já nesses primeiros meses, foi substituindo paulatinamente as competências da comissão de moradores. Separou para si uma sala que seria para a comissão, montou uma mesa, sentava-se atrás da mesa e recebia os moradores para a solução dos problemas cotidianos, mas também recebia novas pessoas interessadas em entrar na Ocupação. Decidia quem entrava e quem saia. Decidia só. As integrantes da comissão se queixavam, eu próprio ouvi algumas dessas reclamações, mas sentiam que podiam fazer pouco diante da legitimidade adquirida por ele na Ocupação e diante do medo que elas sentiam dele. “Ele dizia que tinha apoio dos boy de Mandacaru” - o que significa que ele alegava possuir contato com rapazes pertencentes ao que comumente se chama, em João Pessoa, de “facções do tráfico”, neste caso, a Okaida7 7 Na Paraíba, essas facções seriam duas proeminentes, a “Okaida” e os “Estados Unidos”, ou simplesmente “Estado”. No que se diz, é a Okaida que “comanda” Mandacaru, de onde viriam os contatos de Cássio. Mandacaru consiste num dos bairros periféricos da cidade de João Pessoa. . Não demorou, entretanto, para que Cássio se envolvesse em confusões demais. Durante uma assembleia dos moradores da Ocupação, em que integrantes do movimento o confrontavam, ele agrediu fisicamente uma militante que o acusava de autoritarismo. Depois, foi acusado de “roubo”. Teria sumido com o dinheiro das contribuições mensais de R$ 15,00, pagas pelos moradores para dar conta das necessidades imediatas do prédio. Aqui, já se dizia que ele vinha cobrando aluguel ou vendendo apartamentos aos possíveis novos moradores. Como disse, eram confusões demais. Acumulando muitas acusações, apesar de seus esforços, dos seus contatos e de sua adquirida legitimidade, Cássio e Michele deixaram o prédio da Ocupação Horizonte.

Religião, relações sociais e lutas por direitos

As análises que se dedicaram a compreender o processo de redemocratização em nosso país, na década de 1980, comumente notaram a relevância de setores da Igreja Católica, como as comunidades eclesiais de base e as pastorais sociais, na tessitura dos sujeitos políticos que protagonizaram as lutas por direitos de então e, assim, constituíram parte significativa do espectro das esquerdas (Sader 1988SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Doimo 1984DOIMO, Ana Maria. (1984), Movimento social urbano, Igreja e participação popular. Petrópolis: Vozes. ). Em nossa experiência histórica, portanto, práticas religiosas engajadas na organização popular, na compleição da classe trabalhadora - no que se chamou de “trabalho de base” -, foram fundamentais para as conquistas de direitos e, por conseguinte, para os investimentos democráticos. Mais do que isso. Como percebeu Paula Montero (2012MONTERO, Paula. (2012), “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. Religião & Sociedade , vol. 32, nº 1: 167-183. ), a retórica religiosa cristã foi fundamental, em nossa trajetória, para a organização do discurso público, oferecendo inclusive “categorias religiosas de longa duração”, como as noções de justiça, comunidade e participação, no processo de formulação da ideia de direitos. A constituição de hegemonia da Igreja Católica, dessa maneira, atuou na produção da linguagem de nossa arena pública, dos termos disponíveis no jogo democrático.

De acordo com o que a própria Paula Montero (2012MONTERO, Paula. (2012), “Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso”. Religião & Sociedade , vol. 32, nº 1: 167-183. ) tem percebido, contudo, o protestantismo pentecostal hoje se mostra como o primeiro grupo religioso, por mais que diverso internamente, a desafiar essa hegemonia católica. E tal desafio não se restringe àqueles crescentes e vultuosos 29% a que me referi páginas atrás, na introdução deste texto. Pelo contrário, segundo Emerson Giumbelli, “seu crescimento numérico talvez seja um aspecto menor. Por conta de sua ação, o campo da política, definida estritamente, é incapaz de ignorar atualmente o fator ‘religioso’” (2008:89). Essa ação se dá por meio do emprego evidente da identidade religiosa como um atributo eleitoral, mas de uma identidade religiosa que narrativamente se arquiteta como minoritária e vítima de discriminação. Daí a conclusão alcançada por Maria das Dores Campos Machado de que, na perspectiva hegemônica entre os pentecostais, “a participação na política eleitoral, mais do que um dever moral dos cristãos, é associada a um direito de uma minoria religiosa que sempre foi preterida pelo Estado e pela elite política, os chamados ‘crentes’ ou evangélicos” (2015MACHADO, Maria das Dores Campos. (2015), “Religião e política no Brasil contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismáticos”. Religião & Sociedade , vol. 35, nº 2: 45-72. :51). Trata-se, entretanto, de uma minoria dotada de reivindicações próprias às minorias religiosas, como é o caso da defesa da “liberdade religiosa”, mas que empreende, nas palavras de Giumbelli, “ações e estilos que insinuam um projeto de maioria” (2008:96).

Esse projeto de maioria ou de hegemonia, todavia, como notou Paula Montero, “ainda não foi capaz de encontrar os meios para legitimar e produzir um discurso público aceitável” (2012:172). Sua vinculação às imagens de intolerância e corrupção impediria, conforme Montero, uma apreensão mais ampla de sua estética e de sua linguagem entre as classes e grupos sociais com maior grau de escolarização, por exemplo. No entanto, o vertiginoso crescimento do pentecostalismo entre os setores mais precarizados da classe trabalhadora denuncia que o processo de formação de hegemonia pentecostal talvez venha profundamente “de baixo” e, mesmo que encontre resistência entre setores da classe média, não deixa de se expandir por outros caminhos. Inclusive pelos caminhos anteriormente percorridos pelos setores da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação e que, como dito, participaram da formação de nossas noções de luta, direitos e justiça.

Cássio e Michele, por mais excêntricos que pareçam em suas narrativas e nas caracterizações que deles fazem os outros militantes, não consistem em personagens excepcionais. Eles certamente não foram as únicas lideranças comunitárias evangélicas com quem topei nos últimos anos de pesquisa de campo e militância política. Muito pelo contrário, as ocupações de trabalhadores sem teto, e também as de trabalhadores sem terra, têm convivido cada vez mais frequentemente com o trânsito entre atos públicos nas ruas e cultos em igrejas pentecostais, assim como convivem com os signos morais - e estéticos - mobilizados nas “novas” práticas religiosas. Essa presença do pentecostalismo no seio de comunidades, ocupações, assentamentos e, portanto, dos movimentos sociais amplamente considerados produz efeitos políticos. Na Ocupação Horizonte, por exemplo, esses efeitos se expressam no rápido crescimento da legitimidade da liderança de Cássio, contra a importância da coordenação da Ocupação, mais próxima da direção do Movimento e de sua orientação política.

Esse crescimento da legitimidade de Cássio, por sua vez, relaciona-se ao sucesso das atividades religiosas desenvolvidas por ele e por Michele, desde a batucada e a escolinha para crianças até os cultos semanais, as quais contaram com a aderência dos demais moradores da Ocupação. Mas tal crescimento se relaciona também aos ganhos proporcionados em razão dos vínculos do casal com aquele pastor, daí as cadeiras para o auditório, as cestas básicas vindas da prefeitura, os pães etc. Esses vínculos com o pastor e os demais membros da Igreja de que participam - vínculos que o casal levava, de várias formas, para o prédio e o cotidiano da Ocupação Horizonte - remetem aos laços de solidariedade densamente presentes nas redes de sociabilidade evangélicas, como aquelas analisadas por Ronaldo de Almeida, as quais “trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações pessoais, gerando um aumento de autoestima e impulso empreendedor, além de ajuda mútua com o estabelecimento de laços de confiança e fidelidade” (2004ALMEIDA, Ronaldo de. (2004), “Religião na metrópole paulista”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 19, nº 56: 15-27. :21).

