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Theodor Adorno. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Editora Unesp, 2020. 103 pp.

Adorno, Theodor. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020. 103 pp

Theodor Adorno proferiu, em 1967, conferência para a União dos Estudantes Socialistas Austríacos, sobre o conflito social na atualidade, que se publicou em seguida ao falecimento do filósofo, no volume Escritos sociológicos i (1972). Lançado agora no Brasil pela Editora da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), como parte da Coleção Theodor Adorno, Aspectos do novo radicalismo de direita reproduz a conferência feita no dia seguinte e que se manteve inédita até há pouco. Apareceu pela primeira vez em 2019, no primeiro volume da v seção dos seus Escritos Póstumos, editados pela Suhrkamp Verlag, responsável pela publicação de sua Obra reunida.

Filósofo desconhecido, que retornara a seu país no pós-guerra, o autor começou a adquirir a condição de intelectual público em seguida ao surpreendente sucesso editorial de seu Minima moralia (1951). Beneficiou-se a obra do surto que, naquela época, viveu a literatura de aconselhamento e, aparentemente, em meio ao qual se viu arrolada pelo grande público. Estima-se que, só na Alemanha, teria vendido cerca de 120 mil exemplares, até 1989.

Adorno se deixou dilacerar entre os extremos da torre de marfim, que jamais execrou, e da intervenção na esfera pública, que o seduzia. Apesar de terminar seus dias perdido nos devidos contratempos e armadilhas (Schwarzböck, 2008Schwarzböck, Silvia. (2008), Adorno y lo politico. Buenos Aires, Prometeo., pp. 99-156; Adorno [1969] 2010b, pp. 409-415), o pensador desejava a liberdade bem desafiadora que é a de mover-se de maneira produtiva entre um e outro (Jäger, 2004Jäger, Lorenz. (2004), Adorno: a political biography. New Haven, Yale University., pp. 151-175).

Sabe-se que ele submeteu à crítica impiedosa a indústria cultural e o ativismo político irrefreado, mostrando a afinidade de seus respectivos esquemas ideológicos, seu papel no rebaixamento do pensamento, senão seu perigo para a procura da vida justa. Mas serviu-se dos contatos com os meios artísticos, escolares e profissionais e explorou a imprensa, o rádio e a televisão, para promover o esclarecimento e “comentar questões tomadas da atualidade e da história contemporânea” (Müller-Doohm, 2004Müller-Doohm, Stefan. (2004), Adorno: une biographie. Paris, Gallimard., p. 381).

Prova do cunho improvisado da externalização de suas ideias que essas manifestações muitas vezes tiveram necessariamente de assumir se encontra na conferência cuja publicação ora se comenta. Julgada extremamente oportuna, pelos afoitos interessados em ter bom patrocínio para entender os atuais avanços do extremismo de direita na Europa e América, a obra chegou a ser fenômeno literário na Alemanha e foi rapidamente traduzida nos principais idiomas ocidentais. Será, porém, que é mesmo o caso para tanto? Terá este texto ligeiro de 1967 muito a esclarecer sobre os fenômenos em curso no mundo pós-1989?

Resumidamente, Adorno se propõe na peça a analisar o retorno ao proscênio dos movimentos radicais de direita, verificado no seu país em meados dos anos 1960. Parte ele da premissa de que, apesar da catástrofe vivida ao final da Guerra, os velhos apoiadores do fascismo e seus sucessores se mantiveram, posteriormente, espalhados por todas as camadas da população (Adorno, 2020, p. 48). O regime nazista colapsara, mas não os seus pressupostos; eles seguiriam perdurando, a ponto de ensejarem a reprodução de seus respectivos sujeitos. O Partido Nacional Democrático da Alemanha, fundado em 1964, seria prova disso, sinal extremamente “preocupante” da volta ao palco de movimentos radicais que, vendo bem, nunca teriam saído do teatro político alemão.

Insinua o filósofo que, entre um certo número de seus concidadãos, jamais houve “verdadeira dissolução da identificação com o regime [nazista]”: seu apoio ao fascismo não apenas permaneceu coeso até o final da Guerra, mas “nunca foi de fato radicalmente destruído” (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 50). Em última análise, seria isso que subjazeria aos só aparentemente inesperados êxitos do referido Partido (Adorno, 2020, pp. 50-51). Posta a tese, poderia esperar-se a elaboração da respectiva comprovação, mas não é isso que se verifica, visto o autor enveredar por uma linha de análise que se restringe aos meios de propaganda da agremiação e, em vez de aprofundar a especificidade da situação, a projeta no âmbito de teorização a-histórica referida ao termo “personalidade autoritária”.

