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Gilda & Mário: notas temáticas e estilo musical

Gilda & Mário: thematic notes and musical style

RESUMO

O presente texto endossa a suspeita de Bento Prado Jr. (1937-2007) de que haveria certa continuidade entre os temas e o estilo de Mário de Andrade (1893-1945) e Gilda de Mello e Souza (1919-2005). Tomando a música como paradigma, ao retomar, uma a uma, as relações temáticas propostas por Prado Jr., propõe-se pensar o conceito marioandradiano de inacabado como um elemento da estética de Gilda. Espera-se, com isso, contribuir para uma compreensão mais aprofundada da forma ensaística em nossa autora enquanto um posicionamento, mais do que teórico, social.

PALAVRAS-CHAVE
Gilda de Mello e Souza; Mário de Andrade; música

ABSTRACT

This current text endorses Bento Prado Jr.’s (1937-2007) suspicion that there would be some continuity between the themes and style of Mário de Andrade (1893-1945) and Gilda de Mello e Souza (1919-2005). Considering music as a paradigm, by taking up, one by one, the thematic relationships suggested by Prado Jr., it is proposed, in this work, a debate regarding the Mario-Andradian concept of unfinished as an element of Gilda’s aesthetic. It is hoped, therefore, to contribute to a deeper understanding of the essayistic form practiced by the author as a more social than theoretical position.

KEYWORDS
Gilda de Mello e Souza; Mário de Andrade; music

Tomando como análise os ensaios de Gilda de Mello e Souza (1919-2005)MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Exercícios de leitura. 2 ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2009. sobre o poeta modernista Mário de Andrade (1893-1945), em A ideia e o figurado (2005), Bento Prado Jr. (1937-2007)MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Rosa pasmada In: Revista Magma, nº 7, 2001, p. 9-19. Notas críticas inéditas de Mário de Andrade. (Originariamente publicado na Revista Clima, nº 12, 1943). Disponível em: http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/m7.pdf. Acesso em: 18. fev. 2022.
http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.ff...
, em seu texto Entre Narciso e o colecionador ou o ponto cego do criador (2006)2 2 Discutiremos aqui apenas a primeira parte deste texto publicado na Revista do IEB. A segunda – a sua conclusão – fora tanto republicada na coletânea Gilda, a paixão pela forma, em 2007, com o título A hermenêutica de Gilda, quanto felizmente gravada em vídeo, disponibilizada originalmente no canal Vimeo (https://vimeo.com/177696133), vídeo idealizado por Thelma Lessa da Fonseca com direção de Hamilton Grimaldi. , suspeita que haveria uma “continuidade entre as obras de Mário de Andrade e de sua prima [Gilda], no estilo como na temática […]” (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
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, p. 11). Para Prado Jr., Gilda “faz suas as teses expostas” (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
https://doi.org/76-103...
, p. 11, grifo do autor) sobre a estética (musical) de Mário de Andrade. Entretanto, quais são essas teses? Em que sentido podemos compreender essa continuidade entre ambos os intelectuais brasileiros? E mais: até onde podemos levá-la?

A ESTÉTICA (MUSICAL) DO “POETINHA MENOR”3 3 De acordo com Gilda, “poetinha menor” era a autodefinição irônica de Mário de Andrade durante o período em que o atinge a crise do nacionalismo. (MELLO E SOUZA, 2005, p. 18 e seguintes).

No ensaio O professor de música (1995), Mário é visto entre uma “instituição tradicional” (o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo) e o “movimento revolucionário” (o modernismo da Semana de Arte Moderna de 1922), bem como nos é apresentada a sua face menos conhecida, por assim dizer, qual seja, a de professor. Neste período de magistério, segundo afirma Gilda, Mário de Andrade supriria suas deficiências de autodidata estudando de tudo um pouco: “estuda ao mesmo tempo muita psicologia, estética, filologia, línguas, filosofia, sociologia etc. etc. E ainda está absorvendo a informação recente da cultura alemã, o encontro perturbador com a psicanálise” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 18). É nesse contexto que, de acordo com Gilda, devemos entender a estética de Mário, como que deslizando “insensivelmente de um domínio para o outro”, “sob a égide da Música”, e na qual vemos surgir, por exemplo, o conceito de “sublimação”: “a mescla inesperada de psicanálise e fenomenologia” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 24).

Lendo as passagens acima, torna-se difícil não relacionarmos essa caracterização de Mário de Andrade à própria Gilda por três razões: 1) ela mesma afirmava que sua formação foi mais artesanal e amadora do que especializada, dizendo certa vez em entrevista: “[…] minha formação tem muito de autodidata, foi se dando aos poucos, assinando revistas, comprando livros, tateando de todo jeito” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 104); 2) em sua tese de doutorado O espírito das roupas, originalmente intitulada A moda no século XIX: ensaio de sociologia estética, de 1950, também a vemos passar de modo fluido do domínio estético para o psicológico, e deste para o sociológico; e 3) mesmo em ensaios mais recentes, como Notas sobre Fred Astaire, de 2005, Gilda transita – sem embaraço – do balé ao teatro do absurdo, do cubismo, pontilhismo e da pintura holandesa às composições musicais, da tragédia à comédia, enfim, da dança moderna ao desenho.

Mas é quando Gilda de Mello e Souza se detém ao fenômeno da “manifestação musical” que Prado Jr. marca as relações entre ambos. Ao definir tal fenômeno numa estrutura quaternária, a saber, o criador, a obra de arte, o intérprete e o ouvinte, nosso filósofo brasileiro enfatiza a insistência de Gilda em mostrar que Mário milita “contra o privilégio atribuído ao criador” e que tal fato, repetimos, a precariedade do criador, também lhe serve.

Para Gilda, a estética de Mário de Andrade é contrária à “Estética do criador”, visto que as quatro entidades que a compõem são equivalentes e não hierarquizadas. É o que podemos observar com a noção marioandradiana de criador interpretada por Gilda: “O criador, por exemplo, não é concebido como o ser excepcional que aparece na imagem do senso comum. É um homem como os outros, que se distingue da mediania antes por carência que por excesso de força” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 24). Tal caracterização, funcionando como uma “projeção”, segundo ainda Gilda, se une à própria personalidade de Mário de Andrade, frágil e indeterminada, e cuja “unidade do ser se refaz” na obra de arte, a qual, por sua vez, irá depender do intérprete para que se comunique com o ouvinte, e que Prado Jr. vê como uma antecipação da “estética da recepção”:

Mário de Andrade liga o privilégio da recepção a algo como uma essencial alienação do criador, que precede e enriquece o processo global criação/recepção. Uma alienação que lhe impede o domínio total do sentido de sua própria obra: só o outro pode dizer a minha verdade. (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
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, p. 14, grifos do autor).

