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A mobilidade dos textos, o livro como metáfora e o universo digital: Entrevista com Roger Chartier - Parte I

The Mobility of Texts, the Book as Metaphor, and the Digital Universe: Interview with Roger Chartier - Part I

O ingresso do historiador Roger Chartier no Collège de France foi marcado pela aula inaugural intitulada Écouter les morts avec les yeux, proferida em outubro de 2007 junto à cadeira Écrit et cultures dans l’Europe moderne (CHARTIER, 2014CHARTIER, Roger. A Mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Ed. Unesp, 2014., p. 19-51). Diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Chartier foi, igualmente, pesquisador e/ou professor visitante em diversas instituições mundo afora, notadamente as estadunidenses. Já recebeu vários prêmios, com destaque para o Grand Prix Gobert d’Histoire, da Académie Française, em 1992. No Brasil, possui mais de 15 títulos traduzidos e publicados, com estudos voltados para as práticas culturais e as representações, imersos na chamada história do livro, da edição e da leitura.1 1 Ver, entre outros, Chartier (1994; 2002; 2004; 2009; 2014; 2020b). Para uma análise da trajetória intelectual do entrevistado, ver Venancio (2014).

O ponto de partida para os diálogos da presente entrevista2 2 Entrevista realizada em 16 de abril de 2021, por videoconferência, como atividade inauguradora do Centro de Estudos em Teorias da História e Historiografias (CETHAS, UNIFESSPA). O encontro ocorreu em parceria com os laboratórios História, Memória e Natureza na Amazônia (HiMeNA, UNIFESSPA), Grupo de Ensino e Pesquisas Americanistas (GEPAM, UNIFESSPA), Centro de Memória Oral e Pesquisa (CEMOPE, FURB) e Escritas da História: Historiografias do Sul (Escritas, UFF). Além dos organizadores desta publicação, participaram da entrevista Alexandre Santos de Moraes, Antonio Helonis Brandão, Bruno Silva, Caio Leone, Cristina Ferreira, Giselle Venancio, Hevelly Acruche, Lucas Cheibub, Mariana Tavares, Mirian Marques, Tatiana Castro, Thiago Lenz e Valter Fernandes. A transcrição foi feita pela equipe do CEMOPE, via colaborações de Ana Carolina Zimmermann, Ana Caroline Oliani, Ana Caroline Rodrigues, Bruno Barbera, Giovanna Ferraz, Marina Ramos, Martin Bachmann, Rafaela Steyer e Thiago Lenz. foi o recente trabalho Literatura e cultura escrita: permanência das obras, mobilidade dos textos, pluralidade das leituras (CHARTIER, 2020aCHARTIER, Roger. Literatura e cultura escrita: permanência das obras, mobilidade dos textos, pluralidade das leituras. In: CHARTIER, Roger; RODRIGUES, José Damião; MAGALHÃES, Justino (Org.). Escritas e cultura na Europa e no Atlântico Modernos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa; Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2020a. p. 19-39.). O encontro dedicou-se, assim, às relações entre história e literatura, buscando refletir sobre as possibilidades do estabelecimento de laços entre esses domínios. Os debates se voltaram aos temas que problematizam a historicidade de romances, peças de teatro, coleções, projetos editoriais etc., considerando textos provenientes dos mais variados espaços, períodos e estilos. Com efeito, discutiram-se os nexos entre a emergência da figura-autor e os escritos que são materializados, para abordar aspectos como: o mundo digital, os trânsitos - nacionais ou internacionais - da cultura escrita, as apropriações ou economias de leituras, as traduções, o surgimento das biografias, a constituição de acervos, a chamada “cultura do cancelamento”, as práticas da historiografia, além da circulação e da recepção de textos, sobretudo os impressos.