Deslocando o léxico, poder-se-ia dizer que tais redes de sociabilidade operam um “trabalho de base” flagrantemente eficiente na configuração de um sujeito político que é, também, classe trabalhadora ou movimento social em luta por direitos - no caso, pelo direito à moradia digna e adequada. Decerto, o “trabalho de base” operado pelas redes de sociabilidade evangélicas não se assemelha àquele historicamente efetivado pelas pastorais de base da Igreja Católica. A ênfase pentecostal na prosperidade associada ao empreendedorismo difere imensamente, por exemplo, da mística acionada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, evidentemente influenciada por valores cristãos ligados à Teologia da Libertação. Entretanto, apesar dessas diferenças, também nas ações e articulações empreendidas por agentes pentecostais, há trabalho de formação e organização, ainda que manejando programas políticos e moralidades diferentes. Afinal, como sugeriu Francisco Sá Barreto numa leitura de uma versão preliminar deste texto, uma narrativa de prosperidade pode muito bem servir de balizador moral à mobilização de um grupo, inclusive de sem-teto.

Quero com isso dizer que as religiosidades pentecostais têm participado, cada vez mais incisivamente, do que E. P. Thompson (1987THOMPSON, E. P. (1987), A formação da classe operária inglesa I: a árvore da liberdade. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra . ) denominou de “fazer-se da classe”, de modo que a religiosidade não se confunde com mera “ideologia”, mas precisa ser compreendida como experiência de organização, como relação social. Claro, esse movimento analítico de percepção da relação entre religião e organização popular não é novo entre nós. Também em diálogo com referenciais teóricos de origem marxista, embora produzindo uma crítica cortante às interpretações marxistas dominantes de então, Regina C. Reys Novaes (1980NOVAES, Regina C. Reys. (1980), “Os pentecostais e a organização dos trabalhadores”. Religião & Sociedade , nº 5: 65-93. ) já arregimentava análogo movimento analítico num artigo seu, publicado há 38 anos no quinto número desta Religião & Sociedade, a respeito das correlações entre pentecostais e a organização de trabalhadores. Uma das dimensões centrais dessas correlações exploradas por Novaes se encontra na ideia de que a igreja ou a “comunidade de irmãos” pode funcionar como associação política e engendrar experiências organizativas. “Embora o trabalho religioso seja ‘apolítico’, se é possível usar este termo, se assumirmos uma perspectiva menos imediatista e mais histórica, podemos pensar que esta associação contém elementos que podem ser apropriados politicamente: organiza os pobres, rompe com determinadas inibições, forma liderança” (Novaes 1980:84).

Segundo as conclusões proporcionadas pelo trabalho de pesquisa de campo de Regina Novaes, a participação daqueles agricultores naquela igreja pentecostal de que ela estava tratando - Novaes (1980) já argumentava acerca da inexistência de uma unidade no pentecostalismo - possibilitava aproximações com o sindicato de trabalhadores rurais e adensava suas reivindicações em nome “dos pobres”. Decerto, essas conclusões não podem ser transplantadas automaticamente para a Ocupação Horizonte, Michele, Cássio ou para a participação deles na Igreja Nova Aliança. Se Cássio e Michele se veem implicados em lutas por direitos, inclusive em meio a uma linguagem religiosa ou a redes religiosas de sociabilidade, igualmente se pode dizer, contudo, que eles mantinham, com o Movimento, uma relação repleta de divergências - por isso, também, a sua expulsão da Ocupação - que os punha na contramão de uma outra série de lutas por direitos pautadas por outros militantes. Entretanto, apesar e mesmo em razão das diferenças contextuais, o movimento analítico de localização das práticas religiosas em meio aos conflitos, relações sociais e experiências de organização permanece fundamental.

Esse movimento analítico, porém, não diz respeito apenas a conflitos, relações e experiências de organização de classe. Pelo contrário, a realização dessa análise requer necessariamente a consideração dos modos através dos quais outras relações sociais aí se dão, como ocorre com gênero e sexualidade. É que, segundo parte importante do campo dos estudos de gênero e sexualidade tem apontado, sobretudo aquela conhecida como “interseccional” (Brah 2006BRAH, Avtar. (2006), “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu , nº 26: 329-376. ; McClintock 2010McCLINTOCK, Anne. (2010), Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Trad. Plínio Dentzien. Campinas: Editora da Unicamp.; Piscitelli 2008PISCITELLI, Adriana. (2008), “Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras”. Sociedade e Cultura, vol. 11 , nº 2: 263-274.; Facchini 2008FACCHINI, Regina. (2008), Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. Campinas: Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp. ), a classe, ou o “fazer-se da classe”, realiza-se reciprocamente a performances de gênero, à mobilização de convenções morais em torno de gênero e de sexualidade. Este é o caso da configuração do sujeito político “família”.

Numa placa localizada numa ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST, situada numa comunidade periférica do Recife, escreveu-se “aqui tem famílias lutando pelo direito de morar. Somos chefes de famílias. Não marginais, nem traficantes”. A fotografia da placa foi divulgada através da internet, nas redes sociais do Movimento, e responde a estratégias de legitimação de reivindicações políticas e de enfrentamento à criminalização8 8 Discuti em outras oportunidades (Efrem Filho 2017a, 2017b) sobre como estratégias de enfrentamento à criminalização se valem, comumente, da reivindicação de convenções morais de gênero e de sexualidade associadas, por exemplo, a noções como “família” e “trabalho”. Nessas ocasiões, pude constatar como esse enfrentamento à criminalização, de movimentos sociais ou indivíduos, desenlaça-se em meio a relações sociais que são atravessadas pelo crime - também uma “relação social”, processo de criminalização - presente num cotidiano em que as fronteiras entre legalismos e ilegalismos são porosas e em que a violência - não o crime simplesmente - constitui-se como o problema narrativo por excelência. . Nessas estratégias, a família ocupa um lugar central. “Famílias” são o sujeito político que conjuga o verbo “lutar”. Elas substituem, ali, outros sujeitos políticos possíveis, como “trabalhadores”, e opõem-se às figuras de marginais e traficantes. Penso que essa notável relevância da categoria família para os movimentos sociais consiste também em resultado da já mencionada participação de setores católicos na produção da linguagem de nossa arena pública e dos termos disponíveis no jogo democrático. No entanto, parece-me que a centralidade da categoria família para os movimentos sociais precisa hoje ser analiticamente contrastada ou correlacionada com a intensa e crescente dedicação de setores do pentecostalismo no acionamento da categoria família em meio à defesa de suas pautas.

Não é possível saber com precisão o quão próximo ou distante a “família” da placa da ocupação de sem-teto se encontra da “família” constante nos textos do projeto de lei do Estatuto da Família e do projeto de lei proposto pelo Deputado Joel da Harpa junto à ALEPE e sobre o qual precisei escrever o mencionado parecer. Porém, considerando aqueles 29% nada descartáveis analiticamente e todo o impulso de relevantes atores pentecostais para o ativismo político, é cada vez mais provável que as “famílias” inscritas na placa - sim, o sujeito político das estratégias dos movimentos sociais - vejam-se disputadas, muito intimamente, pela noção de família ativada pelos integrantes da bancada evangélica. Esta última “família”, afinal, é também significada como o sujeito político que deve intervir na definição de políticas públicas, como apontam os textos dos projetos de lei a que estou me referindo.

Em correlação com os conflitos acerca da configuração do sujeito político “família”, é também notável que a mobilização de convenções morais de gênero e de sexualidade tangencie pânicos morais normalmente relativos àquilo que Maria Filomena Gregori (2008GREGORI, Maria Filomena. (2008), “Limites da sexualidade: violência, gênero e erotismo”. Revista de Antropologia , vol. 51, nº 2: 575-606., 2016GREGORI, Maria Filomena. (2016), Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo: Companhia das Letras . ) designou como “limites da sexualidade”, o que nos conduz à preocupação de determinado Deputado Federal com a coibição da pornografia e da masturbação, mas, principalmente, ao “Satanás” e ao “anticristo” acionados por Michele diante da imaginação de dois homens se relacionando sexualmente, isto alguns momentos após a sua recordação, com direito a risadas debochadas, da aposentadoria do tio que, “velho demais pra dar”, havia se tornado um “veado aposentado”.

