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PRATICANDO E ENSINANDO MEDICINA NA COMUNIDADE: O ENSINO

Resumo:

Os autores descrevem uma experiência de ensino da Medicina em nível de atenção primária à saúde. Terceiranistas, internos e residentes recebem parte de seu treinamento neste nível da atenção médica. Esta é a oportunidade única no currículo médico que permite o aprendizado de aspetos importantes da complexa relação saúde-doença, como, por exemplo, prevenção em todos os níveis, doenças comuns, cuidado médico continuado, história natural das doenças, utilização de conhecimentos epidemiológicos na tomada de decisões. Analisam-se dificuldades e perspectivas do ensino de Medicina na comunidade.

Summary:

The authors describe an experience of teaching medicine at primary care level, run by the Department of Social Medicine of UFPel.

Undergraduate medical students and residents receive part of their training in this level of medical care. This is unique in the medical curriculum as it allows learning some important aspects of the complex relationship of health-disease in the community. These aspects include: prevention of disease at all levels, common diseases, continuity of medical care, natural history of disease, early and late stages of illness seen in hospital.

Some difficulties and perspectives of teaching medicine at primary care level are discussed.

Introdução

No Posto de Atenção Primária à Saúde, descrito em Praticando e Ensinando Medicina na Comunidade: a Assistência Médica, desenvolvemos, também, atividades docentes. Ao descrever nossa experiência, temos a convicção de que muitos dos seus aspetos não devem ser peculiaridades locais e, portanto, expostos a mais ampla apreciação, poderão permitir a busca de soluções.

Segundo Metcalfe22. METCALFE, D. H. H. The proper emphasis on primary care in basic medical education. Med. Educ., 18 (3): 147-50, 1984., o nível de atenção primária à saúde é único para a aprendizagem de alguns aspetos da prática médica, tais como: (a) doenças comuns; (b) estágios inicial e final de doenças que, em suas fases intermediárias, são vistas no hospital; (c) história natural das doenças; (d) prevenção em todos os níveis; (e) o paciente como ser biopsicossocial visto em seu ecossistema; (f) cuidado do paciente terminal no seio de sua família; (g) relacionamento médico-paciente no cuidado imediato e continuado; (h) utilização de conhecimentos epidemiológicos na tomada de decisões; (i) importância dos registros na qualificação do serviço e como banco de dados para pesquisas operacionais.

Atentos a tais considerações, procuramos utilizar o local e as atividades já descritos e que acreditamos possam permitir um bom aproveitamento.

Descrição da Experiência

Recebemos três tipos de alunos. Dois do curso de graduação, matriculados no 3.o e 6.o anos, e um grupo de pós-graduação, inscrito no Programa de Residência Médica em Medicina Social.

Os alunos são estimulados a desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes no processo médico, abrangendo coleta e análise de dados, levantamento de problemas e seu estudo imediato, planejamento de conduta de forma integrada com o paciente, enfatizando a comunicação em linguagem apropriada para que o paciente entenda e participe da estratégia diagnóstica e terapêutica.

Utilizamos como técnica pedagógica a constante reflexão sobre a prática exercida, de forma coerente com as teorias expostas em bibliografia confiável e atualizada.

Como é sabido, os dois primeiros anos do curso de Medicina mantêm o aluno nas chamadas disciplinas básicas, afastado e sequioso de contatos com pacientes. No terceiro ano, imediatamente após um semestre de Semiologia, chega ao Posto um aluno que deverá permanecer durante um semestre. Na verdade, o semestre compõe-se de quatro meses, com semanas de cinco dias. Em nossa Faculdade, cada aluno estará em contato com a atenção primária à saúde em dois períodos de quatro horas a cada semana e receberá, também, duas horas de aulas expositivas.

Os alunos do 6.º ano desenvolvem um plano integrado de internato. Permanecem nove meses no Posto, fazendo, simultaneamente, plantões hospitalares nas áreas de Pediatria e Obstetrícia. Têm, assim, oportunidade de acompanhar partos de suas pacientes de pré-natal, bem como seguir a evolução dos recém-nascidos e de crianças enfermas nos diferentes níveis de atendimento. Durante três meses residem em hospital comunitário de uma cidade de pequeno porte, integrando-se em toda a rotina de atendimento de uma população predominantemente rural.

Aos Residentes de Medicina Social, cabe desenvolver atividades dentro das prioridades estabelecidas, bem como prestar atendimento ambulatorial e domiciliar à comunidade.