Da relação entre memória e escrita à instabilidade do copyright

Em um trabalho recente (CHARTIER, 2020aCHARTIER, Roger. Literatura e cultura escrita: permanência das obras, mobilidade dos textos, pluralidade das leituras. In: CHARTIER, Roger; RODRIGUES, José Damião; MAGALHÃES, Justino (Org.). Escritas e cultura na Europa e no Atlântico Modernos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa; Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2020a. p. 19-39., p. 35), o senhor afirma que uma abordagem semiótica de análise de textos remete o sentido das obras quase que exclusivamente para o funcionamento impessoal da linguagem. Mas tanto a história cultural quanto a crítica textual se encarregaram de propor um caminho alternativo, considerando a necessidade de refletir sobre os textos como dependentes, por exemplo, das vozes que os transmitem. Assim, para o senhor, nisso reside fundamentalmente a diferença entre leituras culturais e avaliações de perspectivas semióticas, ou já se avançou um pouco mais nesse debate? Seria possível nos dar um exemplo que aborde as relações entre história e literatura?

Para sua pergunta, parece-me importante lembrar que a fórmula que você utilizou - essa ideia de um funcionamento impessoal da linguagem -, foi particularmente forte nas abordagens do New Criticism, na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre os anos 1930 e 1960, ou da Nouvelle Critique, na França, que consideravam um texto, uma obra literária como um fato linguístico: the linguistic fact, como diziam William Wimsatt e Monroe Beardsley (1946) em um famoso artigo publicado depois da Segunda Guerra Mundial.

Nessa perspectiva, o sentido da obra seria o de remeter exclusivamente aos funcionamentos linguísticos, sem dar importância ao autor - o artigo que estou citando foi intitulado como The Intentional Fallacy3 3 “A falácia intencional”, em tradução livre. (WIMSATT; BEARDSLEY, 1946WIMSATT, William; BEARDSLEY, Monroe. The Intentional Fallacy. Sewanee Review, v. 54, n. 3, p. 468-488, Jul./Sep. 1946.) -, voltado à ideia de que a intenção do autor não importa ou que não deveria ser considerada como responsável por conferir um sentido ao texto; mas também sem leitores ou sem dar importância às várias interpretações dos leitores. E vimos que essa proposta estava sendo retomada de uma maneira original em uma perspectiva à la Jacques Derrida, uma perspectiva de análise desconstrucionista na qual o sentido, ou a instabilidade do sentido, devia-se fundamental e exclusivamente ao funcionamento linguístico.

Você tinha lembrado, a partir desse artigo de minha autoria recentemente publicado em Portugal - não apenas nele, mas também em outros textos e não somente meus - que a história cultural e a crítica textual enfatizaram, para compreender o processo de produção do significado, a importância tanto das formas de inscrição, de circulação dos textos, quanto das apropriações, das interpretações por parte dos leitores. Parece-me que tal viés deveria ser compartilhado em todas as abordagens que querem compreender o processo mesmo de produção do sentido e do significado.

Por isso, ainda que seja difícil avançar nesse assunto em sentido concreto, há estudos particulares que deveriam utilizar essa perspectiva e associar (embora teoricamente porque não é fácil o fazer em cada pesquisa, em cada análise de um texto qualquer que seja), por um lado, a análise das estruturas narrativas, poéticas, retóricas da obra e, por outro lado, as formas de sua inscrição, publicação, circulação, pois são destas formas que os leitores se apoderam.

Você tem razão de propor uma ilustração disso, porque não deve ser um discurso teórico, sem efeito sobre a prática de pesquisa. Parece-me que a consequência dessa perspectiva é voltar em um certo sentido aos estudos de texto, inspirado pelo livro fundamental de Erich Auerbach, Mimesis (1971AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1971.). Nesse livro, o método consiste em focalizar a atenção sobre fragmentos, trechos, detalhes e, a partir de uma análise intensa desses elementos, podemos adentrar na compreensão da totalidade de uma obra. Trata-se de uma prática analítica que é utilizada, por exemplo, por Carlo Ginzburg. Um de seus últimos livros traduzidos para o português do Brasil, O Fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (2007GINZBURG, Carlo. O Fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), é uma ilustração, capítulo após capítulo, dessa abordagem, que focaliza sua atenção sobre um fragmento ou um trecho particular para construir a análise que diz respeito tanto ao âmbito literário quanto ao histórico ou material.