Surpreende que, no texto, o filósofo não chegue a esclarecer as propostas, a examinar as atividades, a identificar os sujeitos, a apresentar informações empíricas mais precisas a respeito do fenômeno em estudo. A coisa simplesmente surge como dada, algo que dispensa a interrogação em detalhe. Nesse sentido, a conferência se revelaria, a nosso ver, preparada para atender a uma necessidade de consumo, em vez de fazer pensar ou mesmo oferecer nova informação, ao nos sugerir que todos os seus destinatários sabem do que se trata e, portanto, o essencial consiste em reiterá-lo, assumindo uma perspectiva admoestadora.

Observando bem, Adorno aparentemente se limita a gratificar o auditório, ao defender que o radicalismo emergente nos anos 1960 é mero disfarce do mais antigo; isto é, seria essencialmente fascista, no sentido em que surgiu um movimento fascista na Europa durante a década de 1930. Seja por deliberação, por ter recebido pedido, ou ambos, o filósofo se dirige à audiência como o pastor aos convertidos, em termos cerimoniais, que, em parte, escandalizam em um proponente da teoria crítica. Paradoxalmente, o cunho ritual que sua análise identifica na propaganda extremista de direita, alterado, se reproduz na articulação, endereçamento e consumo do seu texto para os auditórios de esquerda.

Adorno se esforça para fazer valer na análise o esquema teórico com que procurou superar o mecanicismo explanatório do marxismo vulgar mais antigo, todavia hesitando em decidir entre duas alternativas. Se o radicalismo de direita é um “problema psicológico e ideológico”, síndrome compensatória e gratificante. Ou é uma resposta mais ou menos funcional ao “problema histórico e político das camadas campesinas e burguesas em vias de extinção” (Adorno, 2020, p. 76). Ao final, fica-nos a impressão de que defende tese híbrida, segundo a qual o fenômeno deve ser visto como uma forma de tradução ou aprisionamento psicológico do segundo problema.

Verifica-se, no entanto, que isso só se tornaria convincente se houvesse o estabelecimento de uma conexão concreta, baseada em evidências, por mínimas que sejam, entre os dois planos do raciocínio - o que o texto não entrega, ao enveredar por linha de raciocínio paralela, mais para o final. Atendendo ao que seu auditório dele esperava, Adorno superdimensiona a dimensão e, assim, o eventual perigo do fenômeno nele examinado. Afinal é fato ou não que, contrariando o avanço sugerido no texto, a média de votos no Partido Nacional Democrático da Alemanha, ao longo de catorze eleições, até hoje não tenha chegado a 1% e, assim, ele jamais tenha tido assento no Parlamento Federal? Que, após ter ocupado cadeiras em umas poucas assembleias estaduais no final dos anos 1960, a agremiação só voltasse a ter outras poucas (quatro), entre 2004 e 2011?

O pensador denega o tempo todo a ideia segundo a qual o fenômeno se esgota na motivação ideológica, tendo antes, objetivamente, a ver com “a possibilidade de desclassificação das camadas burguesas” em meio às tendências à concentração empresarial e econômica; o progresso tecnológico gerador de desemprego; o agravamento da oposição econômica entre o campo e a cidade; a redução da margem de manobra dos governos devido à integração das nações em blocos políticos e econômicos mundiais etc.

O problema é que tudo isso não apenas pode, por exemplo, ser ligado ao apoio da população a vários outros partidos, mas não se sustenta em evidências extraídas da experiência dos movimentos de direita, como se esperaria: a conexão é apresentada de maneira muito genérica, mesmo para um pequeno ensaio. O texto rejeita sua caracterização como “sinal de loucura”, afirmando sua condição de “sintoma de uma transformação social objetiva em curso” - mas isso, no argumento, não vai além da petição abstrata, carente de análise empírica/documental, prevenindo um estudo do fenômeno em sua singularidade.

