Acessibilidade / Reportar erro

Editorial da Seção especial – Arquitetura, redução do risco de desastres e questões de gênero em áreas urbanas informais

Special section Editorial – Architecture, disaster risk reduction and gender issues in informal settlements

Resumo

No âmbito do concurso Marielle Franco Community Design Award a universidade PUC-Rio sediou o 1º Seminário Científico Latino-americano em Questões de Risco, Arquitetura Humanitária e Gênero, que está na origem da coleção de artigos reunidos para esta seção especial. Este encontro, de fala portuguesa e castelhana, de países europeus, africanos e latino-americanos, teve como fio temático condutor expressões materiais e imateriais do direito à cidade: ações comunitárias voltadas para redução dos riscos, melhorias do espaço público, das infraestruturas e da moradia. Na linha do concurso Marielle Franco Award que premeia arquitetos humanitários, o seminário encorajou o debate sobre questões de gênero e o papel das mulheres. Das suas lutas pela família, moradia adequada, segurança, higiene e privacidade, combate à discriminação, direito à igualdade de oportunidades, à participação política, à autonomia econômica, à educação, ao envolvimento no planejamento, desenho, produção, uso e ocupação do espaço urbano. As comunicações tiveram como pano de fundo os ODS – objetivos de desenvolvimento sustentável, em particular, os que se relacionam com a erradicação da pobreza, mitigação das desigualdades, reforço da sustentabilidade, da segurança e da resiliência urbana. Outros referentes foram o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, o Quadro de Sendai para a redução de risco de desastres e o Manifesto pelo Direito das Mulheres à Cidade. O presente artigo discute a temática a partir de seu quadro conceitual e prático do desenvolvimento internacional, preenchendo as lacunas identificadas pelos autores e artigos selecionados.

Palavras-chave:
Arquitetura humanitária; Risco de desastres; Resiliência comunitária; Prêmio Marielle Franco para arquitetos comunitários; O papel das mulheres

Abstract

Within the framework of the Marielle Franco Community Design Award competition, the PUC-Rio university hosted the 1st Latin American Scientific Seminar on Issues of Risk, Humanitarian Architecture and Gender, which resulted in the collection of articles gathered for this special section. This Portuguese and Castilian-speaking meeting of European, African, and Latin American countries had as a guiding theme material and immaterial expressions of the right to the city: community actions aimed at reducing risks, improving public spaces, infrastructure and housing. In line with the Marielle Franco Award that rewards humanitarian architects, the seminar encouraged the debate on gender issues and the role of women. From their struggles for the family, adequate housing, security, hygiene and privacy, combating discrimination, the right to equal opportunities, political participation, economic autonomy, education, and involvement in the planning, design, production, use and occupation of urban space. The communications had as a background the SDGs – Sustainable Development Goals, in particular, those related to eradicating poverty, mitigating inequalities, strengthening sustainability, security and urban resilience. Other referents were the Paris Agreement on Climate Change, the Sendai Framework for Disaster Risk Reduction, and the Manifesto for Women's Right to the City. This article discusses the seminary themes within the conceptual and practical framework of international development, bridging the gaps identified by the selected authors & papers.

Keywords:
Humanitarian architecture; Disaster risk; Community resilience; Marielle Franco Community Design Award; The role of women

Editorial da seção especial

Pesquisadores e professores de diversas instituições, entre as quais o CIAUD, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a Universidade Internacional da Catalunha (através do Master on Sustainable Emergence Architecture), a Universidade Federal Fluminense e ainda a Universidade da Beira Interior (Portugal) somaram-se à ONG Building 4Humanity (com sede na cidade de Coimbra, em Portugal) para organizar o 1º Seminário Científico Latino-americano em questões de Risco, Arquitetura Humanitária e Gênero, no âmbito do evento Marielle Franco Community Design Award #2nd edition. A PUC-Rio, através do Departamento de Ciências Sociais, onde Marielle Franco se graduou, sediou o seminário que está na origem da coleção de artigos reunidos para esta edição especial sob o tema Arquitetura Humanitária e Urbanização de Favelas: Risco, Resiliência e Questões de Gênero.

Findas as duas primeiras décadas do século XXI, a população mundial, e em particular a população das grandes cidades, continua em acentuado crescimento, com algumas tendências preocupantes. A incapacidade de absorver os sucessivos movimentos migratórios, externos e internos, tem conduzido a que parte significativa dos que chegam às cidades, sobretudo às grandes metrópoles, acabe se fixando em moradias precárias em áreas das periferias. Com frequência, estas áreas são interstícios urbanos subinfraestruturados, em que a falta de serviços urbanos básicos é a regra. Nestes conjuntos urbanos constituídos fora do sistema de planeamento, o risco de desastres é mais elevado: por um lado, devido à ocupação de áreas geologicamente instáveis e impróprias para a edificação; por outro, pela ausência de políticas públicas de redução do risco, preparação dos desastres e construção de resiliência comunitária. Os habitantes destas áreas dispõem de baixa renda, fracos níveis de instrução e incluem segmentos vulneráveis da população, como idosos, mulheres e crianças, ou outros excluídos, como refugiados, LGBTQ+, quilombolas, ciganos e outros grupos étnico-raciais minoritários.

Este encontro de fala portuguesa e castelhana de países europeus, africanos e latino-americanos, teve como fio temático condutor expressões materiais e imateriais do direito à cidade. Nomeadamente, melhorias do espaço público, das infraestruturas e da moradia, ações comunitárias voltadas para o bem-estar e qualidade de vida das populações, tal como defendido pela Organização Mundial de Saúde (1996).

Fortemente identificado com os pressupostos do concurso mundial Marielle Franco community Design Award, que premia arquitetos humanitários (Martins, Hobeica e Hobeica 2021Martins, A. N., Hobeica, L., & Hobeica, A. (2021). Women-led humanitarian architecture in disaster-prone environments: Learning from the Marielle Franco Community-Design Award. International Journal of Disaster Risk Reduction. http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.102250.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.1...
), de que se pode considerar um desdobramento, o seminário encoraja o debate sobre questões de gênero e o papel das mulheres. Das suas lutas pela família, moradia adequada, segurança, higiene e privacidade, combate à discriminação, direito à igualdade de oportunidades, à participação política, à autonomia econômica, à educação, ao envolvimento no planejamento, desenho, produção, uso e ocupação do espaço urbano.

