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Fisiopatologia topográfica das conexões cerebelares

Fisiopatologia topográfica das conexões cerebelares

A. de Almeida Prado

Catedrático de Clínica Médica e Propedêutica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

SUMÁRIO

O autor apresenta, em linhas esquemáticas, as conexões que o cerebelo, pelos seus pedúnculos, mantém com o eixo encefaloespinhal, procurando, em seguida, deduzir daí os quadros clínicos topográficos correlatos.

São esboçados os síndromos dos três pedúnculos cerebelares, superiores, médios e inferiores, entrevistos sobretudo do ponto de vista topográfico.

Assim, no que concerne aos pedúnculos superiores, são lembrados os hemissídromos cerebelo-oculares, talâmicos e piramidal. A propósito dêste último, o autor reedita ponto de vista estabelecido em publicação sua de 1923, na qual, contrariando idéias de Pierre Marie e Foix, sustentava que os hemissíndromos cerebelo-piramidais por lesão daquelas vias cerebelares são sempre, indefectìvelmente, de feitio cerebelo-piramidal ipsilateral.

Quanto aos pedúnculos cerebelares médios, salienta a impossibilidade de ter-se noção exata de sede, porque são vias integralmente cerebelípetas e os sindromos que melhor especificam a topografia lesional são os que atingem as vias cerebelífugas. No próprio síndromo de Raymond-Cestan, cuja sede protuberancial inculca a noção de lesões que interessam a via cerebelar média, a sintomatologia cerebelo-piramidal parece correr por conta de acometimento do pedúnculo cerebelar superior, dando igualmente a ipsilateralidade cerebelo-piramidal.

Nos síndromos pedunculares inferiores, ao contrário, vigora sempre a disposição cerebelo-piramidal cruzada: sinais cerebelares de um lado e sinais piramidais de outro. A razão é que a via cerebelar centrífuga contida nesses pedúnculos é direta - via cerebelo-bulbar em articulação com a vestibulospinhal - ao passo que as vias piramidais se entrecruzam no bulbo.

SUMMARY

The author presents, in a schematic way, the connections that the cerebellum maintains, by means of its peduncles, with the brain-stem; he strives, afterwards, to reach the correlative topographic clinicai pictures.

He outlines the syndromes of the three cerebellar peduncles (superior, middle and inferior), which are mainly considered from the topographic point of view.

Thus, concerning the brachia conjunctiva, are to be remembered the cerebellum-ocular, thalamic and pyramidal hemisyndromes. Referring to the latter, the author repeats the opinion already sustained (1923) at one of his publications, in which, contradicting Pierre Marie and Foix's ideas, he stressed that the cerebellum-pyramidal hemisyndromes, due to lesion of the cerebellar pathways, have always an ipsilateral cerebellum-pyramidal feature.

Regarding to the brachia pontis, the author emphasizes the impossibility to have a correct idea about localization, because these peduncles are entirely afferent pathways and the syndromes which best specify the lesional topography are those involving the efferent pathways. Even in the syndrome of Raymond-Cestan, whose pontine localization suggests lesions involving the middle cerebellar peduncle, the cerebellum-pyramidal symptomatology seems to be due to the lesion of the superior cerebellar peduncle, causing, likewise, the cerebellum-pyramidal ipsilaterality.

In the syndromes of the inferior cerebellar peduncle, on the contrary, there is always the crossed cerebellum-pyramidal disposition: cerebellar signs on one side and pyramidal signs on the other. The reason is that the centrifugal cerebellar pathway included in these peduncles is direct - cerebellum-medullary pathway in connection with the vestibulospinal tract - while the pyramidal tracts cross each other in the medulla oblongata.

Distinguem-se, na semiologia topográfica do cerebelo, um grupo de sintomas e sinais atinentes a localizações no próprio órgão, vérmis e hemisférios, e outro a localizações nas suas vias de conexão, isto é, os pedúnculos cerebelares. Na presente exposição cuidarei apenas do segundo grupo. O primeiro vem muito bem descrito nos tratados de neurologia e nada poderia acrescentar ao que está clàssicamente estabelecido.

