Resumo:
Os autores apresentam uma experiência de educação continuada para profissionais lotados em Centros de Saúde da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, cobrindo cerca de 80 municípios.
Discutem a importância da Universidade procurar formas que possibilitem a atualização de profissionais da área da saúde. Descrevem como a experiência foi desenvolvida, ressaltando a importância de as escolas médicas procurarem entrosamento com os serviços públicos de atendimento à saúde.
Summary:
The authors present an experience of up to date information about pediatrics to health centres professionals.
The course was directed mainly to the health basic actions proposed by UNICEF and OMS. It is discussed the importance of University to look for means of actualizing health professionals. It is described how the program was developed, calling for the importance of Medical Scholls in working with public health services, and this kind of experience is proposed to other regions with similar conditions.
Introdução
O conhecimento médico transforma-se, cada vez mais, de maneira bastante rápida. Conceitos são substituídos, terapêuticas novas são propostas, métodos diagnósticos são aperfeiçoados, doenças e etiologias são descobertas, tratamentos são abolidos e até condenados, e assim por diante. Se não acompanhar o avanço do conhecimento da sua área de atuação, rapidamente o profissional se desatualiza.
A Universidade, como formadora de recursos humanos, tem cumprido algumas de suas funções, tradicionais ou novas, às vezes, até com bastante dificuldade, mas investido pouco em outras. Na área médica, observa-se que as seguintes atividades estão na ordem do dia: (a) formação do médico, através do curso de graduação; (b) formação do especialista, através dos programas de Residência Médica; (c) formação do docente, através dos cursos de pós-graduação.
Não consideramos que todas as escolas devam ter cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) por necessitarem da existência de grupos fortemente envolvidos com pesquisa. Mas, uma atividade que poderia fazer parte da rotina das faculdades de Medicina e que tem sido, até o momento, fruto principalmente de programas marginais, espontâneos e esporádicos, refere-se à atualização do conhecimento médico para profissionais afastados das escolas médicas, denominados de atualização ou reciclagem.
Como referimos, esse conhecimento vem-se transformando rapidamente e as condições objetivas de trabalho dos profissionais que atuam na atenção à saúde da população lhes permitem poucas possibilidades de se atualizarem. Essa falta de possibilidades é resultado de vários fatores, o qual não compete aqui discutir. Para o que interessa no momento, entre tais fatores encontra-se uma falta de atenção por parte das faculdades de Medicina (entendida como instituição, e conhecendo algumas iniciativas isoladas por parte de algum departamento ou docente) em o ganizarem uma programação específica visando a atualização dos profissionais que já á algum tempo se afastaram das escolas e que são, na maioria, os que na verdade fazem o atendimento da maioria da população.
Desta forma, parece importante a estruturação de programas de educação continuada que possibilitem a esses profissionais acesso ao conhecimento mais atualizado possível.
Um aspeto que parece bastante importante e para o qual este trabalho procura contribuir, está no estabelecimento das formas de como esses programas possam ser desenvolvidos, para que maior número de profissionais consigam participar, aproveitar e, conseqüentemente, resultar em atenção médica de melhor qualidade.
Programas de Atenção à Infância e suas Limitações
A atenção à infância é considerada prioritária no Brasil. Essa prioridade é explicitada em nível de Governos, Federal, Estadual e Municipal. É fruto da nossa realidade sócio-econômica e sanitária. Também é fruto de propostas de organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Banco Mundial. Essa prioridade é estabelecida dentro do contexto do terceiro mundo e baseada no conceito de risco biológico de maior vulnerabilidade, que corresponde a todo o ciclo de crescimento e desenvolvimento.
Para resolver os problemas de saúde que atingem a infância, diversos programas vêm sendo elaborados, tanto em nível nacional, como regional e local. Muitos desses programas são alterados, ou desqualificados, antes mesmo de serem levados à prática. Outros chegam a ser implantados, mas encontram grande resistência.
As alterações realizadas são conseqüentes a pressões políticas, à escassez de recursos (financeiros, humanos e logísticos), por se revelarem inexequíveis no contexto em que são propostos, são engavetados por inércia etc. E assim, muitas idéias e planos morrem em nível de propostas.