Tem-se, como pano de fundo, as linhas universalizadas pelas Nações Unidas e comunidade internacional. O destaque vai para os ODS – objetivos de desenvolvimento sustentável (2015). Em particular, os que se relacionam com erradicação da pobreza, mitigação das desigualdades, reforço da sustentabilidade, segurança e resiliência urbana. Igualmente importantes, o acordo de Paris sobre as alterações climáticas (2016)Acordo de Paris (2016). Recuperado de https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX: 22016A1019(01)
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/...
, o Quadro de Sendai para a redução de risco de desastres (2015) e o Manifesto pelo Direito das Mulheres à Cidade (de 2019, assinado por diversas agências internacionais, entre as quais o Gender HUB UNI do UN-Habitat). Sem uma definição rigorosa de fronteiras, uma vez que pela sua natureza os diferentes tópicos propostos pelo seminário amiúde se intersectam, os artigos focam: (1) Melhoria habitacional e do espaço público, com ênfase no papel de mulheres da comunidade; processos de emancipação feminina e envolvimento comunitário na urbanização de favela e autoconstrução (e.g. o artigo Design e autonomia: experiências coletivas de participação popular no Morro do Papagaio); Incremental housing (vulgo construção de laje ou puxadinho, como usado nas comunidades brasileiras) (e.g. o artigo Re-thinking Elemental’s incremental housing: Residential Satisfaction and resident-driven adaptations in Villa Verde, Chile) e alargamento de becos e vielas como estratégia de redução de risco de desastre, saúde, bem estar e segurança pública via programas públicos, iniciativas comunitárias ou particulares (e.g. texto Análise da exploração imobiliária de autoconstruções em áreas degradadas: Favela Nova Jaguaré); (2) Direito(s) na cidade e espaços de diversidade: o papel e demandas de minorias (afro-brasileiros, indígenas, quilombolas, imigrantes, refugiados, ciganos e LGBT+) na configuração de áreas precárias e de favelas (e.g Resistência urbana pelas imagens. Duas experiências no Bairro da Torre); (3) O papel de arquitetas/os e equipes mistas de ONG’s nas favelas: Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social; formalidade versus informalidade; relação saúde e bem-estar da família-ambiente construído (e.g. Da geotecnia para a gestão participativa: uma análise crítica de projetos de extensão universitária com foco na redução de risco de desastre); (4) Geografias da saúde, do risco, adaptação às alterações climáticas e o uso de novas tecnologias: saúde saneamento, água potável, gestão de resíduos, censo social, mapeamento colaborativo, sistemas de informação e aplicativos para celular na urbanização de favelas, na reforma de casas, segurança pessoal dos moradores (e.g. Rural-urban Moatize: water harvesting design strategies to enable community-driven development e Da geotecnia para a gestão participativa: uma análise crítica de projetos de extensão universitária com foco na redução de risco de desastre); (5) O papel da Universidade na construção de uma cidade mais igualitária: capacitação e circulação de conhecimentos; alianças e ações colaborativas entre grupos de pesquisa, movimentos sociais urbanos e associações de moradores (e.g. Pedagogia sócio-espacial: uma abordagem por meio dos Jogos e Design e autonomia: experiências coletivas de participação popular no Morro do Papagaio).

Recorde-se que um quarto da população mundial vive em áreas carentes de infraestrutura nas franjas urbanas e periferias das grandes cidades. Favelas, tugurios, bairros de lata, bairros precários, continuam a crescer em toda a América Latina e nos subúrbios de cidades da Europa do Sul ou Mediterrânica, nos quais todos os dias chegam imigrantes e refugiados de países e continentes mergulhados em crises humanitárias de origem diversa. Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 5 milhões de domicílios no Brasil estão situados em assentamentos informais: favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, loteamentos ilegais, mocambos e palafitas. Nestes assentamentos, a vulnerabilidade de pessoas e moradias é muito alta, portanto, quando um evento extremo atinge estas áreas, o impacto é inescapavelmente forte, originando uma série de desastres (Woisner, 2014). As mudanças climáticas e os riscos naturais associados, bem como conflitos armados, fome, perseguições políticas ou religiosas, levaram a um influxo em massa de pessoas deslocadas e refugiados em todo o mundo. Sua vulnerabilidade é ainda maior devido à extrema falta de acesso à terra, financiamento e abrigo (Cities Alliance, 2004Cities Alliance (2004). Integrating the poor: Urban upgrading and land tenure regularisation in the City of São Paulo: Integrando os pobres: Urbanização e regularização fundiária na cidade de São Paulo. Cities Alliance. Retrieved from https://documents1.worldbank.org/curated/en/332791468228924248/pdf/481420WP0i nteg10Box338889B01PUBLIC1.pdf
https://documents1.worldbank.org/curated...
).

Para lidar com a escassez de moradias, os governos dos países emergentes empreenderam programas habitacionais em larga escala. Apesar dos massivos realojamentos, a questão habitacional não se apresenta aliviada, antes agravada pelos sucessivos fracassos desses programas; sendo o Minha Casa Minha Vida o maior e emblemático. Lançado no Brasil em 2009, ajudou a concretizar a aspiração de casa própria a vários milhões de famílias e através de oferta de moradia a preços e subsídios diretos. Traduziu-se, contudo, numa (de)ilusão para parte considerável dos beneficiários. Realojados de forma anônima, burocrática, em casas estandardizadas em áreas distantes dos centros urbanos das cidades, onde estão os postos de trabalho, (Biderman et al., 2018Biderman, C. H., Hiromoto, M. H., & Ramos, F. R. (2018). The Brazilian Housing Program Minha Casa Minha Vida: Effect on Urban Sprawl., Lincoln Institute of Land. Retrieved from Policyhttp://www.cepesp.io/uploads/2019/03/biderman_wp18cb2_0.pdf
http://www.cepesp.io/uploads/2019/03/bid...
) muitos regressaram à favela de origem, ou ocupando outras áreas nas franjas sobrantes, para poderem manter seus empregos e rede social. À margem do sistema de ordenamento territorial vigente, os moradores de áreas informais encontram no sistema de construção e reconstrução em sistema de autoajuda, ou autoajuda assistida a respostas para as suas demandas de quantidade e qualidade. Nos assentamentos de grande precariedade e exposição ao risco de desastres, o incremental housing (Nohn & Goethert, 2017Nohn, M., & Goethert, R. (Editors) (2017). Growing up! The search for High-density Multi-Story Incremental Housing. SIGUS-MIT & TU Darmstadt. Retrieved from https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/6646/
https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/664...
) o tradicional puxadinho, ou construção de laje (Martins & Saavedra, 2020Martins, A. N., & Saavedra, J. (2019). Inclusive Sustainability in Slum Upgrading and Incremental Housing. The case of Rocinha, in Rio de Janeiro. Sustainable Development Journal, 7(Special Issue):205-213.), tem florescido e ganhado foros de boa prática (Nohn & Goethert, 2017Nohn, M., & Goethert, R. (Editors) (2017). Growing up! The search for High-density Multi-Story Incremental Housing. SIGUS-MIT & TU Darmstadt. Retrieved from https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/6646/
https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/664...
, Martins & Saavedra, 2020).

