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A ENERGIA QUE EMANA DO NEOS

Saraiva, Luiz Alex Silva; Rampazo, Adriana Vinholi. ENERGIA, ORGANIZAÇÕES E SOCIEDADE. Recife, PE: Editora Massangana-Fundaj, 2017. 284


O Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS) já se consolidou, ao longo de sua década e meia de atuação, como um dos principais centros da área no Brasil. Energia, organizações e sociedade é um volume que traz a marca da produtividade e da criatividade que emana do NEOS.

Nas palavras dos seus organizadores, o livro é proposto para “debater a confluência entre energia, organizações e sociedade de uma forma interdisciplinar e, necessariamente, crítica” (p. 9). A relevância de tal tipo de debate advém da constatação de que o setor energético brasileiro foi estruturado em bases hidroelétricas, a partir de um tipo de cálculo que apontou ser esse o meio menos custoso, em termos estritamente financeiros, de se gerar energia num país com traços geoclimáticos como os nossos. Dando sustentação ideológica a esse tipo de pensamento, que historicamente se mostrou incapaz de atentar para os riscos envolvidos em ações lastreadas no modo moderno de proceder sem reflexividade (Beck, 1992Beck, U. (1992). Risk society: Towards a new modernity. Londres, UK: Sage. ), o desenvolvimentismo coloca como imperativo o rápido aumento da oferta de eletricidade para que o crescimento econômico possa vir a acontecer. O que não se explicita nesse discurso são os efeitos colaterais diretos em territórios específicos e socialmente constituídos (Santos, 2005Santos, M. (2005). O retorno do território. OSAL: Observatório Social de América Latina, CLACSO, 6(16), 255-261.). É justamente no sentido de explicitar e problematizar o que tal discurso hegemônico não dá conta nem enfrenta, os desdobramentos socioambientais locais de tal matriz energética, que este trabalho oferece significativa contribuição.

Além da apresentação, o volume traz nove capítulos elaborados por especialistas de diferentes disciplinas que problematizam a questão energética de modo articulado com as diferentes organizações envolvidas e seus mais diversos desdobramentos societários. O entrelaçamento dos temas tratados nos capítulos (cN) pode ser apontado como uma virtude num livro composto por tantas e tão diversas mãos. Partindo da composição e (re)ordenação do sistema elétrico brasileiro (c1), passando pelas armadilhas do tecnocentrismo hídrico/hidroelétrico e dos interesses de classe nas decisões do setor (c2), problematiza-se o discurso que suporta a pretensa condição de energia limpa da hidroeletricidade (c3), discutindo-se as premissas do planejamento nacional para o setor e os conflitos a ele associados (c4), o licenciamento ambiental como instrumento da política nacional da área (c5) e um caso de licenciamento marcado por grande assimetria num processo que os autores chamaram de “concentra-dor”, tamanho o sofrimento imposto aos locais (c6). Seguindo com vigor, também se enfrenta a alteração promovida por grandes projetos hidroelétricos em comunidades que, (des)territorializadas, não mais conseguem se reconhecer no solo onde pisam (c7), as marcas da hidroeletricidade na produção capitalista do espaço (c8) e, por fim, uma análise documental da experiência de mobilização de minorias ameaçadas por mais um empreendimento do setor (c9). Para além de tudo isso, algumas reflexões podem ser conjecturadas quando pensamos nos possíveis desdobramentos globais e locais dos temas acima sintetizados.