Do cerebelo, através dos seus diversos pedúnculos, partem fibras que o põem em comunicação com núcleos mesencefálicos e espinhais, e acorrem outras que o ligam a certas regiões bulbares e à medula, principalmente. Existem, pois, um conjunto de fibras eferentes. cerebelífugas e outro de fibras aferentes, cerebelípetas.-

Vias cerebelífugas

São representadas sobretudo pelas fibras que formam os pedúnculos cerebelares superiores e por uma parte das fibras dos pedúnculos cerebelares inferiores.

a) Pedúnculos cerebelares superiores - Êsses pedúnculos estabelecem relações, quer diretamente, por meio de suas próprias fibras, conexões imediatas, quer por interposição de outros sistemas de fibras a êles articulados, conexões mediatas, com diferentes pontos do tronco encéfalo-medular. As conexões mediatas constituem vias curtas, que ligam fisiològicamente o cerebelo a regiões que lhe são mais ou menos vizinhas; as conexões imediatas constituem vias longas, que transmitem à distância os estímulos e excitações emanados dos seus núcleos centrais e hemisférios.

A via centrífuga principal é representada, na primeira parte do seu percurso, pelas fibras que, partidas da oliva cerebelar. vão, após entrecruzamento na comissura de Wernekink, ao núcleo vermelho do lado oposto; deste núcleo parte um sistema de fibras que, prolongando-se pelo eixo cerebrospinhal, constitui, depois de um segundo entrecruzamento, na decussação de Forel, o chamado feixe pré-piramidai do cordão lateral da medula.

Nem tôdas as fibras do pedúnculo cerebelar superior que vão ao núcleo vermelho tomam, porém, êsse percurso: algumas, seguindo trajeto ascendente, alcançam a cama óptica (via cerebelo-rubro-talâmica), e outras, o núcleo do III par (via olivo-rubro-ocular). E, entre as que desgarram do pedúnculo antes de atingir êle o núcleo vermelho, mencionam-se as que vão constituir a via cerebelo-protuberancial, que liga os hemisférios cerebelares aos nuclei reticularis tegmenti pontis, na protuberância; além destas, há o feixe cerebelo-vestibular de van Gehuchten, tambem chamado feixe "en crochet" de Russel, fasciculus uncinatus, feixe cerebelo-vestibular de Lewandowsky, cujas fibras, provindas do núcleo do tecto cerebelar do lado oposto, vão morrer nas massas cinzentas vestibulares, núcleos de Deiters e de Bechterew, onde entram em conexão com as células de origem do feixe vestibuloespinhal e com certas fibras dos feixes longitudinais posteriores.

As relações com o feixe vestibuloespinhal e com os feixes longitudinais posteriores, com o primeiro principalmente, que é um feixe exclusivamente descendente e motor e que se estende pelo cordão anterior da medula até a altura da região sacra, dão a essas fibras a função de uma via longa de grande importância.

b) Pedúnculos cerebelares inferiores - As fibras descendentes dos pedúnculos cerebelares inferiores formam-lhe, pròpriamente, o segmento interno, ou corpo juxta-restiforme. Aí são encontradas fibras que vão às terminações das raízes vestibulares do VIII par craniano, no bulbo (núcleos de Deiters, de Bechterew e triangular) e para os núcleos bulbares dos últimos nervos cranianos motores (hipoglosso) ou mistos (espinhal, vago, glossofaríngeo).

Nos corpos restiformes, admitem alguns autores, estribados no sentido da degeneração walleriana, que exista uma via centrífuga - fibras cerebelo-nucleares - do hemisfério cerebelar aos núcleos do cordão posterior e de von Monakow; mas são fibras de atividade funcional duvidosa, ainda não esclarecida completamente.

Vias cerebelípetas

São contidas nos pedúnculos cerebelares médios e inferiores.

a) Pedúnculos cerebelares médios - As vias encerradas nesses pedúnculos, em sua maioria são cruzadas e provêm dos núcleos protu-beranciais, do núcleo pôntico e da formação reticular da calota: fibras, ponto-cerebelares e retículo-cerebelares. Uma pequena parte promana, segundo Thomas, do grupo celular mais externo do núcleo pôntico do mesmo lado. As primeiras estabelecem, portanto, ligação cruzada e a última, ligação ipsilateral com o cerebelo.