Quer dizer que, referindo-se às transformações econômicas e processos de desclassificação social em seu país, o pensador esboça uma explanação histórico-materialista do fenômeno, porém, faltando com a respectiva sustentação, positivamente aciona outro tipo de procedimento. Satisfaz-se em argumentar que o radicalismo, na verdade, tem um sentido psicossociológico, remetendo ao que chama de idealismo vulgar, e se origina, em última instância, do que denominou, anos antes, de personalidade autoritária (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 61).

O relato sutilmente se desloca da análise de conjuntura para a argumentação genérica, baseando-se na premissa de que o marco institucional concreto e, assim, sujeito a múltiplas variações não impacta na caracterização do fascismo como objeto de reflexão sociológica de tipo genérico; com prejuízo, portanto, para o entendimento da experiência histórica singular que estaria em foco na exposição, já que o “novo” radicalismo de direita é diluído na figura relativamente mais abstrata e perene, no caso, que é “o fascismo”.

Diz-se então, em tese, que o fascismo carece de verdadeira teoria, seria sinal de uma época privada de espírito, em que as ideias têm um papel secundário. Apesar dos constantes apelos ao idealismo, o conteúdo deste último, as ideias, é, em última análise, irrelevante na dinâmica do movimento (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 71). O fascismo seria prova de que pode haver “práxis sem conceito”, forma de ação social em que pura e simplesmente se fazem valer o poder e a força (Adorno, 2020, p. 67). A propaganda fascista possui um sentido essencialmente motivacional, não visa mais a convencer, como outras no passado; não busca “disseminar uma ideologia”, até por ela ser “demasiado pobre”. O propósito é engajar as pessoas no movimento que lhe subjaz, através de “técnicas psicológicas de massas” (Adorno, 2020, p. 67), cuja eficácia, segundo o pensador, se baseia na existência de uma “personalidade autoritária” que, em última análise, se revelaria mais ou menos intrínseca à civilização.

Na arquitetura complexiva do texto, tudo isso acarreta que, embora seja apontada como chave para se entender apenas um aspecto do fenômeno, a perspectiva ideológica, submetida à leitura de psicologia social analítica, acabe sendo, em nosso juízo, a única relativamente bem desenvolvida no texto. Para o autor, o extremismo de direita se origina fundamentalmente do “medo”, por parte de certos grupos, “das consequências gerais da sociedade” (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 48). Sua raiz, no plano subjetivo, estaria no fato de muitos alemães padecerem de contínua angústia em relação à sua identidade; serem intelectualizados, mas suspeitarem de que há algo errado no intelectualismo; afirmarem irracionalmente sua nacionalidade, ao se verem integrados em bloco transnacional, comandado, no caso, pelos norte-americanos (Adorno, 2020, p. 65).

Pode-se, porém, perguntar por que estes traços, aparentemente descobertos via uma análise de conteúdo do material de propaganda do Partido, não se encontrariam em tantos outros sujeitos indiferentes ou mesmo infensos às suas ideias? Daí a rápida virada, que se constata no texto, no sentido de buscar embasamento menos evidente e, no caso, mais teórico para relatar o fenômeno, por parte do filósofo.

Sintoma de sua impotência, da sua incapacidade de sair objetivamente da situação acima referida, o engajamento no radicalismo de direita seria mais que tudo, segundo Adorno, forma de compensar seus respectivos sujeitos com “fantasias do fim do mundo”, investir na “alegria de poder ver outros sendo punidos” com que tantos se satisfazem em uma sociedade que não lhes pode realizar as vontades (Adorno, 2020, p. 72). Serviria para nutrir “o desejo inconsciente de desgraça” de seus seguidores, explorar os seus desejos inconscientes de autodestruição, “se possível, a destruição do todo”, alimentados pela desintegração do modo de vida pequeno-burguês e dos velhos valores nacionais provocada pelo desenvolvimento capitalista (Adorno, 2020, p. 52).