Importa perceber, todavia, que, entre os projetos de lei propostos pelos parlamentares da bancada evangélica e as posições de Michele sobre o “anticristo” e o tio aposentado, a fricção dos limites da sexualidade se desenlaça ambiguamente. Esta ambiguidade, por sua vez, é característica à assimetria existente entre os valores fervorosamente presentes na agenda política dos parlamentares e a maior transigência dos fiéis no exercício cotidiano de suas crenças e relações, como notei no início deste texto, referindo-me às análises de Ronaldo de Almeida (2017ALMEIDA, Ronaldo de. (2017b), “Os deuses do parlamento”. Novos Estudos Cebrap, Especial: 71-79. a, 2017b). A despeito ou não de o deputado federal e pastor Marco Feliciano ser o maior pregador depois de Jesus, a despeito ou não do “fim dos tempos”, fato é que Michele assinou o documento - “Eu vou porque é você” - e que, segundo ela própria, o seu companheiro Cássio deveria assiná-lo desde o início. “Cássio assina”.

Essa assimetria atinge até mesmo aquilo que seria o “problema das drogas”, um problema narrativo (e moral) por excelência para parte importante da retórica pentecostal e que, com suas nuances, também se expressa naquela placa diante da ocupação de sem-teto. Não à toa, parlamentares evangélicos se dedicam tão presentemente ao “combate às drogas”, compondo-o inclusive como uma bandeira aglutinadora. Michele Collins (PP), a vereadora mais votada do Recife nas eleições de 2016, com 15.357 votos, apresenta-se como “a paladina do combate às drogas”, como faz o seu marido, o Pastor Clayton Collins (PP), o deputado estadual então com a maior votação da história do estado de Pernambuco, 216.874 votos nas eleições de 20149 9 Clayton Collins (PP) representa um fenômeno eleitoral notável. Como dito, ele reuniu sozinho 216.874 votos nas eleições de 2014. O segundo candidato mais votado, o Presbítero Adalto Santos (PSB), também componente da bancada evangélica, somou 158.874 votos. A terceira candidata mais votada, Raquel Lyra (PSB), obteve apenas 80.879 votos. Mas aqui vai o dado mais preocupante: a soma dos votos dos candidatos eleitos pertencentes à “oposição de esquerda” - Odacy Amorim (PT), Manoel Santos (PT), Teresa Leitão (PT) e Edilson Silva (PSOL) - alcançou somente 185.987 votos. Por sua vez, Joel da Harpa, o propositor do PL da “mordaça de gênero” junto à ALEPE, obteve irrisórios 19.794 votos e certamente foi eleito em razão da coligação “PP - PROS”, formada tão só pelos dois partidos, e que teve Collins como cabeça da legenda. Para acesso aos números completos das eleições de 2014 em Pernambuco, ver: http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/pe/apuracao-votos.html. Acesso em: 22/08/2018. . Em seu site, Clayton se apresenta como alguém que, por fé e força de vontade, deixou o “mundo das drogas”.

Entretanto, apesar do empenho na conformação das drogas, sobretudo as ilícitas, como um problema a ser superado por práticas e valores ligados à religião e à família, fato é que os fiéis convivem com “as drogas” inexoravelmente, mais ou menos direta e explicitamente, assim como, de acordo com as investigações de Christina Vital da Cunha (2014CUNHA, Christina Vital da. (2014), “Religião e criminalidade: traficantes e evangélicos entre os anos 1980 e 2000 nas favelas cariocas”. Religião & Sociedade , vol. 34, nº 1: 61-93.), “traficantes” também se valem de signos e práticas religiosas “evangélicas”. Essa convivência é apreendida em meio àquelas ambiguidades e permite, por exemplo, que Cássio me ofereça, antes da entrevista, um “pega” num “boró”, o qual eu precisei recusar, para o seu desgosto evidente - “ah, professor, tá fraco demais”. Permite, igualmente, os cruzamentos diagnosticados por Gabriel Feltran (2011FELTRAN, Gabriel de Santis. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora UNESP; CEM; CEBRAP. , 2018FELTRAN, Gabriel de Santis. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras. ) entre os símbolos de que se vale o crime e os signos tecidos nas igrejas evangélicas, como acontece com o emprego da expressão “irmão” - do PCC e das igrejas - como categoria aproximativa, mais uma referência à família, significante de fidelidade e solidariedade entre os seus.

A proximidade das igrejas pentecostais com as políticas sobre drogas representa parte das mudanças que vêm operando nas religiosidades pentecostais e em suas relações com as políticas públicas e os processos burocráticos de produção de Estado. Também aqui, deslindam-se novas experiências de organização e “trabalho de base”, porém com vínculos ainda mais estreitos com setores de Estado. Digo isso porque, segundo relevantes análises têm diagnosticado (Giumbelli 2008GIUMBELLI, Emerson. (2008), “A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil”. Religião & Sociedade , vol. 28, nº 2: 80-101.; Machado 2003MACHADO, Maria das Dores Campos. (2003), “Igreja Universal: uma organização providência”. In: A. P. Oro; A. Corten; J. P. Dozon (orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas. ; Birman 2012BIRMAN, Patricia. (2012), “Cruzadas pela paz: práticas religiosas e projetos seculares relacionados à questão da violência no Rio de Janeiro”. Religião & Sociedade, vol. 32, nº 1: 209-226.), para além da presença mais visível em cargos no Legislativo ou no Executivo, atores e segmentos pentecostais vêm atuando corriqueiramente na execução de políticas públicas e de assistência social e em parcerias com agências de governo, em especial em práticas terapêuticas ou de “combate às drogas”, de alguma maneira substituindo católicos e espíritas num papel que já lhes coube preponderantemente. Assim, setores do campo pentecostal acabam se arquitetando como “instituições mediadoras”, como Carly Machado (2017) as chamou, da relação entre os moradores das periferias, o “mundo do crime” e agentes de Estado.

Sobretudo nos últimos vinte anos, no entanto, atores do campo pentecostal também reivindicaram seu lugar como mediadores da relação entre populações marginalizadas e projetos de cidadania, especialmente nas periferias urbanas brasileiras, produzindo um repertório próprio de intervenção e de relação com essas populações. As muitas igrejas evangélicas localizadas nas periferias das cidades brasileiras, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, tornaram-se instituições cada vez mais presentes nos debates acerca das intervenções no mundo do crime (Machado 2017MACHADO, Carly. (2017), “Conexões e rupturas urbanas: projetos, populações e territórios em disputa”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , vol. 32, nº 93: e329308. :04).

Ocorre que em narrativas mobilizadas com eficiência por determinados setores estatais, midiáticos e religiosos (e que nos levam de volta à urgência daquela placa na ocupação do MTST, no Recife), o problema das drogas facilmente se converte no problema do crime, já que as políticas de Estado brasileiras acerca das drogas ilícitas se desenvolvem sobremaneira através da sua criminalização. Esta, por sua vez, remetendo-se a noções assombrosas como as de tráfico de drogas, traficante e crime organizado, acaba por reforçar a existência de um terceiro problema, o da violência, ou o da violência urbana, construído como justificativa quase incontestável para a premência do controle e do governo das mortes sobre corpos, sujeitos e territórios profundamente racializados, como diversos trabalhos têm percebido (Farias 2014FARIAS, Juliana. (2014), Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Sociologia e Antropologia, UFRJ. , 2019FARIAS, Juliana. (2019), “Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do favelado”. Revista de Antropologia , vol. 62, nº 2: 275-297. ; Birman 2019BIRMAN, Patricia. (2019), “Narrativas seculares e religiosas sobre a violência: as fronteiras do humano no governo dos pobres”. Sociologia e Antropologia, vol. 9, nº 1: 111-134.; Feltran 2011FELTRAN, Gabriel de Santis. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora UNESP; CEM; CEBRAP. ; Motta 2017MOTTA, Luana Dias. (2017), Fazer Estado, produzir ordem: sobre projetos e práticas na gestão do conflito urbano em favelas cariocas. São Carlos: Tese de Doutorado em Sociologia, UFSCar. ; Efrem Filho 2017cEFREM FILHO, Roberto. (2017c), “Os meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência”. Cadernos Pagu , nº 51: e175106. ).