As resistências em nível de aplicações são frutos dos mesmos aspetos levantados antes: pressões políticas, escassez de recursos, inexeqüibilidade. No entanto, nem todas as resistências são conseqüentes a isso. Existe, por um lado, o aspeto autoritário dos planejadores e, por outro, um despreparo por parte de quem vai realmente executar o programa. Mudanças técnicas exigem treinamento, fundamentação teórica, condições materiais. O autoritarismo e o despreparo (este, inclusive, filho daquele) precisam acabar. Não queremos dizer que cada projeto precisa ser discutido com todos os serviços envolvidos, mas devem ser resultado das experiências locais e devem respeitar essas experiências. Também não queremos dizer que só essa experiência é válida, e que propostas vindas de organismos centrais sejam más por esse fato. O que queremos apontar é que deve haver maior entrosamento e intercâmbio entre os setores responsáveis pelo planejamento e os responsáveis pela execução dos planos.
Assim, planos também morrem porque, por serem gerais, não se tornam viáveis na prática, e planos morrem porque, sendo fundados em fatos e conhecimentos que as bases não conhecem, não são seguidos. O entrosamento exige maior trabalho, maior respeito profissional e maior competência, e, em conseqüência, provê maior possibilidade de dar bons resultados.
As faculdades de Medicina podem participar desse entrosamento através de colaboração técnica em nível de desenvolvimento de tecnologias apropriadas para a execução de programas, de avaliação, de crítica. E podem colaborar, principalmente, em nível de atualização dos profissionais de saúde que trabalham na rede pública. Esse entrosamento com os serviços públicos também possibilitaria às faculdades uma melhor compreensão das condições de saúde da população e das necessidades técnicas dos profissionais, proporcionando inclusive um instrumental para melhoria do ensino médico.
Ações Básicas de Saúde
Embora o perfil de mortalidade infantil no Brasil esteja mudando, as doenças infecciosas, a diarréia e as infecções respiratórias continuam ocupando posições de relevo (as altas taxas de mortalidade por causas perinatais, que vêm recentemente assumindo a posição de liderança entre causas de óbitos infantis, são também, em boa medida, conseqüentes à falta de atualização de conhecimentos no que concerne à atenção no período perinatal). AOMS e o UNICEF vêm divulgando e estimulando a implementação de programas de atenção à infância, que incorporem na sua prática o que denominaram de ações básicas de saúde e que são: Monitorização do Crescimento, Estímulo ao Aleitamento Materno, Terapia de Reidratação Oral e o Programa Ampliado de Imunizações. Essas ações, para serem mais efetivas, devem ser desenvolvidas no contexto da atenção primária. Dentro dessa perspectiva, para implementá-las, deve-se procurar aumentar a rede de serviços, preparar pessoal capacitado para a sua implementação, execução e consolidação. É importante desenvolver tecnologia apropriada para a sua avaliação e reformulação quando for necessária. Deve-se desempenhar papel educativo junto à população e é fundamental que ela se integre aos serviços e colabore para a sua implementação e desenvolvimento. Dentro do contexto sócio-político e econômico internacional, essa é uma proposta difícil de ser feita e mais difícil de ser levada adiante. A primeira parte já foi conseguida, a implementação ainda está em estágios muito iniciais.
Há necessidade de uma conscientização da importância dessas ações pelos próprios funcionários que trabalham na rede, porque inclusive algumas delas implicam mudanças radicais sobre concepções aprendidas anos antes na escola (por exemplo, a Terapia da Reidratação Oral com concentrações de sódio até recentemente consideradas não fisiológicas), ou necessitam uma maior atenção por parte da equipe de saúde, que antes não se apercebia da sua importância (por exemplo, monitorização do crescimento, incentivo ao aleitamento materno).
Essas quatro propostas, acrescidas da importância de serem levadas a efeito no contexto da atenção primária, surgiram após um longo debate na literatura médica e social em nível mundial e nacional, após diferentes estudos e pesquisas de cujo resultados poucos estão a par. Para a sua implementação, vão necessitar de intenso e extenso trabalho de atualização e conscientização. E vão necessitar também de acompanhamento crítico, criterioso, com avaliações periódicas, para analisar seus efeitos.
O Programa de Reciclagem
Levando em conta essas considerações acima, o Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, juntamente com a área materno-infantil do Departamento Regional de Campinas, da Secretaria do Estado da Saúde (DRS-5), que compreende cerca de 80 Municípios, desenvolveu um programa de reciclagem para os profissionais da sua rede, durante o 2.o semestre de 1984. Pelas suas características operacionais, esse programa foi denominado Reciclotur.
