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Alguns aspectos da política nacional de ciência e tecnologia

Some aspects of national policy for science and technology

Resumo

The Brazilian industrialisation process, which occurred from World War II up to the early eighties, was almost totally based on imported technology and has thus not demanded local S&T capability. National S&T expenditures were limited to 0.7 % of the GNP, covering mainly expenses with basic research and training of scientists and engineers. Federal Government was then responsible for 90% of the national S&T expenditures. The globalisation of the economy, associated with the reduction of tariff barriers, has, since the early nineties, exposed Brazilian industries to international competition and, thus, forced them to invest in research and development. S&T policy fosters research activities, provides research infrastructure and human resources training. The goal is to raise national expenditures to 1.5% of GDP by 1999, with a share of the private sector of about 40%. In 1996, national S&T expenditures have already attained 1.1% of the GDP and private sector investments in this area reached a share of 30%.

science and technology; policy; national expenditures; priorities; cooperation


science and technology; policy; national expenditures; priorities; cooperation

Alguns aspectos da política nacional de ciência e tecnologia

José Israel Vargas

Ministro da Ciência e Tecnologia - Ministério da Ciência e Tecnologia - Esplanada dos Ministérios - Bloco E - 4o Andar - 70067-900 - Brasília - DF

Some aspects of national policy for science and technology. The Brazilian industrialisation process, which occurred from World War II up to the early eighties, was almost totally based on imported technology and has thus not demanded local S&T capability. National S&T expenditures were limited to 0.7 % of the GNP, covering mainly expenses with basic research and training of scientists and engineers. Federal Government was then responsible for 90% of the national S&T expenditures. The globalisation of the economy, associated with the reduction of tariff barriers, has, since the early nineties, exposed Brazilian industries to international competition and, thus, forced them to invest in research and development. S&T policy fosters research activities, provides research infrastructure and human resources training. The goal is to raise national expenditures to 1.5% of GDP by 1999, with a share of the private sector of about 40%. In 1996, national S&T expenditures have already attained 1.1% of the GDP and private sector investments in this area reached a share of 30%.

Keywords: science and technology; policy; national expenditures; priorities; cooperation.

INTRODUÇÃO

Já está incorporada à cultura nacional a afirmação de que o Brasil investe pouco em ciência e tecnologia, quantificando-se esse pouco como sendo 0,7% do PIB. Afirma-se também, freqüentemente, que as empresas brasileiras não pesquisam, não investem em tecnologia, sendo atribuídos à sua responsabilidade meros 10% dos parcos 0,7% do PIB gastos pelo País.

Se por um lado é verdade que tradicionalmente o País investe pouco em Ciência e Tecnologia, por outro lado a prudência manda desconfiar das cifras proclamadas. Como procurarei mostrar adiante, não são contabilizados aí nem o esforço crescente do Governo nem muitos investimentos realizados por nossa indústria com o desenvolvimento de tecnologia. Assim, os 0,7% do PIB historicamente atribuídos a investimentos em C&T são de fato os gastos governamentais com ciência durante a década de 80 e início da década de 90.

A pequenez desses investimentos, quando comparados aos percentuais dos produtos de países industrializados por eles investidos em Ciência e Tecnologia - entre 2 e 3% dos seus respectivos PIBs - fez surgir há pouco mais de dez anos a consciência de que era necessário aumentar o esforço nacional em pesquisa e desenvolvimento, com mais ênfase nas áreas aplicadas. Assim, em 1985, criava-se o Ministério da Ciência e Tecnologia e três anos depois, em 1988, gravava-se na Constituição Federal a determinação de implantar a política nacional de ciência e tecnologia com o objetivo de promover o desenvolvimento intelectual e material de nossa sociedade. Esses objetivos estão definidos no artigo 218 da Constituição e em seus parágrafos:

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica.

§1º A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.

§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.

§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.

§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.

§ 5º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.

A materialização desses objetivos do texto constitucional necessariamente passa pelo metabolismo do estudo, da avaliação, da discussão pública, enfim do planejamento e da definição de ações e metas concretas que de fato dão conteúdo à política de ciência e tecnologia.