Aqui, oportunamente, abre-se mais um frutífero flanco de ação para agentes do campo pentecostal em meio às políticas de Estado. Agora, entretanto, sua ação não mais se restringe a políticas assistenciais e de saúde, de “tratamento” ou “cuidado”. Ela passa a tangenciar as políticas de segurança pública e a propor “projetos de cidadania” que, segundo Patrícia Birman e Carly Machado (2012BIRMAN, Patricia; MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , vol. 27, nº 80: 55-69.) examinaram, objetivam promover integração social por meio de empreendimentos de salvação que somente podem ser alcançados, em relações sociais marcadas pela violência, “por uma potência sobre-humana, divina” (Birman e Machado 2012:60).

Tal qual agentes do campo pentecostal se mobilizam em processos de formação e organização que podem ser compreendidos como “trabalho de base” e se realizar através da luta por direitos numa ocupação de sem-teto ou por meio do “combate às drogas” nas periferias urbanas, esses agentes igualmente se dedicam à formulação de um “projeto de cidadania” atravessado pela religiosidade. Daí Paula Montero afirmar que “segmentos profissionais do campo protestante ampliaram sua participação no debate público ajustando sua visão ética a uma linguagem mais secularizada e, assim, passaram a ter um novo e significativo papel na formação da cidadania brasileira, na condução da atividade parlamentar e na produção de novas leis” (2012:173). Em outras palavras, com o exercício do seu modus operandi de “trabalho de base”, com a construção de um projeto de cidadania empreendedora e baseada na conversão, com a profissionalização dessas experiências de formação e organização, seja na execução de políticas públicas, seja na ocupação de postos representativos de Estado, tais segmentos religiosos passaram a empreender suas disputas através da “linguagem dos direitos” e não em oposição a ela.

É assim que a luta pelo direito social à moradia digna e adequada parece perfeitamente compatível com o corpo de crenças demonstrado por Cássio e Michele. A resposta de Cássio a Thiago é, afinal, sintomática: moradia, moradia; sexo, sexo. Na perspectiva adotada por Cássio, não haveria incoerência em suas posições a respeito do “preconceito” sofrido pelos sem-teto e a respeito da existência ou da eliminação de LGBT - “se me perguntassem assim, vamos supor, a população tem que decidir, os gays ficam ou saem? Saem” (entrevista com Cássio, 19/12/2013) - porque, afinal, a moradia consistiria num direito, já o sexo não. É assim, na mesma linha, que os argumentos dispostos pelo Deputado Joel da Harpa na justificativa do projeto de lei, aquele sobre o qual escrevi um parecer, não fogem ao direito. Ao avesso, recorrem a normas constitucionais e a um exercício hermenêutico - que eu tive de classificar, em abstrato, como “equivocado” - para sustentar, muito razoavelmente, diga-se de passagem, aquilo que, claro, consiste num absurdo diametralmente oposto aos “nossos direitos”. Por pior que seja o projeto de lei em questão, nada há nele de essencialmente irracional ou emotivo. O mesmo pode ser dito, por exemplo, do PL do Estatuto da Família. Anderson Ferreira (PR/PE), o seu autor na Câmara dos Deputados, não aciona o Satanás ou o Anticristo de Michele ou das famosas sessões de descarrego. Ele, seguindo os ritos próprios àquele ambiente formal, move-se adequadamente, manejando conceitos jurídicos com habilidade.

Nessas iniciativas legislativas de integrantes da bancada evangélica, é bastante comum que argumentações jurídicas e direitos associados às noções de família e infância sejam mobilizados para produzir uma contraposição às pautas concernentes aos direitos sexuais e reprodutivos e àqueles relativos à diversidade sexual e de gênero. Segundo percebeu Vanessa Leite, “essa estratégia aposta na construção de uma polarização entre os defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes e os defensores dos direitos LGBTI e também dos direitos das mulheres” (2019:131). No caso específico dos projetos de lei da “mordaça de gênero”, como o proposto por Joel da Harpa junto à ALEPE, investe-se frequentemente na imagem da família, presumida “tradicional”, como viabilizadora da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes e como definidora do exercício do direito à educação. De acordo com essa perspectiva, fundamentada no art. 227 da Constituição Federal e na ideia de compartilhamento de deveres entre família e Estado para a garantia de direitos de crianças e adolescentes, a família desfrutaria de competência para determinar o conteúdo da educação escolar que seus filhos acessam, da qual se deveria excluir o que se vem chamando de “ideologia de gênero”10 10 Segundo Sonia Corrêa (2018), a expressão “ideologia de gênero” adveio da ação de setores ligados ao Vaticano que, já na década de 1990, mobilizavam-se contra a consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos no contexto das conferências internacionais de então, como a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro, ou Eco 92, de 1992, a Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, e a IV Conferência Mundial das Mulheres de Pequim, de 1995. O emprego dessa expressão, contudo, ganhou mais corpo recentemente. Vanessa Leite explica que, “no Brasil, o confronto com a ‘ideologia de gênero’ apareceu nos debates em torno do Plano Nacional de Educação, em 2013. Os setores ‘conservadores’ assumiram uma estratégia de apropriação de termos dos estudos de gênero e dos movimentos feministas, alterando seu sentido. A perspectiva de gênero, que vem dando base para toda a construção de um campo de estudos e produção de conhecimento, é vulgarizada e tratada como ideologia” (2019:130). Para interessantes análises acerca da “ideologia de gênero”, ver, além dos trabalhos de Sonia Corrêa (2018) e Vanessa Leite (2019) já citados nesta nota, os trabalhos de Maria das Dores Campos Machado (2018) e de Sérgio Carrara, Isadora Lins França e Júlio Assis Simões (2018). . As possíveis respostas jurídicas a essa chave interpretativa da relação entre família e Estado, eu apresentei durante o “excerto advocatício”, como visto. Ressalto, porém, que a validação de uma linguagem de direitos no interior das estratégias adotadas por agentes do campo pentecostal reposiciona e tensiona aquelas fronteiras entre “nós” e “os evangélicos”. Notadamente, porque nossa participação nessa linguagem e em suas disputas também acaba por engendrar formas de controle.

Sérgio Carrara (2015CARRARA, Sérgio. (2015), “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”. Mana, vol. 21, nº 2: 323-345., 2016CARRARA, Sérgio. (2016), “A antropologia e o processo de cidadanização da homossexualidade no Brasil”. Cadernos Pagu , nº 47: e164717. ) definiu recentemente a linguagem dos direitos humanos como um emblema do surgimento histórico de um “novo” regime secular da sexualidade, seguido por uma forma própria de regulação moral. Na definição de Carrara, dessa forma, a sexualidade se torna objeto de regulação ao tempo que as reivindicações por direitos sexuais avançam, o que nos leva a pôr em questão os preços de nossas próprias conquistas e as dificuldades analíticas geradas pela participação do fazer antropológico (e do trabalho intelectual de modo geral) no processo de “cidadanização”. “Nós” estamos produzindo reconhecimento de direitos e sujeitos enquanto também estamos produzindo formas de controle, um movimento contraditório que tem ocupado as atenções do campo dos estudos de gênero e sexualidade e se relaciona com o que Judith Butler (2003BUTLER, Judith. (2003), “O parentesco é sempre tido como heterossexual?”. Cadernos Pagu , nº 21: 219-260.) nominou como “desejo pelo desejo do Estado”. Porém, com as metamorfoses vivenciadas pelo campo pentecostal em sua relação com a linguagem dos direitos, o dilema anunciado por Carrara parece se adensar. É que, no contato mais próximo com o “outro”, nossas diferenças se tornam menos óbvias. O “outro” deixa de ocupar o lócus de exterior constitutivo e passa a ironizar as frágeis fronteiras de direitos do nosso “nós”. Nisto talvez resida um dos nossos mais árduos dilemas analíticos (e políticos).