A hipótese de Prado Jr., de que a precariedade do criador concerne tanto à estética de Mário de Andrade quanto à de Gilda, constrói-se com a descontinuidade entre a Estética e a Poética de Mário de Andrade em O banquete, que a análise de nossa ensaísta, no breve ensaio Sobre O banquete, utilizando da distinção metodológica de Luigi Pareyson (1918-1991), vê na primeira – a Estética – “uma reflexão desinteressada, de caráter filosófico e especulativo” que “abrangeria sobretudo a análise dos elementos permanentes da arte” e, na segunda, – a Poética – “uma doutrina ‘programática e operativa’, ligada a um momento determinado da história, que tenta traduzir em normas um programa definido de arte” e que seria a “atitude ‘pragmática e utilitária’ e incluiria a pregação em favor de uma arte nacional e de uma arte de combate; a reflexão sobre arte popular e arte erudita, arte individualista e arte empenhada” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 10-11).

A partir dessa bifurcação em Mário de Andrade, Estética e Poética, interpretada por Gilda, por meio da análise de O banquete, Prado Jr. volta-se ao ensaio O professor de música e considera que nossa ensaísta entende a estética marioandradiana em Introdução à estética musical4 4 Trata-se de uma obra póstuma de Mário de Andrade, prefaciada por Gilda e com organização de Flávia Camargo Toni, São Paulo: Hucitec, 1995. como uma “conciliação provisória” pensada “numa teoria da arte como ‘sublimação de um ato de amor’”: ao oferecer ao mundo uma parte sua, Mário encontra-se então refeito... ao menos por algum momento.

Mas essa reconciliação pensada na Estética não é vivida concretamente na prática da Poética e no itinerário biográfico. De resto a Estética, por mais sublime que fosse seu ‘elemento’, dava lugar à precariedade do criador (uma espécie de infelicidade ou de inferioridade) que Mário de Andrade descobre dolorosamente como seu próprio destino pessoal. (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
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, p. 16, grifos do autor).

Prado Jr. navegará noutros textos de Gilda sobre Mário, O colecionador e a coleção (1984)5 5 Expressão que provavelmente serviu de inspiração a Bento Prado Jr., intitulando assim seu ensaio de Entre Narciso e o colecionador […]. e O mestre de Apipucos e o turista aprendiz (1993), a fim de exemplificar uma vez mais a hipótese de que, para ambas as estéticas, o estatuto do criador da obra de arte é inferior, precário, infeliz. Pois, o criador, ao oferecer a outrem algo seu e assim reconciliar-se ou “neutralizar a sua própria imagem”, ora encarna a imagem de Narciso, de Ovídio, embora, no caso de Mário de Andrade, ele seja incapaz de divisar sua imagem, indo refugiar-se em sua coleção, substituindo-se assim a figura de Narciso pela de colecionador, ora, turistando pelo Brasil, transmuta-se no maleitoso, assumindo “a indiferença. Ou melhor, o poder de resistir aos apelos do mundo” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 67, grifos da autora).

E é esta condição infeliz do criador, enquanto por exemplo colecionador, que Prado Jr. verá também na análise fílmica de Gruppo di famiglia in un interno (1974), de Luchino Visconti (1906-1976), numa entrevista que Gilda concedeu, em 1992, a Carlos Augusto Calil, na figura do professor interpretado por Burt Lancaster (1913-1994), de que fala ser ele “marcado pela consciência infeliz do intelectual num mundo de escolhas políticas” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 85). Condição que vemos também, de acordo com Gilda, em vários filmes de Michelangelo Antonioni (1912-2007), por exemplo, no arquiteto Sandro, em A aventura (1960), no pintor Lorenzo, em As amigas (1955), e no fotógrafo Thomas, em Blow-up (1966): artistas, a fortiori, infelizes. E não poderíamos dizer o mesmo de seu realizador, o próprio Antonioni?

E mais: não é a mesma consciência infeliz que está, talvez, latente nas obras de Federico Fellini (1920-1993), com sua insistente fuga para a infância? Lembremos do cineasta neurótico Guido, por exemplo, em 8½(1963), e a crise de criatividade que o atormenta e angustia, e que em O salto mortal de Fellini (1968-1979), Gilda nos fala: “[...] ele [Guido] é o criador aprisionado na sua temporalidade cotidiana, tentando evadir-se através da obra de arte, mas atormentado, de antemão, pelo medo do fracasso” (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 207). E, no cinema novo brasileiro, estendendo a consciência infeliz do criador para o do político, enquanto “intelectual bem-intencionado”, como negar a crise do personagem principal de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha (1939-1981)PRADO JR., Bento de Almeida Ferraz. Gilda de Mello e Souza. Discurso, nº 26, 1996., de quem Gilda retrata ao falar “que se debate Paulo Martins, incapaz de ultrapassar a sua própria confusão. Ele é um exemplo de ser dividido, dilacerado entre duas mulheres, dois líderes, duas sensibilidades [...] (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 230-232)?

E que surpresa a nossa, passando de seus ensaios e nos voltando para seus contos, encontrarmos personagens, quer operário ou da fazenda, quer na vida ainda a florescer, enfrentando de um modo em geral aquela mesma experiência de uma consciência marcada pela frustração, como podemos notar, respectivamente, em Week-end com Therezinha (1941), Armando deu no macaco (1941), Rosa pasmada (1943), ou, ainda, em A visita (1958); e que Gilda admitia de si também por encontrar-se sempre dividida intelectualmente6 6 Referimo-nos aqui sobretudo às entrevistas presentes em A palavra afiada (2014). .

Dito isso, retomemos agora a outra relação que Prado Jr. trava entre Gilda e Mário e que está intimamente ligada à compreensão da estética musical: a “autonomia incontrolável das formas” (MELLO E SOUZA, 2006, p. 170). Em Mário, de acordo com o que vimos sobre a sua estética musical de que Gilda nos narra em O professor de música, a obra de arte é independente de seu criador. Nas palavras de Gilda (2005, p. 25): “Uma vez concluída e posta em circulação, a obra se desliga de quem a gerou, como o filho emancipado se desliga do pai”.

Para Bento Prado Jr., a tese marioandradiana não só reverbera na análise que Gilda faz em Variações sobre Michelangelo Antonioni, como também converge para a análise que a própria ensaísta faz do “poetinha menor”. Os ensaios que Gilda consagra a Mário de Andrade, seguindo aqui na esteira de seu argumento, concluem que as obras dele divergem de suas intenções enquanto criador. É o que talvez sintamos quando Gilda fala da coleção na qual Mário talvez um dia “se reconhecesse, pudesse refazer o grande puzzle de sua vida, de sua época” e que, no entanto, “ele não soube, ou não ousou divisar” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 47).