Assim, o Congresso Nacional aprovou em 1995 o Plano Plurianual, com vigência de 1996 a 1999, e que constitui o documento básico da política governamental, delineando as ações subseqüentes, bem como os orçamentos federais para esse período. Dada sua importância, permito-me recordar a síntese referente ao capítulo de ciência e tecnologia:

A meta é aumentar significativamente os investimentos na área de ciência e tecnologia. Estão previstos recursos da ordem de R$ 14,4 bilhões, com uma participação de cerca de 40% do setor privado. Isto significa que os investimentos para o setor vão passar dos atuais 0,7% para 1,5% do PIB.

A prioridade será para as áreas de informação e automação, aeroespacial, nuclear, meio ambiente, recursos do mar e saúde. Entre as principais ações destacam-se o fortalecimento da infra-estrutura científica e tecnológica, a consolidação de núcleos de excelência, a formação de recursos humanos para pesquisa e desenvolvimento, o apoio à pesquisa privada e ao processo de inovação nas empresas, o aumento da transferência de tecnologia, o estímulo à integração universidade-empresa e a revisão dos incentivos fiscais de apoio à pesquisa e desenvolvimento.

Esse é o balizamento legal da política científica e tecnológica, conseqüência, certamente, de nosso passado pouco afeito à pesquisa, como demonstra o processo de industrialização do Brasil.

1. A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA

O nosso processo de desenvolvimento recente foi baseado, como é bem sabido, na importação de tecnologia.

É verdade que os economistas preferem falar no modelo da substituição de importação, para designar o período que foi marcado por um explosivo processo de industrialização do País. Mas, de fato, a industrialização foi feita com base em tecnologia - e freqüentemente de capitais - importados.

Veja-se, no gráfico 1, abaixo, o ingresso de capital externo no Brasil ao longo deste século, segundo dados do Banco Central.


Em moeda de 1994, foram investidos cerca de 100 bilhões de dólares até aquele ano. Notem-se a concentração de investimentos na década de 70 - o "milagre econômico" - e a brutal redução de ingressos da "década perdida" de 80. Historicamente os investimentos externos representam 20% da poupança nacional. Essa participação caiu a quase zero na década 80.

Relatório recente do Banco Mundial, sobre a transferência de capitais de países desenvolvidos para países emergentes, constata não só um aumento generalizado dessas transferências nos últimos anos - sintoma da globalização - mas também concede posição de destaque ao Brasil como receptor de capitais externos. Além do volume crescente de ingressos, o relatório enfatiza a melhora da qualidade dos recursos transferidos ao Brasil. Os capitais produtivos externos investidos no Brasil superam em muito os empréstimos, que somam apenas 3,5% do total dos ingressos, ao contrário do Chile - 19%; México - 24%; e Argentina - 42%.

A esse propósito, recordemos que a internalização de capitais produtivos necessariamente traz também a tecnologia associada a essa produção.

Nunca foi contabilizada a parcela desses ingressos de capital que pode ser efetivamente atribuída ao custo da tecnologia. A recuperação dos dados é virtualmente impossível. No caso dos ingressos de capital, podemos apenas estimar uma fração que seja razoável como custo da tecnologia. No caso das remessas de divisas - que certamente pagariam essa importação de tecnologia - a legislação brasileira proibia o pagamento de royalties de filial a matriz, praticamente forçando as empresas a distorcerem grosseiramente as informações sobre gastos com ciência e tecnologia. Certamente ninguém duvida que esse pagamento foi feito, recorrendo-se a artifícios contábeis e a pagamentos pela transferência de tecnologia a outro título qualquer. Segundo estimativas de vários economistas consultados, os investimentos externos contabilizados pelo Banco Central estariam gerando faturamento anual da ordem de 140 bilhões de dólares, com uma porcentagem de investimentos em P&D, diretos e indiretos, de 3% do faturamento. Isso significa que os gastos empresariais das empresas originadas em capital externo equivaleriam, em 1995 a cerca de 0,55% do PIB. Estima-se que a estatística oficial consiga contabilizar apenas 20% desses investimentos - isto é, 10% dos investimentos brasileiros em P&D.

O fato é que a importação de tecnologia, contabilizada ou não nas estatísticas nacionais, propiciou ao País parcela importante de um notável crescimento econômico, como pode ser visto na tabela 1.