Conflitos em torno das fronteiras democráticas

Se “os evangélicos” empreendem organicamente o “trabalho de base” junto aos estratos mais precarizados da classe trabalhadora, aqueles mesmos de que setores das esquerdas se ressentem de afastamento; se apresentam um projeto de cidadania que procura responder a problemas que contam com amplo lastro nas preocupações de boa parte da população, como o crime e a violência; se flagrantemente atuam através da linguagem dos direitos; talvez seja preciso perguntar: há realmente algo que nos diferencie a ponto de a oposição “nós” e “os evangélicos” continuar produzindo sentido? De antemão, esta pergunta me parece importar em razão do que ela rejeita.

No início deste texto, tentei apontar que nossa posicionalidade extremada no par dicotômico “nós” e “os evangélicos” tendia, de um lado, a supor a sua incapacidade de compreensão e, do outro, a supor a sua inadequação a conceitos como os de laicidade e democracia. Pois bem, acredito que as narrativas acerca de Michele e Cássio, de suas trajetórias e de suas implicações nas lutas por direitos obstam suficientemente a primeira dessas suposições. Por maiores que fossem as diferenças entre nossas tomadas de posição sobre sexualidade e gênero, nada nas posições deles pode ser definido como resultado de uma ignorância. Pelo contrário, eles se achavam cientes dos termos e sujeitos em conflito - a invocação da figura de Marco Feliciano, por exemplo, não me soa acidental… - e indicam que, nesse conflito, nossas diferenças são minimamente negociáveis: “Eu vou [assinar] porque é você”.

Por sua vez, a segunda suposição parece informar mais acerca de nossas próprias fragilidades - como aquelas vinculadas à crença de que a laicidade e a democracia nos diferenciam e autorizam - do que acerca das fragilidades “dos evangélicos”. Agentes do campo evangélico têm, de diversos modos, dinamizado nossas instituições democráticas, tanto porque compõem ativamente nossa esfera pública, ocupando cargos eletivos a partir de votações significativas, executando políticas públicas, engajando-se em lutas por direitos, quanto porque, como Ricardo Mariano já observou, a própria expansão pentecostal “foi responsável pelo estabelecimento da modernidade religiosa no Brasil, ao consolidar a dinâmica pluralista e concorrencial no campo religioso nacional” (2011:248). Não à toa, esses agentes religiosos argumentam defender e respeitar a “laicidade estatal”, como Mariano (2011MARIANO, Ricardo. (2011), “Laicidade à brasileira: católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública”. Civitas, vol. 11, nº 2: 238-258. ) também tem dito, visando à legitimação de sua própria intervenção pública. É verdade que essa compreensão de laicidade difere daquela normalmente empregada por nós, militantes e acadêmicos, inspirada pelo modelo republicano francês e pela ideia de que a participação de grupos religiosos no espaço público deve ser restringida. No entanto, é inegável que a própria definição de laicidade, longe de pertencer monopolisticamente a sujeitos identificados como seculares ou não religiosos, encontra-se sob intensa disputa, de que agentes religiosos participam decisiva e avidamente.

Quero com isso dizer que, se existe algo que nos diferencie a ponto de a oposição “nós” e “os evangélicos” permanecer gerando sentido, esse algo não corresponde propriamente à laicidade, à democracia ou à linguagem dos direitos11 11 Em tempo, o que nos distingue igualmente não parece ser a “ciência”. Interessantes trabalhos do campo dos estudos da religião têm apontado diversas formas como agentes religiosos acionam e articulam saberes científicos em determinados conflitos por direitos. É o que acontece, segundo Alexandre Oviedo Gonçalves (2019), na controvérsia em torno da “cura gay”, mas também é o que ocorre nos contextos analisados por Maria das Dores Campos Machado (2018), em que fiéis do sexo feminino com formação universitária reivindicam a competência para falar em nome da ciência e, assim, enfrentar as pautas feministas. Algo próximo também se deu nas duas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal - uma sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, outra sobre a interrupção da gestação em mulheres grávidas de fetos anencéfalos - analisadas por Lilian Sales (2015) e em que, por exemplo, posições “pró-vida”, contra as pesquisas e contra a interrupção, também manejavam “códigos de valores relacionados à ciência e aos direitos” (Sales 2015:147). Decerto, não pretendo, com essa conclusão, ratificar a ideia de que o que fazemos no interior do campo dos estudos de gênero e sexualidade seja mera “ideologia” - como já disse, citando Carrara, França e Simões (2018). Pretendo apenas notar que a resposta aparentemente óbvia “ciência” não dá conta de nossos dilemas e dos conflitos que constituem essa noção. . De pronto porque esses conceitos se encontram sob conflitos de que atores evangélicos também tomam parte, como visto. Depois, porque é exatamente nos interstícios dos conflitos sobre laicidade, democracia e direitos que a oposição “nós” e “os evangélicos” emerge, através da conflagração de identidades - sempre contextuais - e de suas fronteiras. Páginas atrás, eu notei que “nós” e “os evangélicos” consistem em categorias êmicas, disponíveis nos jogos de acusação e nas narrativas características às disputas em torno das políticas sexuais, dos direitos sexuais e reprodutivos e dos direitos relativos à diversidade sexual e de gênero. Afirmei, também àquele momento, que as fronteiras entre “nós” e “os evangélicos” produzem muitos sentidos de oposição no interior desses conflitos, mas que, todavia, também ajudam a compreender porosidades e as situacionalidades de ambos os polos. Conhecer essas fronteiras é fundamental.

Como tentei demonstrar ao longo deste texto, a “família” e o “trabalho de base” preenchem algumas das zonas de contato dessas fronteiras. Nem “nós”, nem “os evangélicos” estamos abrindo mão deles, afinal. Além disso, essas mesmas fronteiras oportunizam trânsitos entre “nós” e “os evangélicos” que, se bem visualizados, podem auxiliar em sua compreensão. De certos modos e em alguns contextos, “nós” somos religiosos, assim como agentes evangélicos atuam na defesa de alguns dos “nossos direitos”. Interessantes trabalhos acerca da relação de LGBT com igrejas e práticas religiosas (Serra 2019SERRA, Cris. (2019), Viemos para comungar: os grupos católicos LGBTI brasileiros e suas estratégias de permanência na Igreja. Rio de Janeiro: Metonoia. ; Natividade 2010NATIVIDADE, Marcelo. (2010), “Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal”. Religião & Sociedade , vol. 30, nº 2: 90-121.) e de iniciativas religiosas de defesas de direitos sexuais e reprodutivos (Oliveira 2009OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante de. (2009), “O movimento Católicas pelo Direito de Decidir na América Latina: experiências em prol dos direitos sexuais e reprodutivos”. e-cadernos CES, nº 4: 157-176. ) iluminam os trânsitos a que estou me referindo. De fato, minha própria relação com Cássio e Michele também o faz. Em quantas situações, o casal de sem-teto e eu não compusemos as fileiras dos mesmos “nós” em marchas pelo direito à moradia, em protestos perante órgãos da prefeitura ou em atos públicos? Enquanto marchávamos lado a lado, a oposição narrativa “nós” e “os evangélicos”, de tamanha operacionalidade em outros cenários de confronto, rarefazia-se, exibia suas debilidades. É que essas marchas dimensionam os trânsitos e as zonas de contato daquelas fronteiras, assim como o oferecimento do “pega” no “boró”, a assinatura final do termo de consentimento e a minha própria presença no apartamento em que Michele e Cássio moravam também dimensionam.