O Posto, como parece ser usual nesse nível de atendimento, é pequeno (quatro salas para atendimento de pacientes), com pouco conforto e carente de recursos didáticos que poderiam facilitar o ensino. A ele acorrem, em média, vinte pacientes em um período de quatro horas, cabendo a dois docentes a tarefa simultânea de atender e ensinar, envolvendo em média dez alunos do 3.º e 2 alunos do 6.º ano. Um terceiro docente, em dois dias da semana, participa das discussões e desempenha atividades de consultoria.

Discussão

Podemos afirmar que o Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas está procurando atingir os objetivos propostos pela Organização Mundial da Saúde, teoricamente avalizados pelas autoridades sanitárias e educacionais do País.

É imperioso discutir quais os resultados desta experiência pedagógica. Pensamos que é semelhante ao que ocorre quando um indivíduo está com o rádio ligado, desejando escutar uma música emitida, mas com o dial fora da posição correta. Existe a emissão da música de boa qualidade, existe alguém disposto a escutar a música, mas os resultados deixam a desejar por falta de sintonia.

A mensagem teórico-prática atinge os alunos do 3.o ano em dez horas semanais, durante um semestre. Matriculados em outras disciplinas, os alunos estão sobrecarregados de aulas expositivas e freqüentes avaliações. Alguns professores consideram tais sobrecargas indispensáveis e não têm sido questionadas pelo Colegiado de Curso. Logo após, seguem para um ensino predominantemente intra-hospitalar, com rápidas passagens por numerosas especialidades e subespecialidades. Existem, ainda, grupos de alunos que são selecionados, a partir do 3.o ano, para funções ditas de internato em várias áreas especializadas. É mais um problema que não acreditamos constitua peculiaridade local. Parece indiscutível que esse sistema traz como resultados o estímulo à especialização precoce, além de que, privilegiando os privilegiados, provavelmente reduz a oportunidade de aprendizado em setores específicos para a maioria dos alunos.

Não se pretende negar a importância e vantagens do ensino no hospital. Necessário, porém, é apreciar plenamente suas características e decorrentes limitações.

Ao final do curso não é surpresa que apenas um pequeno número de alunos demonstre interesse pelo internato integrado ou por planos de prática da Medicina Geral (ainda que seja este o objetivo expressamente definido no Regimento da Faculdade) ou, ainda, por projetos de pós-graduação com a mesma finalidade. Perguntamo-nos se seria razoável esperar que alunos ansiosos por atender a pacientes, em sentido individual, se entusiasmassem com os aspetos sociais, especialmente os preventivos, da medicina da população.

Propositadamente deixamos de citar, até aqui, um outro fator condicionante que consideramos de grande importância. E não o mencionamos, ainda, na esperança de que os novos rumos, há tanto anunciados e recentemente reforçados na VIII Conferência Nacional de Saúde, estejam realmente próximos de se tornar realidade. Obviamente, o que desejamos lembrar é a crônica incoerência entre o discurso e a prática da assistência e da educação médica no Brasil.

Vemos com mais otimismo o internato integrado. Apesar de algumas resistências na área de plantões hospitalares, uma vez que esses alunos não se enquadram em esquemas estabelecidos, a avaliação executada por docentes, alunos e egressos, evidenciou resultados satisfatórios. A longa permanência no Posto permite a apreciação das variações sazonais da morbidade. O contato mais próximo e prolongado com a população estimula a visão social da Medicina. O convívio demorado com os docentes facilita a busca de modelos de identificação. Egressos do plano têm sido bem sucedidos na prática imediata em cidades pequenas ou distritos rurais, assim como no acesso à Residência de Medicina Social e de Medicina Geral Comunitária, bem como de várias outras especialidades.

O momento parece impor a revisão e discussão da nossa e de outras experiências análogas. Basta revisar o texto de MACEDO11. MACEDO, C. G. La universidad y salud para todos en el año 2000. Bol. Of. Sanit. Panam., 99 (3), 1985. e recordar que estamos a menos de quinze anos do ano 2000. Reformas curriculares e reestruturação da assistência médica, para a qual a Universidade não se pode eximir de fornecer elementos, precisam tornar coerentes o discurso que proferimos e a prática que exercemos, enfatizando e dando cunho real à afirmação de que o fazer significa a utilização do saber.

Referências Bibliográficas

  • 1
    MACEDO, C. G. La universidad y salud para todos en el año 2000. Bol. Of. Sanit. Panam, 99 (3), 1985.
  • 2
    METCALFE, D. H. H. The proper emphasis on primary care in basic medical education. Med. Educ, 18 (3): 147-50, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1986
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