Por um lado, o desastre da usina nuclear de Chernobil em 1986 pode ser tomado como um marco das dimensões globais que catástrofes relacionadas à opção por determinados meios de produção energética podem tomar. Sem dúvidas, aquele acontecimento contribuiu para que as ideias de Ulrich Beck (1992)Beck, U. (1992). Risk society: Towards a new modernity. Londres, UK: Sage. ganhassem maior repercussão. Para ele, numa sociedade de risco, “a sociedade torna-se reflexiva (no sentido mais restrito da palavra), o que significa dizer que ela se torna um tema e um problema para ela própria” (Beck, 1997Beck, U. (1997). A reinvenção da política: Rumo a uma teoria da modernidade reflexiva. In A. Giddens, U. Beck, & S. Lash, Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna (pp. 11-79). São Paulo, SP: Editora Unesp., p. 19). Ao paradigma moderno convencional, o sociólogo alemão propusera uma alternativa “reflexiva”, uma vez que estaríamos vivendo na “era dos efeitos colaterais”. As questões energéticas tratadas no livro aqui resenhado nos desafiam a incorporar maior reflexividade necessária à vida inteligente em nosso tempo, afinal, a produção energética de significativo menor impacto socioambiental, a eólica e a solar, por exemplo, precisa crescer bem mais no todo da produção nacional, enfim, quanto mais prejuízo socioambiental global o planeta e seus habitantes suportarão?

Por outro, era convicção de Milton Santos - considerado revolucionário por ter tratado o espaço geográfico como uma “instância social, como a economia, a cultura e a política” (Souza, 2005Souza, M. A. (2005). Apresentação: Milton Santos, um revolucionário. OSAL: Observatório Social de América Latina, CLACSO, 6(16), 251-254., p. 252) - que “é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social” (Santos, 2005Beck, U. (1992). Risk society: Towards a new modernity. Londres, UK: Sage. , p. 255). A leitura do espaço geográfico como instância social projeta-se no modo como Santos (2006)Santos, M. (2006). A natureza do espaço: Técnica e tempo - Razão e emoção (4a ed.). São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo. observava a construção sócio-histórica do território, fenômeno que se impõe à natureza. O território não seria “apenas um conjunto de sistemas naturais e de sistemas de coisas sobrepostas, o território pode ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence” (Santos, 2002Santos, M. (2002). O Brasil: Território e sociedade no início do século XXI (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record., p. 15, grifo do autor). O “pertencimento” a um lugar (e vice-versa), como condição sociocultural partilhada, permite ressaltar a dimensão identitária afetada por empreendimentos como os hidroelétricos. Ou seja, as implicações na tessitura social de diversas comunidades e na intimidade dos seus membros, desterritorializados em razão do paradigma desenvolvimentista ainda em voga no Brasil, têm potencial devastador também nos planos social e íntimo daqueles que coabitam um localismo específico. Assim, às ameaças em escala global, é preciso adicionar as perdas das diversas minorias localizadas que sofrem objetivamente os efeitos colaterais de modelos, como o hidroelétrico, ainda hoje colocados em prática de modo um tanto irrefletido.

Mais do que necessários, esses debates e seus desdobramentos são também heranças do século passado e que ainda precisam de mais força na cena pública do nosso país em pleno século 21. Ou seja, não estamos falando de “novidades”, mas sim de algo que segue sendo, infelizmente, urgente.

Por fim, um detalhe importante, assim como outros títulos da Editora Massangana-Fundaj, o livro encontra-se disponível para download gratuito por meio do seu site: https://www.fundaj.gov.br/images/stories/editora/livros/livro_energia.pdf. Boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • Beck, U. (1992). Risk society: Towards a new modernity Londres, UK: Sage.
  • Beck, U. (1997). A reinvenção da política: Rumo a uma teoria da modernidade reflexiva. In A. Giddens, U. Beck, & S. Lash, Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna (pp. 11-79). São Paulo, SP: Editora Unesp.
  • Santos, M. (2002). O Brasil: Território e sociedade no início do século XXI (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Record.
  • Santos, M. (2005). O retorno do território. OSAL: Observatório Social de América Latina, CLACSO, 6(16), 255-261.
  • Santos, M. (2006). A natureza do espaço: Técnica e tempo - Razão e emoção (4a ed.). São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo.
  • Souza, M. A. (2005). Apresentação: Milton Santos, um revolucionário. OSAL: Observatório Social de América Latina, CLACSO, 6(16), 251-254.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020
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