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Existe uma feminização do trabalho editorial?

Is editorial work being feminized?

Em 2017, Étienne Anheim publicou uma espécie de mea culpa sobre o lugar secundário que as mulheres e as reflexões sobre as relações de gênero vêm ocupando na revista Annales. Falando em nome do comitê editorial da mítica publicação lançada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, Anheim (2017)ANHEIM, Étienne. Genre, publication scientifique et travail éditorial. L’exemple de la revue Annales. Histoire, Sciences Sociales. Tracès - Revue de Sciences Humaines, v. 17, n. 32, p. 193-212, 2017. apresentou alguns dados reveladores. Em um levantamento exploratório, ele mostrou como se passa de uma virtual ausência de autoras mulheres entre os artigos publicados para uma estag­nação por volta dos 20% entre as décadas de 1980 e 2000. Entre 2007 e 2011, chega-se a um terço de autorias femininas; de 2012 a 2015, a uma proporção de 60% de homens e 40% de mulheres. Mesmo diante dessa aparente tendência à paridade, um olhar qualitativo permite perceber outros desequilíbrios, como o fato de serem majoritariamente redigidas por homens as “notas críticas”, balanços historiográficos com pretensões prescritivas, enquanto as pouco prestigiosas resenhas contam com uma sobrerrepresentação feminina.

A pandemia de covid-19 colocou as publicações em periódicos no centro dos debates sobre as desigualdades de gênero nos ambientes acadêmicos. Um pouco por toda parte, observou-se que a sobrecarga de trabalho doméstico e o acúmulo de outras tarefas ligadas ao cuidado vêm levando a uma diminuição das submissões feitas por mulheres. A revista Dados, por exemplo, registrou no segundo trimestre de 2020 o menor patamar de participação feminina no total de envios: 28%, contra índices que oscilaram entre 36% e 55% por trimestre desde o início de 2016. A situação é ainda mais dramática quando se consideram apenas as autorias únicas ou primeiras autorias: de uma média de 40% de mulheres, passou-se a 13% (CANDIDO; CAMPOS, 2020CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres. Blog da DADOS, 14 maio 2020. Disponível em: <http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/>. Acesso em: 14 dez. 2021.
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). Nesse cenário, tendem-se a agravar assimetrias anteriores, mais visíveis em algumas áreas. Em balanço sobre os dez primeiros anos da revista História da Historiografia, Flávia Varella (2018VARELLA, Flávia. Limites, desafios e perspectivas: a primeira década da revista História da Historiografia (2008-2018). História da Historio­grafia, v. 11, n. 28, p. 219-265, set./dez. 2018., p. 228; p. 236; p. 253) identificou desproporções significativas na composição da editoria executiva e na autoria dos artigos - 86% e 68% de homens, respectivamente - e gritantes na escolha dos objetos: 95% dos autores estudados, cujos nomes apareciam em títulos ou resumos, eram homens. Um quadro particularmente preocupante, tendo em vista o papel que os trabalhos historio­gráficos cumprem na construção de memórias disciplinares.

Reflexões desse tipo mereceriam ser estendidas aos aspectos cotidianos do trabalho editorial, onde duas tendências contraditórias parecem encontrar-se. Por um lado, tudo indica que as mulheres seguem pouco presentes à frente de periódicos de maior prestígio no cenário mundial. O esforço consciente dos Annales para integrar mais pesquisadoras ao seu comitê de redação não resultou em uma completa paridade, e a revista ainda não contou com uma diretora. No recente número comemorativo dos 90 anos do periódico francês, convites igualitários para que acadêmicos envolvidos em revistas similares escrevessem sobre o impacto dos Annales em seus países resultaram, entre recusas e desistências, em um conjunto de seis textos escritos por homens, um deles com dois autores, e apenas um por uma mulher (ANNALES, 2020ANNALES. Vues d’ailleurs. Annales, v. 75, n. 3-4, p. 633-634, jui./déc. 2020., p. 633).