Essa dinâmica positiva de aumento e melhoramento das moradias em comunidades tem contribuído para a progressiva implementação prática e reconhecimento legal da assistência técnica, um mecanismo normativo específico da realidade brasileira. Graças ao impulso, ainda que por vezes quase simbólico, de projetos de ONGs, o apoio a residentes das comunidades de baixa renda, sobretudo as mais bem organizadas, vem crescendo, desempenhando um papel relevante na redução dos riscos e aumento da capacidade de resposta aos eventos climatéricos extremos (Martins & Rocha, 2019Martins, A., & Rocha, A. (2019). Risk and resilient architectural practices in informal settlements – the role of NGOs. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, 10(4), 276-288.). As pesquisas dos articulistas desta seção especial concentram-se, por um lado, na área da chamada Arquitetura humanitária (Martins et al., 2020Martins, A. N., Hobeica, L., Hobeica, A., & Colacios, R. (2020). Lessons for Humanitarian Architecture Practice and Education through design contests - the case of the Building 4Humanity Design Competition. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier.), uma prática exercida em contextos de crise; por outro, focam intervenções multidisciplinares em assentamentos de grande precariedade e exposição ao risco de desastres. Na linha de um seminário que na sua primeira edição rompeu fronteiras temáticas e de representatividade social e de gênero, com presença de destacadas lideranças e de mulheres, e uma vez que o espaço urbano não é neutro, importa dar visibilidade ao papel e a experiência das mulheres nos processos de urbanização de favelas, de simples melhorias habitacionais ou ocupação do espaço público.

As abordagens reunidas nesta edição, singular no debate arquitetônico e urbanístico dominante, destacam a redução de riscos de desastres e a construção de resiliência como ferramentas operacionais, contando com métodos tradicionais de projeto e reconstrução mas também com tecnologias digitais e instrumentos de inovação social. Entre eles, o codesenho, os laboratórios informais colaborativos e o (co)mapeamento, tal como é ilustrado nos textos Pedagogia sócio-espacial: uma abordagem por meio dos Jogos e Design e autonomia: experiências coletivas de participação popular no Morro do Papagaio.

A partir de projetos de extensão universitária, alguns dos estudos aqui compilados sublinham os vínculos com comunidades locais, envolvidas nas etapas de diagnóstico, projeto, desenvolvimento e monitoramento. Colocando ênfase nos processos e não nos produtos, as pesquisas revelam a dimensão política da Arquitetura, da urbanização de favela, ou redução do risco. Seja através de organizações não governamentais ou grupos informais, constituídos quase sempre por mulheres, os projetos reclamam o direito à cidade na ampla acepção de Lefebvre. Através de ações coletivas que se traduzem em pequenas mudanças, os projetos de redução de risco se multiplicam, tornando-se transformadores, rumo à construção de resiliência das comunidades. O objetivo de muitas destas ações é duplo: por um lado, facilitar o processo de construção e redução de risco de desastres, apresentando uma gama alargada de soluções; por outro, sensibilizar para uma construção mais saudável, segura e resiliente, envolvendo moradores em práticas relacionadas com a arquitetura. Diversas abordagens apresentam ferramentas de inovação social, salientando-se o papel das mulheres, as dinâmicas de grupo, o mapeamento e o design comunitários.

Como principais questões pendentes, os artigos apresentam um escasso alinhamento, ou confrontamento, com os acordos internacionais que supostamente orientam a ação humanitária e sustentável. São exemplos o referido Quadro de Sendai (SFDRR), o Quinto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e a Agenda 2030 e suas prioridades interligadas. Valeria a pena em futuros encontros científicos, colocar como quadro de fundo os Objetivos do Desenvolvimento (SDG), nomeadamente o 11, Segurança, Resiliência e Sustentabilidade em Assentamentos Informais e Desastres (metas 11.1, 11.5); impactando favelas e moradias inadequadas (11.1.1, 11.5.1, 11.5.2); e o objetivo 13, Resiliência, Riscos Naturais e meta 13.1, impactando a adoção do SFDRR. Os impactos associados ao crescente número de moradores de favelas, sem acesso a serviços básicos e infraestrutura, são exacerbados pelas mudanças climáticas e pelo aumento da vulnerabilidade a desastres. Assim, o trabalho sobre Ação Climática terá um impacto positivo no Objetivo 11, daí a importância de uma visão integrada e avaliação correlacionada de impactos das iniciativas, sobretudo quando tenham uma escala urbana.