Note-se que de 1947 a 1989 o PIB brasileiro foi multiplicado por um fator de 12,5 - inferior apenas ao crescimento do PIB do Japão. Todos os demais países tiveram crescimento significativamente inferior. É verdade que esse crescimento foi moderado por nossa expansão populacional, muito elevada no período, o que fez com que a renda per capita nesses 40 anos fosse multiplicada apenas pelo fator 5. E isso também de forma muito irregular, acentuando a discrepância de renda entre pobres e ricos em nosso País.

Mas o impacto da industrialização - ou seja, da tecnologia que para aqui se transferia - pode ser realmente aferido pela expressiva mudança de nossa pauta de exportações.

Como pode ser visto na tabela 2, os bens manufaturados representavam, em 1953, apenas 2% da nossa pauta de exportação. Em 1986, já haviam alcançado 41% do valor das exportações. Foi o melhor resultado entre todos os países da América Latina, embora muito inferior ao crescimento das exportações de manufaturados alcançado, no mesmo período, pelos países asiáticos.

Temos aí um bom exemplo do valor político da transferência de tecnologia, a que me referi há pouco. Por razões geopolíticas, era estrategicamente imprescindível para os Estados Unidos isolar a ameaça comunista na Ásia, criando um cinturão de riqueza, impermeável às tentações ideológicas. Por outro lado, a então União Soviética também buscava expandir e garantir sua zona de influência. Estão aí os crescimentos espetaculares das exportações de bens manufaturados de Taiwan e Coréia do Sul, por um lado, e os significativos, embora não tão espetaculares, crescimentos da exportações de manufaturados da China, do Paquistão, de Bangladesh e da Índia, para ilustrar o funcionamento da transferência de tecnologia como instrumento político.

A importância da transferência, absorção e desenvolvimento de tecnologia para o processo de desenvolvimento do País é também evidenciada pela balança comercial de produtos de alta tecnologia.

O Brasil é hoje o único país da América Latina a apresentar superavit na balança comercial de produtos de alto conteúdo tecnológico. Em 1989, as importações de produtos de tecnologia de ponta, no valor de 8 bilhões de dólares, foram superadas pelas exportações em 664 milhões de dólares, como pode ser visto na tabela 3.

Note-se que em 1970, o valor das exportações desses produtos equivalia a apenas 9% do valor das importações e em 1980, as importações ainda eram praticamente o dobro das exportações dessa classe de produtos.

Mas, quais teriam sido os mecanismos de apropriação e geração de tecnologia que proporcionaram essa profunda mudança do perfil econômico do Brasil?

Em primeiro lugar, houve uma decisão política - a de promover a industrialização do País, inicialmente, via setores fornecedores de insumos básicos, como aço e barrilha, associado à implantação de uma infra-estrutura básica de suprimento de energia e de vias de transporte, em nome da segurança e da autonomia nacional, tornadas essenciais à vista das lições da Segunda Guerra Mundial. Em seguida, no Governo JK, foi privilegiada a atração de investimentos externos em um setor de imenso poder multiplicador - a indústria automobilística, com sua natureza de montadora, dependente, portanto, de uma constelação de empresas de menor porte, fornecedoras das autopeças, com crescente participação das empresas nacionais.

Esse processo de implantação de indústrias foi no entanto baseado em setores chave quase que exclusivamente na tecnologia externa. Naqueles setores em que pretendia-se promover o desenvolvimento autóctone de tecnologia, de fato pouco sucesso pôde ser registrado. Tome-se, por exemplo, o setor de fármacos. Até recentemente, recorrendo a faculdade propiciada por acordo internacional, o Brasil não reconhecia a proteção patentária para processos e produtos farmacêuticos. Assim, esperava-se promover o crescimento de indústria nacional que poderia apropriar-se livremente do conhecimento internacional. O que se viu de fato foi o inverso. A importância da indústria farmacêutica nacional - como, aliás deste setor em toda a América Latina - só fez decrescer. Dos 2% do mercado mundial detidos há duas décadas pela indústria latino-americana - Brasil inclusive - a década de 90 iniciava-se vendo a participação da América Latina reduzida a 0,2% do mercado mundial. Contrariamente ao que pensam alguns poucos, a nova lei de patentes aprovada há um ano pelo Congresso Nacional deverá contribuir para reverter este quadro.