Mas se tudo isso se encontra, como de fato é o caso, em consonância com o que o autor defendera nos anos 1940 (Hammer, 2005Hammer, Espen. (2005), Adorno and the political. Londres, Routledge., pp. 49-96), significa que, contrariamente ao preconizado por entusiastas sem capacidade de escrutínio, em seu ver a aparente novidade do extremismo de direita do pós-Guerra meramente encobre a reiteração do antigo. Adorno evitou subscrever a tese do “fascismo eterno” (Eco, 2018Eco, Umberto. (2018), O fascismo eterno. Rio de Janeiro, Record.) que, sendo em parte recurso tático, noutra síndrome de cunho paranoico, passou a grassar com cada vez mais força entre a esquerda a partir da Segunda Guerra. No entanto, apresenta argumento que, apesar de muito mais sofisticado, a nosso ver, não representa vantagem epistemologicamente, sequer diante do que conseguira avançar durante o período intermediário, visto retirar da matéria a especificidade que chegara a entrever nos anos 1950.

Na Dialética do Iluminismo (Adorno & Horkheimer, [1947] 1985), ele situara o fascismo no marco de uma crítica da civilização de ordem histórico-filosófica em que, malgrado a genialidade da fenomenologia, se perdem totalmente de vista as circunstâncias econômicas, sociais e políticas específicas dos países em que prosperou. De resto, verifica-se que seu tratamento do assunto desde o início caiu na órbita da psicologia social analítica, focando na caracterização mais ou menos conjunta, mas essencialmente teórica, da personalidade que lhe subjazeria e das técnicas de propaganda com as quais os movimentos fascistas a exploram, mais ou menos independentemente de lugar (Adorno, 2017).

Aspectos do novo radicalismo de direita simplesmente procede à transposição dessas teses, isto é, da sua psicologia de massas do fascismo, para o período do milagre alemão, sem levar em consideração até mesmo seu próprio progresso crítico e cognitivo no que concerne à matéria. Verifica-se, com efeito, que, dez anos antes, o pensador fora além na hermenêutica do fenômeno, ao comentar o livro de Büsch e Furth sobre o Partido Socialista do Reich, proibido pelo governo em 1952. Fora aquele Partido abertamente neonazista, cuja aparição, ensinaria a obra, “nem as análises puramente objetivas, nem a crítica das ideologias, mas tampouco as pesquisas de opinião seriam, isoladamente, capazes de explicar” (Adorno, [1958] 2010a, p. 389).

Para tanto, haveria que buscar sua colaboração interdisciplinar, mas não em pé de igualdade, já que se “a análise objetiva tende a passar por alto os conteúdos de consciência e os comportamentos potenciais dos integrantes de uma organização”, a simples “análise ideológica facilmente perde de vista a complexidade dos interesses realmente existentes atrás da agitação manipuladora, como a feita pelo radicalismo neofascista” (Idem, pp. 389-390). Ou seja, visando a integrar estas análises, sem se perder em generalidades, seria indispensável levar a cabo uma pesquisa de opinião com membros do partido, pois “só essa, junto com as outras, poderia aportar algo sobre as relações entre o aparato do partido, a ideologia e o pensamento, a conduta efetiva dos integrantes, para oferecer uma perspectiva esclarecedora” (Adorno, [1958] 2010a, p. 390).

Amparando sua filosofia no esquema sujeito x objeto, Adorno operou com um conceito restringido de práxis, não chegando a cogitar as possibilidades contidas na reflexão metapragmática acerca da interação social (Honneth, 1993Honneth, Axel. (1993), The critique of power. Cambridge, mit., pp. 57-103) que, na teoria crítica, se descortinariam pela primeira vez com Habermas ([1980] 1987; Honneth, [1980] 1988). A referência à pesquisa de opinião, todavia, sinaliza a percepção de sua parte de que, sem levar em conta senão a experiência cotidiana, pelo menos o ponto de vista dos sujeitos, não há como falar com propriedade sobre algo politicamente concreto ao tratar do que está em jogo nos movimentos neofascistas (Adorno, [1958] 2010a).

Fora isso, havia, nesse artigo, uma consciência crítica e ilustrada guiando suas considerações sobre o Partido Socialista do Reich. Supostamente forte em termos de propaganda, ele salientou, a agremiação não teria conseguido reunir mais do que 10 mil seguidores, segundo relatórios das autoridades que a investigaram. Desgastado pelo uso contínuo e rebaixado, o recurso à propaganda teria se tornado fator de desestímulo para muitos simpatizantes em potencial. Quanto mais torpe e abertamente ela se dirigia “aos mais estúpidos”, mais ela, em tese, servia para desencadear “a resistência potencialmente existente entre os que não desejam sê-lo”, hipotetizava por então o filósofo (Adorno, [1958] 2010a, p. 392).

