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Papel educativo na formação médica: definição e aprendizagem

Resumo:

Este trabalho descreve uma concepção do papel educativo na missão do médico e das possibilidades de aprendizagem dessa função durante a formação profissional. O autor identifica fatores críticos nas condições e nos processos da preparação para o papel educativo e assinala o impacto potencial de aprendizado dessa função na relação médico-paciente e no manejo de problemas médicos.

Summary:

In this paper there is an appraisal of the concept of the physician as an educator, and of the ways of learning this role. The author describes critical factors in the conditions and processes for developing the educational role. The potential impact of this function on the helping relationship, and on the management of medical problems is also ventilated.

Em trabalho recente11. BARROWS, H. S. & TAMBLYN, R. M. - Problem - Based Learning. New York, Springer Publishing Co., 1980. p. 7, Barrows & Tamblyn asseguram existir dois requisitos essenciais na missão individual do médico. O primeiro, é a capacidade de ser efetivo, eficiente e humano na avaliação e no manejo de pacientes com problemas médicos. O segundo, é a capacidade de definir suas próprias necessidades educacionais (auto­ avaliação e estudo), a fim de cuidar adequadamente dos problemas com que se defronta na prática profissional. Por outro lado, a evidência atual da prática médica, tanto no País quanto no exterior, indica que os conhecimentos biomédicos e as habilidades clínicas convencionais são insuficientes para definir a capacidade de avaliação e manejo dos problemas, de maneira efetiva e humana. Essa adequação habitualmente depende também das características da relação médico-paciente: uma relação cooperativa e medicinal é necessária para que haja benefício máximo ao paciente e satisfação para ambas as partes. Segundo Silver88. SILVER, G. A. - The myth of educational dominance. Med. Teacher, (2): 191-5, 1980., essa forma de relação tem aceitação e estruturas inatas.

De nossa parte, acreditamos que a função educativa desempenhada pelo médico inclui-se entre os fatores que favorecem a manutenção de uma relação médico-paciente efetiva e satisfatória. Neste trabalho1 1 Uma versão preliminar foi aceita para publicação em Brasília Médica (1980). , essa crença é explicada pela análise da concepção do papel de educador: qual é sua definição e seu impacto e como pode ser desenvolvido durante a formação profissional.

1. Qual é o Significado do Papel de Educador?

O papel de educador compreende uma gama de condutas efetuadas pelo médico, tendo como objetos: (a) o paciente, em termos de suas doenças; (b) o público, em questões de saúde individual ou coletiva; (c) os colegas, em assuntos profissionais. A instrução ao paciente é um fator explícito de uma função típica da assistência médica: ajudando o paciente a confrontar a enfermidade (Childs22. CHILDS, A. W. - The functions of medical care. Public Health Rep., (90): 10-14, 1975.).

Em geral, os focos de interesse do papel educativo do médico podem ser expressos em 3 linhas de ação: (a) transmissão de informação; (b) guia ou modelo e (c) instrumento ou recurso de aprendizagem para o paciente. Essas linhas de ação (conforme a análise de Fisher55. FISHER, L. A. - The role of the teacher. In: Proceedings of the Fourth Panamerican Conference on Medical Education, ed. by M. A. Fruen & J. W. Steiner. Toronto. University of Toronto, 1976. p. 97.) resultam das dimensões da interação entre médico, paciente e problema - em termos de conhecimentos, atitudes e habilidades utilizados.

Na sua conotação mais ampla, o papel educativo, enfocado como guia ou recurso de aprendizagem acessível ao paciente, corresponde a uma faceta da “função intermediária” ou do “modelo amigo”, descrito por Sheldon77. SHELDON, A. - Friendly Models. Science, Med. and Man, (1): 49-54, 1973.. No cenário médico, essa função consiste na capacidade profissional de integrar a vivência de doença (do paciente) com as experiências do próprio profissional e do sistema de assistência médica e, também, de propiciar “feedback” ao paciente de um lado e, aos demais profissionais engajados na atenção ao paciente, do outro.

Num sentido mais específico, as tarefas educativas fazem parte da atividade médica cotidiana, conforme ressaltado no prontuário médico orientado-por-problema, desenvolvido por Weed99. WEED, L. L. - Your Health Care and How to Manage It. Essex Junction, Essex Publishing Co., 1978, p. 5.. Nesse sistema, o componente educativo está previsto nos planos iniciais e de acompanhamento, no manejo dos problemas médicos, sob a denominação de instrução ao paciente. Compreende, ao menos, as seguintes tarefas: (a) explicação dos problemas médicos; (b) orientação sobre procedimentos diagnósticos e terapêuticos; (c) indução de adesão ou observância ao regime terapêutico.