Aos núcleos pônticos chegam igualmente fibras de proveniência cerebral, as fibras córtico-protuberanciais, que formam a porção superior da via motora secundária, fibras diretas, que estabelecem conexão entre o córtex cerebral e a substância cinzenta da protuberância. Cada núcleo pôntico estando, destarte, de um lado em relação cruzada com o córtex cerebelar, e de outro em relação direta com o córtex cerebral, torna-se um interposto forçado no curso da via motora secundária ou via motora cerebelar de van Gehuchten.

b) Pedúnculos cerebelares inferiores - São representados, essencialmente, pelos corpos restiformes e juxta-restiformes. Êstes últimos contêm fibras exclusivamente cerebelífugas, de acordo com o resumo descritivo anteriormente feito. Os corpos restiformes abrigam fibras de dupla proveniência - medular e bulbar: contingente medular e contingente bulbar.

O contingente medular é constituído pelo feixe cerebelar direto ou feixe de Flechsig. O feixe de Gowers, embora não siga o percurso dos pedúnculos cerebelares em questão, ascende também ao cerebelo por parte de suas fibras, que contornam o ponto de saída dos pedúnculos superiores do cerebelo e vão ao vérmis anterior. Dêsses feixes, um é direto no nascedouro (feixe de Flechsig) ; outro (feixe de Gowers) é discutível quanto à ipsi ou à contralateralidade de suas fibras de origem. Mas, todos terminam no vérmis cerebelar.

O contingente bulbar compreende três ordens de fibras: olivo, núcleo e retículo-cerebelares. As fibras olivo-cerebelares são cruzadas e ligam cada oliva bulbar ao hemisfério cerebelar oposto; as núcleo-cerebelares são diretas e, pela sua maioria, articulam os núcleos de Goll, Burdach e von Monakow ao lobo mediano do cerebelo, levando-lhes as impressões sensitivas profundas e inconscientes recolhidas pelos cordões posteriores da medula; as retículo-cerebelares provêm da formação reticular do bulbo, de um e de outro lado.

Desta digressão anatômica resulta que o cerebelo, para atender as suas múltiplas funções fisiológicas, dispõe, à custa de seus pedúnculos, de numerosas vias cerebelípetas, aferentes, e de duas vias principais cerebelífugas, eferentes. As primeiras são principalmente representadas pelos pedúnculos cerebelares médios, compostos exclusivamente de fibras cerebelípetas, e pelos corpos restiformes; as segundas, pelos corpos juxta-restiformes e pelos pedúnculos cerebelares superiores.

Os pedúnculos cerebelares médios, mercê da correlação cérebro-cerebelar intercortical, integrada na via motora secundária ou via motora cerebelar, trazem à corticalidade cerebelar estímulos provindos da zona sensitivomotora e da zona correspondente à 2.a e 3.a circunvoluções temporais, que muitos autores consideram como o centro de representação das impressões labirínticas. É, portanto, uma correlação alta, que liga as partes mais superiores do encéfalo ao cerebelo.

As vias centrípetas pedunculares inferiores (corpos restiformes), ao contrário, constituem vias baixas, que ligam principalmente os cordões posteriores da medula ao vérmis cerebelar.

Se os corpos restiformes objetivam vias longas centrípetas da maior monta, os juxta-restiformes têm igual importância como via centrífuga.

O cerebelo se encontra, assim, pelos seus pedúnculos inferiores, intercalado no centro de um arco reflexo, cerebelo-bulbo-espinhal, em conseqüência de que as excitações sensitivas promanadas dos músculos, das articulações, da pele, dos canais semicirculares, lhe são transmitidas e aí utilizadas no sentido da coordenação, especialmente no que toca à estabilização do equilíbrio, enquanto as vias centrífugas que daí partem encarregam-se de fazer os numerosos músculos do organismo agirem em determinada ordem, de modo a dosear o grau de contração muscular e a interferir na posição dos membros, do tronco, da cabeça, dos olhos, etc. (Leube).

A outra via centrífuga, a que percorre as fibras dos pedúnculos cere-belares superiores, duplamente entrecruzada (decussações de Wernekink e de Forel), põe cada hemisfério cerebelar em conexão com a metade ipsilateral da medula, pois duplo entrecruzamento eqüivale a nenhum. Os esquemas de Van Gehuchten aqui reproduzidos figuram as conexões do cerebelo, tanto as das vias aferentes, como as das vias eferentes (figuras 1 e 2).