No entanto, eu sempre me questionei se, à época da entrevista, Cássio e Michele sabiam que eu mantinha, como mantenho, uma união estável com outro homem. Enquanto escrevia os excertos etnográficos deste artigo, perguntei-me se alguma desconfiança a esse respeito poderia ter alimentado a disposição de Michele em profetizar acerca do anticristo. Nunca terei resposta para essas dúvidas. Porém, elas, as dúvidas, lembram que fronteiras são zonas de contato e trânsitos, mas não deixam de ser tensões. Com estas, a oposição “nós” e “os evangélicos” volta a se fazer sentir com maior densidade. Isto porque, em suas fronteiras, parece operar um ciclo vicioso de proximidades e distanciamentos contraditórios. Se a oposição cede porque seguimos em marcha pelo direito à moradia juntos, logo depois, como num espanto, ela se refaz diante de pautas políticas assustadoras como a da “mordaça de gênero”. Mas isto apenas até nos darmos conta de que, como dito, o “projeto de lei da mordaça” é estritamente jurídico, responde muito bem à linguagem de direitos, o que, portanto, aproxima-nos mais uma vez, ao menos em forma, mas somente até que pautas políticas assustadoras como a do Estatuto da Família…

Enfim, algo nos diferencia? Se nos conflitos em que hoje nos achamos implicados, vemo-nos em íntima relação - sou capaz de imaginar que, neste mesmo instante, enquanto concluo este texto acerca dos “evangélicos”, o pastor de uma das igrejas pentecostais do meu bairro pode estar pregando contra a “ideologia de gênero” ou a favor de um candidato a deputado, também pastor, às eleições que se avizinham -, as respostas possíveis a essa pergunta só podem ser resenhadas no interior das fronteiras que constituem essa relação, ou seja, também sob conflito. Trata-se, desse modo, de respostas conjunturais, historicamente situacionais, oportunizadas por sujeitos que se fazem nos interstícios desses conflitos, inclusive enquanto produzem tais respostas. No contexto que hoje atravessamos, porém, o que nos diferencia tem menos a ver com a democracia ou a linguagem de direitos - as quais atores do campo pentecostal também assumem, através das quais também se fazem, como já notei - do que com as lutas pelo seu aprofundamento, pela desestruturação dos seus limites, pela potencialidade de as pôr em xeque ao passo em que as defendemos.

Em outros contextos, “os evangélicos” já cumpriram com esse papel. Em seus investimentos históricos na defesa da liberdade religiosa, do pluralismo religioso e da própria laicidade, atores do campo evangélico desempenharam intensos embates contra a hegemonia católica, alargando o espectro democrático e, assim, reconfigurando os limites da democracia e dos direitos. Práticas religiosas, afinal, não são essencialmente “conservadoras”, tampouco “nós” nos achamos livres de reincidir em regulação moral, como já mencionei ao discutir a respeito das formas de controle geradas a partir de nossas lutas por direitos e reconhecimento. Entretanto, hoje, a oposição “nós” e “os evangélicos” produz sentidos porque suas fronteiras concernem a conflitos acerca das fronteiras da experiência democrática. Dos seus limites, portanto. O que atualmente nos diferencia não repousa na democracia, insisto. O que atualmente nos distingue resta nas tensões acerca de até onde a democracia pode ir.

Isto se vê, por exemplo, na questão emblemática posta por Cássio durante a discussão sobre a recusa inicial de Michele em assinar o termo de consentimento da entrevista: “Se me perguntassem assim, vamos supor, a população tem que decidir, os gays ficam ou saem? Saem. Mas se ficar, não vou estar discriminando, entendeu?” (entrevista com Cássio, 19/12/2013). A hipótese de exclusão dos “gays” se desenlaça através de um procedimento democrático, “a população tem que decidir”. Cássio ativa retoricamente a possibilidade de eliminar a existência de todo um grupo social através da democracia. Se democraticamente, contudo, não houver a decisão de exclusão dos “gays”, ele explica que aceitará a presença do sujeito antes eliminável. “Não vou estar discriminando, entendeu?”. A questão de Cássio me parece emblemática porque demonstra a validação da democracia como procedimento ao mesmo tempo que aponta para os seus limites, no caso, para a restrição desses limites: a exclusão de LGBT da “sociedade” é, por pressuposto, a exclusão de LGBT da democracia e dos direitos. Respeitadas as devidas proporções, não é de algo mais ou menos assim que estão tratando os projetos de lei propostos por parlamentares componentes da bancada evangélica, defendidos ativamente por inúmeras lideranças religiosas e apoiados por uma notável base social? Não remetem os projetos de lei à discussão sobre quem fica e quem sai?

Os conflitos em torno das fronteiras democráticas se têm expressado contundentemente, portanto, em meio às disputas sobre direitos sexuais e reprodutivos e aqueles relacionados à diversidade sexual e de gênero. É nesses conflitos que a oposição “nós” e “os evangélicos” produz sentidos, como argumentei. No entanto, penso que a compreensão desses conflitos em torno das fronteiras de democracia requer a localização da oposição “nós” e “os evangélicos” em outras escalas, a priori não atinentes a controvérsias públicas relativas a gênero e sexualidade. Esse gesto analítico possibilita a exposição das alianças travadas pelos sujeitos que performatizam as identidades “nós” e “os evangélicos”, assim como permite que se perceba como gênero e sexualidade não somente são objeto de controvérsias públicas, mas também participam profundamente da própria feitura dos conflitos acerca das fronteiras da democracia.

Basta, apenas a título de exemplo, recordar a cena da votação sobre a aprovação da admissibilidade do procedimento de impeachment - como se sabe, “golpe” - na Câmara de Deputados, em 17 de abril de 2016, para que as relações de gênero e de sexualidade que participam dos conflitos em torno da democracia se exprimam sem muitos pudores. De acordo com Reginaldo Prandi e João Luiz Carneiro (2018)12 12 Para outras interpretações desse episódio e das justificativas apresentadas pelos parlamentares em seus votos, ver os interessantes trabalhos, já mencionados neste artigo, de Ronaldo de Almeida (2017b) e Luiz Fernando Dias Duarte (2017). , dos 81 deputados pertencentes à Frente Parlamentar Evangélica, 75 votaram favoravelmente à admissibilidade do procedimento de impeachment. Conforme os cálculos dos dois autores, a aprovação foi maior entre os parlamentares evangélicos - 93,8% - do que entre os parlamentares não evangélicos - 67,7%. O que mais chama atenção nos números contabilizados por Prandi e Carneiro (2018), contudo, está na expressiva quantidade de referências à família e aos parentes dos deputados nas justificativas dos seus votos13 13 Segundo Prandi e Carneiro (2018), as referências à família e aos parentes dos deputados ficaram atrás apenas das referências às suas bases eleitorais, em primeiro lugar, e das referências ao Brasil, em segundo lugar. As referências à família e aos parentes dos deputados superaram em muito, por exemplo, as referências à democracia, a “em nome do povo brasileiro”, à esperança e às novas gerações etc. .

Essa expressividade das menções às “famílias”, acredito, tanto se conecta narrativamente às famílias dos projetos de lei anteriormente citados e proporcionados pelos membros da bancada evangélica quanto se conecta, ainda que sob maior tensão, às famílias da placa diante daquela ocupação de sem-teto, no Recife. Mais. Penso que essa expressividade das menções às famílias e aos parentes dos deputados em suas justificativas de voto, diferente do que parecem concluir Reginaldo Prandi e João Luiz Carneiro, não consiste numa “fachada” a dissimular “a fonte verdadeira da razão de ações e barganhas postas em jogo” (2018:5). Mesmo que haja “barganhas”, o recurso narrativo às famílias opera, mutuamente, efeitos políticos reais, constitutivos inclusive das barganhas e disputas que lastrearam o processo político que acarretou o golpe, por exemplo através da identificação de partidos e personagens políticos como adversários da família ou da “família tradicional”. A manipulação de convenções morais de gênero e de sexualidade não representa, dessa maneira, uma “fachada” ou uma “cortina de fumaça”, como outros têm dito, a esconder os reais interesses em questão. Tais convenções perfazem os reais interesses.