2. RECURSOS HUMANOS E DESENVOLVIMENTO DE C&T

O modelo de "substituição de importações" adotado pelo Governo Brasileiro nas décadas de 60 a 70 era de fato um esforço de implantação e consolidação de indústria de bens de capital que constitui ainda fator básico de desenvolvimento. E é exatamente nessa época, muito graças ao discernimento do Dr. José Pelúcio Ferreira, então no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que o País deu grande salto qualitativo. Pelúcio percebeu que éramos fracos em projeto - que a cada nova planta industrial que aqui se instalava, as firmas estrangeiras de consultoria, freqüentemente subsidiárias das fornecedoras de equipamentos e materiais ou das multinacionais que aqui instalariam sua filial, impunham os projetos. Esta compreensão levou o Governo a investir em pós-graduação, primeiro na engenharia, depois nas demais áreas de conhecimento. A pós-graduação brasileira começou na década de 60. A tabela 4 ilustra seu crescimento.

Dos anos 60 para cá foram criados mais de 1600 cursos de pós-graduação - 560 dos quais oferecendo cursos no nível de doutorado. Esses cursos contam com mais de 30 mil professores - mais de 80% com título de doutor. Em fins de 1993, estavam matriculados mais de 40 mil estudantes no nível de mestrado e 16 mil no nível de doutorado. No mesmo ano, foram produzidas 7.500 dissertações de mestrado e 1.700 teses de doutorado - ou seja, quase 10 mil novos pós-graduados entraram no mercado de trabalho - seja para ensino, pesquisa ou sistema produtivo.

Também no nível de graduação houve, no período, crescimento intenso. Conforme mostram as tabelas 5 e 6, antes da Segunda Guerra Mundial o Brasil contava com 200 cursos superiores, 3.300 professores e 25 mil estudantes. Em 1997, o Brasil conta com mais de 850 instituições de ensino superior - das quais, 127 universidades - 160 mil professores e 1 milhão e 700 mil estudantes de graduação.

Esta evolução do sistema de ensino superior foi fundamental para o sucesso do modelo de importação de tecnologia adotado pelo Brasil. Não há transferência, adaptação e geração de tecnologia se não houver pessoas qualificadas para absorvê-la. Recorde-se que a tecnologia não está nas máquinas, nos seus manuais, nos processos ou nas patentes. Ela está verdadeiramente na cabeça de seus agentes humanos. Sem recursos humanos treinados a transferência e geração própria de tecnologia não se completa. Instala-se uma máquina e até para consertá-la é preciso recorrer à assistência técnica do fornecedor. Mais do que isso, para a transferência de tecnologia se concretizar, é preciso haver uma base científica no país receptor.

O falecido Prof. Abdus Salam, Prêmio Nobel de Física, a quem tenho a honra de suceder na presidência da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, em conferência apresentada na Universidade de Yale, em 1986, sobre o tema "Science Transfer for Development and Global Problems of Science and Technology", defendeu a tese de que a sustentabilidade a longo prazo do desenvolvimento baseado em transferência de tecnologia, depende criticamente de que este seja acompanhado de transferência de ciência.

Isto porque, por um lado, se não for criada sólida base científica - aí entendidos os pesquisadores e a sua infra-estrutura laboratorial - a tecnologia não será absorvida. Por outro lado, a mais longo prazo, as tecnologias subsequentes às originalmente transferidas terão necessariamente base científica. Se a infra-estrutura de pesquisa não existir no país receptor, os avanços tecnológicos, geralmente aperfeiçoamento de processos já existentes, terão que ser necessariamente adquiridos fora. Isto caracteriza um processo de permanente dependência de suprimento externo de conhecimento.

Abdus Salam considera fundamental que a infra-estrutura por ele mencionada compreenda, além das facilidades laboratoriais e de pesquisa, a educação para a ciência em todos os níveis, particularmente nos níveis superiores, para engenheiros e tecnologistas.

É necessário, portanto, cuidar da ciência e, em especial nos países em desenvolvimento, estabelecer mecanismos para sua internalização. A forma mais eficiente é obviamente a da formação de cientistas, treinados nos melhores centros, e que possam disseminar seu conhecimento no País, mantendo ao mesmo tempo seus laços com os centros internacionais.