Para uma clarificação das metas desta edição especial, importa aludir a alguns conceitos subsidiários que podem servir de alicerces do edifício da arquitetura humanitária e selecionar alguns autores, publicações e eventos que são cruciais para estruturá-lo. Esses conceitos emergem a partir das leituras e eventos que focam esta prática arquitetônica. Ainda que esta interpretação possa ser controversa, verificamos que conferências e concursos líderes, como a International Conference on Building Resilience (baseado na Universidade de Huddersfield) e o DRIA - International Research Programme (baseado na Universidade de Singapura), têm como fio condutor o conceito de resiliência. Seria então a resiliência uma característica distintiva da arquitetura humanitária? Talvez. Com efeito, a resiliência nas comunidades é uma dinâmica positiva e atitude resultante de projetos em que os arquitetos despem o seu uniforme de designers absolutos, e pretensamente autossuficientes, para engajar os usuários ao ponto de com eles partilhar o seu papel na conceção e edificação. Este novo posicionamento, de plena abertura e diálogo, por parte de quem projeta traduz-se num reforço das capacidades de reação aos eventos extremos e preparação para o risco de desastres por parte das comunidades com as quais trabalham (Carracedo, 2021Carracedo, O. G. V. (2021). Resilient Urban Regeneration in Informal Settlements in the Tropics, Upgrading Strategies in Asia and Latin America. Springer. 10.1007/978-981-13-7307-7.
https://doi.org/10.1007/978-981-13-7307-...
). Resiliência e risco apresentam-se assim como duas ideias-chave, intrinsecamente ligadas, que permeiam a arquitetura de feição humanitária. Na verdade, para um número cada vez maior de pesquisadores e profissionais que vêm adotando esta noção. Ela não se esgota numa prática de emergência strictu sensu. Antes, expande-se através de um exercício multidisciplinar em cenários de ajuda humanitária, como pós-desastres, mas também em regiões propensas a desastres, cenários de conflitos armados, de refugiados, territórios de extrema pobreza, bairros carentes e assentamentos informais, ou seja, comunidades vulneráveis e expostas ao risco.

Em resumo, a arquitetura humanitária sintetiza a atividade realizada por arquitetos individualmente, em conjunto com outros profissionais de diferentes formações ou engajados em ONG’s voltadas para os mais necessitados. Uma atividade dirigida, portanto, para aqueles que em circunstâncias normais de contratação não podem arcar financeiramente nem com o trabalho de projeto nem com a intervenção de arquitetos na construção (Till, 2009Till, J. (2009). Architecture Depends. Boston: MIT Press.). Não existe de forma regulamentada a profissão ou carreira de arquiteto humanitário, uma vez que há apenas uma formação básica e uma estrutura profissional. Não podem então os profissionais que atuam nestas difíceis circunstâncias serem reconhecidos como arquitetos humanitários? Talvez sim, quando desempenham um papel na preparação, reconstrução após desastres, planejamento, projeto e construção em regiões em desenvolvimento ou melhoria de favelas, melhorias habitacionais e extensões ou processos de realocação. Diferentemente do tradicional arquiteto-designer e construtor, esse papel implica uma responsabilidade social acrescida e o envolvimento numa gama diversificada de tarefas no terreno, como a prestação de assistência nos processos de autoconstrução. De fato, a arquitetura humanitária se assenta numa prática que encerra o ambiental, social, cultural e econômico, ou seja, a tríade da sustentabilidade, e lida com a noção de risco de desastres e resiliência (Martins et al. 2019; 2020Martins, A. N., Hobeica, L., Hobeica, A., & Colacios, R. (2020). Lessons for Humanitarian Architecture Practice and Education through design contests - the case of the Building 4Humanity Design Competition. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier.; 2021Martins, A. N., Hobeica, L., & Hobeica, A. (2021). Women-led humanitarian architecture in disaster-prone environments: Learning from the Marielle Franco Community-Design Award. International Journal of Disaster Risk Reduction. http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.102250.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.1...
).

Neste sentido, risco e resiliência representam para o arquiteto preocupações tão ou mais importantes que a estética e os resultados físicos e tectônicos. Nesse sentido, os arquitetos humanitários devem considerar os recursos locais, as necessidades imediatas, mas também as de longo prazo das pessoas, ou seja, suas aspirações, nos termos de Nabeel Hamdi, professor da Universidade College of London e referência da área da ajuda humanitária (Hamdi, 2004). É ainda suposto que promovam o envolvimento da comunidade na urbanização de favelas, melhorias habitacionais e extensões das moradias (habitação incremental ou incremental housing), redução de risco, abrigo de emergência, e nos processos de realocação (Martins et al., 2020Martins, A. N., Hobeica, L., Hobeica, A., & Colacios, R. (2020). Lessons for Humanitarian Architecture Practice and Education through design contests - the case of the Building 4Humanity Design Competition. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier.; Tauber, 2015Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing.; Aquino, 2011Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson.).

Novos desafios sociais relacionados com o aquecimento global colocam-se aos arquitetos. Nenhum profissional do ambiente construído pode ficar indiferente a esse movimento global consubstanciado no acordo de Paris e relatórios associados do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas. Assim, a Arquitetura é chamada não só a se engajar no debate, mas também a desempenhar um papel significativo na resposta global e operativa ao nível do edifício e do urbano. Como aconteceu ao longo dos tempos, a arquitetura pode ser repensada a partir de abordagens teóricas, da discussão e do questionamento da sua essência. Mas, inevitavelmente, deve abranger o lado prático de uma atividade humana milenar; ou seja, deve abordar a adaptação às mudanças climáticas através da proposição de estratégias de projeto e construção. Entre elas, destaca-se o simples enraizamento da arquitetura na cultura arquitetônica local. De certa forma, em um determinado tempo, a criação de arquitetura sempre consistiu em combinar dois desafios complementares: (1) descobrir novas maneiras de usar materiais e sistemas construtivos recém-disponíveis; e (2) moldar novas formas de construção sobre os tipos de edificação locais. Como continuar esse compromisso de buscar a inovação e a perfeição em um tempo em que o materialismo supera a dimensão espiritual e o bem comum é substituído nos pequenos gestos do dia a dia pela autoindulgência? Diante do risco de desastres e das mudanças climáticas, a arquitetura está pronta para ceder e se inscrever em um esforço coletivo para salvar vidas, eventualmente toda a civilização, mesmo ao preço de uma eventual descaracterização?