Para Ricardo Mariano, “o antagonismo de grupos evangélicos conservadores à ampliação dos direitos civis de minorias sexuais e a aspectos da cultura secular representa, em boa medida, reação defensiva a um sem-número de mudanças socioculturais, legais e políticas” (2016MARIANO, Ricardo. (2016), “Expansão e ativismo político de grupos evangélicos conservadores: secularização e pluralismo em debate”. Civitas , vol. 16, nº 4: 710-728. :723). É isso, uma reação. Mas é, mutuamente, tática de ação. A mobilização de pânicos morais relacionados a gênero e sexualidade compõe, como tentei assinalar, experiências de constituição de sujeitos políticos. Angaria visibilidade, congrega forças sociais diversas, opera processos profundos de sujeição e agencia mesmo aqueles conflitos que tramam a laicidade, a democracia e a linguagem de direitos. Esses conflitos, repito, são forjados em gênero e sexualidade, do que se compreende a sua grande porosidade à conflagração de sujeitos e disputas por meio da mobilização de pânicos morais em torno de políticas sexuais e de gênero ou de direitos sexuais e reprodutivos.

Mas, sendo atravessados por gênero e sexualidade, esses conflitos são, reciprocamente, constituídos por outras relações sociais que, com gênero e sexualidade, fazem-se umas através das outras nas experiências dos sujeitos. Por isso, neste texto, envidei esforços narrativos na costura de sujeitos e contendas de regra distantes em nossas preocupações analíticas - LGBT, trabalhadores, sem-teto, evangélicos, as políticas sobre moradia, as políticas sobre drogas, projetos de lei sobre “ideologia de gênero” ou a definição de família etc. Por isso, a relevância da bancada evangélica na definição daquela votação de 17 de abril de 2016, na Câmara de Deputados, num tema a priori ausente de suas pautas políticas mais imediatas, as de “defesa da família” ou da liberdade religiosa, e que ocupou tamanha centralidade na política nacional. Gênero e sexualidade também preenchem essa centralidade. São relações de poder que conformam as condições de possibilidade da ascensão da bancada evangélica na formação de um projeto de hegemonia ou “de maioria”, para citar novamente a expressão de Emerson Giumbelli (2008GIUMBELLI, Emerson. (2008), “A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil”. Religião & Sociedade , vol. 28, nº 2: 80-101.), inclusive de uma maioria a votar “sim”.

Hoje, portanto, a oposição “nós” e “os evangélicos” produz sentido no interior dos conflitos em torno das fronteiras da experiência democrática brasileira. Isto seja porque as disputas sobre direitos sexuais e reprodutivos e direitos relativos à diversidade sexual e de gênero integram esses conflitos e evidenciam seus limites, seja porque gênero e sexualidade participam da tessitura desses conflitos, o que impacta na permanência da oposição “nós” e “os evangélicos” em outras escalas, como ocorreu com a deflagração do golpe de 2016. Contudo, hoje não é sempre, tampouco essencialmente. Retomo a questão: o que nos diferencia não está dado, a existência mesma da fronteira é suscetível a superação, transformação, diálogo. De todo modo, penso que o nosso horizonte, aquilo que “nós” - este sujeito instável e precário - devemos fazer recende àquele argumento apresentado por Thiago já no final da entrevista, diante da recusa de Michele em assinar o termo de consentimento, o argumento de que “moradia” e “sexo” se entrelaçam e podem funcionar, ambos, como razão de opressão e desigualdade; recende, assim, à disposição para travar alianças entre sujeitos diversos, que podem, claro, ser evangélicos comprometidos com as lutas sociais e por direitos.

Num dos quartos da Ocupação Horizonte, alguns andares acima daquele em que se localizava o apartamento de Michele e Cássio, morava Martinha, uma moça, bastante jovem, que se designava travesti. Eu quase não sei a seu respeito. Martinha não costumava participar das atividades coletivas da Ocupação e, com isso, acabei esbarrando pouco com ela, apenas em alguns momentos. Em duas ou três ocasiões, porém, eu testemunhei Martinha compondo as fileiras de protestos e atos públicos ao lado dos demais trabalhadores sem teto, muitos deles evangélicos. Lembro-me dessa imagem de Martinha nas ruas, entre muitas bandeiras, e penso naquilo que Jacques Rancière (2014RANCIÈRE, Jacques. (2014), O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo. ) chamou de o arbitrário da experiência democrática. Em suas palavras, esse arbitrário consistiria no “escândalo da democracia”, no equivalente “dentro da ordem social ao que é o caos dentro da ordem da natureza” (Rancière:117): o escândalo de que o “título” necessário para o exercício da política está na completa ausência de títulos, de sorte que qualquer um é capaz de exercitá-la. Parece-me que esse escândalo precisa ser o horizonte do nosso - instável, precário - “nós”. Mas de tal forma que Cássio, Michele e o Pastor Marco Feliciano, “o maior pregador depois de Jesus!”, vejam-se levados a partilhar o arbitrário democrático com qualquer um, inclusive comigo, com aquele “tio aposentado”, com os “gays” - que não “sairão” - e com Martinha, todos nós entre muitas e diversas bandeiras.

