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Amplificando o papel dos intelectuais: O Instituto Nacional de Ciência Política e as ações culturais da ditadura Vargas

Amplifying the Role of Intellectuals: The National Institute of Political Science and the Cultural Actions of the Vargas Dictatorship

MARTINELLI, Veronica Vieira. O Instituto Nacional de Ciência Política: Uma “escola de patriotismo” no Estado Novo (1940-1945). Porto Alegre, ediPUCRS: 2022

Apontado por muitos historiadores como a figura política brasileira mais importante do século XX, Getúlio Vargas, em seu primeiro governo, permaneceu na Presidência da República por quinze anos (1930-1945), viabilizando profundas transformações econômicas no país. Ao longo de sua estada no poder, o Brasil mudou, apresentando acelerado crescimento urbano e industrial, estimulado por um Estado interventor na economia, em detrimento do rural e agrário. Essa ampliação dos tentáculos governamentais ocorreu, contudo, para além da esfera econômica, incidindo fortemente também nos aspectos políticos, culturais e sociais da nação, principalmente durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). A nova administração federal foi responsável pela criação ou pelo patrocínio de inúmeras instituições encarregadas de elaborar políticas culturais que concretizassem seus ideários, como o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

Embora a historiografia já se tenha debruçado sobre muitas dessas instituições, outras são pouco conhecidas. É justamente o caso do Instituto Nacional de Ciência Política (INCP), a respeito do qual Veronica Vieira Martinelli lança luz ao publicar a obra O Instituto Nacional de Ciência Política: Uma “escola de patriotismo” no Estado Novo (1940-1945), resultado de sua dissertação de mestrado em história, defendida em 2021 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Ao que se tem registro, a primeira referência acadêmica ao INCP ocorreu na década de 1980, quando se publicou um marco nos estudos do período Vargas, o livro Estado Novo: Ideologia e poder - mais especificamente, no capítulo Cultura e poder político: Uma configuração do campo intelectual (VELLOSO, 1982VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político: Uma configuração do campo intelectual. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: Ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 71-108.). Nele, a autora apresentou sucintamente a função dessa entidade, ressaltando apenas uma de suas produções: a revista Ciência Política.

De lá para cá, pouco se havia avançado na compreensão do Instituto Nacional de Ciência Política, a respeito do qual faltava uma pesquisa aprofundada, capaz de analisar a história da instituição, as diferentes fases de sua trajetória, quem foram seus dirigentes, quais intelectuais colaboraram com as ações pedagógicas, políticas e culturais desenvolvidas, quais os objetivos, as áreas de atuação e os meios empregados pela entidade para divulgar suas ideias e quais relações ela manteve com o governo Vargas e com os projetos político-ideológicos da ditadura. A intenção do livro de Veronica Martinelli (2022) é justamente explorar de modo minucioso essas questões, compreendendo o papel desempenhado pelo INCP na primeira metade da década de 1940.

Em busca de tais respostas, a pesquisa permitiu defender, como mote central, que, ao longo de seus cinco anos de existência (1940-1945), a instituição, uma organização civil fundada na cidade do Rio de Janeiro, serviu para auxiliar o Estado Novo a colocar em prática seus projetos político-culturais, baseados principalmente no fortalecimento de um nacionalismo de teor cívico. A fim de alcançá-los, a ditadura promoveu a cultura e a identidade nacionais, por meio da produção de uma série de políticas culturais, com as quais intelectuais de diferentes matizes foram chamados a colaborar (VELLOSO, 2011VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano: O tempo do nacional-estatismo. Do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 145-179.). Esse papel do INCP fica nítido pela própria alcunha que ele recebeu: “Escola de Patriotismo”. A principal contribuição de Martinelli (2022) ao analisar a história do Instituto Nacional de Ciência Política é, portanto, fortalecer a compreensão da relação estabelecida no período entre o governo Vargas e a intelectualidade brasileira.

Ao investigar a trajetória da instituição, a autora identifica três fases: a primeira, com a fundação e a definição de suas funções; a segunda, com a expansão e a consolidação de seu projeto intelectual; e a terceira, caracterizada pelo ápice de sua visibilidade e pelo declínio e pelo encerramento das atividades. Com base nessas fases, o livro foi dividido em três capítulos, cada qual dedicado a analisar uma delas. Para alcançar êxito nessa empreitada, Martinelli (2022) utiliza uma gama diversa de fontes, entre as quais se sobressaem jornais, revistas (com destaque para as publicações oficiais Visão Brasileira e Ciência Política), cartas, discursos, leis e estatutos institucionais. O esforço de pesquisa precisa ser ressaltado, dada a inexistência de um fundo documental do INCP preservado em algum arquivo, o que demandou o desafio bem-sucedido de reunir vestígios dispersos a respeito da instituição, que, juntos, permitissem remontar a sua história.