É o que eu também tentei fazer em vários momentos, dos quais mencionarei dois exemplos somente. Um foi publicado no livro Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII) (2007CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (séculos XI-XVIII). São Paulo: Ed. Unesp, 2007.), no qual fiz uma análise do papel representado pelo livro de memória - ou librillo de memoria - de Cardenio, nos capítulos de Sierra Morena, de Miguel de Cervantes. Tal detalhe material permitia entrar na temática dos seus capítulos, que são as relações entre memória e escrita. Sancho tem memória, mas não sabe nem escrever nem ler e Cervantes tem uma memória que é inteiramente a biblioteca dos livros que ele leu. O segundo caso - e acho que ele deve ficar logo pronto, publicado junto a um livro coletivo no Brasil -, é um estudo das várias formas de publicação dos poemas e das obras teatrais de William Shakespeare. Talvez eu retorne a esse exemplo porque é um caso espetacular de transformação, quando a “mesma” obra se desloca a partir de uma circulação elementar, frágil, que desaparece facilmente nas edição in-quarto, até o monumento que é a publicação das obras de Shakespeare no folio de 1623.

Seriam esses, portanto, exemplos que partem de um elemento particular para reconstruir a compreensão de uma obra literária, a partir do cruzamento que havíamos discutido entre materialidade e textualidade.

Nas reflexões do senhor, sobretudo nesse texto publicado em Portugal, discute-se o que é um livro e se explora o duplo caráter desse artefato, que é compreendido a um só tempo como objeto e como discurso. Em seguida, o senhor procede a uma avaliação interessante que envolve metáforas responsáveis por ligar o livro à criação divina. Esse entendimento seria uma forma de, no período Moderno, legitimar uma cultura escrita em meio a uma sociedade iletrada, pautada em valores imersos na religião?

Esse é um problema muito interessante. Podemos começar com o que você mencionava, as metáforas, em particular quando se fala a propósito do livro com uma referência bíblica ou religiosa. E me parece que há três metáforas essenciais, embora no artigo eu tenha evocado só duas. A primeira é a do ser humano como um livro impresso por Deus. Essa metáfora tentava dar um sentido literal ao texto bíblico do Gênesis: “e criou Deus o homem à sua imagem” ou, em outro momento dessa parte do Gênesis, “Façamos o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança” (BÍBLIA, 1885BÍBLIA Sagrada. Tradução de Antonio Pereira de Figueiredo. Lisboa: Depósito, 1885., p. 1). Então, a ideia de pensar que Deus havia posto sobre a prensa a sua própria imagem e que poderia multiplicar a publicação dos seres humanos era uma metáfora que queria dar uma realidade contemporânea, com a presença da imprensa, ao texto bíblico.

A segunda metáfora, que era o começo de sua pergunta e ao avesso: considera o ser humano não como um livro, mas o livro como um ser humano. Pensar o livro como um artefato que tem alma e corpo era uma metáfora clássica da Espanha do Siglo de Oro. Assim como o ser humano, o livro tem uma alma - que é o discurso - e um corpo - que é o objeto que incorpora e confere realidade material ao discurso.

Há uma terceira metáfora, a da vida após a morte como uma edição definitiva, corrigida, estabelecida ou revisada pelo Autor - com o A maiúsculo (tal como o D, também maiúsculo, de Deus) -, e, neste caso, a edição seria perfeita, para sempre sem errata.

Então temos essas três metáforas e o interessante é que as duas primeiras - o homem como um livro e o livro como um ser humano - circularam fundamentalmente na Espanha do Siglo de Oro, país que era particularmente católico. Nesse caso, tais metáforas teriam, como disse a você, uma função de legitimação, mas uma função de legitimação da arte tipográfica, porque são utilizadas por impressores ou por advogados que defendem os privilégios, as imunidades dos impressores. Devemos lembrar que, nesse período, circularam também múltiplos discursos críticos à imprensa, que a consideravam como uma fonte de corrupção dos textos: a corrupção dos textos por operários tipográficos vistos como ignorantes e a corrupção dos textos por leitores que podem comprar um livro sem ter a competência ou a capacidade de compreendê-lo. Construiu-se, assim, uma espécie de leyenda negra da imprensa. Então, para os impressores ou seus defensores, as metáforas que mencionei eram um modo de localizar a imprensa em um contexto religioso, bíblico, um contexto que é o da teologia cristã.