Todavia, Prado Jr. desenvolve a questão da independência das formas, enquanto relação entre as estéticas de Mário e de Gilda, refazendo o caminho de Gilda na análise fílmica de Blow-up (1966) em seu ensaio Variações sobre Michelangelo Antonioni (1988). Em um breve resumo, de nossa parte quase esquemático, diríamos que, em primeiro lugar, Prado Jr. aponta as divergências que Gilda constata entre as cenas ambíguas da relação erótica (que são três: quando o fotógrafo Thomas abandona as modelos em seu estúdio, tratando-as como coisas; quando, testado por duas fãs, termina por assediá-las; e, por fim, quando monta sobre a modelo Veruschka, aludindo a posse sexual) em confronto com a declaração do cineasta na revista Playboy, de 1967, de que não teve a intenção em Blow-up de tematizar “a relação entre uma pessoa e outra, com maior frequência a sua relação amorosa, a fragilidade de seus sentimentos, e tudo o mais. Neste filme nada disso tem importância (ANTONIONI apud MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 156, grifos da autora).

Em segundo lugar, nosso filósofo brasileiro sintetiza a análise que Gilda faz de toda a filmografia de Antonioni, a qual asserta que, assim como nos filmes anteriores, o cineasta tem como tema central de sua narrativa a busca e a morte; e que esta última, a morte, surge como o avesso do amor, visto que se trata de um amor em seu “aspecto mecânico, descarnado, frágil, anormal (de voyeurismo) e mesmo criminoso [...]” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 162); o que sublinha outra vez mais a dissonância entre a realização fílmica e a intenção do criador italiano.

Por fim, em terceiro lugar, Prado Jr. se demora na problemática da “fuga pela fantasia” que Gilda acredita ver em Blow-up nas cenas dos clowns, as quais trairiam a intenção de Antonioni que, diz ele próprio em entrevista, “a relação [no filme Blow-up] é entre um indivíduo e a realidade [...]” (ANTONIONI apud MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 156, grifo da autora). Como contraprova dessa pretensão de realidade, Gilda vê na presença dos palhaços, na abertura e no final do filme, o significado de um “pacto” entre eles e o fotógrafo, uma relação entre o indivíduo e a fantasia.

Apesar de negá-las, essas relações, acima elencadas, existem e são significativas e, por isso, segundo (Prado Jr. 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
https://doi.org/76-103...
, p. 26), “Gilda de Mello e Souza será capaz de diagnosticar o ponto cego da visão (ou do projeto) de Antonioni, que lhe torna inacessível o sentido de sua própria obra”.

E podemos observar, para além de nosso filósofo brasileiro, noutro ensaio de Gilda, uma alusão à autonomia das formas que, muitas vezes, é “contra a vontade do criador”. Se não estamos enganados, é o que nos sugere o seguinte trecho final de Diálogo e imagem n’O desafio, de 1966, por exemplo, presente em Exercícios de Leitura: “É que, a despeito das boas intenções, a criação tem dessas armadilhas” (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 228). Aqui, como em Antonioni, o que Gilda diagnostica – para usarmos um termo de Prado Jr. – é, dentro da relação que nos interessa, uma “tensão contraditória entre um projeto e uma realização”.

Para Gilda, o projeto do filme O desafio (1965), de Paulo César Saraceni (1932-2012), era

[...] contar sobretudo a história de Marcelo, intelectual pequeno-burguês que, surpreendido por uma brusca transformação no governo, sente-se atingido em suas dúvidas políticas como em sua capacidade de criação e em sua vida amorosa. [...] O desafio deveria ser acima de tudo um filme sobre Marcelo; e Ada, a mulher burguesa, que a crise está afastando do amante, apenas um episódio de seu drama [...] (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 227).

No entanto, na realização do filme é antes Ada e a valorização da vida burguesa que tomam o primeiro plano, na medida em que o diretor se empolga pela imagem feminina, “afastando-se aos poucos e sem perceber” de Marcelo, o protagonista.

O equívoco que se estabelece é perturbador e compromete as intenções iniciais de Saraceni. De tal modo que, se fosse possível projetar O desafio sem o som, para atentarmos apenas à pregnância da imagem, talvez víssemos surgir na tela um filme diametralmente oposto ao que foi imaginado. Como nesses desenhos em que se pode ler alternativamente a figura como fundo e o fundo como figura, veríamos então, num passe de mágica, a personagem apagada de Marcelo se esfumar e Ada assumir com autoridade o primeiro plano, a inversão de perspectiva transformando O desafio, paradoxalmente, numa exaltação dos valores burgueses (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 227).

Assim, em Entre Narciso e o colecionador ou o ponto cego do criador, Bento Prado Jr. aventura, a certa altura do texto, a percorrer duas possíveis relações entre a estética de Gilda de Mello e Souza e a de Mário de Andrade, propondo certa continuidade de temas, neste caso, segundo nos diz o próprio filósofo brasileiro, a precariedade do criador e “a ilusão da docilidade e do caráter ordenado das formas” (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
https://doi.org/76-103...
, p. 21).

Não obstante, poderíamos aventar uma terceira relação entre Mário e Gilda, que Prado Jr. observa, embora não a trate declaradamente de “maneira perfunctória”: referimo-nos à relação do espectador da obra de arte, ou melhor, para retomar a ideia da estética musical de Mário de Andrade, do ouvinte.

Em O professor de música, Gilda de Mello e Souza fala que “o ouvinte ideal”

seria para Mário de Andrade o puramente receptivo, aquele que “disposto a amar” soubesse se despojar dos ídolos de toda espécie, das verdades transitórias, dos preconceitos adquiridos através dos anos, da veneração descabida, para se nortear, sobretudo, pela compreensão exata do passado (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 26).

Ao menos duas vezes, Prado Jr. se refere à recepção da obra de arte. Numa primeira abordagem, ele apresenta a estrutura da estética de Mário de Andrade tecida por Gilda em O professor de música, sugerindo, por sua conta, uma aproximação, e marcando a diferença, à estética da recepção do crítico literário alemão Hans Robert Jauss (1921-1997). Vejamos ipsis litteris o que nosso filósofo brasileiro escreve.

Não só a obra está “acima” do criador que só nela pode esperar atingir sua “integridade vital no domínio do espírito”, como a própria obra só se realiza na audição ou com sua recepção pelo ouvinte através da mediação essencial do intérprete, mesmo se ela não é passivamente fiel, mesmo se ela é relativamente traidora. Algo como uma antecipação da “estética da recepção”, hoje tão em moda entre nós? Pelo menos levemente diferente de Jauss, Mário de Andrade liga o privilégio da recepção a algo como uma essencial alienação do criador, que precede e enriquece o processo global criação/recepção. (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
https://doi.org/76-103...
, p. 13-14, grifos do autor).

Podemos depreender do trecho acima ao menos três coisas: 1) que a integridade, o todo criador, dá-se para Mário quando a obra criada se comunica a outrem, estando ela por isso sempre por se concretizar, mesmo que materialmente acabada; 2) que, para realizar-se, a obra necessariamente tem que passar pelas mãos do intérprete; e 3) que essa mediação pode ser tanto fiel à “verdade” do criador, ao aderi-la na execução, quanto relativamente traidora, ao inserir elementos de sua personalidade na obra do criador. Tais observações marcam a condição que Prado Jr. nomeia de “essencial alienação” do criador em relação ao processo criativo e a sua atualização e comunicação.