O primeiro capítulo, intitulado O Instituto Nacional de Ciência Política: Da fundação às páginas da revista Visão Brasileira, demonstra que a agremiação, fundada em março de 1940 e voltada a estudar os problemas nacionais e o pensamento dos estadistas brasileiros, promoveu inicialmente conferências e debates, bem como a publicação da revista Visão Brasileira. Por sua vez, no segundo capítulo, O Instituto Nacional de Ciência Política: Do projeto intelectual à expansão das atividades culturais, Martinelli (2022) analisa a consolidação e a expansão das ações culturais do INCP, ocorridas no final de 1940 e em 1941, quando foram definidas suas diretrizes nacionais, inauguradas as primeiras seções regionais e publicada sua produção mais destacada, a revista Ciência Política. Por fim, no terceiro capítulo, O Instituto Nacional de Ciência Política: Da propaganda político-militar à formação do Partido Social Renovador, são investigados dois momentos distintos da fase final da trajetória da agremiação: o primeiro, em 1942, de auge da entidade como instituição cultural brasileira, ocasião na qual dispensou maior ênfase à propaganda política do regime e fundou uma seção regional em São Paulo; o segundo, de 1943 a 1945, quando o órgão, acompanhando o desgaste da ditadura do Estado Novo, também entrou em progressivo declínio.

A historiografia que analisou a simbiose colaborativa entre o governo Vargas e o campo intelectual se manteve praticamente restrita à esfera da administração pública federal. Ou seja, geralmente, para compreender a contribuição de intelectuais ao projeto de Brasil delineado pela ditadura do Estado Novo, os pesquisadores recorreram à atuação de órgãos governamentais, sendo os principais o Ministério da Educação e Saúde e o Departamento de Imprensa e Propaganda. Martinelli (2022) insere-se nesse debate, dialogando com, entre outros estudiosos que se debruçaram sobre esses dois polos culturais estatais, Angela de Castro Gomes (1996GOMES, Angela de Castro. História e historiadores: A política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996.), Helena Bomeny (2001BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: Intelectuais e política. In: BOMENY, Helena (Org.). Constelação Capanema: Intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001, p. 11-35.), Lúcia Lippi Oliveira (1982OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Tradição e política: O pensamento de Almir de Andrade. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: Ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 31-47.) e Silvana Goulart (1990GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990.), e avança, ao colocar o foco em uma instituição de caráter privado - o que foge a esse modelo tradicionalmente empregado. Com isso, a autora demonstra que a administração varguista buscou atrair para a sua esfera o maior número possível de intelectuais, incluindo aqueles que não ocupavam cargos em órgãos públicos, no intuito de promover entre essas elites uma “cultura do consenso” (PÉCAUT, 1990PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990., p. 70).

Já para os membros do INCP, a estreita relação com o regime (o próprio estatuto da entidade não admitia como sócios indivíduos contrários à ideologia do Estado Novo) trazia prestígio para os seus quadros e possíveis ganhos materiais e simbólicos, uma vez que o destaque dado a conferências ou textos, apresentados publicamente devido a essa parceria, poderia ampliar o alcance de um escritor e inclusive lhe render convites para prestar serviços ao Poder Executivo. Nos cinco anos de atuação, o INCP teve dois presidentes (os jornalistas Manuel Paulo Filho e Pedro Vergara) e centenas de sócios, que formavam um grupo heterogêneo, composto predominantemente por representantes das letras, professores, advogados, jornalistas, funcionários públicos e militares, entre os quais alguns já eram figuras consagradas nos círculos jornalísticos, literários, culturais e políticos da época, embora a maioria ainda estivesse buscando projeção e reconhecimento.

Enfim, o livro apresenta uma contribuição original aos estudos dedicados ao governo Vargas, pois, ao investigar as relações de colaboração de intelectuais com a ditadura, desloca o foco dos ideólogos do Estado Novo - como Francisco Campos e Azevedo Amaral -, já fruto de análise, para os disseminadores do pensamento autoritário, os chamados mediadores culturais (GOMES; HANSEN, 2016GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Org.). Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Esse papel foi exercido, entre outros, pelos membros do INCP, ao difundirem e popularizarem a ideologia e o discurso oficial do regime. O livro destina-se, portanto, principalmente, aos pesquisadores da história brasileira das décadas de 1930 e de 1940. Ele pode, contudo, interessar a um público mais amplo, tendo em vista que mobiliza conexões com os campos de conhecimento da renovada história política - articulada com a nova história cultural -, da história intelectual, da história das ideias e da história das instituições.

Referências

  • BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: Intelectuais e política. In: BOMENY, Helena (Org.). Constelação Capanema: Intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001, p. 11-35.
  • GOMES, Angela de Castro. História e historiadores: A política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996.
  • GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Org.). Intelectuais mediadores: Práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
  • GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990.
  • OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Tradição e política: O pensamento de Almir de Andrade. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: Ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 31-47.
  • PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: Entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
  • VELLOSO, Mônica Pimenta. Cultura e poder político: Uma configuração do campo intelectual. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: Ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 71-108.
  • VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano: O tempo do nacional-estatismo. Do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 145-179.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Revisado
    28 Mar 2023
  • Aceito
    01 Maio 2023
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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