Uma arquitetura resiliente e preocupada com o risco, baseada em um processo de construção de baixa energia primária e emissões e com forte uso de materiais locais, é um autêntico desafio societal. É incontornável a significativa de gases de efeito de estufa associada ao setor de construção bem como o papel desempenhado por edifícios mal construídos em exacerbar, e criar, risco de desastres. Neste quadro, pode-se identificar numa arquitetura adaptada às alterações climáticas e voltada para o humanismo, principalmente em regiões propensas a desastres, conflitos armados e áreas carentes, uma renovada expressão do direito à cidade lefebvriano. O caminho a seguir é implicitamente anunciado por autores-acadêmicos e arquitetos preocupados tanto com a profissão quanto com as comunidades vulneráveis. A arquitetura de pendor humanitário forja-se, portanto, num cruzamento de fronteiras disciplinares em direção a uma abordagem de projeto abrangente, inclusiva e agregadora. O fluxo de ideias e a busca da beleza no design e na construção, aliados à estabilidade e utilidade, devem estar no centro de qualquer redefinição, reformulação ou tentativa audaciosa de reinvenção da profissão de arquiteto. Caso contrário, o próprio núcleo da arquitetura estaria em risco.

Os concursos de projetos arquitetônicos oferecem uma oportunidade única para estudantes e profissionais usarem suas competências para abordar o risco e a resiliência. O que está em jogo nessas competições é testar novas ideias enquanto se discutem as possibilidades de uma arquitetura de consciência, para as diversas crises (Aquino, 2011Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson.). Estar atento às necessidades das pessoas vulneráveis, à exposição e suscetibilidade ao risco de desastres, à resiliência e a questões climáticas coloca os arquitetos e aqueles ao seu redor em uma posição não neutra, pois tendem a estabelecer uma forte ligação com as pessoas atendem. Isso favoreceu designers e humanitários, habituados a trabalhar separadamente, a eventualmente encontrarem, e explorarem, ferramentas de comunicação e formas de cooperação (Sandman e Suomeli, 2020Sandman, H., & Suomela, M. Probing for resilience: exploring design with empathy in Zanzibar, Tanzania. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier., 10.1016/B978-0-12-819078-4.00008-3.
https://doi.org/10.1016/B978-0-12-819078...
).

Importa clarificar que a resiliência é um fenômeno multidimensional, conectando a dimensão social, econômica, institucional e psicológica, envolvendo ainda a infraestrutura física. Sendo um processo que gera dinâmicas de adaptação, assume-se como vital para reduzir a vulnerabilidade de pessoas e lugares (Klein et al., 2003Kleina, R. J. T., et al (2003). Resilience to natural hazards: how useful is this concept? Environmental Hazards, 5, 35-45.). A resiliência comunitária em contextos marcados pela precariedade e por desigualdades acentuadas é uma condição coletiva de superação e enfrentamento de desastres e situações de grande adversidade (Ojeda, La Jara, Marques, 2007Ojeda, E., La Jara, A., & Márquez, C. (2007). Resiliência Comunitária. In: Hoch, L., & Rocca, S., eds Sofrimento, resiliência e fé: Implicações para as relações de cuidado (pp. 33-56). Sinodal.). Esta condição é tanto mais importante no contexto de uma sociedade do risco que implica no conceito de reflexividade e autoprodução humana das causas subjacentes às situações extremas e aos desastres (Mendes e Tavares, 2011Mendes, J. M., & Tavares, A. O. (2011). Risco, vulnerabilidade social e cidadania, Revista Crítica de Ciências Sociais, (93):5-8.). Com efeito, os riscos e ameaças na atualidade, muito marcados pela incerteza e imprevisibilidade enquadram-se no processo de globalização, resultando de causas ligadas à modernidade, do processo industrial e do progresso, e agravados pelas suas consequências (Beck, 1992Beck, U. (1992). Risk Society. London, UK: Sage.).

A partir de uma postura humanitária compartilhada, diferentes profissionais tendem a adotar posições de advocacia adotadas pelas ONG’s para as quais prestam serviço, de forma permanente ou temporária. A literatura científica, nomeadamente os estudos de caso analisados pelos articulistas, revelam o potencial das abordagens orientadas para a comunidade através do design com empatia e uma arquitetura de envolvimento. Essas abordagens envolvem responsabilidade e participação da comunidade em todo o processo, desde o levantamento técnico, ao cadastro social (Martins e Rocha, 2019Martins, A., & Rocha, A. (2019). Risk and resilient architectural practices in informal settlements – the role of NGOs. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, 10(4), 276-288.), até a avaliação, projeto, construção e conservação ativa.

Para a revisão da literatura desta temática, alguns livros são relevantes: Beyond Shelter, architecture for crisis, de Marie J. Aquino (2011)Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson.; Humanitarian Architecture, 15 stories of architects working after disaster, de Esther Charlesworth (2014)Charlesworth, E. (2014). Humanitarian Architecture: 15 Stories of Architects Working Afer Disaster. New York: Routledge.; Design like you give a damn, Architecture for Humanity; de Cameron Sinclair (2012)Sinclair, C. (2012). Design like you give a damm. Edited by Architecture for Humanity. Abrams.; with the other 90%, Designing Inclusive cities, de Cynthia Smith (2011)Smith, C. (2011). Design with the other 90%, Designing Inclusive cities. New York: Cooper-Hewitt, National Design Museum., e ainda Architects and Post-disasters Housing, de Gertrud Tauber (2015)Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing.. Nestas obras são apresentados projetos pós-desastre e é analisado o envolvimento de ONG’s e agências globais e locais, sublinhando, em particular, sempre que relevante, o papel desempenhado pelos arquitetos. Em geral, retratam-se arquitetos bem-sucedidos, descrevem-se os principais elementos de suas propostas de projeto e avaliam-se realizações. Mas, ao fazê-lo, os autores não deixam de alertar para as limitações mostradas pelas novas gerações de arquitetos e os constrangimentos ao seu engajamento na resposta de emergência de modo a ter um impacto real. Os autores destes livros convergem na crítica aos atuais currículos dos cursos de graduação das escolas de arquitetura por não prepararem os arquitetos para o trabalho exigido no setor humanitário. Tauber (2015)Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing., em particular, refere-se a vários autores que nos últimos quinze anos sublinharam essa desconexão entre a teoria e a prática, ou seja, entre educação e profissão, com destaque para Ian Davis, o prestigiado consultor na área da redução de risco de desastres.