A terceira metáfora não aparece muito em sociedades católicas. Ela aparece, fundamental e quase exclusivamente, no mundo protestante da Inglaterra do século XVII, e da Nova Inglaterra, os Estados Unidos atuais, no século XVIII. Tal metáfora retoma a ideia da vida humana como uma série de edições sempre com errata, mas que, finalmente, encontra a sua forma perfeita na vida após a morte. Assim, participava de um horizonte religioso no qual a circulação da escrita era forte; e a leitura da Bíblia, uma prática comum, desejada e imposta. E vocês sabem que há um autor que, sem essa referência religiosa, reutilizou essa ideia das edições humanas, que é Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.), onde a última edição do ser humano não está voltada para a felicidade eterna do texto perfeito, pois se encontra destinada aos vermes.

Então, para voltar à sua pergunta, parece-me que seria difícil ter uma formulação definitiva sobre a cultura escrita em meio a uma sociedade iletrada. Em primeiro lugar, dependendo das partes do mundo, há uma série de relações possíveis dos iletrados com a escrita, graças à comunicação da escrita através das leituras orais, que integram meios sociais populares no mundo da impressa.

O mais fundamental é a posição da Igreja Católica da Primeira Modernidade frente não só à imprensa, mas também à escrita. Temos também aqui uma ambivalência, uma contradição. Por um lado, a circulação da escrita, multiplicada pela imprensa, pode ser percebida como uma ameaça à fé e à ortodoxia. Daí toda uma política da Igreja Católica para controlar, suprimir o que se percebia como perigos na circulação da escrita. Por isso a Igreja organizou a censura da Inquisição ou a publicação dos Index que devem impedir a potencialidade de perigo da escrita.

Por outro lado, sabemos que a Igreja Católica fez uso, em uma grande escala, da escrita para a evangelização ou a cristianização, tanto na Europa camponesa como nas colônias da América. Daí a existência de uma importante circulação dos catecismos, das cartilhas no México, dos pequenos livros que se chamavam Doctrina Christiana ou de uma literatura de devoção e piedade que era um instrumento para impor a fé cristã àqueles que não a conheciam ou para estabelecer o corpus das leituras que defendiam uma visão ortodoxa da fé.

Parece-me que vemos isso também na iconografia, porque há muitos quadros que mostram a destruição, pelo fogo, dos livros heréticos, como se fosse uma tradução iconográfica da política da Inquisição ou dos Index, e, ao mesmo tempo, encontramos uma representação iconográfica, frequente, particularmente nas Igrejas do Brasil, representando Santa Ana ensinando a Virgem a ler, como se o conhecimento da leitura - do ler e não do escrever - fosse um elemento essencial para a definição da identidade cristã das mulheres.

No estudo recente que temos discutido, o senhor lança a problemática “o que é o livro?” e, então, evoca Immanuel Kant, que já formulara também essa interrogação e a respondera por meio de uma distinção entre o livro como um produto de uma arte mecânica, que seria, portanto, propriedade de quem o tinha adquirido; e, por outro lado, como um discurso dirigido ao público por um escritor ou pelo editor, que recebeu o poder (mandato) de falar em nome da autoria. Diante disso - e considerando que, hoje, existem diferentes pautas sobre o plágio, a digitalização, a disponibilização de livros na internet etc. -, o senhor poderia comentar as diferenças entre uma história do livro voltada ao século XVIII e outra para os dias atuais?

Sim, há um vínculo com a pergunta anterior, porque eu penso que devemos considerar dois momentos da formulação da dupla identidade do livro: como objeto material e como discurso textual. Um primeiro momento dá-se através das metáforas que têm uma raiz religiosa. Um segundo momento aparece no século XVIII, em uma perspectiva filosófica e legal, que é a perspectiva defendida por Kant nesse texto publicado em seu livro A Metafísica dos costumes (1964KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes [1797]. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964.), de 1797. E você tem razão: Kant recordava que o livro é tanto o resultado de um trabalho mecânico, na imprensa; e um discurso, que o autor dirige ao público mediante o mandato que ele dá a um editor para fazer isso.