Numa segunda aproximação ao tema do receptor, Prado Jr. recorre alusivamente ao final do ensaio O colecionador e coleção, no qual Gilda sugere que não é em Mário que o segredo se revela (“ele não soube, ou não ousou divisar”), tampouco será exclusivamente em sua obra, mas sim em nós, como último elemento ou entidade da relação criador-obra-receptor. É o que parece dizer Prado Jr. quando escreve: “O rosto do criador e a ‘autonomia incontrolável das formas’ só podem revelar seu segredo para nós, espectadores ou leitores, de qualquer modo o último termo onde se realiza plenamente a obra de arte” (PRADO JR., 2006MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
https://doi.org/76-103...
, p. 21).

Como vimos, esses dois momentos não deixam pontas soltas e assim se complementam. Ademais, torna-se bastante evidente nos ensaios de Gilda de Mello e Souza que, enquanto “receptor especializado”, compete à crítica descobrir os segredos e, por assim dizer, executar a obra em sua máxima plenitude tal qual pretende a estética musical de Mário de Andrade.

Pelo menos é o que acontece em todos, ou quase todos, os ensaios que lemos de Gilda. Isto porque ela considera a atividade crítica como um revelar o escondido, apreender o significado, decifrar o segredo da obra, descobrindo seu sentido ou os sentidos que ela venha a possuir.

Crítico é aquele que procura desentranhar o sentido que o artista encarnou na obra. Criticar é, em larga medida, des-cobrir: procurar os indícios, examiná-los, agrupá-los com método, levantar hipóteses, tirar conclusões. Mas sempre atento ao recado da obra. Desconfio do crítico que, muito sabido em teorias, procura antes re-conhecer. Isto é, encontrar um saber que já possuía, projetar na obra a sua própria informação. (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 77).

Próxima da “passividade fiel” do intérprete ideal, ou do ouvinte ideal, de Mário de Andrade, Gilda de Mello e Souza dirá, por exemplo: que “a intenção secreta de Zulmira foi oferecer nele [num pequeno trecho do conto “Lixeiras afáveis”] a definição graciosa e irônica de sua própria Arte Poética, desentranhada ‘dos restos de que são feitos os sonhos e das migalhas que se soltam da toalha agitada diante da janela e vão tomar parte na noite misturadas às estrelas” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 94); que o pintor Gregório Gruber “[...] não proclama aos quatro ventos os desajustes inevitáveis entre o homem e a técnica, mas insinua aqui e ali, através de equivalências sutis, o sentimento de bloqueio e o imperativo da evasão” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 121); que, se o “negócio” de Antonioni é contar histórias com imagens, o da “crítica [...] se aplica a decifrar as significações que, contra a vontade do criador, costumam se depositar no rastilho indiscreto das imagens” (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 157); que, ainda, sobre Manuel Bandeira (1886-1968), mas também acerca de todos aqueles que se dedicam ao mesmo ofício que ele, “[...] ao contrário do que dizem alguns críticos modernos, é impossível desvendar o núcleo motivador de toda uma obra, se é que ele existe; o que podemos é descobrir uma pluralidade de focos, dos quais ela irradia” (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., grifo nosso); e que, no texto teatral, “a tarefa do crítico é procurar o sentido que o autor [no caso, Jean , p. 80Anouilh] atribui a esse gesto [de fuga ou de renúncia] tantas vezes repetido” (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 156); e que Os deuses malditos (1969), de Luchino Visconti,

[...] não é um filme realista, e sim uma mitologia, na acepção que Roland Barthes dá a esta palavra; [os detalhes realistas] não têm apenas um sentido aparente de linguagem, são uma fala [...]. A sua leitura exige, pois, um deciframento, onde “cada objeto pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral”, a uma mensagem. As imagens existem com significação autônoma, mas podem cobrir uma outra significação, latente, bem mais profunda (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 210).

Ou, enfim, voltando-se para o nosso cinema brasileiro de Os Inconfidentes, de 1971, que: “O destino da arte de Joaquim Pedro de Andrade é [...] confiar no poder evocativo da imagem e na liberdade do público de apreender o sentido na desordem aparente das formas” (MELLO E SOUZA, 2009MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 257).

O CONCEITO DE INACABADO E O ESTILO ENSAÍSTICO/MUSICAL

Além dessas três relações supracitadas, repetimos, a precariedade do criador, a autonomia das formas e a recepção da obra de arte, perguntamo-nos se o conceito de inacabado, desenvolvido por Mário de Andrade, poderia ser um “elemento” da estética de Gilda de Mello e Souza, e que, antes de mostrar-se como tema estético, não se revelaria também em seu próprio estilo ensaístico.

Tomando, ao menos por enquanto, como possível tal hipótese, que nos seja permitido, primeiramente, apresentar, mediante a perspectiva de Gilda, os conceitos de acabado e de inacabado de Mário de Andrade. Segundo Gilda, Mário discute ambos os conceitos desde sua mocidade, os quais, de forma esparsa, reaparecem nos textos sobre música, artes plásticas e poesia, cuja noção remonta ao poeta e crítico francês Charles Baudelaire (1821-1867).

Ela [a discussão dos conceitos de acabado e inacabado] se apresenta – sem se identificar, é claro – como a distinção estabelecida por Baudelaire entre oeuvre finie e oeuvre faite, ou – como já foi lembrado pela crítica – como a de Umberto Eco, quando este opõe obra fechada e obra aberta. (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 33).

De um lado, como mostra Gilda, Mário agrupa as artes e as técnicas do acabado e, do outro, as artes e as técnicas do inacabado. Sendo assim, no primeiro grupo estão as artes da escultura, da pintura e da prosa, que são dogmáticas, racionais, ditatoriais. No caso das esculturas, por exemplo, diz Mário que elas são como “Bíblias de pedra...” (ANDRADE, 2004ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O banquete. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004., p. 66). No segundo grupo estão as artes do desenho, do teatro, da poesia e da música, que são associativas, dinâmicas, “por natureza as mais abertas e [que] permitem a mancha, o esboço, a alusão, a discussão, o conselho, o convite [...]” (ANDRADE, 20046ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O banquete. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004., p. 6).

Já por “técnica” Mário compreende, em O banquete, “o conjunto de conhecimentos práticos com que o artista move o material pra construir a obra de arte” (ANDRADE, 2004ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O banquete. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004., p. 83). E, assim como as artes, as técnicas podem ser separadas tanto em acabadas quanto em inacabadas: sendo as primeiras mais lógicas e racionais, ao passo que as segundas são imprecisas e mais abertas. Além disso, diferentemente do que se poderia imaginar, uma arte do acabado pode exprimir-se com uma técnica do inacabado, assim como uma arte do inacabado com uma técnica do acabado. Gilda nos dá dois exemplos ilustrativos, a pintura expressionista e a música do cantochão, que valem a citação.