Embora não se investigue a fundo o porquê das escolas de arquitetura se revelarem tão relutantes em incorporar uma abordagem da arquitetura focada na vertente humanitária, a maioria destes autores se refere aos habituais preconceitos contra a arquitetura popular ou vernacular, ou seja, a arquitetura tradicional baseada em recursos locais. Autores como Aquino (2011)Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson. e Charlesworth (2014)Charlesworth, E. (2014). Humanitarian Architecture: 15 Stories of Architects Working Afer Disaster. New York: Routledge. identificam materiais e técnicas de construção tradicionais locais como a base para a abordagem de projeto orientada para as pessoas na qual os arquitetos, imersos em cenários pós-desastre, parecem assentar a sua prática. Com poucas exceções (como é o caso de Charlesworth na sua inventariação de arquitetos humanitários), não se referem a arquitetos que trabalham para grandes corporações ou ONG’s, mas sim àqueles independentes, integrados, ou não, em ONG’s pequenas ou locais.

Marie Aquino (2011)Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson. e Esther C. (2014) se referem a algumas escolas que oferecem formação avançada ou cursos de pós-graduação em questões relacionadas ao risco de desastres. No entanto, não detalhando essas ofertas, também não se detém a essa relação entre arquitetura humanitária e ensino. Como mencionado acima, concentram-se principalmente nas melhores práticas de um pouco por todo o mundo. Os projetos publicados pela ONG Architecture for Humanity (Sinclair, 2012Sinclair, C. (2012). Design like you give a damm. Edited by Architecture for Humanity. Abrams.), em um momento de grande crescimento de sua atividade em todo o mundo, focaram o tema do acesso ao design de qualidade a todas as comunidades via ONG’s, enfatizando o potencial transformador do bom projeto de arquitetura No caso do Design para os 90%,Smith (2011)Smith, C. (2011). Design with the other 90%, Designing Inclusive cities. New York: Cooper-Hewitt, National Design Museum. nos oferece uma perspectiva a partir da academia em um dos capítulos. O trabalho de campo e de extensão desenvolvido por Christian Wertmann com seus alunos de arquitetura paisagista da Universidade de Leibniz-Hannover no Brasil (São Paulo), sugere uma série de propostas selecionadas por meio de um concurso interno de ideias. A análise de Werthman, como líder da equipe de alunos, exemplifica como as ideias disruptivas surgidas durante a visita ao local e desenvolvidas ao longo de um semestre podem contribuir com visões singulares para aprofundar a discussão entre os moradores locais e as agências de moradia, bem como desencadear iniciativas populares.

Outra fonte interessante para o estudo da arquitetura humanitária são artigos recentes de revistas e capítulos de livros que abordam o papel desempenhado pelos arquitetos na recuperação pós-desastre e a própria definição de arquitetura humanitária. Na primeira categoria pode ser incluído o livro de Tauber (2015)Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing., que numa breve revisão da literatura defende o papel dos arquitetos com base em entrevistas a atores locais na região do Pacífico em aldeias devastadas pelo tsunami de 2004. Incluída na segunda categoria, Liz Brogden (2019)Brogden, L. (2019). Sustainability, design futuring, and the process of shelter and settlements. In: Asgary, A., ed Resettlement challenges for displaced populations and refugees (pp. 1-14). Springer., no seu capítulo Sustainability, Design Futuring, and the Process of Shelter and Settlements, do livro “Resettlement challenges for displaced populations and refugees”, de Aly Asgary, aborda questões semânticas e sugere um enquadramento para a arquitetura humanitária. Nesta mesma linha, mas enquadrado na categoria de comunicações, A. Nuno Martins, em artigo apresentado no 5º ICBR, em 2016, explora as diferenças entre uma abordagem convencional e uma abordagem humanitária da arquitetura e delineia um conjunto de princípios para uma prática profissional de arquitetura de face humanitária. Liz Brogden (2019)Brogden, L. (2019). Sustainability, design futuring, and the process of shelter and settlements. In: Asgary, A., ed Resettlement challenges for displaced populations and refugees (pp. 1-14). Springer. aponta precisamente a escassez de profissionais bem-preparados devido à concepção errônea dos currículos dos cursos de projeto de arquitetura. Como lembra Brogden (ibid), em diferentes autores, como Ian Davis, David Sanderson, Marie Aquino e Chalersworth, ressoa a ideia de um arquiteto que deveria se desprender do objetivo de deixar marca pessoal como designer e assumir, sempre que indicado, um papel intermediário, atuando como facilitador. Recorda também que estes autores apontam para a falta de arquitetos qualificados decorrente da não preparação dos alunos de arquitetura acerca de contextos pós-catástrofe.

Charlesworth (2014)Charlesworth, E. (2014). Humanitarian Architecture: 15 Stories of Architects Working Afer Disaster. New York: Routledge. enfatiza os vários campos em que o olhar da arquitetura de raiz humanitária é atualmente necessário, e que vai muito além dos contextos de emergência pós-desastre, compreendendo diversos tipos de projetos voltados para comunidades vulneráveis. Neste campo, inclui a urbanização de favelas, os campos de refugiados, projetos para deslocados internos e pessoas desfavorecidas. Arquitetura socialmente engajada, arquitetura de interesse público, arquitetura social e agendas ativistas do design são ainda outras tentativas de aprofundar a distinção da arquitetura humanitária, que, no entanto, ainda não reúnem um consenso universal (Charlesworth, 2014Charlesworth, E. (2014). Humanitarian Architecture: 15 Stories of Architects Working Afer Disaster. New York: Routledge.). Brogden (2019)Brogden, L. (2019). Sustainability, design futuring, and the process of shelter and settlements. In: Asgary, A., ed Resettlement challenges for displaced populations and refugees (pp. 1-14). Springer. faz sua própria tentativa de definir esta nova categoria avançando com design para situações de crise, embora sublinhe a dificuldade de se chegar ao dito consenso. Por seu lado, Wageman e Rageman (2013) procuram entender as ligações entre a prática em cenários de desastres e outros contextos comparáveis ​​marcados pela escassez de recursos e pressão para a construção rápida com base em materiais locais e sistemas de transporte.