Dessa realidade do século XVIII, finalmente, deriva-se uma dupla herança para o momento de hoje, que pode ser vista nos enfrentamentos com relação à propriedade literária ou à propriedade intelectual. A primeira herança, evidentemente, é - como diria Kant - relativa à propriedade do autor sobre o seu discurso. Essa identificação da propriedade literária pode conduzir à definição do copyright e ao estabelecimento, no século XIX, de um copyright internacional, que não vale somente para o país onde o livro foi publicado. Nessa perspectiva, tal definição da propriedade intelectual ou literária do autor se vincula com uma nova modalidade para pensar as obras escritas, remetidas ao gênio singular do indivíduo escritor, que expressa assim seus sentimentos, experiências e concepções. E a consequência disso se encontrava, evidentemente, na proibição ou na condenação de toda prática que não respeitasse essa propriedade literária. A partir daí, são condenados o plágio, a reprodução ilegítima dos textos etc.

Há uma segunda herança, também do Século das Luzes, que é a herança de uma necessidade do acesso universal ao saber, ao conhecimento. Trata-se da ideia, que era do Marquês de Condorcet (1776)CONDORCET, Marquis de. Fragments sur la presse. Paris: Firmin Didot, 1776., por exemplo, segundo a qual o saber transmitido por um discurso não pode ser a propriedade de um indivíduo particular, pois corresponde a um bem comum que deveria pertencer à humanidade inteira. É a razão pela qual Condorcet será muito hostil à ideia mesma de propriedade literária ou de propriedade intelectual, que era, para ele, um obstáculo à difusão, à circulação e ao acesso ao saber útil para a humanidade. Nessa perspectiva, evidentemente, a definição de um texto não ocorre como na primeira perspectiva, a da propriedade do autor, que considera sua obra como vinculada com seus sentimentos, seu coração, diria Denis Diderot (1959)DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson [1766]. In: VERNIÈRE, Paul (Org.). Œuvres esthétiques. Paris: Garnier, 1959.. E esta forma de presença do indivíduo no texto se dá a ver através de um estilo, que é sempre pessoal, particular, singular. Para Condorcet, um texto é fundamentalmente um conjunto de ideias que devem pertencer a cada um, sem limites.

Não sei se todos sabem, mas vimos a segunda perspectiva encarnada na reivindicação de um acesso livre aos conteúdos de conhecimento e na luta que muitas comunidades científicas começaram contra o monopólio estabelecido por grandes editoras - Springer, Wiley, Elsevier - sobre as revistas científicas, que são o instrumento moderno dessa transmissão de um saber útil para a humanidade, porque comunicam um conhecimento sobre o mundo natural ou a respeito do ser humano. Então, a herança do século XVIII e do texto que você citava de Kant é ambivalente, ambígua, e se vê, por exemplo, em uma reflexão: a dos autores - mas não aquela que faz Kant nesse texto - que incorporam a ideia do acesso universal dentro do raciocínio que finalmente conclui que existe a legitimidade, ou a legitimação, da propriedade intelectual. É o caso de um texto de Johann Fichte (1846)FICHTE, Johann Gottlieb. Sämmtliche Werke 8: Vermischte Schriften und Aufsätze. Berlim: Veit und Comp., 1846. no qual indica que não somente há uma distinção entre a natureza corporal e a natureza discursiva de um livro, mas que, no segundo elemento, deve-se estabelecer a distinção entre as ideias que não justificam a propriedade literária e o que ele chama de “forma”, que é a modalidade da escrita, o estilo, a maneira de organizar a demonstração, de ligar os conceitos, que remete ao indivíduo e que justifica sua propriedade sobre o texto - propriedade que depois se transmitirá aos editores que farão circular o texto.

Vemos, assim, que esse debate é absolutamente fundamental, porque no mundo digital há, por um lado, uma permanente reivindicação do acesso livre, que se traduz pela publicação de textos que são, teoricamente, protegidos pelo copyright. Foi o caso do Google, quando a empresa começou a digitalização das coleções das grandes bibliotecas sem se preocupar - conforme um argumento de meu amigo Robert Darnton4 4 Ver, entre outros estudos do mesmo autor, Darnton (2010). - em saber se estava digitalizando e favorecendo o acesso livre a obras que eram protegidas pelo copyright. E o que vemos (talvez eu não o deveria dizer) é que nos utilizamos de todas essas plataformas nas quais se encontram os formatos eletrônicos de livros que são, de fato, protegidos pelo copyright e que, nesse caso, são acessíveis através de uma pirataria da edição. Então, aí está a reivindicação do acesso livre, que era um argumento fundamental das comunidades da biologia, da matemática, da física, contra as editoras (Elsevier, Wiley, Springer...) que monopolizam a comunicação do saber com altos preços de subscrição das revistas de ciências exatas que custam dez, quinze, vinte, trinta mil dólares para as receber durante o ano e com securities, ou seja: a impossibilidade de imprimir, transmitir, compartilhar os textos sem um acordo prévio. Então estamos frente a este encontro entre duas ideias fortes do tempo da Ilustração, das Luzes: a reivindicação da propriedade literária, por um lado, e a defesa do acesso livre ao conhecimento, por outro.