Ainda que muito mais elaborado, o texto publicado um decênio mais tarde paradoxalmente perde de vista essas cautelas. Despontando enfraquecido o apelo à explicação materialista, encaminha a análise o argumento de que o avanço ou crescimento da extrema direita não seria, em essência, socialmente objetivo, mas, sim, psíquico, circunscrevendo-se à esfera da propaganda.

À falta das condições que o teria favorecido no passado, isto é, a crise generalizada das instituições e a possibilidade de exercer alta pressão sobre as massas, o radicalismo político de direita emerge da análise como um movimento delirante, através do qual sujeitos desgarrados de distintas classes sociais se entregariam a sistemas simbólicos autonomizados. O principal, a substância mesma da coisa seria a atividade propagandística, a produção e o consumo de uma série de truques e expedientes em que, talvez, ninguém realmente acredite, mas através da qual se obtém certa satisfação (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 54), visto que, na base, não se encontra nenhuma práxis, mas apenas a figura espectral do que o autor chamou de personalidade autoritária (Adorno, [1950] 2019).

Adorno equivocadamente se tornou prisioneiro da fama como sociólogo que teria lhe trazido a coordenação da pesquisa sobre o assunto feita nos Estados Unidos em meados da década de 1940 (Adorno, [1950] 2019). O projeto que lhe deu origem se estrutura com base em premissas e métodos que ele, como filósofo, criticou duramente em mais de um trabalho. Estabelecer abstratamente uma escala para nela fazer entrar a experiência e, assim, classificar o perfil de seus informantes, extraído de entrevistas descontextualizadas, sempre foi tensionado e, na etapa final, estava em total descompasso com sua teoria da ciência (Adorno, 2001).

Verifica-se, pois, apenas com relativa surpresa que, no texto em exame, apresenta-se a tese segundo a qual o “ponto nevrálgico” do fenômeno, como no passado, se encontra “no apelo à personalidade fixada na autoridade”, enquanto “unidade específica e acentuada” (2020, p. 67) da vida social em meio à civilização (Adorno, Horkheimer, [1947] 1985). E que, considerada na raiz, a formação delirante que seria o extremismo de direita remete à existência de uma personalidade autoritária virtualmente constante e atemporal, a qual o filósofo, apoiando-se notadamente em O mal-estar na civilização, foi buscar em Freud ([1930] 1969).

Apesar de tudo, Adorno conservou mais ou menos até o final a ideia de que a história está marcada pela presença da “personalidade autoritária” ou, na melhor das hipóteses, esta é um sucedâneo da “personalidade tradicional”, cuja sombra, se não surge com a civilização, pelo menos acompanha, como má consciência, o desenvolvimento do espírito libertário que tem lugar na modernidade (Adorno, 2020, pp. 50-51).

Adorno sempre rechaçou, para a crítica, o que chamava de “relação de espectador com a realidade” (Adorno, 2020, p. 77). Argumentava que a teoria não tem o poder de resolver os problemas da realidade e que tentar fazê-lo aferrando-se a esse meio só os agrava. Ainda que a teoria sirva de mediação, os desafios que eles nos colocam só têm como ser enfrentados na práxis e sem garantia de sucesso, ao dependerem de forças que nenhum sujeito pode controlar sozinho ou por inteiro.

Paradoxalmente, porém, acabou apelando abstratamente à resistência, no caso, ao extremismo de direita, preconizando a pesquisa e o emprego de “vacinação em massa contra a [sua] propaganda” (Adorno, 2020Adorno, Theodor. (2020), Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp., p. 76). Adotando postura que está mais próxima do positivismo e da engenharia social idealista do que da razão crítica, seu relato reitera a convicção oriunda da época da Guerra, segundo a qual a maneira de combatê-lo seria “alertar os apoiadores sobre a desgraça que lhes pode advir” da sua adesão a um movimento potencialmente destrutivo para seus próprios interesses.