Martins e Guedes (2016), por sua vez, analisam ferramentas utilizadas em pesquisas de campo no Brasil e na África. À luz dos resultados positivos do trabalho conjunto de diferentes especialistas, recusam a amálgama da arquitetura com outras áreas do conhecimento em detrimento da arquitetura como uma disciplina baseada no design, o qual seria incapaz de coabitar com outros campos de pesquisa e ação. Pelo contrário, defendem uma abordagem transdisciplinar que amplie o espectro da arquitetura, reconhecendo a importância de fomentar ferramentas de tradução para melhorar a comunicação entre os profissionais e entre estes e os atores locais. Eventualmente, esses autores elencam um conjunto de princípios e tópicos para uma prática arquitetônica humanitária e sustentável: a redução do risco de desastres, as minorias vulneráveis, questões de gênero e o papel da mulher, ferramentas de inovação social, nomeadamente o uso de mapeamento e desenho colaborativo nas comunidades locais, bem como o uso do conceito de tipo edilício, o patrimônio cultural, o bem-estar e a qualidade de vida.

Estas diferentes peças de literatura científica estimulam uma reflexão sobre a essência de uma arquitetura que pode ser cunhada como humanitária. Nesse sentido, trazem-nos boas referências para compreender diferentes processos e roteiros e realizações, mas não preenchem a lacuna entre os objetivos dos conteúdos de design e a consolidação de uma prática emergente associada às crises sociais, ambientais e a eventos extremos. Os autores citados chamam a atenção para casos de retirada maciça de pessoas de locais de realocação. A falta de engajamento no processo de projeto e construção terá conduzido à subestimação de fatores vitais, como a preservação de meios de subsistência e estilos de vida. Em outros casos, a rejeição às novas moradias está associada a uma insatisfação com as moradias fornecidas, seja pela administração local, pelas ONG’s, pela fundação ou pelos organismos internacionais. Na maioria dos casos, há uma repetição até a exaustação de modelos habitacionais, concebidos sem investigação prévia sobre os tipos edilícios associados a uma cultura arquitetônica local. Com frequência, trata-se de unidades pré-fabricadas que não asseguram os padrões locais de conforto térmico e que subestimam ou simplesmente ignoram práticas, por vezes ancestrais, de proteção (ou adaptação) da água e exposição ao risco. Mal concebidas e construídas, essas unidades habitacionais acabam por representar uma espécie de segundo desastre (Tauber, 2015Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing.).

Em conclusão, nos exemplos de processos de recuperação ou reconstrução após desastres ou deslocamentos, a falta de preparação dos arquitetos é apenas um dos vários fatores que explicam os repetidos fracassos. O insucesso nas operações de risco de desastres pode assim estar ligado à incapacidade de as escolas de arquitetura ou de os conselhos profissionais educarem e treinarem arquitetos para trabalhar e prosperar em cenários de crise. Nesse quadro muito desequilibrado, os projetos de extensão universitária relatados pelos articulistas desta seção especial, focada em risco e resiliência, podem ser vistos como uma oportunidade para estudantes e profissionais se testarem quanto às competências necessárias para entrar no setor de ajuda humanitária e conseguir êxito.

Um bom projeto é por princípio um projeto sustentável. Isso pressupõe conhecimentos em áreas tão diferentes como redução de risco de desastres, resiliência comunitária, justiça social e ambiental, equidade de gênero, patrimônio, biologia, paisagem, sociologia, psicologia, engenharia, mudanças climáticas e, claro, urbanismo e arquitetura. Mas, com tantos e vastos requerimentos, pode um bom projeto ser desenvolvido sem uma equipe multidisciplinar e um forte envolvimento das comunidades locais? Possivelmente não, e os casos de estudo ventilados nesta seção assim testemunham. Neste quadro, projetos de extensão universitária podem se tornar uma oportunidade insubstituível para desencadear as melhores ideias que os melhores arquitetos ou estudantes de arquitetura e de áreas como a sociologia, a geografia e tantas outras têm a oferecer à ciência e à prática da redução de risco de desastre. O encontro entre um problema bem formulado, com questões pertinentes e oportunas, ou seja, entre um caderno de encargos desafiador e uma equipe multidisciplinar capaz de o interpretar corretamente – que, após conhecer o local em detalhe, possa responder de forma criativa, e, finalmente, um grupo de estudiosos e profissionais experientes prontos para identificar as demandas de adequação funcional e cultural, qualidade construtiva, inovação no design e adaptabilidade climática e ao risco, trabalhando em parceria estreita com os moradores e outros interessados locais – pode tornar um projeto relevante e socialmente impactante.

Os artigos desta seção especial, sustentados por diferentes estudos de caso, contribuem para aprofundar o debate sobre os benefícios e as desvantagens dos processos de melhorias habitacionais, de redução do risco e reconstrução pós-desastre, tanto de iniciativa popular (bottom-up) como institucional (top-down). No caso de operações governamentais, as experiências reais fornecem evidências de desajustes quanto às reais necessidades imediatas e aspirações de longo termo das pessoas.

  • Como citar: Martins, A. N., Mendes, M. M., & Zuquim, M. de L. (2022). Arquitetura, redução do risco de desastres e questões de gênero em áreas urbanas informais – Editorial da Seção Especial. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, volume 14, e20220999. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20220999
  • Errata

    No artigo “Editorial da Sessão especial - Arquitetura, redução do risco de desastres e questões de gênero em áreas urbanas informais”, com o número de DOI https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20220999, publicado na urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, vol. 14, e20220999, na página 1,
    Onde se lia:
    “Editorial da Sessão especial - Arquitetura, redução do risco de desastres e questões de gênero em áreas urbanas informais”
    Lê-se:
    “Editorial da Seção especial - Arquitetura, redução do risco de desastres e questões de gênero em áreas urbanas informais”
    Onde se lia:
    “Maria de Lurdes Zuquim”
    Lê-se:
    “Maria de Lourdes Zuquim”