Será que o modelo eletrônico atual de composição gráfica (offset, xerox, inkjet, entre outros), que se dá em consonância com um novo regime, por assim dizer, de consciência autoral - caracterizado por certo domínio na condução e reflexão sobre a própria obra e que se dirige a um leitor que caminha pelas infovias do hipertexto -, pode modificar e diversificar o formato dado ao impresso sem interferir na forma literária? Penso no Cordel brasileiro, por exemplo. Ou, em outras palavras, podemos afirmar que já estamos diante de uma outra escrita que subverte e modifica essa literatura?

Eu não sou um especialista do mundo digital e não tenho o mesmo grau de certeza que para os dados históricos. O que me parece é que, no universo digital, é comum o paradoxo quanto ao papel, à figura, à posição do autor. Por um lado, esse mundo favorece a afirmação do autor, da consciência autoral com um fenômeno recente e importante, que é a autopublicação. Eu havia visto que, no Brasil de hoje, 25% das obras publicadas com o número ISBN (International Standard Book Number) são autopublicações e, nesse caso, o autor pode controlar a forma de inscrição e de transmissão de seu texto. Por outro lado, evidentemente, o mundo digital produz também o apagamento do autor, tanto nas produções multimídias, com obras que podem ser móveis, maleáveis, abertas, como na escrita digital em si, que é caracterizada pela polifonia e pela forma do palimpsesto, que consiste em escrever onde algo foi escrito, apagando o registro prévio ou o substituindo pela nova escrita. É por isso que, se o texto está aberto, maleável, móvel, produzido por uma escrita com várias mãos, está caracterizado por uma multiplicidade ou pluralidade ou apagamento do autor. Assim, parece-me que, para refletirmos sobre esse tema, devemos considerar essa ambivalência, ambiguidade ou contradição do mundo digital.

Em segundo lugar, penso que devemos estar conscientes das várias modalidades da escrita dos autores no mundo digital. Há uma delas que se poderia chamar de marginal, que seria a inscrição, a publicação das obras que consideramos como literárias; e há uma escrita multiplicada, que é a de todos os textos breves das redes sociais e das formas de comunicação digital. Em ambos os casos, é possível debater acerca de uma redefinição da posição de poder do autor. No primeiro caso, evidentemente, esse poder é maior; no entanto, a tecnologia, como você dizia, permite modificar o formato, porque as formas do texto dependem do leitor e do aparato, da recepção, mais do que da intenção autoral. No caso da escrita nas redes sociais, vemos uma nova prática de escrita que uma palavra inglesa caracteriza como a escrita dos wreaders,5 5 Expressão formada a partir dos verbos to write e to read. que escrevem e leem ao mesmo tempo porque, hoje, escrever e ler são duas práticas intimamente vinculadas, embora nem sempre tenha sido assim.

É possível que se escreva em um livro impresso, mas ele tem sua identidade, independentemente dessa presença da escrita do leitor que, ao contrário do sujeito da escrita de cartas ou de cadernos, não atua na forma material do impresso. Então há uma nova prática de associação mais forte, ainda que evidentemente cada uma das formas de escrita digital de obras, de textos, da comunicação social tenha suas próprias características. Mas o que me parece também é que a escrita digital pode assegurar a comunicação de produções simbólicas multimídia e não somente escrita, e assim conduzir a uma mobilidade da forma e do formato, seja porque o autor abre o seu texto para as intervenções dos leitores ou bem porque a tecnologia mesma permite a cada leitor, ou obriga cada leitor, a dar um formato e uma forma particular à produção simbólica que ele recebe.