Mas para que possamos interpretar bem a fisiopatologia do cerebelo, necessário é articulá-lo também ao cérebro. Fisiològicamente considerado, não é êle um órgão motor nem sensitivo, na acepção rigorosa dêsses têrmos. A sua função, no que diz respeito às suas relações com o eixo cerebroespinhal, é modificadora, de adaptação, no sentido de, como órgão regulador do equilíbrio, do tono e da coordenação, dar aos movimentos orientação, seqüência e estabilidade, de onde resultem a harmonia dos atos musculares e a manutenção do equilíbrio. Como poderia êle exercer essa interrelação, que deve ser recíproca, numa e noutra direção, se não existissem liames anatômicos que lhe conferissem possibilidades materiais para a execução dos atos essenciais a essas funções?

Já vimos que os pedúnculos cerebelares médios se encorporam à via motora secundária e que podem transmitir impressões partidas do córtex cerebral. Mas como explicar a transmissão ao cérebro de estímulos partidos do cerebelo?

Leube fala em um arco reflexo cerebelo-cerebral, por meio do qual as excitações sensitivas que afluem ao cerebelo seriam transmitidas aos hemisférios cerebrais e se transmutariam em representações conscientes da posição do corpo no espaço, representações que, à custa da via centrífuga contida nas fibras têmporo e fronto-protuberanciais, exerceriam ação de contraste sôbre o centro do equilíbrio, no cerebelo. A porção centrífuga do arco está bem determinada; mas a que se faz no sentido do cerebelo para o cérebro, por que feixes de fibras se objetivará ela? Bruce e Burns também aludem a êsse arco reflexo cerebelo-cerebral, concepção meramente teórica e a que não dão expressão anatômica material. Há, porém, a via olivo-rubro-talâmica, que põe a oliva cerebelar de um lado em conexão com o núcleo vermelho do lado oposto, pelos pedúnculos cerebelares superiores, prolongando-se depois até o tálamo, por fibras ascendentes que, provindas daquela formação mesencefálica, procuram a cama óptica.

Resumindo: o cerebelo recebe impressões, excitações, estímulos, da medula e do bulbo, por intermédio dos corpos restiformes, e da corti calidade cerebral pela via córtico-ponto-cerebelar, e os envia, por sua vez, à medula, ao cérebro, aos núcleos do III par e ao tálamo, por intermédio do pedúnculo cerebelar superior; aos núcleos do nervo vestibular pelos feixes cerebelo-vestibulares; à medula pelo feixe cerebelo-bulbar, em articulação com o feixe vestibuloespinhal e com certas fibras dos feixes longitudinais posteriores.

Do ponto de vista topogràfico, pode-se discernir, pois, sinais e sintomas peculiares ao cerebelo e sinais e sintomas peculiares às suas vias de conexão - os pedúnculos. Consoante realcei, de início, os primeiros escapam aos fins aqui visados. Acrescentarei apenas que ao cerebelo parecem caber precìpuamente as funções do equilíbrio e aos pedúnculos as da coordenação.

Contudo, o equilíbrio pode ser afetado nas lesões que interessam as fibras dos cordões posteriores da medula, interrompendo o reflexo ce rebelo-bulbo-espinhal, cujo centro se acha no vérmis cerebelar, ponto terminal de tôdas as fibras cerebelípetas medulares. A sintomatologia será então bilateral, atáxica, tal qual a encontrada nas lesões localizadas no vérmis.

Nas outras eventualidades, porém, a sintomatologia interessará sobretudo a coordenação, com sintomas de empréstimo devidos à comparticipação de outras regiões no processo - hemitremor, hemicoréia, he miatetose, paralisias oculares, etc. - e se conformará, sempre, sob o feitio unilateral. Mann, Fels e Pinelis falam em hemiplegia cerebelar, conceito que não traduz fatos em acôrdo com o que êsse vocábulo expressa vulgarmente. A hemiplegia cerebelar só poderá ser aceita no sentido de perturbações da motricidade extrapiramidal unilaterizadas. Temos, assim, que são hemissíndromos, e que, quanto aos pedúnculos cerebelares superiores, em conseqüência de suas relações anatômicas com o núcleo vermelho, com o tálamo e com as fibras do III par, distribuem-se em cerebelo-rubro-oculares e cerebelo-piramidais.