Referências

  • Acordo de Paris (2016). Recuperado de https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX: 22016A1019(01)
    » https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:
  • Aquino, M. J. (2011). Beyond Shelter, architecture for crisis. Thames and Hudson.
  • Beck, U. (1992). Risk Society. London, UK: Sage.
  • Biderman, C. H., Hiromoto, M. H., & Ramos, F. R. (2018). The Brazilian Housing Program Minha Casa Minha Vida: Effect on Urban Sprawl., Lincoln Institute of Land. Retrieved from Policyhttp://www.cepesp.io/uploads/2019/03/biderman_wp18cb2_0.pdf
    » http://www.cepesp.io/uploads/2019/03/biderman_wp18cb2_0.pdf
  • Brogden, L. (2019). Sustainability, design futuring, and the process of shelter and settlements. In: Asgary, A., ed Resettlement challenges for displaced populations and refugees (pp. 1-14). Springer.
  • Carracedo, O. G. V. (2021). Resilient Urban Regeneration in Informal Settlements in the Tropics, Upgrading Strategies in Asia and Latin America. Springer. 10.1007/978-981-13-7307-7.
    » https://doi.org/10.1007/978-981-13-7307-7
  • Charlesworth, E. (2014). Humanitarian Architecture: 15 Stories of Architects Working Afer Disaster. New York: Routledge.
  • Cities Alliance (2004). Integrating the poor: Urban upgrading and land tenure regularisation in the City of São Paulo: Integrando os pobres: Urbanização e regularização fundiária na cidade de São Paulo. Cities Alliance. Retrieved from https://documents1.worldbank.org/curated/en/332791468228924248/pdf/481420WP0i nteg10Box338889B01PUBLIC1.pdf
    » https://documents1.worldbank.org/curated/en/332791468228924248/pdf/481420WP0i nteg10Box338889B01PUBLIC1.pdf
  • Hamdi, N. (2013). Small Change: About the Art of Practice and the Limits of Planning in Cities. New York: Taylor & Francis.
  • Kleina, R. J. T., et al (2003). Resilience to natural hazards: how useful is this concept? Environmental Hazards, 5, 35-45.
  • Martins, A. N., Hobeica, L., Hobeica, A., & Colacios, R. (2020). Lessons for Humanitarian Architecture Practice and Education through design contests - the case of the Building 4Humanity Design Competition. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier.
  • Martins, A. N., Saavedra, J., Sulaiman, S., Burgos, M., Carvalho, M. A., & Leonídio, O. (2022). Atas do I Seminário Internacional em Risco. Resiliência e Arquitectura Humanitária; o papel das universidades, dos profissionais e das marias&marielles, ebook, CIAUD, Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, ISBN: 978-989-54741-2-7. Recuperado de https://www.seminarioarq-humanitaria-marielleaward.com/oportunidades-publicacoes e ainda em https://ubibliorum.ubi.pt/handle/10400.6/12090
    » https://www.seminarioarq-humanitaria-marielleaward.com/oportunidades-publicacoes
  • Martins, A., & Rocha, A. (2019). Risk and resilient architectural practices in informal settlements – the role of NGOs. International Journal of Disaster Resilience in the Built Environment, 10(4), 276-288.
  • Martins, A. N., & Correia, G. (2015). Incorporating Social Innovation into Humanitarian Architecture, Proceedings of the 7th i-Rec conference, University College of London.
  • Martins, A. N., Hobeica, L., & Hobeica, A. (2021). Women-led humanitarian architecture in disaster-prone environments: Learning from the Marielle Franco Community-Design Award. International Journal of Disaster Risk Reduction http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.102250
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.ijdrr.2021.102250
  • Martins, A. N., & Saavedra, J. (2019). Inclusive Sustainability in Slum Upgrading and Incremental Housing. The case of Rocinha, in Rio de Janeiro. Sustainable Development Journal, 7(Special Issue):205-213.
  • Mendes, J. M., & Tavares, A. O. (2011). Risco, vulnerabilidade social e cidadania, Revista Crítica de Ciências Sociais, (93):5-8.
  • Nohn, M., & Goethert, R. (Editors) (2017). Growing up! The search for High-density Multi-Story Incremental Housing. SIGUS-MIT & TU Darmstadt. Retrieved from https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/6646/
    » https://tuprints.ulb.tu-darmstadt.de/6646/
  • Ojeda, E., La Jara, A., & Márquez, C. (2007). Resiliência Comunitária. In: Hoch, L., & Rocca, S., eds Sofrimento, resiliência e fé: Implicações para as relações de cuidado (pp. 33-56). Sinodal.
  • Sandman, H., & Suomela, M. Probing for resilience: exploring design with empathy in Zanzibar, Tanzania. In: Enhancing Disaster Preparedness: Humanitarian Architecture and Community Resilience. Boston: Elsevier., 10.1016/B978-0-12-819078-4.00008-3.
    » https://doi.org/10.1016/B978-0-12-819078-4.00008-3
  • Sinclair, C. (2012). Design like you give a damm. Edited by Architecture for Humanity. Abrams.
  • Smith, C. (2011). Design with the other 90%, Designing Inclusive cities. New York: Cooper-Hewitt, National Design Museum.
  • Tauber, G. (2015). Architects and Post-disasters Housing, A Comparative Study in South India, transcript publishing.
  • The Global Platform for the Right to the City Manifesto pelo Direito das Mulheres à Cidade (2019). Retrieved from https://www.right2city.org/document/womens-right-to-the-city-manifesto/
    » https://www.right2city.org/document/womens-right-to-the-city-manifesto/
  • Till, J. (2009). Architecture Depends. Boston: MIT Press.
  • UN (2015). Transforming our world: The 2030 Agenda for Sustainable Development.
  • UNISDR (2015). Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015–2030
  • WHO Quality of Life Assessment Group (‎1996)‎. What quality of life? World Health Forum, 17(‎4)‎:354-356. Retrieved from https://apps.who.int/iris/handle/10665/54358
    » https://apps.who.int/iris/handle/10665/54358
  • Wisner, B., Kelman, I., & Gailliard, J. C. (2014). Hazard, vulnerability, capacity, risk and participation. In: Lopez-Carresi, A., Fordham, M., Wisner, B., Kelman, I., & Gaillard, J. C., eds Disaster management (pp. 13-22.). New York: Routledge.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022
Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua Imaculada Conceição, 1155. Prédio da Administração - 6°andar, 80215-901 - Curitiba - PR, 55 41 3271-1701 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: urbe@pucpr.br