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    » http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf
  • Entrevista com Michele e Cássio, 19 de dezembro de 2013.
  • 1
    Este artigo foi escrito em agosto de 2018, alguns meses antes das eleições que levariam Jair Bolsonaro à presidência do país. Pouco mais de um ano depois, em setembro de 2019, o texto passou por uma intensa revisão, na tentativa de incorporar as importantes sugestões advindas das avaliações das(os) pareceristas da revista, a quem já agradeço. Eu preferi, porém, não “atualizar” o artigo durante a revisão. Busquei respeitar o contexto pré-eleitoral em que ele foi escrito e acabei concluindo que o cerne dos seus argumentos e análises não se alterou substancialmente nesse período, talvez mesmo se haja ratificado. Uma primeira e bem menor versão deste texto foi apresentada, em outubro de 2017, por ocasião do IV Encontro de Antropologia México - Brasil (EMBRA), na Unicamp. Agradeço enormemente a Isadora Lins França pelo diálogo e pelo convite para compor uma das mesas do evento e a Maria Filomena Gregori pelo inspirador debate acerta do artigo. Enfim, agradeço a Regina Facchini, Francisco Sá Barreto e Mariana Azevedo, por suas leituras e provocações a respeito do que aqui procuro discutir. Sempre e muito, aprendo a seu lado.
  • 2
    Neste artigo, ficcionalizei os nomes próprios de meus interlocutores de pesquisa e de determinados locais em que transitam, com vistas à sua proteção. Esses nomes próprios ficcionalizados se encontram em itálico, a exemplo de Cássio, Michele e Ocupação Horizonte. Mantive, no texto, os nomes originais de interlocutores acadêmicos, como Thiago Fernandes Lúcio e Francisco Sá Barreto, e de figuras públicas, como Joel da Harpa e Anderson Ferreira, então parlamentares. Por sua vez, mantive entre aspas as categorias êmicas e as expressões sob rasura - como “os evangélicos”, “nós”, “trabalho de base” e, em alguns momentos, “família” - assim como as falas dos interlocutores da pesquisa e as citações diretas a autores localizadas no corpo do texto. Como explicado no transcurso do artigo, a entrevista com Cássio e Michele contou com a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido e ocorreu em meio ao trabalho de campo de minha pesquisa de doutorado realizada junto ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, sob a orientação de Regina Facchini.
  • 3
    Para conferir os resultados da pesquisa do Instituto DataFolha em sua integralidade, ver: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf. Acesso em: 22/08/2018.
  • 4
    Thiago Fernandes Lúcio (2014LÚCIO, Thiago Fernandes. (2014), Ambivalências entre trabalho e criminalização: uma análise a partir da experiência da Ocupação Alvorecer. João Pessoa: Trabalho de Conclusão do Curso de Direito, UFPB. ) era, então, estudante do curso de direito da Universidade Federal da Paraíba e realizava, sob minha orientação, a pesquisa que o levaria a escrever o seu trabalho de conclusão de curso intitulado Ambivalências entre trabalho e criminalização: uma análise a partir da experiência da Ocupação Alvorecer. Thiago e eu realizamos, juntos, duas entrevistas com moradores da Ocupação Horizonte - que ele preferiu chamar de “Alvorecer”. A entrevista com Cássio e Michele, em 19 de dezembro de 2013, foi uma delas.
  • 5
    No ano de 2011, Marco Feliciano publicou, em seu microblog na rede social Twitter, uma postagem segundo a qual africanos são amaldiçoados. A afirmação levou o deputado a responder, junto ao Supremo Tribunal Federal, a um inquérito por indução ou incitação ao preconceito de raça, cor, etnia ou religião.
  • 6
    Em outra ocasião (Efrem Filho 2014EFREM FILHO, Roberto. (2014), “Os ciúmes do direito: o desejo pelas uniões homoafetivas e a repulsa a Amor Divino e Paixão Luz”. Sexualidad, Salud y Sociedad: revista latino-americana, nº 16: 10-30.), tratei das relações de poder que atravessam os votos dos(as) ministros(as) do STF a propósito da decisão acerca das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Lá, eu pude ressaltar os esforços de estruturação da categoria “uniões homoafetivas” como correlatos a processos de familiarização, afetualização e dessexualização em que se tramam certos sujeitos de direitos.
  • 7
    Na Paraíba, essas facções seriam duas proeminentes, a “Okaida” e os “Estados Unidos”, ou simplesmente “Estado”. No que se diz, é a Okaida que “comanda” Mandacaru, de onde viriam os contatos de Cássio. Mandacaru consiste num dos bairros periféricos da cidade de João Pessoa.
  • 8
    Discuti em outras oportunidades (Efrem Filho 2017aEFREM FILHO, Roberto. (2017a), Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Campinas: Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp. , 2017bEFREM FILHO, Roberto. (2017b), “A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima”. Cadernos Pagu , nº 50: e175007. ) sobre como estratégias de enfrentamento à criminalização se valem, comumente, da reivindicação de convenções morais de gênero e de sexualidade associadas, por exemplo, a noções como “família” e “trabalho”. Nessas ocasiões, pude constatar como esse enfrentamento à criminalização, de movimentos sociais ou indivíduos, desenlaça-se em meio a relações sociais que são atravessadas pelo crime - também uma “relação social”, processo de criminalização - presente num cotidiano em que as fronteiras entre legalismos e ilegalismos são porosas e em que a violência - não o crime simplesmente - constitui-se como o problema narrativo por excelência.
  • 9
    Clayton Collins (PP) representa um fenômeno eleitoral notável. Como dito, ele reuniu sozinho 216.874 votos nas eleições de 2014. O segundo candidato mais votado, o Presbítero Adalto Santos (PSB), também componente da bancada evangélica, somou 158.874 votos. A terceira candidata mais votada, Raquel Lyra (PSB), obteve apenas 80.879 votos. Mas aqui vai o dado mais preocupante: a soma dos votos dos candidatos eleitos pertencentes à “oposição de esquerda” - Odacy Amorim (PT), Manoel Santos (PT), Teresa Leitão (PT) e Edilson Silva (PSOL) - alcançou somente 185.987 votos. Por sua vez, Joel da Harpa, o propositor do PL da “mordaça de gênero” junto à ALEPE, obteve irrisórios 19.794 votos e certamente foi eleito em razão da coligação “PP - PROS”, formada tão só pelos dois partidos, e que teve Collins como cabeça da legenda. Para acesso aos números completos das eleições de 2014 em Pernambuco, ver: http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/pe/apuracao-votos.htmlG1. (2014), “Eleições 2014 - apuração de votos em PE”. G1, 2014. Disponível em: Disponível em: http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/pe/apuracao-votos.html . Acesso em: 22/08/2018.
    http://g1.globo.com/politica/eleicoes/20...
    . Acesso em: 22/08/2018.
  • 10
    Segundo Sonia Corrêa (2018CORRÊA, Sonia. (2018), “A ‘política do gênero’: um comentário genealógico”. Cadernos Pagu , nº 53: e185301. ), a expressão “ideologia de gênero” adveio da ação de setores ligados ao Vaticano que, já na década de 1990, mobilizavam-se contra a consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos no contexto das conferências internacionais de então, como a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro, ou Eco 92, de 1992, a Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, e a IV Conferência Mundial das Mulheres de Pequim, de 1995. O emprego dessa expressão, contudo, ganhou mais corpo recentemente. Vanessa Leite explica que, “no Brasil, o confronto com a ‘ideologia de gênero’ apareceu nos debates em torno do Plano Nacional de Educação, em 2013. Os setores ‘conservadores’ assumiram uma estratégia de apropriação de termos dos estudos de gênero e dos movimentos feministas, alterando seu sentido. A perspectiva de gênero, que vem dando base para toda a construção de um campo de estudos e produção de conhecimento, é vulgarizada e tratada como ideologia” (2019:130). Para interessantes análises acerca da “ideologia de gênero”, ver, além dos trabalhos de Sonia Corrêa (2018) e Vanessa Leite (2019LEITE, Vanessa. (2019), “‘Em defesa das crianças e da família’: refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos ‘conservadores’ em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade”. Sexualidad, Salud y Sociedad: revista latino-americana , nº 32: 119-142. ) já citados nesta nota, os trabalhos de Maria das Dores Campos Machado (2018MACHADO, Maria das Dores Campos. (2018), “O discurso cristão sobre a ‘ideologia de gênero’”. Revista Estudos Feministas, vol. 26, nº 2: e47463. ) e de Sérgio Carrara, Isadora Lins França e Júlio Assis Simões (2018).
  • 11
    Em tempo, o que nos distingue igualmente não parece ser a “ciência”. Interessantes trabalhos do campo dos estudos da religião têm apontado diversas formas como agentes religiosos acionam e articulam saberes científicos em determinados conflitos por direitos. É o que acontece, segundo Alexandre Oviedo Gonçalves (2019GONÇALVES, Alexandre Oviedo. (2019), “Religião, política e direitos sexuais: controvérsias públicas em torno da ‘cura gay’”. Religião & Sociedade , vol. 39, nº 2: 175-199. ), na controvérsia em torno da “cura gay”, mas também é o que ocorre nos contextos analisados por Maria das Dores Campos Machado (2018), em que fiéis do sexo feminino com formação universitária reivindicam a competência para falar em nome da ciência e, assim, enfrentar as pautas feministas. Algo próximo também se deu nas duas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal - uma sobre o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, outra sobre a interrupção da gestação em mulheres grávidas de fetos anencéfalos - analisadas por Lilian Sales (2015SALES, Lilian. (2015), “‘Em defesa da vida humana’: moralidades em disputa em duas audiências públicas no STF”. Religião & Sociedade , vol. 35, nº 2: 143-164.) e em que, por exemplo, posições “pró-vida”, contra as pesquisas e contra a interrupção, também manejavam “códigos de valores relacionados à ciência e aos direitos” (Sales 2015:147). Decerto, não pretendo, com essa conclusão, ratificar a ideia de que o que fazemos no interior do campo dos estudos de gênero e sexualidade seja mera “ideologia” - como já disse, citando Carrara, França e Simões (2018). Pretendo apenas notar que a resposta aparentemente óbvia “ciência” não dá conta de nossos dilemas e dos conflitos que constituem essa noção.
  • 12
    Para outras interpretações desse episódio e das justificativas apresentadas pelos parlamentares em seus votos, ver os interessantes trabalhos, já mencionados neste artigo, de Ronaldo de Almeida (2017b) e Luiz Fernando Dias Duarte (2017 DUARTE, Luiz Fernando Dias. (2017), “Valores cívicos e morais em jogo na Câmara dos Deputados: a votação sobre o pedido de impeachment da Presidente da República”. Religião & Sociedade , vol. 37, nº 1: 145166.).
  • 13
    Segundo Prandi e Carneiro (2018), as referências à família e aos parentes dos deputados ficaram atrás apenas das referências às suas bases eleitorais, em primeiro lugar, e das referências ao Brasil, em segundo lugar. As referências à família e aos parentes dos deputados superaram em muito, por exemplo, as referências à democracia, a “em nome do povo brasileiro”, à esperança e às novas gerações etc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2018
  • Aceito
    14 Nov 2019
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