Pedúnculos cerebelares superiores

a) Hemissíndromos cerebelo-rubro-oculares - São síndromos cerebelares unilaterais que se acompanham de paralisias totais ou fragmentárias do III par, de paralisias dos movimentos associados dos globos oculares ou de hemianopsia lateral homônima.

No primeiro caso, a paralisia ocular é direta, do mesmo lado da lesão do pedúnculo cerebral atingido, e a sintomatologia cerebelar, do lado oposto. E' uma variante do síndromo de Weber clássico, um síndromo de Weber alto, cuja lesão, localizada no pé do pedúnculo cerebral, ascendeu à calota peduncular.

No segundo, objetiva-se um síndromo protuberancial com paralisia do movimento de lateralidade dos globos oculares para o mesmo lado da lesão e hemissíndromo cerebelar (assinergia, instabilidade estática, incoordenação na marcha) do lado oposto. E' o quadro conhecido em neurologia por síndromo de Raymond-Cestan, variante alta, por lesão da calota protuberancial, do síndromo de Millard-Gübler clássico, o qual especifica acometimento protuberancial inferior.

A comparticipação das fibras talâmicas carateriza o último tipo considerado, o cerebelo-talâmico. Aqui, o quadro geral é muito rico e complexo, não contribuindo a sintomatologia cerebelar senão escassamente para os sinais de localização. Todavia, a hemiataxia, a hemicoréia e a hemiatetose frisam a origem cerebelar de alguns de seus consectários clínicos.

Da sua sintomatologia multifária complexa, é lícito desentranharemse, no entanto, três síndromos: 1.° o talâmico puro (perturbações motoras discretas, movimentos involuntários, distúrbios sensitivos subjetivos acentuados, dôres lancinantes, contínuas, irremissíveis) ; 2.° o hipo-talâmico (índices motores de hemiplegia ligeira, sem sinal de Babinski, movimentos involuntários de tipo córeo-atetótico, atitude caraterística da mão, perturbações sensitivas profundas, principalmente da estereognosia, distúrbios cerebelares interessando sobretudo o tono e a sinergia e, enfim, hemianopsia lateral homônima, que pode ser incompleta); 3.° o tálamo-hipotalâmico, que participa um pouco dos outros dois. A lesão, neste último caso, avança da cama óptica até a região subóptica, hipotalâmica, alcançando ainda o pedúnculo cerebelar superior e as radiações ópticas e concretizando o tipo cerebelo-talâmico.

b) Hemissíndromos cerebelo-piramidais

Preliminarmente, impõe-se a distinção entre as duas categorias de sinais e sintomas motores ocorrentes nos síndromos em foco: hemitremor, hemicoréia, hemiatetose, etc. - índices do ataque ao sistema extrapiramidal, do qual faz parte o núcleo vermelho, e aumento da refletividade tendinosa, sinal de Babinski, clono, etc, nunciativos de acometimento do sistema piramidal. Só a última será tratada neste tópico.

Já vimos, na parte anatômica, que algumas fibras do pedúnculo cerebelar superior - as cerebelo-protuberanciais - vão até a protuberância, onde contraem relações com os feixes piramidais. Mas não é, igualmente, sob este aspecto, que tentarei abordar agora as relações cerebelo-piramidais. Topogràficamente, o que interessa é o ataque simultâneo, por obra de uma única lesão, dos dois sistemas, cerebelar e piramidal.

Pierre Marie e Foix aventaram, em 1913, uma hipótese anatômica para explicar a ipsi- e a contralateralidade da sintomatologia cerebelo-piramidal, baseados nos entrecruzamentos, em alturas diferentes, das vias piramidal e cerebelar, atribuindo à via piramidal trajeto descendente e o seu entrecruzamento bulbar clássico, e à via cerebelar trajeto ascendente, que ligaria o cerebelo ao tálamo, passando pelo núcleo vermelho, após o entrecruzamento de Wernekink, deduzindo daí que a lesão que apanhasse ambas as vias antes dêste entrecruzamento produziria síndromos cerebelo-piramidais ipsilaterais, e a que as atingisse abaixo dêle ocasionaria síndromes cerebelo-piramidais contralaterais. A razão seria óbvia: na primeira hipótese, a via cerebelar e o feixe piramidal seriam alcançados antes dos respectivos entrecruzamentos: logo, ipsilateralidade; na segunda, estando já cruzada a primeira, e como o segundo iria sofrer a decussação bulbar, resultaria a contralateralidade.