Por exemplo, a pintura, como já vimos, é para Mário de Andrade uma arte racional, do acabado; estabelece um universo definido, limitado pela moldura e condicionado pela composição. Apesar de presa à cor, que é um elemento eminentemente sensorial (e portanto anti-intelectual), a pintura apresenta um sentido mais lógico e mais preciso, mais unívoco que o desenho. Em certos momentos, no entanto, rompendo com a sua vocação natural, pode se tornar imprecisa, “convidativa e insinuante”: é o que acontece com o expressionismo. O mesmo ocorre com a música que, sendo por excelência uma arte do inacabado, pode assumir, no entanto, uma técnica dogmática, como o uníssono do cantochão. (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 34-35).

Há, pelo que podemos minimamente notar aqui, uma certa ênfase na espontaneidade, o que leva Mário a opor-se à “separação tradicional” das artes, já que, a título de exemplo, a poesia e a prosa (classicamente consideradas como “artes da palavra”), de acordo com essa curiosa classificação, são vistas inicialmente em lugares opostos, embora possam ser expressas com técnicas contrárias e resultarem em paroxismos, tais como prosa dinâmica, poesia dogmática etc.

Para Gilda de Mello e Souza, estaria na técnica do inacabado o efeito político de que a arte do combate de Mário se serve: nesta, ele – e o artista de modo em geral – se “arma”, optando por uma “arte de circunstância”, “transitória e inacabada”.

A escolha de Mário de Andrade, por exemplo, pelo jornal vai justamente nessa direção de uma “arte de circunstância”: em primeiro lugar, por considerar-se um homem de imprensa – e não apenas um escritor – já que “parte de sua atuação crítica”, como lembra Gilda, “se fez pela imprensa, através de escritos de circunstância, em grande parte polêmicos, que exprimem um temperamento combativo que prefere refletir debatendo e se interrogando” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 28); em segundo lugar, porque o jornal, diferentemente do livro, adequava-se “ao seu conceito de crítica como ‘julgamento transitório’” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 29).

Pensamos ser neste sentido, levando mais adiante as suspeitas de Prado Jr. de continuidade, que devemos compreender o que temos chamado de pensamento estético de Mário de Andrade – e que estendemos também ao pensamento estético de Gilda. Aqui a noção de estética está mais próxima do artista do que do filósofo tradicional ou, como diz o próprio poeta, dos “filosofantes”, isto é, mais íntima de um ensaio do que dum tratado ou de noções de teoria da arte.

Na aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal, de 1938, que na época era ainda a cidade do Rio de Janeiro, Mário rapidamente apresenta a sua ideia de que o seu curso será antes a busca por “uma séria consciência artística” do que por uma Estética.

Iniciando as minhas aulas, quero prevenir, desde logo, que serei muito mais um comentador que um teórico. Vou apenas ensaiar um sistema de conversas que, através da História da Arte, consiga dar, aos meus companheiros de curso, muito mais uma limitação de conceitos estéticos que uma fixação deles. Um curso que, pelo seu aspecto de experimentalismo crítico sobre a História da Arte, será muito mais o convite à aquisição de uma séria consciência artística que a imposição de um sistema estético, de uma Estética perfeitamente orgânica e lógica e, por isso mesmo, para o artista, asfixiante e enceguecedora. (ANDRADE, 1943ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O artista e o artesão In: O baile das quatro artes. São Paulo: Martins Editora, 1943, p. 7-28 (Coleção Mosaico, v. 2)., p. 21-22).

É essa a atitude “dialógica”, de comentarista, de ensaísta, frente ao pensamento, de que fala Gilda, associando aqui o conceito de inacabado de Mário de Andrade com o de “discurso dialógico” de Mikhail Bakhtin (1895-1975); atitude discursiva que “se abre continuamente para o interlocutor, exigindo a cada passo a sua participação efetiva no debate” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 36).

Dito isso, onde estaria esse conceito de inacabado em Gilda de Mello e Souza? Nossa resposta, já previsível, é em seu estilo ensaístico, forma escrita com a qual sempre expressou seu pensamento estético (além dos contos, das cartas e entrevistas publicadas). Em Gilda, a paixão pela forma, encontramos ao menos duas reflexões sensíveis (além das de Bento Prado de Almeida Ferraz Jr. e de Otília Beatriz Fiori Arantes) a essa consideração: as falas de Vilma Arêas e Davi Arrigucci Jr.

Em O motivo da flor, Arêas aponta justamente para o que buscamos sustentar até aqui; inclusive aproxima os contos de Gilda à sua produção ensaística. Vejamos.

Assim, embora Gilda tenha escolhido na ficção e no ensaio a seção do “acabado”, pois é disciplinada e muito elaborada em sua prosa, ela se exprime paradoxalmente através de uma técnica do “inacabado”, usando muitas impressões sensoriais (supostamente anti-intelectuais), seguindo sempre a linha serpentinada com a qual desestabiliza pressupostos fixos [...]; por fim, a escritora parecia concordar com Mário quando afirma toda crítica ser “um julgamento de valor transitório, do momento que passa”. (ARÊAS, 2007, p. 128ARÊAS, Vilma. O motivo da flor In: MATTOS, Franklin de; MICELI, Sergio. (Orgs.). Gilda, a paixão pela forma. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul./São Paulo: Fapesp, 2007, p. 125-138).

Tanto o conto quanto o ensaio são estruturas lógicas e, curiosamente, devem ser curtos, sintéticos. Se seguíssemos a classificação de Mário de Andrade, localizaríamos ambos como “artes do acabado” que, no entanto, se utilizam de “técnicas do inacabado”. Em outras palavras, os ensaios – assim como os contos: “o mais lógico dos gêneros literário” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 154) – embora estruturados racionalmente, possuindo uma lógica interna bem delimitada, exprimem-se na prosa de Gilda mais próximos das “técnicas do inacabado”, não só pela “fluidez verbal” e pela associação de ideias, como também pela discussão sempre aberta, pelo convite a pensar mais, pelas alusões constantemente presentes em cada página que lemos.

No texto intitulado Gilda, Arrigucci Jr. acredita que “o senso da forma” em Gilda, mesmo considerando-o como “esquivo objeto” – forma-se, por um lado, por “elementos heterogêneos do meio cultural, da formação intelectual e da sensibilidade, dos traços específicos da personalidade, que só sedimentam com a passagem do tempo”; e, por outro lado, mostra-se “o senso da forma”, mediante um “módulo perceptivo” e uma “prática artística” (ARRIGUCCI JR., 2007ARRIGUCCI JR., Davi. Gilda In: MATTOS, Franklin de; MICELI, Sergio. (Orgs.). Gilda, a paixão pela forma. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul./São Paulo: Fapesp, 2007, p. 171-184., p. 173), cujo processo dialético pode ser visualizado concreta e particularmente na “prática artística” da feitura do ensaio, ou melhor, “quando um gesto do espírito se imprime numa determinada matéria.” (ARRIGUCCI JR., 2007ARRIGUCCI JR., Davi. Gilda In: MATTOS, Franklin de; MICELI, Sergio. (Orgs.). Gilda, a paixão pela forma. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul./São Paulo: Fapesp, 2007, p. 171-184., p. 173).