O CNPq propiciou, desde sua criação em 1951, a formação de cerca de 11 mil pesquisadores no exterior. A CAPES deve ter formado outros 5 a 6 mil professores e pesquisadores. É pouco, mas representa cerca de 5% do número total de pós-graduados no País, índice compatível em termos relativos com o dos países emergentes da Ásia.

3. TECNOLOGIA E GLOBALIZAÇÃO

Diante de tudo que vimos sobre importação de capitais e tecnologia e a não contabilização dos gastos com a transferência, adaptação, absorção e aperfeiçoamento da tecnologia, podemos concluir que os 0,7% do PIB historicamente atribuídos aos gastos nacionais com ciência e tecnologia, a que me referi anteriormente, foram gastos na verdade, essencialmente, na promoção da ciência. Implantou-se infra-estrutura de pesquisa e formaram-se os pesquisadores e engenheiros capazes de absorver, adaptar e aperfeiçoar as tecnologias transferidas para o Brasil, mas pouco foi realizado na geração propriamente dita de Know How - devido à limitada participação das empresas no esforço de produção autônoma de tecnologia.

Todo o panorama até aqui descrito diz respeito ao passado, dominado por uma lógica de desenvolvimento nacional diferente da que passou a mover o mundo nesta década caracterizada pela globalização. No passado dominava o ideal do país autárquico, com parque industrial completo, capaz de suprir todas as necessidades de seu mercado interno e de gerar algum superavit para exportação. No novo modelo - melhor dizendo, na prática generalizada - os países buscam cada vez mais ocupar nichos muito específicos, dentro dos quais são dominantes, capazes de suprir o mercado mundial e, é claro, seu próprio mercado. Nos setores onde não são competitivos, o mercado interno tende a ser suprido pela importação. As barreiras fiscais e tarifárias estão praticamente desaparecendo, cedendo lugar a barreiras técnicas, como instrumento protecionista da manufatura local, prática que tem sido objeto de amplo noticiário na mídia.

Tome-se como exemplo o setor de informática. Ao mesmo tempo em que as nações industrializadas propõem um acordo internacional de tarifa zero para bens de informática, seus próprios mercados internos são supridos quase que exclusivamente por empresas lá sediadas, como pode ser visto na tabela 7. Constata-se que de fato não existe competição nos mercados de equipamentos digitalizados de telecomunicações dos países industrializados. Logo, a pretendida tarifa zero teria como efeito apenas a abertura de novos mercados para as empresas já dominadoras, nos países em desenvolvimento.

É claro que esse novo modelo econômico tem forte impacto sobre a geração e transferência de tecnologia. Primeiro, porque a tecnologia desejada já é mais seletiva, restrita àqueles setores onde o país possa apresentar vantagem comparativa. Em segundo lugar, porque se a meta da empresa é o mercado mundial, não há possibilidade de simplesmente comprar a tecnologia no fornecedor da esquina. É preciso estar na fronteira do seu desenvolvimento, ou seja, a empresa ou coletivamente o país precisam investir em pesquisa e inovação.

Nossas empresas estão adquirindo consciência desse fato. Pesquisa realizada este ano pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pela Confederação Nacional da Indústria mostra que, de mil empresas ouvidas, 38% informaram que pretendem gastar, nos próximos 5 anos, entre 2 e 5% do seu faturamento líquido em P&D. Outras 28% pretendem investir mais de 5% do faturamento líquido nesse período.

A conscientização das empresas é refletida no fato de que 60% delas têm a intenção de utilizarem estritamente recursos próprios para seus projetos de pesquisa e desenvolvimento. Outras 30% combinam os recursos próprios com financiamentos oficiais. Os incentivos fiscais são ainda pouco utilizados, particularmente pelas empresas de pequeno porte - justamente as que tradicionalmente são as mais dinâmicas na capacitação tecnológica e na inovação. A pesquisa indica também que, coerentemente com o fenômeno da globalização, as empresas dão preferência ao desenvolvimento de tecnologia própria, em detrimento da aquisição de terceiros, aliás, como vimos, cada vez mais difícil.

A tendência das empresas passarem a investir em P&D é comprovada pelos projetos de utilização de incentivos fiscais aprovados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, mostrados no gráfico 2 e na tabela 8.