Mas a verdade é que os casos, na clínica, nunca especificaram a segunda hipótese, tanto assim que, para dar exemplo prático da mencionada dissociação, êles tiveram que agarrar-se ao síndromo de Babinski-Nageotte, que corre por conta de lesão do pedúnculo cerebelar inferior, hipótese não cabível na esquematização prefigurada.

Demais, havia um contra-senso lógico e fisiológico em vincular à lesão de uma via ascendente, muito especializada e de caráter sensitivo-sensorial, como o é a cerebelo-rubro-talâmica, sintomas e sinais que se exteriorizam na prática com tipo unilateralizado e de feitio antes motor do que sensitivo.

A razão deveria se alicerçar em bases anátomo-fisiológicas mais seguras. Procurando entrelaçar o núcleo vermelho, não ao tálamo, mas à medula, através do feixe rubrospinal, que daí emana, pareceu-me que o segundo entrecruzamento, o de Forel, que então se realizaria no percurso do feixe em questão, explicasse tudo: a lesão que fosse capaz de atingir, ao mesmo tempo, a via do pedúnculo cerebelar superior e o feixe piramidal, alcançaria, sempre, a via cerebelar já depois do entrecruzamento de Wernekink. Logo, como ambas iriam se entrecruzar abaixo (a via cerebelar na decussação de Forel e o feixe piramidal no bulbo) a ipsilateralidade seria compulsória. O esquema representado na figura 3 objetiva bem êsse fato.

Para que houvesse a dissociação, sintomas cerebelares de um lado e piramidais de outro, seria necessário que a via cerebelar fôsse apanhada antes do seu primeiro entrecruzamento na comissura de Wernekink. Ora, essa possibilidade nunca se verifica na prática, ou porque o cerebelo e pedúnculo cerebral ocupem planos diversos, o que impede que possam ser atingidos ao mesmo tempo, ou, para que isso se realizasse, fôssem necessárias lesões destrutivas muito extensas, o que lhes tiraria todos os caraterísticos focais. Depois, os pedúnculos superiores se entrecruzam em sítio muito alto, na parte superior da protuberância, na região da calota, em ponto distante do feixe piramidal e quando chegam ao pedúnculo cerebral já se encontram completamente cruzados.

Há ainda o argumento irrespondível da casuística clínica. A patologia da protuberância regista alguns casos em que o feixe piramidal fôra levemente interessado, talvez por compressão, com rica sintomatologia cerebelar, mas sempre de feitio ipsilateral: o mesmo se dirá da patologia do pedúnculo cerebral (síndromos de Weber puro ou superior, síndromo de Benedikt, síndromo de Raymond-Cestan), em que a ipsilateralidade cerebelo-piramidal é indefectível. E como são essas as únicas regiões por que trafega a via cerebelar em questão antes de chegar ao pedúnculo cerebral, em tese, só à altura delas poderia ocorrer a eventualidade admitida por Pierre Marie e Foix.

Pedúnculos cerebelar es médios

Essas vias pedunculares oferecem poucos elementos aproveitáveis ao diagnóstico regional, porque são exclusivamente centrípetas e os sinais clínicos de localização são mais explícitos nas lesões que ferem as vias centrífugas. Os síndromos anátomo-clínicos mais conhecidos em que a fenomenologia cerebelar corre por conta dos pedúnculos médios são a hemiplegia cerebelar média de forma pura de Marie e Foix, a forma pontocerebelar da paralisia pseudobulbar e os tumores do ângulo ponto-cerebelar. Em nenhum dêles, a indicação da sede é dada pela participação do pedúnculo cerebral em causa.

A própria disposição da compressão das vias motoras é aleatória, ora ipsilateral, ora contralateral, ora bilateral. Contudo, no síndromo de Raymond-Cestan, cuja lesão determinante se assenta na parte alta da protuberância, se define, topogràficamente, como ficou dito, pela ipsilateralidade cerebelo-piramidal; mas, ao que parece, os sintomas cerebelares, nessa conjuntura, são devidos a lesões dos pedúnculos cerebelares superiores.