Por outro lado, o próprio fato de a edição acadêmica constituir um trabalho de “bastidores”, que demanda altos investimentos de tempo e competências complexas, mas rende poucos dividendos em concursos e demandas de progressão na carreira, levanta o questionamento: existe uma feminização do trabalho editorial? As revistas classificadas no estrato A1 na área de história no Qualis/CAPES sugerem que sim: levando-se em conta apenas os títulos editados no Brasil, há cerca de dois terços de mulheres na direção dos periódicos.1 1 Os dados foram levantados em dezembro de 2021, considerando os resultados da avaliação do quadriênio 2013-2016 e as informações então disponíveis nos sites das revistas. Havia 29 pessoas listadas nos postos principais de 18 títulos, sendo 19 mulheres e 10 homens. Seria necessário aprofundar essas reflexões, levando em conta diferenças nas estruturas dos corpos editoriais, bem como eventuais contrastes entre revistas estritamente associadas à área de história e aquelas ligadas a outras disciplinas. Tomadas em conjunto, essas duas tendências parecem confirmar a intuição de Anheim (2017)ANHEIM, Étienne. Genre, publication scientifique et travail éditorial. L’exemple de la revue Annales. Histoire, Sciences Sociales. Tracès - Revue de Sciences Humaines, v. 17, n. 32, p. 193-212, 2017. sobre como o gênero pode constituir uma crucial e ainda pouco explorada ferramenta analítica para histórias intelectuais e sociais do trabalho editorial.

Seja como for, tenho a satisfação de iniciar mais um período sob comando feminino de Varia Historia com um número em que as autoras constituem uma pequena maioria. Sinais da capacidade de resistência da produção acadêmica em tempos tão difíceis, os trabalhos que compõem esta edição dialogam com importantes linhas de força da historiografia contemporânea. As dinâmicas transfronteiriças são colocadas em destaque nas análises de Bruno Tadeu Salles sobre o potencial do emprego do método das histórias conectadas no estudo das Cruzadas e das Ordens Militares; de Daniel Gomes de Carvalho sobre a importância de ir além da narrativa da “excentricidade” para entender a trajetória e os escritos de Walking Stewart, pensador do Iluminismo Tardio; de Markus Alexander Scholz sobre o entrelaçamento de interesses comerciais, debates acadêmicos e dinâmicas coloniais na constituição das coleções do Museu Municipal de História Natural, Etnologia e Comércio de Bremen; de Alexsandro de Sousa e Silva e Mariana Martins Villaça sobre a formação de jovens africanos na Cuba dos anos 1970 e 1980; de Janaína Martins Cordeiro sobre as rememorações das revoluções de 1989 em Praga e Budapeste. Por sua vez, os estudos de Maria João Pereira Coutinho a respeito da trajetória do jesuíta Cristóvão de Gouveia e das construções patrocinadas pela Companhia de Jesus na virada do século XVI ao XVII e de Luísa Stella de Oliveira Coutinho Silva acerca do processo de legitimação de uma filha sacrílega na capitania da Paraíba apontam para ricos diálogos interdisciplinares com a arquitetura e o direito. O olhar para os livros, a leitura e as edições atravessa os demais textos. Enquanto o artigo de Caroline Silveira Bauer se vale das contribuições da história da leitura para analisar as apropriações do relatório Brasil: Nunca Mais nas sugestões populares enviadas à Constituinte, a resenha de Valéria Cristina Bezerra reflete sobre as múltiplas vidas das obras a partir do livro Mobilidade e materialidade dos textos, de Roger Chartier. Na primeira parte de uma entrevista que será publicada ao longo de todo o ano de 2022, com organização de André Furtado e Anna Coelho, Chartier se faz outra vez presente, discutindo os trânsitos das produções textuais, os usos do livro como metáfora e as transformações engendradas pelo universo digital.

Os 35 anos de Varia Historia, completados em 2020, deveriam ter sido comemorados com o evento Mulheres e mundos da escrita: ação e atua­ção nos círculos literários e editoriais. O tema dialogava, justamente, com o fato de a revista ter sido conduzida sobretudo por editoras nos últimos anos.

Evoco esse plano abortado pela tragédia que insiste em nos cercar para destacar a decisão de minhas colegas Ana Paula Sampaio Caldeira e Silvia Liebel, a quem também agradeço pela acolhedora e incansável assistência no meu aprendizado da miríade de tarefas que marca a confecção de um periódico acadêmico, de não transpor o seminário para o formato virtual. Elas concluíram que um evento desse tipo não faria sentido se não pudesse ser, efetivamente, um encontro. Que essa escolha me sirva de inspiração para o biênio que agora se inicia - nadando contra a corrente, se for preciso.