Na sua pergunta, um aspecto que talvez podemos ainda discutir e dimensionar é essa diversificação do formato, e perguntar se ele funciona sem interferir na forma literária. Você tem razão: em um certo sentido, a forma escolhida para o texto não é transformada pelo formato, mas, se seguimos esta ideia que me parece fundamental, ou seja, que as formas efetuam, produzem, afetam o sentido, então a transformação da existência eletrônica do texto também produz uma mutação, uma modificação do sentido.

O mundo digital é um desafio porque devemos reconhecer - talvez mais do que tenhamos feito até agora - as novidades, as rupturas, as descontinuidades em todas as formas anteriores da cultura escrita. É a primeira vez em que há uma separação entre o suporte e o conteúdo textual. Assim, uma consequência pode ser a transformação na relação entre o fragmento e a totalidade, imediatamente visível no caso do livro impresso e mais difícil ou sem importância para o fragmento, o trecho proposto à leitura do texto digital. Então, devemos sempre pensar na descontinuidade radical do mundo digital e, ao mesmo tempo, submeter os textos digitais ao mesmo questionamento aplicado aos textos manuscritos ou impressos. Dessa maneira, a reflexão sobre forma, formato e sentido me parece válida para o mundo digital como o é para o mundo da cultura impressa.

  • 1
    Ver, entre outros, Chartier (1994CHARTIER, Roger. A Ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. UnB, 1994.; 2002CHARTIER, Roger. À Beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.; 2004CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.; 2009CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.; 2014; 2020bCHARTIER, Roger. Um Mundo sem livros e sem livrarias? São Paulo: Letraviva, 2020b.). Para uma análise da trajetória intelectual do entrevistado, ver Venancio (2014)VENANCIO, Giselle Martins. Roger Chartier (1945-...). In: PARADA, Maurício (Org.). Os Historiadores: clássicos da história. V. 3 - De Ricœur a Chartier. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 291-308..
  • 2
    Entrevista realizada em 16 de abril de 2021, por videoconferência, como atividade inauguradora do Centro de Estudos em Teorias da História e Historiografias (CETHAS, UNIFESSPA). O encontro ocorreu em parceria com os laboratórios História, Memória e Natureza na Amazônia (HiMeNA, UNIFESSPA), Grupo de Ensino e Pesquisas Americanistas (GEPAM, UNIFESSPA), Centro de Memória Oral e Pesquisa (CEMOPE, FURB) e Escritas da História: Historiografias do Sul (Escritas, UFF). Além dos organizadores desta publicação, participaram da entrevista Alexandre Santos de Moraes, Antonio Helonis Brandão, Bruno Silva, Caio Leone, Cristina Ferreira, Giselle Venancio, Hevelly Acruche, Lucas Cheibub, Mariana Tavares, Mirian Marques, Tatiana Castro, Thiago Lenz e Valter Fernandes. A transcrição foi feita pela equipe do CEMOPE, via colaborações de Ana Carolina Zimmermann, Ana Caroline Oliani, Ana Caroline Rodrigues, Bruno Barbera, Giovanna Ferraz, Marina Ramos, Martin Bachmann, Rafaela Steyer e Thiago Lenz.
  • 3
    “A falácia intencional”, em tradução livre.
  • 4
    Ver, entre outros estudos do mesmo autor, Darnton (2010)DARNTON, Robert. A Questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010..
  • 5
    Expressão formada a partir dos verbos to write e to read.

Referências bibliográficas

  • ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.
  • AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1971.
  • BÍBLIA Sagrada. Tradução de Antonio Pereira de Figueiredo. Lisboa: Depósito, 1885.
  • CHARTIER, Roger. A Ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Ed. UnB, 1994.
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  • CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime São Paulo: Ed. Unesp, 2004.
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  • CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revolução Francesa São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
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  • CONDORCET, Marquis de. Fragments sur la presse Paris: Firmin Didot, 1776.
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  • GINZBURG, Carlo. O Fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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  • WIMSATT, William; BEARDSLEY, Monroe. The Intentional Fallacy. Sewanee Review, v. 54, n. 3, p. 468-488, Jul./Sep. 1946.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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