Pedúnculos cerebelares inferiores

Os pedúnculos inferiores, ao contrário, pela multiplicidade de conexões que as suas fibras estabelecem com o bulbo, com a medula, com as vias vestibulares, tanto no sentido centrípeto como centrífugo, ensejam campo para uma patologia regional variada e abundante.

Os síndromos topográficos, de Babinski-Nageotte - sinais cerebelares, oculossimpáticos, velopalatinos, em esbôço (abolição do reflexo do véu) ipsilaterais, e sinais piramidais e sensitivos contralaterais; de Cestan-Chenais - sinais cerebelares, oculossimpáticos, paralisia palato-laringea, ipsilaterais, e sinais piramidais e sensitivos contralaterais; de Wallenberg sinais cerebelares faringo-laringo-palatinos, óculo-pupilares e trigêmeos, ipsilaterais, e hemianestesia contralateral - estampam na clínica as pecularidades estruturais dessas vias pedunculares.

A interrelação entre as vias cerebelar e piramidal se entremostra sempre, conforme se vê na enunciação sintomática acima exarada, de maneira dissociada; sinais cerebelares de um lado, sinais piramidais de outro. Aqui se realiza, portanto, aquela segunda hipótese atribuída, errôneamente, no esquema de Marie e Foix, à patologia dos pedúnculos cerebelares superiores. E' que a via cerebelar centrífuga contida no pedúnculo cerebelar inferior (feixe cerebelo-bulbar em articulação com o feixe vestibuloespinhal) é direta do cerebelo à medula. Ora, a lesão que a atinja interessará a via piramidal antes de sua decussação bulbar, de onde dissociação e contralateralidade.

Assim a ipsilateralidade cerebelo-piramidal afirma sempre lesão dos pedúnculos cerebelares superiores, como a contralateralidade a dos inferiores.

Para pôr fêcho a esta explanação, que já vai longa, quero abrir espaço agora para uma rememoração de ordem pessoal.

Quando publiquei, em 1923, o meu pequeno volume sôbre os síndromos cerebelares, que chamei mistos, a patologia do cerebelo, no que toca às relações dos pedúnculos com a via motora, era ainda bastante obscura.

Diante do meu primeiro caso - um doente de paralisia alterna de Weber típica acrescida de hemissíndromo cerebelar sobreposto à hemiplegia motora - fiquei desarmado, sem poder interpretar topogràficamente como se processara aquela ipsilateralidade sintomática. Dei busca nos livros e tratados neurológicos em vão. Apenas, no Exposé de Travaux Scientifiques, de Babinski, uma das maiores autoridades na matéria, encontrei estas citações de baixo de página: "Vigouroux et Laignel-Lavastine, chez un sujet à l'autopsie duquel fut trouvée une lésion de l'hemisphère cérébelleux droit, décrivent avec précision les troubles asynergiques qui occupaient la jambe droite. Raymond et Cestan ont constaté de l'asynergie à la jambe droite dans uns cas d'endothéliome épithelioïde du noyau rouge, à gauche. Selon eux, c'est sans doute à cause de l'entrecroisement du pédoncule cérébelleux au dessous de ce noyau que les troubles de la motilité siégeaient du coté opposé à la lésion."

E era tudo, sem outros comentários. Mas foi a faísca: no primeiro caso, havia lesão cerebelar e ipsilateralidade; no segundo, do núcleo vermelho, e contralateralidade. Portanto, a contralateralidade era só em relação à lesão, mas não em relação aos hemisférios cerebelares e isso implicava na necessidade da existência de um segundo entrecruzamento. Efeitos clínicos transmitidos por vias cruzadas, cruzados ficariam, se não houvesse a interferência de um segundo entrecruzamento, e se voltavam à ipsilateralidade em relação ao hemisfério cerebelar em jôgo, era porque isso deveria se passar fatalmente.