A partir deste número, Varia Historia conta com uma nova editora de resenhas, a professora Nathália Sanglard de Almeida Nogueira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com a alegria de poder fazer dessa instância tão importante quanto pouco valorizada um espaço de novas parcerias interinstitucionais, agradeço à professora Anny Jackeline Torres da Silveira por toda a sua contribuição à revista e pela disponibilidade em nos auxiliar na transição da equipe.

Agradeço, igualmente, ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, pela confiança depositada em mim e pelo apoio logístico e financeiro à publicação da revista. Registro, por fim, as contribuições dos pós-graduandos Kelly Appelt, Petrus Albino de Oliveira e Ygor Gabriel Alves de Souza e das graduandas Gabrielle Pacheco Noacco e Nathálya Aparecida Ferreira, que trabalharam arduamente para garantir a qualidade formal e substancial dos textos que agora publicamos.

Dedico este número à memória de Ana Tereza Landolfi Toledo, aluna do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG e amiga que jamais caberia nestas linhas. Sua promissora e ousada pesquisa sobre a independência em Minas Gerais não teve a chance de ressoar no bicentenário que se aproxima, mas não tenho dúvidas de que sua alegria contagiante, sua resiliência corajosa e seu espírito de colaboração ainda estarão por muitos cantos da FAFICH, quando voltarmos a circular cotidianamente por aqueles corredores que eu cruzei tantas vezes ao lado dela. Em julho de 2020, enquanto ainda nos permitíamos sonhar com uma emergência relativamente curta, Tetê registrou em seu ensaio sobre “como os tempos de crise nos revisitam” um “fraterno agradecimento” à minha leitura crítica de um rascunho, fazendo questão de dizer, com a generosidade desproporcional que era uma de suas marcas, que o texto devia muito às “reflexões trocadas entre nós durante o isolamento social” (TOLEDO, 2020TOLEDO, Ana Tereza Landolfi. Reflexões na quarentena: como os tempos de crise nos revisitam? HHMagazine, 29 jul. 2020. Disponível em: <https://hhmagazine.com.br/reflexoes-na-quarentena-como-os-tempos-de-crise-nos-revisitam/>. Acesso em 14 fev. 2022.
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). Diante da brutal impossibilidade de prosseguir com essas trocas, registro aqui a minha imensa saudade - “essa vontade de eternizar a beleza das coisas que passam”, como disse o agora também saudoso filósofo Roberto Machado (2017MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault. São Paulo: n-1, 2017., p. 234) ao recordar seu amigo Michel Foucault.

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    Os dados foram levantados em dezembro de 2021, considerando os resultados da avaliação do quadriênio 2013-2016 e as informações então disponíveis nos sites das revistas. Havia 29 pessoas listadas nos postos principais de 18 títulos, sendo 19 mulheres e 10 homens. Seria necessário aprofundar essas reflexões, levando em conta diferenças nas estruturas dos corpos editoriais, bem como eventuais contrastes entre revistas estritamente associadas à área de história e aquelas ligadas a outras disciplinas.

Referências bibliográficas

  • ANHEIM, Étienne. Genre, publication scientifique et travail éditorial. L’exemple de la revue Annales. Histoire, Sciences Sociales. Tracès - Revue de Sciences Humaines, v. 17, n. 32, p. 193-212, 2017.
  • ANNALES. Vues d’ailleurs. Annales, v. 75, n. 3-4, p. 633-634, jui./déc. 2020.
  • CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres. Blog da DADOS, 14 maio 2020. Disponível em: <http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/>. Acesso em: 14 dez. 2021.
    » http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/
  • MACHADO, Roberto. Impressões de Michel Foucault São Paulo: n-1, 2017.
  • TOLEDO, Ana Tereza Landolfi. Reflexões na quarentena: como os tempos de crise nos revisitam? HHMagazine, 29 jul. 2020. Disponível em: <https://hhmagazine.com.br/reflexoes-na-quarentena-como-os-tempos-de-crise-nos-revisitam/>. Acesso em 14 fev. 2022.
    » https://hhmagazine.com.br/reflexoes-na-quarentena-como-os-tempos-de-crise-nos-revisitam/
  • VARELLA, Flávia. Limites, desafios e perspectivas: a primeira década da revista História da Historiografia (2008-2018). História da Historio­grafia, v. 11, n. 28, p. 219-265, set./dez. 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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