A amplitude potencial das tarefas educativas é antevista no Quadro I, que descreve uma matriz da interação médico-paciente e delimita o escopo do papel educativo.

QUADRO I
Matriz da Interação Médico-Paciente (a) (a) Dimensões da interação médico-paciente que afetam as tarefas educativas. Ilustração no texto.

Em particular, os objetivos e as estratégias do papel educativo variam com:

  1. As características pertinentes ao paciente, a saber:
    1. condições demográficas, a exemplo do estágio de desenvolvimento (criança, adolescente, etc.); (b) tipo de problema (defeito genético, por exemplo); e (c) grau de urgência (preventivo, agudo ou outro).

  2. As características atinentes ao médico, incluindo:
    1. ambiente ou situação (consultório, ambulatório, etc.); (b) perspectiva técnica, isto é, a abordagem da especialidade médica; e (c) foco da conduta (diagnóstico ou terapêutico).

Concluímos que o papel de educador subentende não somente conhecimentos sobre problemas médicos, mas a disposição e as habilidades para explicar, orientar e encorajar os pacientes acerca desses problemas e dos planos correlatos de diagnóstico e terapêutica - de modo a obter a confiança e adesão do paciente às decisões a se­ rem tomadas e sua aceitação das implicações. Convém ressaltar que, nesse papel, o médico deve adotar uma perspectiva orientada para o paciente, se aceitar estas premissas: (a) o paciente sempre tem uma margem de escolha e um foco de interesse; (b) deve-se evitar uma situação de dependência, a bem do próprio prognóstico da enfermidade e (c) a adesão do paciente às recomendações depende da qualidade da relação médico-paciente criada.

2. Quais são as Estratégias Apropriadas ao Desenvolvimento do Papel Educativo?

A iniciação na função educativa pode ser espontânea ou induzida. No segundo caso, pressupõe uma oferta intencional, pela instituição de ensino, de oportunidades para aquisição de princípios e habilidades na área do processo de ensino-aprendizagem.

Na verdade, inexiste na maioria das instituições um programa sistemático visando a preparação para essa função. Supõe-se que a aprendizagem seja espontânea e informal pela observação e adoção de modelos (os supervisores clínicos), durante os estágios de treinamento. Já algumas escolas44. ENGEL, C. E. & CLARKE, R. M. - Medical education with a difference. PLET , (16): 70-87, 1979.),(66. GUILBERT, J. - Education Handook for Health Personnel. Geneva, World Health Organization, 1977. p. 125. identificam explicitamente essa área de capacitação nos seus objetivos e programas institucionais.

Ao se considerar a possibilidade de induzir a aprendizagem da função educativa, vale examinar três categorias de fatores no sistema instrucional: as condições, os métodos e os produtos. O Quadro II resume os principais fatores referentes a essas categorias, vistos a seguir.

As características do aprendiz são elementos críticos nas condições que definem a aprendizagem do papel educativo, especialmente em termos do alvo e do estágio de carreira do estudante. Esse último fator se expressa numa seqüência de fases de receptividade a diversas oportunidades de ensino. Cox e colegas33. COX, K. R., GARRICK, C. E., BANDARANAYAKE, R. C., BENNETT, M. J. & ROTEM, A. - Teaching teachers. PLET, (17): 72-76, 1980 identificam três fases: a de formação (no período de graduação), a de especialização (na residência ou mestrado) e a de maturação (no aperfeiçoamento ou reciclagem). A seleção das metas e do conteúdo, bem como de estratégias da aprendizagem, serão influenciadas pela fase de receptividade do aprendiz.

QUADRO II
Sistema de Aprendizado da Função Educativa (a) (a) Categorias de fatores que variam no processo de ensino-aprendizagem.

No que tange aos recursos que influencia m os meios de ensino, esses não se limitam aos supervisores, docentes ou não. Os colegas dos aprendizes e, circunstancialmente, os próprios pacientes podem ser envolvidos.

Dentre os componentes dos processos manipulados no desenvolvimento do papel educativo, anotamos a importância das estratégias de controle. Essa se expressa na necessidade de maior individualização da instrução e extensão de controle pelo aprendiz, com o evolver das fases de receptividade nas etapas da carreira do profissional em formação.

Os elementos da estratégia de organização incluem aspectos da estrutura de instrução, especialmente quanto à seleção e seqüência de “construtos”. A atividade de monitoria, por exemplo, define uma estrutura de aprendizagem do papel educativo, mediante o estudo e o exercício de tarefas de instrução junto aos colegas. A disciplina prática de ensino em medicina (oferecida na Universidade de Brasília) representa uma modalidade diversa: constitui uma seleção, seqüência e síntese de conceitos e procedimentos atinentes ao papel educativo no grupo de aprendizagem.