Recorri à anatomia e num estudo, realizado em animais, por Pawlow, sôbre a estrutura fina do tubérculo quadrigêmeo superior e do núcleo vermelho, publicado no Le Névraxe em 1900, fui encontrar desrito o duplo entrecruzamento que eu suspeitara. Os fatos me pareceram, então, esclarecidos. Mas eu duvidava sempre e antes de publicar o meu trabalho expus as minhas hesitações a dois doutos colegas, os professores Ovidio Pires de Campos, estudioso da neurologia, e Enjolras Vampré, que foi depois o chefe da escola neurológica paulista. Ambos receberam as minhas sugestões com simpatia e entusiasmo ; mas continuavam a ser meras conjeturas, carentes ainda de maiores subsídios clínicos para afirmarem a sua realidade.

Achando-se aqui, na ocasião, o neuropatologista russo Trétiakoff, desejou conhecer as minhas contraditas às idéias de Pierre Marie e Foix, do primeiro do qual fôra aluno e de cujo ensino era, entre nós, o mais autorizado representante. Ao ouvir as minhas argüições às falhas de lógica e de anatomia que o estudo daqueles eminentes mestres francêses pareciam apresentar, objetou-me que não estava ainda provada a existência do feixe rubroespinhal no homem e que eu não tinha casos que concretizassem as duas hipóteses sugeridas teòricamente por Pierre Marie e Foix. Era exigir demais. Casos, eu só tinha o meu; mas a patologia do pedúnculo cerebral e da protuberância estava cheia dêles e todos conformes ao meu raciocínio. Da outra variante, nem eu nem ninguem os teria, porque era justamente a impossibilidade de sua concretização prática que eu apontara como prova de êrro da interpretação anatômica proposta por Pierre Marie e Foix.

Mais tarde, passando por São Paulo o grande neurologista italiano Mingazzini, aproveitei a oportunidade para lhe propor a questão. Durante duas longas horas, ao lado do Prof. Bovero, da nossa Faculdade, ouviu-me o cientista italiano, com todo interêsse e atenção e, ao final, disse-me, com tôda a franqueza, que nunca vira o problema pelo lado que eu lhe acabava de apresentar e que, de volta a Roma, iria encarregar um assistente seu de praticar cortes seriados em tôda a extensão do pedúnculo cerebelar superior, para ver se era possível uma lesão única apanhá-lo antes do seu primeiro entrecruzamento, e em simultaneidade com o feixe piramidal. Infelizmente, para o seu país e para a ciência universal, a morte o levou primeiro que êsse seu desígnio fôsse posto no campo prático.

Por fim, pouco depois de publicada a minha monografia, a enviei, em 1924, ao próprio Pierre Marie (Foix já havia falecido) ajuntando a tradução francesa dos trechos em que eu lhe criticara as ideias. Não tardou em que eu tivesse o prazer e a honra de receber dêle, a maior figura neurológica da França moderna, a seguinte carta abaixo transcrita:

"29 Octobre 24.

Très honoré Collègue. Je vous remercie pour l'aimable envoi de votre très interessant volume sur les Syndromes Cérébelleux Mixtes. C'est une question très compliquée dans laquelle on ne peut avancer que lentement et simultanément avec les progrès de l'anatomie fine de ces territoires des centres nerveux. Aussi ne serais-je pas surpris qu'arrivant 10 ans après nous vous ayez raison contre nous dans vos critiques très serrées et très bien presentées. Croyez, je vous prie, à mes meilleurs sentiments confraternels, (a) Pierre Marie".

Belas, nobres e confortadoras palavras ! Publicando-as agora, dou expansão a um sentimento de íntima satisfação e de justo orgulho, pois elas me desvanecem ainda hoje tanto quanto no momento em que as li pela primeira vez - e lá se vão mais de vinte anos! - mas não escondo que há neste gesto, implicitamente, uma homenagem à memória de Pierre Marie. A parte fraca era eu. Se a sua resposta fôsse negativa, ou mesmo se êle tivesse guardado silêncio - era o bastante para que me sentisse, àquele tempo, vacilante, como quem, na busca da verdade, tateia nas trevas. Mas não. A sua sinceridade, a sua lealdade e o seu amor à exatidão científica pairavam muito acima de mesquinhos melindres pessoais. E' que, nele, o homem era tão grande quanto o sábio.

Recebido para publicação em 25 novembro 1944.

Rua Itambé, 192 - São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1945
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