Todos os indicadores mostram que o Brasil está preparando-se rapidamente para enfrentar com razoável maturidade os desafios do desenvolvimento econômico no ambiente da globalização. Dados recentes, ainda estimativos, indicam que os investimentos nacionais em Ciência e Tecnologia atingem efetivamente cerca de 1,1% do PIB, contando com razoável participação das empresas, da ordem de 30 %.

4. NOVOS MECANISMOS DE GERAÇÃO E TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA

O mundo globalizado é caracterizado pela intensificação das relações comerciais, pela especialização geográfica da produção e, talvez mais importante, pela disponibilidade e velocidade de acesso à informação. Nesse ambiente, a transferência de tecnologia tende a ceder lugar, cada vez mais, ao desenvolvimento conjunto, compartilhado, de tecnologia - a exemplo do que já ocorre tradicionalmente nos projetos de cooperação em ciências fundamentais e na "big science". Isso se deve, pelo menos em parte, ao fato da tecnologia estar cada vez mais próxima da ciência, além dos fatores puramente econômicos apontados anteriormente. O intervalo de tempo decorrido entre a descoberta científica e sua aplicação tecnológica está se reduzindo significativamente.

Tome-se por exemplo a microeletrônica, onde cada passo de evolução de conhecimento rapidamente torna-se um aplicativo de larga utilização comercial. Na biologia, a decifração do código e do seqüenciamento genético, também a cada passo geram imediatamente aplicações biotecnológicas, seja na agricultura, seja na medicina.

A cooperação científica - e, logo, a tecnológica - dos países de terceiro mundo indica ainda forte relação de dependência com países desenvolvidos. Por exemplo, a cooperação científica do Brasil com países da América Latina, medida em co-autoria de artigos em publicações indexadas, é de apenas 15% da cooperação científica internacional do Brasil, medida pelo mesmo método. Esse padrão repete-se não só em todos os países da América Latina, mas é traço comum a países do terceiro mundo.

A cooperação de países do terceiro mundo com os desenvolvidos é certamente desejável, na medida que proporciona acesso ao que de melhor se faz na ciência. Mas não deve ser rota exclusiva.

Essa compreensão levou o Prêmio Nobel Abdus Salam a criar o Centro Internacional de Física Teórica (ICTP) de Trieste, a Academia de Ciências do Terceiro Mundo (TWAS) e a Rede de Organizações Científicas do Terceiro Mundo (TWNSO).

A Academia congrega mais de 400 cientistas - 13 deles detentores do Prêmio Nobel - de um total de 70 países do terceiro mundo. Mediante o uso de recursos de doações e rendimentos de um fundo instituído para esse fim e com o apoio indispensável da UNESCO, a Academia concede bolsas de estudo e pesquisa para cientistas dos países em desenvolvimento, patrocina encontros científicos e premia contribuições científicas relevantes. Ela funciona como mecanismo de promoção da transferência de conhecimento científico a que se referia Abdus Salam, requisito fundamental para a transferência de tecnologia. Essas atividades contribuem para diminuir a solidão dos cientistas do terceiro mundo, que se encontram freqüentemente isolados ao regressarem a seus países de origem.

A Rede de Organizações Científicas do Terceiro Mundo (TWNSO) congrega 146 instituições de política e promoção da ciência e tecnologia em 73 países em desenvolvimento, com o objetivo de incorporar ciência e tecnologia ao planejamento governamental desses países, e de promover a cooperação entre centros de excelência científica nos mesmos em torno de projetos de interesse comum, bilateral ou mundial.

Exatamente os projetos de cooperação bem focalizados são os que têm demonstrado o melhor potencial para promover o avanço tecnológico. No passado, de modo geral, os acordos de cooperação científica entre nações quase não passavam de declaração de boas intenções, de cooperação assistencialista e de intercâmbio de pesquisadores - sem dúvida um instrumento útil, mas de alcance limitado.

A experiência brasileira indica que os projetos concebidos em torno de um objetivo preciso são muito mais eficazes.

Por exemplo, nossa cooperação com a China na área espacial - projeto CBERS - tem proporcionado a execução de interessantes projetos de pesquisa científica, o desenvolvimento da tecnologia espacial e o envolvimento da indústria brasileira no desenvolvimento e fornecimento de componentes de satélites, além da possibilidade de acesso ao exclusivo mercado de produtos e serviços espaciais - como fornecedor e não mais como mero usuário.