O curso constou dos seguintes temas:
Crescimento físico nos primeiros anos de vida;
Desnutrição energético-protêica;
Imunizações;
Diarréia aguda;
Terapia da Reidratação Oral (TRO)
Alimentação no primeiro ano de vida;
Aleitamento materno.
Constou, também, por solicitação dos médicos dos Centros de Saúde, dos seguintes temas:
Infecções do Trato Urinário
Doenças exantemáticas
Protoparasitoses
Esta última, depois de duas jornadas, foi excluída por falta de tempo e outros temas incorporados em um única aula como: Diarréia e TRO; Alimentação no primeiro ano e Aleitamento materno.
O curso foi ministrado em forma de jornada, cobrindo a 6.a feira, à noite, e sábado o dia inteiro. Eventualmente, dependendo da disponibilidade de tempo, era desenvolvido em dois sábados ou algum período noturno durante a semana. O trabalho foi totalmente voluntário por parte dos docentes do Departamento de Pediatria, dos funcionários do Departamento Regional que colaboraram no programa e por parte dos diretores dos distritos que providenciaram as condições para se ministrarem as aulas.
Todas as aulas foram centradas na importância da sua prática na atenção primária e a alta capacidade resolutiva que a sua implementação e cumprimento criterioso trariam ao trabalho desenvolvido nos centros de saúde.
As jornadas foram realizadas nas cidades sede dos distritos sanitários, perfazendo um total de 10 distritos, sendo assistidas por cerca de 300 profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, educadores sanitários etc.).
Avaliação
A avaliação feita pela área materno-infantil foi qualitativa. Não se tratou de aplicar questionários, mas de coletar comentários e observar mudanças no comportamento dos profissionais em relação à sua prática diária e à aceitação de pro gramas que estão sendo implementados pela Secretaria de Saúde.
O primeiro aspeto, que chamou a atenção, foi o comentário freqüente feito em todos os cursos e mesmo após a sua realização, pelos profissionais que os freqüentavam, de que estavam observando pela primeira vez uma preocupação da Secretaria da Saúde em atualizar os seus funcionários e não simplesmente realizar os programas sem maiores esclarecimentos. Houve também considerações positivas em relação ao Departamento de Pediatria, pelo fato de se dispor a realizar cursos para os funcionários da rede.
Observou-se um comportamento de reivindicar maior atualização do conhecimento também em outras atividades e em outros setores que participam da atenção primária. Houve maior aceitação dos programas, com uma participação mais ativa dos profissionais que freqüentaram o curso, facilitando a sua implementação e maior preocupação com a qualidade do serviço e com o desenvolvimento das condições para a sua avaliação.
Tendo sido um programa essencialmente cooperativo, o gasto para a sua realização foi muito baixo. O deslocamento da equipe responsável pelas aulas para a região onde os profissionais trabalham, também, foi um fator que contribuiu para o baixo gasto com transporte e alojamento desses funcionários, não onerando o orçamento da regional.
Conclusões
Há uma demanda reprimida de profissionais carentes de conhecimento para poder levar a efeito um serviço de atenção à população de melhor qualidade;
As faculdades de Medicina podem participar de programas que possibilitem a atualização de conhecimentos a esses profissionais, uma vez que por suas peculiaridades e exigências devem se manter atualizadas; é preciso, no entanto, tomarem consciência da importância desse trabalho;
A integração das faculdades com os serviços públicos de saúde é importante, tanto para a atualização dos docentes das faculdades, como dos profissionais que trabalham na rede;
É importante que os órgãos responsáveis pelo planejamento dos programas de saúde tenham um intercâmbio maior com as faculdades de Medicina e com os profissionais que atuam na rede, para que os serviços médicos do Estado tenham um alto poder de resolubilidade;
A necessidade de atualização do conhecimento médico não se prende apenas àqueles dependentes de alta tecnologia. Conhecimentos teóricos para diagnóstico e terapêutica em nível ambulatorial também têm sofrido modificações importantes e precisam rapidamente ser repassados para os profissionais que atuam na rede;
Há necessidade de as faculdades investirem na organização, de forma sistematizada e periódica, de cursos de reciclagem e atualização, para aperfeiçoarem os profissionais que atuam há algum tempo na sociedade;
A forma de realização deste programa de reciclagem mostrou-se altamente viável e produtiva, podendo ser estendido a outras regiões com situações geográficas e de transporte semelhante.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Jun 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 1986