Para nós, a única maneira de entender a recomendação dessa abordagem “terapêutica” é chamando atenção para sua conexão com a tese, muito pouco convincente em termos histórico-sociológicos, da personalidade autoritária. Afinal, se o extremismo político se nutre de um sistema de crenças delirante, irracional, como se poderia vir a convencer seus sujeitos, por muito tempo, racionalmente? Adorno revela ciência do problema, ao observar que a personalidade autoritária não permite que outra chegue perto e a ponha em questão. O extremista se caracteriza por rejeitar a argumentação racional baseada em evidências (Adorno, 2020, p. 62), de modo que se deveria apelar aos “interesses reais dos seus sujeitos” (Adorno, 2020, p. 74) - mas como o faríamos? (Idem, p. 58).

Tem-se aí, sem dúvida, portanto, um paradoxo ou mesmo uma contradição no sistema de pensamento do filósofo, aliás muito semelhante, na lógica, à tensão entre as perspectivas de tipo estrutural ou funcionalista com a da teoria da ação que atravessa sua sociologia - mas não é este o lugar para discutir o assunto. Resenhando o texto, procuramos mostrar que, examinando o radicalismo de direita alemão, o pensador acabou prevenindo a consideração do novo ao reiterar seu aspecto arcaico. Adorno aferrou-se mecanicamente à tese da personalidade autoritária oriunda de sua assimilação da filosofia da cultura de origem freudiana e a aplicou como fórmula estereotipada em sua análise dos movimentos extremistas de seu tempo, conferindo-lhes uma espécie de fundamentação a-histórica, em última instância.

Apesar disso, o texto não deixa de propor ideia instigante, ao sugerir a contrapelo que, em uma ordem liberal mais ou menos estável, o sentido do extremismo pode ser essencialmente ritual - não apenas para a direita, mas também para a esquerda. Adorno sublinhou que a democracia liberal não pode ser equiparada a um regime fascista e que recusar-se a ver as diferenças seria expressão de um fanatismo compartilhado entre os extremistas de esquerda e direita (Müller-Doohm, 2004Müller-Doohm, Stefan. (2004), Adorno: une biographie. Paris, Gallimard., p. 467; Schwarzböck, 2008Schwarzböck, Silvia. (2008), Adorno y lo politico. Buenos Aires, Prometeo., pp. 99-156).

Por outro lado, teria superestimado sua ameaça, abrindo espaço para pensar se, em vez de perigo real, o extremismo, na situação acima referida, não significa o surgimento de uma nova atitude política. Isto é, o aparecimento de uma fixação fantasmagórica no fascismo e no comunismo enquanto figuras encobridoras das metamorfoses políticas e transformações no modo de instituição da sociedade desigualmente verificadas a partir da segunda metade do século xx.

Sendo este o caso, novo, no título de seu trabalho, mas também numa ordem democrática mais ou menos estabilizada, como já no seu tempo haviam se tornado Alemanha e Estados Unidos, seria o aspecto, em vez do extremismo político mesmo. Como em toda política, no radicalismo não se poupa a exploração de fantasias nem o emprego tático de clichês. Diferentemente do resto, porém, haveria nele a presença, seja num extremo, seja no outro, de crentes delirantes, para os quais uma das primeiras a chamar atenção, no marco da filosofia política, foi Hannah Arendt ([1951] 1981).

Escreveu Marx que “a última fase de uma forma da história mundial é a sua comédia” (Marx, [1844] 1982, p. 494) - a comédia seria o espírito ou atitude com que um coletivo ou mesmo uma época vive a morte de algo que já não lhe define mais, como o fizera no passado. Pode-se levantar, em complemento, a tese de que a penúltima é aquela em que a coisa, relegada essencialmente à experiência estética ou artefato tático em meio à luta política, adquire a condição de espectro.

Remetendo a Derrida (2002Derrida, Jacques. (2002), Espectros de Marx. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.), valeria, por isso, pensar que se, em certos cenários contemporâneos, o espectro, mas nada mais, do comunismo ronda a consciência da direita, não seria insólito supor que também a da esquerda possa se ver assombrada, mas nada mais, pelo espectro do fascismo, como parece ter ocorrido com Adorno em sua conferência do final dos anos 1960 e com muita gente na atualidade.

Referências bibliográficas

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  • Schwarzböck, Silvia. (2008), Adorno y lo politico. Buenos Aires, Prometeo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2021
  • Aceito
    11 Out 2021
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