Não se trata mais de um projeto de transferência de tecnologia no modelo clássico, como, por exemplo, o do mal sucedido Acordo Nuclear com a Alemanha. Naquele caso, a Alemanha era a detentora da tecnologia e o Brasil o seu comprador, sem acesso ao desenvolvimento propriamente dito dessa tecnologia. Recorde-se, inclusive, que parte da tecnologia que se permitia ser transferida - a de enriquecimento de Urânio por jato centrífugo em preferência à ultracentrifugação, à qual não tivemos acesso - ainda não estava desenvolvida na Alemanha e acabou não funcionando.

No caso da cooperação do projeto CBERS com a China, para construção e lançamento de 4 satélites de sensoriamento remoto, além de um satélite científico, a transferência processa-se através do desenvolvimento conjunto pelos dois países e a transferência dos resultados dos centros de pesquisa para a indústria. Nesta ótica, trata-se muito mais de geração do que propriamente de transferência, ainda que bilateral, de tecnologia.

Outro campo de oportunidades para a criação de novos mecanismos de transferência científica e tecnológica consiste na abordagem de problemas globais - tipicamente na área de pesquisa ambiental.

Nessa área, o Brasil tem algo a oferecer. Temos provavelmente um dos balanços energéticos mais benignos do ponto de vista ambiental, entre as nações desenvolvidas e em desenvolvimento. Cerca de 60% da energia consumida no Brasil provêm de fontes renováveis, com destaque para o consumo de biomassa: lenha, carvão vegetal, álcool e bagaço de cana suprem 21% do consumo energético brasileiro. Vale dizer que, por serem fontes energéticas de ciclo curto, os gases emitidos na sua queima são absorvidos no crescimento da biomassa que lhes dá origem, não contribuindo, assim, para o aquecimento global do planeta, pelo efeito estufa.

Especificamente a tecnologia brasileira de produção de álcool - inclusive a da cultura da cana - é tecnologia de interesse mundial, particularmente nas áreas tropicais, podendo ser transferida e adaptada para outros países cujos débitos ambientais são elevados.

Papel importante de transferência de tecnologia cabe às normas técnicas e aos métodos de gestão da qualidade e gestão da tecnologia. Esses instrumentos vêm sendo utilizados como barreira técnica ao comércio livre. Mas constituem também valiosa informação técnica que, se adequadamente processada, elevará o conteúdo tecnológico do produto.

Esses são alguns dos mecanismos de transferência e de geração de tecnologia de que o Brasil - e outros países em desenvolvimento - já vêm utilizando. Provavelmente mais importante do que ter acesso a esses mecanismos, é a decisão política de colocar a ciência e a tecnologia como parte integrante e geradora do projeto de desenvolvimento nacional.

No Brasil, durante o período de 1950 a 1970, o Estado investiu em indústrias promotoras do desenvolvimento - siderurgia, petróleo, energia, telecomunicações, etc. - com resultados positivos bem conhecidos. Na década de 90, imerso em profunda crise de financiamento do desenvolvimento, o Governo se vê na contingência de privatizar as empresas que no passado promoveram o desenvolvimento. É preciso, porém, salvaguardar os objetivos originais do capital outrora empregado e agora resgatado: esse capital deve ter como função nobre continuar a patrocinar o desenvolvimento de tecnologias portadoras do futuro.

A função de Estado na promoção de pesquisa e desenvolvimento não se esgota quando o produto da nova tecnologia é levado ao mercado, depois de passar pelas etapas da protótipo, "scale up", operação e comercialização do produto. Como ilustra o gráfico 3, inicia-se nova etapa do ciclo, exigindo mais pesquisa e desenvolvimento, para o que é fundamental, novamente, a presença indutora do Estado.


Neste análise, deixei de considerar, por demais conhecido, o papel indutor e freqüentemente promotor do desenvolvimento da ciência, da tecnologia e de sua transferência por parte de instituições tão importantes quanto a Academia Brasileira de Ciências, os Centros Tecnológicos, notadamente o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, o Instituto Nacional de Tecnologia, o Centro Tecnológico Aeroespacial, a COPPE, nas áreas de tecnologia industrial, e o Instituto Agronômico de Campinas e, mais recentemente, a Embrapa, na área agrícola. É evidente que todos essas instituições prestaram e continuam prestando relevante trabalho de promoção do desenvolvimento e transferência de tecnologia.