Aprofundando-nos, brevemente, no gênero ensaio, descobrimos que, no âmbito estritamente filosófico, ele remonta, pelo menos no Ocidente, a Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI, era esta das grandes navegações e do mercantilismo, da difusão da imprensa e da xilogravura para a ilustração; e que, deformando-se em suas bases7 7 No verbete “Ensaio (gênero)” do Dicionário de Michel de Montaigne, lemos, por exemplo, que: “O que define os Ensaios de M[ontaigne] e os separa de todos os outros de sua época é justamente a utilização do mundo circundante (a História fracionada em histórias trazidas por outros) como trampolim para falar de um outro mundo onde o eu [moi] ocupa o lugar central” (DESAN, 2007, p. 399, tradução nossa). Esse eu que, nos parece, foi perdendo a sua centralidade nos ensaístas posteriores. , o ensaio desde então, figura de Francis Bacon a John Locke, de Montesquieu a Voltaire, de Georg Lukács a Theodor W. Adorno.

Em O ensaio como forma, por exemplo, publicado pela primeira vez em 1954, Adorno nos adverte que o preconceito em relação ao gênero ensaístico ocorre na Alemanha de seu tempo pela falta de cultivo entre os alemães do “homme de lettres”, sendo rapidamente excluído do âmbito acadêmico qualquer um que seja elogiado como “écrivain”. No fundo, apenas aquilo que se preocupa com “o universal”, “o permanente” e “o originário” pode ser considerado seriamente como filosofia (ou Ciência) para a “corporação acadêmica” (ADORNO, 2012ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. O ensaio como forma In: Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, p. 15-45.. p. 16).

Seguindo esse pensamento “purista”, poderíamos pensar que a forma ensaística, praticada por Gilda e tantos outros pensadores, aproximar-se-ia então exclusivamente da arte, não fosse, no entanto, a ressalva de Adorno de que o ensaio não é uma “obra-prima” que refletiria as ideias de criação e totalidade. Contrapondo-se à noção de ensaio como uma “forma artística”, apresentada pelo jovem Georg von Lukács (1885-1971)LUKÁCS, Georg (1911). Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper In: A alma e as formas: ensaios. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 31-53 (Coleção Filô)., em seu texto Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper, escrito em 1910 e publicado pela primeira vez na coletânea A alma e as formas, em 1911, Adorno explica, em primeiro lugar, que o ensaio se refere sempre a algo já criado: ele fala de poemas e romances dos outros, de pinturas e esculturas dos outros, ou seja, não é uma produção ou criação artística; e, em segundo lugar, argumenta que a totalidade do ensaio, a unidade de sua forma construída em si mesma, é buscada no fragmentário, no mutável, no efêmero, no transitório, no contingente (ADORNO, 2012ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. O ensaio como forma In: Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, p. 15-45.).

Assim sendo, para Adorno, a forma ensaística está entre a Ciência e a Arte, e resiste ao preconceito, visto como “produto bastardo” que embaralha as noções científicas às artísticas em detrimento de uma pesquisa dita rigorosa, por meio da heresia: “Apenas a infração à ortodoxia do pensamento torna visível, na coisa, aquilo que a finalidade objetiva da ortodoxia procurava, secretamente, manter invisível.” (ADORNO, 2012ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. O ensaio como forma In: Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012, p. 15-45., p. 45).

Não seria descabido aproximar esse contexto germânico ao brasileiro; aliás, Prado Jr. já o fizera8 8 Assim diz Prado Jr., a certa altura de seu ensaio, em nota de rodapé: “[…] o que ocorria no nosso longínquo Brasil, ocorria também na culta Alemanha”. (2006, p. 11). . Na época em que Adorno publica o texto acima referido, havia 4 anos que Gilda de Mello e Souza defendera sua tese de doutorado em forma de ensaio e sofrera o mesmo preconceito9 9 Lembremos do juízo de Florestan Fernandes (1952, p. 140) acerca de sua tese sobre a moda, o qual, após elogiar “o talento e a extraordinária sensibilidade” da autora, bem como “um seguro conhecimento do campo de sua especialização”, lamenta que Gilda tenha abusado da “liberdade de expressão” e não fundamentado empiricamente alguns de seus argumentos. .

Nesse sentido, contrários à tradição científica, não seriam seus ensaios uma forma herética, isto é, de “infração à ortodoxia do pensamento”, por exemplo, ao método cartesiano, e, por isso mesmo, à própria noção rigorosa de Ciência dos idos de 1940? E não seria esse “espírito herege” que vemos em seus ensaios posteriores, críticos por excelência, mesmo com a voga triunfante do estruturalismo entre nós?

O ensaio nos parece, assim, uma expressão da modernidade. Tal forma se conforma criticamente com o avanço industrial, o surgimento das grandes cidades, dos jornais e periódicos: é fala contingente, livre e fragmentada. É por isso, também, que a forma ensaio parece adequada para o estudo do modernismo, do impressionismo, do expressionismo, do cubismo, do cinema novo, do teatro moderno etc., temas, como sabemos, caros a Gilda, do que a forma do tratado.

De maneira esquemática10 10 Tal esquema deriva de nossa leitura do tópico Ensaio de Leopoldo Waizbort em As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 3ª ed., 2013, p. 35-73. – e por isso mesmo aberta à discussão – podemos caracterizar o ensaio como variável, múltiplo, descontínuo, provisório, móvel, fragmentário, imprevisível, ligeiro, gestual, aforismático, associativo, dialógico, subjetivo, improvável, inusitado, curto, aberto, imaginativo, assistemático, livre, inexato, espontâneo, relacional, revolucionário, concreto, ritmado, mediado, combinatório, pessoal, fugidio, passageiro, contingente, sintético, intuitivo, errante, esboço, cético, biográfico, leve, moderno, experimental etc.; enquanto o tratado seria fixo, definitivo, necessário, sério, impessoal, provável, metódico, sistemático, conceitual, pesado, objetivo, dogmático, científico, universal, simétrico, lógico, absoluto, sem lacunas, estruturado, imediato, monológico, contínuo, exato, conservador, unitário, longo, racional, abstrato, certo, direto, amarrado, imóvel, inteiro, totalitário, analítico etc.

Deste rígido contraponto, ensaio e tratado, destaquemos rapidamente apenas duas caracterizações do ensaio, a saber, o biográfico e a combinatória, e retomemos os ensaios de Gilda enquanto “materialização” de seu estilo, ou melhor, de seu espírito, como a interpretação de Arrigucci Jr. há pouco nos auxiliou, enriquecendo nosso modo de olhar para o material produzido por nossa ensaísta; e vejamos, principalmente, como a combinatória pode ser pensada em relação à música.