Quanto aos elementos da estratégia de apresentação da instrução, vale a pena mencionar as modalidades de transmissão da informação e de oportunidades de prática. Cita-se, no caso, a aprendizagem baseada em problemas da Universidade de Newcastle4, pela diversidade de meios utilizados e pelo possível efeito motivacional do método de ensino na aquisição da concepção do papel educativo. Aqui também, o uso do grupo de aprendizagem, na medida em que cria condições para o ensino entre colegas, facilita a expressão da função educativa.

Considerando as indicações referidas até este ponto, podemos aventar as seguintes medidas para promover o desenvolvimento da função educativa na formação médica: (a) identificação da imagem aceita para o papel educativo do médico, em termos da linha de ação predominante e das tarefas previstas; (b) seleção de focos de interesse prioritários, a cada fase de receptividade do aprendiz e considerando aplicações imediatas; (c) elaboração de fatores de instrução que ensejem um enfoque de solução-de-problema em torno do processo de ensino-aprendizagem usando estruturas disponíveis (monitoria, disciplinas, estágios clínicos) e proporcionando acesso a informação e instrumentos de ação.

3. Qual é o Impacto Potencial do Desenvolvimento da Função Educativa?

Os resultados da preparação para a função educativa podem ser contemplados em termos de seus efeitos para os concluintes, a instituição e a comunidade.

No que concerne aos concluintes, existem dois tipos importantes de efeitos: a efetividade e a apreciação da preparação; o primeiro, em termos dos graus de proficiência nas habilidades e de transferência (do aprendizado) para a situação da consulta médica; o segundo, em termos do valor atribuído pelo aprendiz ao conteúdo da preparação e ao sentido de sua aplicação na situação real. Existem algumas indicações (estudos em andamento) de que os estudantes engajados nesse tipo de preparação, em maioria, atribuem ampla importância ao papel educativo e demonstram disposição de aplicar o aprendizado na situação profissional. Paralelamente, estes estudos evidenciam desenvolvimento de diversas atribuições ou atributos requeridos nessa função: autocrítica, cooperação, expressão oral, ouvinte ativo, responsabilidade, solucionador de problemas e sensibilidade.

Os efeitos para a instituição são menos tangíveis, mas certamente abarcam os produtos da aprendizagem estudantil. Outra variável de importância seria a apreciação do corpo docente - na medida em que reflete a natureza e a extensão da interação docente-aluno.

Finalmente, no que concerne aos efeitos externos (na comunidade), importa especialmente o grau de relevância atribuído ao produto da preparação - na medida em que esse se refletir na intensificação da qualidade medicinal ou curativa do papel do médico - na percepção dos pacientes.

Em conclusão, as indicações contidas neste trabalho permitem inferir que o desenvolvimento do papel educativo, especialmente na conotação de recurso de aprendizagem acessível ao paciente, tem relevância para a formação profissional médica. Essa função representa uma potencialidade no atendimento de necessidades do médico em formação e de seus clientes em perspectiva. A expressão dessa potencialidade, em termos de satisfação no manejo humano e efetivo de pacientes com problemas médicos, depende certamente da estrutura da assistência médica88. SILVER, G. A. - The myth of educational dominance. Med. Teacher, (2): 191-5, 1980. e de muitos outros fatores aqui omitidos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    BARROWS, H. S. & TAMBLYN, R. M. - Problem - Based Learning New York, Springer Publishing Co., 1980. p. 7
  • 2
    CHILDS, A. W. - The functions of medical care. Public Health Rep, (90): 10-14, 1975.
  • 3
    COX, K. R., GARRICK, C. E., BANDARANAYAKE, R. C., BENNETT, M. J. & ROTEM, A. - Teaching teachers. PLET, (17): 72-76, 1980
  • 4
    ENGEL, C. E. & CLARKE, R. M. - Medical education with a difference. PLET , (16): 70-87, 1979.
  • 5
    FISHER, L. A. - The role of the teacher. In: Proceedings of the Fourth Panamerican Conference on Medical Education, ed. by M. A. Fruen & J. W. Steiner. Toronto. University of Toronto, 1976. p. 97.
  • 6
    GUILBERT, J. - Education Handook for Health Personnel Geneva, World Health Organization, 1977. p. 125.
  • 7
    SHELDON, A. - Friendly Models. Science, Med. and Man, (1): 49-54, 1973.
  • 8
    SILVER, G. A. - The myth of educational dominance. Med. Teacher, (2): 191-5, 1980.
  • 9
    WEED, L. L. - Your Health Care and How to Manage It. Essex Junction, Essex Publishing Co., 1978, p. 5.
  • 1
    Uma versão preliminar foi aceita para publicação em Brasília Médica (1980).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1982
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