5. CONCLUSÃO

Para concluir, recordemos que o nosso extraordinário desenvolvimento, ao longo dos últimos cinqüenta ou sessenta anos resultou:

1. da conjuntura conflitiva internacional - as duas Guerras Mundiais quentes e a Guerra Fria - que permitiu um espaço negocial às empresas e ao Governo para a promoção da transferência da tecnologia;

2. das barreiras protetoras ao produto nacional, que favoreceram também a presença em nosso mercado de 300 das 500 maiores empresas multinacionais;

3. da existência de mão-de-obra abundante, não qualificada na sua maioria, e barata;

4. da abundância de matérias primas essenciais ao funcionamento de muitas indústrias tradicionais, particularmente daquelas que envolvem indústria pesada.

É forçoso notar que o fim da Guerra Fria, a queda das barreiras ao comércio internacional e a exigência de mão-de-obra cada vez mais qualificada demandam um esforço particularmente acelerado em prol do desenvolvimento científico e tecnológico. De fato, as indústrias de ponta, portadoras do futuro, como aquelas envolvidas com as tecnologias da informação, dos novos materiais e da biotecnologia, são caracterizadas pela demanda acentuada da inteligência e da especialização, em suma, da ciência. Este esforço deverá centrar-se tanto no aumento geral da escolaridade da nossa população, quanto no estabelecimento de infra-estrutura institucional apropriada - laboratórios, bibliotecas, centros tecnológicos, de pesquisa e universidades do mais alto nível.

A presente administração estabeleceu como meta atingir, já em 1999, a cerca de 1,5% de nosso Produto Interno Bruto aplicados em ciência e tecnologia como o mínimo indispensável para garantir a sobrevivência de nossas empresas, necessariamente inseridas na nova conjuntura mundial, globalizada e competitiva.

Levando-se em conta a participação relativamente muito menor em nosso País do segmento pesquisa e desenvolvimento para defesa, que tem sido característico de regiões muito mais conflituosas que a nossa, pois que nosso País há mais de 130 anos não se envolvera em qualquer conflito com seus vizinhos, é de se esperar que investimentos da ordem de 2% do PIB em Ciência e Tecnologia constituam esforço adequado e que esperamos poder atingir em futuro razoavelmente próximo. Com isto poderá ter o País maior autonomia no que respeita à geração própria de tecnologia, contrariamente ao que, com as poucas exceções, tem acontecido ao longo de nosso processo de industrialização, marcado mais pela adaptação tecnológica, do que pela geração autônoma de conhecimentos.

Nessas condições, a espiral descritiva do processo integral de inovação, produção, operação e comercialização de conhecimento poderá efetivar-se mais plenamente, evitando-se a inserção meramente subalterna do Brasil no mercado internacional de novos produtos e serviços.

6. REFERÊNCIAS

10. Baseado em dados de projetos aprovados pelo MCT no âmbito das leis de incentivos fiscais.

11. Tabela elaborada pelo sistema de estatísticas do MCT.

  • 1. Gráfico elaborado no MCT com base em dados de ingressos de capitais constantes da base de dados do Banco Central no seguinte endereço eletrônico: <http://www.bcb.gov.br/htms/notecon1.htm>, Tabelas IV e V.
  • 2. Maddison, A.; Historia del Desarrollo Capitalista - sus Fuerzas Dinamicas; Ariel S A :Madrid,
  • 3. Maddison, Angus; The World Economy in the 20th Century; OECD: Paris, 1989.
  • 4. Banco Interamericano de Desenvolvimento. Progresso Socio-Econômico na America Latina - Relatório 1992; BID: Washington, 1992.
  • 5. IBGE. Anuário Estatístico do Brasil – 1995, IBGE: Rio de Janeiro, 1995, Vol. 55.
  • 6. MCT. Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia 1990-1995; MCT: Brasília, dezembro de 1996.
  • 7. IBGE. Séries Estatísticas Retrospectivas; IBGE: Rio de Janeiro, 1986, Vol. 1.
  • 8. IBGE. Anuário Estatístico 1995; IBGE: Rio de Janeiro, 1995.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 1997
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