Em muitos de seus ensaios, Gilda julga imprescindível a apresentação de fatos ou momentos da vida dos criadores das obras que analisa a fim de elucidar seu ponto de vista – assunto, inclusive, oposto ao objetivismo pretendido pelo tratado. Isto ocorre mais frequentemente com a personalidade de Mário de Andrade, a qual busca retratar por uma perspectiva diferente daquela da vida pública oficializada, convencional ou tradicional do poeta. Assim, pelos seus olhos privilegiados, de quem conviveu com o poeta e sua família, surge um Mário “mais humano”, como em Mário de Andrade em Família11 11 Trata-se de uma palestra realizada em 1992 no Centro Cultural de São Paulo, na série de depoimentos sobre Mário de Andrade, promovida por ocasião dos 70 anos da Semana de Arte Moderna. A palestra fora publicada, sem a revisão de Gilda, no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta, em 2008, e republicada em A palavra Afiada, em 2014. Felizmente, a fala de Gilda fora gravada e encontra-se no acervo do IEB e também pode ser ouvida completamente no seguinte link: https://vimeo.com/140019033 : dividido, melancólico, divertido, humorado, herói, festivo, contador de histórias, pregador de peças, “um espírito mal tourné”, ao mesmo tempo sádico e afetuoso com a mãe e a tia etc.

Mas não só com Mário de Andrade. Uma vista d’olhos nos títulos de seus ensaios ilustra essa constância de uma crítica que se apoia sobretudo na biografia dos criadores das obras de arte: A retrospectiva de Milton da Costa, Pascal e Samuel Beckett, Lasar Segall e [...], Rita Loureiro [...], Macedo, Alencar, Machado e as roupas, Fellini e [...], Paulo Emílio [...], [...] João Câmara Filho e Gregório Gruber, Variações sobre Michelangelo Antonioni.

Além dessa compreensão biográfica, outro ponto que destacamos da expressão do ensaio é a combinatória – e aqui principalmente em seu sentido musical de arranjo. Ora, tanto Mário quanto Gilda, em registros diferentes ou não, possuem por assim dizer um “mesmo” espírito de composição de “apanhar os pedacinhos e compor o todo” (MELLO E SOUZA, 2014MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 109). Gilda, como vimos, constrói seu pensamento num caminho que vai da parte ao todo, improvisando, experimentando, selecionando, combinando, assim como Mário de Andrade fez, por exemplo, como mostra nossa ensaísta no ensaio O tupi e o alaúde, no romance Macunaíma, cuja narrativa teria sido estruturada por dois elementos da música popular, quais sejam, a suíte e a variação, e “construído a partir de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, europeia ou brasileira” (MELLO E SOUZA, 2003MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza. Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014., p. 10).

Nesse sentido, é curioso observar a presença de termos musicais no título de vários de seus ensaios: Variações sobre Michelangelo [...], Notas sobre Fred Astaire, Duas notas: João Câmara e Gregório Gruber e Feminina, tátil, musical. Por isso, arrisquemos, nós também, rapidamente, uma analogia musical, apoiando-nos na obra Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade.

Diríamos então que os ensaios de Gilda de Mello e Souza, conscientes dos perigos do “exclusivismo” e da “unilateralidade”, abordam o objeto concreto sem nele prender-se totalmente e buscam variar sua perspectiva, numa “rítmica mais livre” tal qual “[...] o cantador vai seguindo livremente, inventando movimentos”. Mário chama a atenção em seu ensaio para o fato de que o artista brasileiro, em sua reação à criação estrangeira, ao invés de lhe repelir ou ter-lhe aversão, ato no mínimo inútil, deve dela se aproximar “espertalhonamente”, deformando e adaptando o que nela lhe interessa.

Está claro que o artista deve selecionar a documentação que vai lhe servir de estudo ou de base. Mas por outro lado não deve cair num exclusivismo reacionário que é pelo menos inútil. A reação contra o que é estrangeiro deve ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário Raul Moraes de. Primeira Parte: Ensaio sobre a Música Brasileira In: ANDRADE, Mário Raul Moraes de. (Org.). Ensaio sobre a Música Brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972, p. 11-73., p. 26).

A base, se assim podemos chamar, dos ensaios de Gilda caminham meio que por essa toada, pois não se mantêm exclusivos aos “assuntos” ditos brasileiros, retirando das teorias e criações estrangeiras aquilo que lhe interessava para a nossa realidade social, pluralíssima e sempre em transformação.

E se podemos chamar seus ensaios de elegantes, como também chamamos a um “trecho musical”, é porque são expressivos, eloquentes, cheios de “progressões melódicas e arabescos torturados”. Enfim, Gilda elabora diante de nossos olhos um caleidoscópio orquestrado por assuntos que vão desde estética, moda e literatura, até teatro, cinema, pintura, cerâmica, fotografia e dança, em que as “variações temáticas são incontáveis” e, muitas vezes, “superpostas”, sem falar de toda uma “polifonia” de cantos e contracantos, apresentados sem que a regência por Gilda seja perdida. Transpondo o que dissera à respeito da concepção marioandradiana de “rapsódia popular”, o que Gilda faz em seus ensaios, relembremos, é “apanhar os pedacinhos e compor o todo”, e, por isso, também, acreditamos que seu espírito ensaístico pode ser lido/ouvido como musical.

Encerrando esta nossa longa e panorâmica exposição, em Gilda de Mello e Souza não vemos uma preocupação teórica com a forma ensaística, isto é, a forma do ensaio não é posta em questão, como faz Adorno, por exemplo; embora seja presente o tema em muitas de suas entrevistas dadas ao longo dos anos, sobretudo por ocasião da publicação, em 1987, de sua tese O espírito das roupas. No fundo, a forma do ensaio se faz presente em Gilda na prática, no próprio ato de ensaiar, no seu próprio espírito. Tanto em Gilda como em Mário, arrisquemos, sendo a arte do ensaio uma “arte de circunstância”, o seu critério não é filosófico, mas, sim, social, “uma arte de combate” (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário Raul Moraes de. Primeira Parte: Ensaio sobre a Música Brasileira In: ANDRADE, Mário Raul Moraes de. (Org.). Ensaio sobre a Música Brasileira. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972, p. 11-73., p. 19).

Por um breve momento, poderíamos suspeitar que, de todas as artes com as quais Gilda se preocupa em analisar, a música aparentemente quase não é tematizada, como a vemos ser nas obras e na vida de Mário de Andrade, e que, quando é aludida, ela aparece de modo lateral em sua letra: lembremos, por exemplo, quando nossa ensaísta fala dos compositores em Notas sobre Fred Astaire (2005).

Mas, não é à toa, sendo Mário de Andrade o principal interesse intelectual de nossa ensaísta, talvez até mesmo a sua maior obsessão, que o longo ensaio O tupi e o alaúde (1979) fora dedicado à compreensão da música popular como principal processo compositivo de Macunaíma (1927), bem como fora o ensaio O professor de música (1995/2005) que nos permitira traçar, até aqui, uma aproximação entre Gilda, Mário e a “menos intelectual de todas as artes” (MELLO E SOUZA, 20053MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 2).

Esperamos, aqui, ter trazido alguma contribuição à continuidade entre Mário e Gilda, proposta inicialmente por Bento Prado Jr., que soube tão bem captar seu espírito ensaístico e que não só foi aluno e, posteriormente, tornou-se companheiro de ofício de Gilda, na Universidade de São Paulo, como também compartilhou, a seu modo, da mesma forma moderna e infracional de escrever filosofia à margem do capitalismo.

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    Discutiremos aqui apenas a primeira parte deste texto publicado na Revista do IEB. A segunda – a sua conclusão – fora tanto republicada na coletânea Gilda, a paixão pela forma, em 2007, com o título A hermenêutica de Gilda, quanto felizmente gravada em vídeo, disponibilizada originalmente no canal Vimeo (https://vimeo.com/177696133), vídeo idealizado por Thelma Lessa da Fonseca com direção de Hamilton Grimaldi.
  • 3
    De acordo com Gilda, “poetinha menor” era a autodefinição irônica de Mário de Andrade durante o período em que o atinge a crise do nacionalismo. (MELLO E SOUZA, 2005MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado. 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005., p. 18 e seguintes).
  • 4
    Trata-se de uma obra póstuma de Mário de Andrade, prefaciada por Gilda e com organização de Flávia Camargo Toni, São Paulo: Hucitec, 1995.
  • 5
    Expressão que provavelmente serviu de inspiração a Bento Prado Jr., intitulando assim seu ensaio de Entre Narciso e o colecionador […].
  • 6
    Referimo-nos aqui sobretudo às entrevistas presentes em A palavra afiada (2014).
  • 7
    No verbete “Ensaio (gênero)” do Dicionário de Michel de Montaigne, lemos, por exemplo, que: “O que define os Ensaios de M[ontaigne] e os separa de todos os outros de sua época é justamente a utilização do mundo circundante (a História fracionada em histórias trazidas por outros) como trampolim para falar de um outro mundo onde o eu [moi] ocupa o lugar central” (DESAN, 2007DESAN, Philippe (Org.). Essai (genre) In: Dictionnaire de Michel de Montaigne. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2007, p. 398-401., p. 399, tradução nossa). Esse eu que, nos parece, foi perdendo a sua centralidade nos ensaístas posteriores.
  • 8
    Assim diz Prado Jr., a certa altura de seu ensaio, em nota de rodapé: “[…] o que ocorria no nosso longínquo Brasil, ocorria também na culta Alemanha”. (2006, p. 11).
  • 9
    Lembremos do juízo de Florestan Fernandes (1952, p. 140)FERNANDES, Florestan. Resenha de “A Moda no Século XIX. Ensaio de Sociologia Estética”. Anhembi, 1952, v. IX, n. 25, p. 139-140. acerca de sua tese sobre a moda, o qual, após elogiar “o talento e a extraordinária sensibilidade” da autora, bem como “um seguro conhecimento do campo de sua especialização”, lamenta que Gilda tenha abusado da “liberdade de expressão” e não fundamentado empiricamente alguns de seus argumentos.
  • 10
    Tal esquema deriva de nossa leitura do tópico Ensaio de Leopoldo Waizbort em As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 3ª ed., 2013, p. 35-73.
  • 11
    Trata-se de uma palestra realizada em 1992 no Centro Cultural de São Paulo, na série de depoimentos sobre Mário de Andrade, promovida por ocasião dos 70 anos da Semana de Arte Moderna. A palestra fora publicada, sem a revisão de Gilda, no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cinquenta, em 2008, e republicada em A palavra Afiada, em 2014. Felizmente, a fala de Gilda fora gravada e encontra-se no acervo do IEB e também pode ser ouvida completamente no seguinte link: https://vimeo.com/140019033

REFERÊNCIAS

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  • ANDRADE, Mário Raul Moraes de. Primeira Parte: Ensaio sobre a Música Brasileira In: ANDRADE, Mário Raul Moraes de. (Org.). Ensaio sobre a Música Brasileira 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972, p. 11-73.
  • ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O artista e o artesão In: O baile das quatro artes São Paulo: Martins Editora, 1943, p. 7-28 (Coleção Mosaico, v. 2).
  • ANDRADE, Mário Raul Moraes de. O banquete 3. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004.
  • ARÊAS, Vilma. O motivo da flor In: MATTOS, Franklin de; MICELI, Sergio. (Orgs.). Gilda, a paixão pela forma Rio de Janeiro: Ouro sobre azul./São Paulo: Fapesp, 2007, p. 125-138
  • ARRIGUCCI JR., Davi. Gilda In: MATTOS, Franklin de; MICELI, Sergio. (Orgs.). Gilda, a paixão pela forma Rio de Janeiro: Ouro sobre azul./São Paulo: Fapesp, 2007, p. 171-184.
  • DESAN, Philippe (Org.). Essai (genre) In: Dictionnaire de Michel de Montaigne Paris: Honoré Champion Éditeur, 2007, p. 398-401.
  • FERNANDES, Florestan. Resenha de “A Moda no Século XIX. Ensaio de Sociologia Estética” Anhembi, 1952, v. IX, n. 25, p. 139-140.
  • LUKÁCS, Georg (1911). Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper In: A alma e as formas: ensaios. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 31-53 (Coleção Filô).
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A idéia e o figurado 1. Ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2005.
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A palavra afiada: Gilda de Mello e Souza Organização, introdução e notas Walnice Nogueira Galvão. 1. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014.
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Exercícios de leitura 2 ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2009.
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma 2. ed. São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2003.
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. A visita. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, São Paulo, 1958, p. 3.
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Rosa pasmada In: Revista Magma, nº 7, 2001, p. 9-19. Notas críticas inéditas de Mário de Andrade. (Originariamente publicado na Revista Clima, nº 12, 1943). Disponível em: http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/m7.pdf Acesso em: 18. fev. 2022.
    » http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/m7.pdf
  • MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Week-end com Teresinha. In: Clima, n. 1, São Paulo, 1941, p. 76-103.
    » https://doi.org/76-103
  • PRADO JR., Bento de Almeida Ferraz. Gilda de Mello e Souza. Discurso, nº 26, 1996.
  • PRADO JR., Bento. Entre Narciso e o colecionador ou o ponto cego do criador. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo), n. 43, set. 2006, p. 9-36. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/34541/37279 Acesso em: 11. out. 2021.
    » http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/34541/37279
  • ROCHA, Gilda de Morais. Armando deu no macaco In: Clima, n. 7, São Paulo, 1941.
  • WAIZBORT, Leopoldo. Ensaio In: As aventuras de Georg Simmel 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 35-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    09 Maio 2022
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