Acessibilidade / Reportar erro

Um debate egiptológico sobre o pensamento mágico

An Egyptological debate on magical thinking

Un debate egiptológico sobre el pensamiento mágico

STEGBAUER, Katharina. . Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit.Ägyptologische Studien Leipzig, Band 1, 2019, 343 p.

Contextualização

A obra aqui analisada foi composta, originalmente, como uma tese doutoral na Fakultät für Geschichte, Kunst und Orientwissenschaften - Universität Leipzig. Após a publicação da tese, em 2010, o texto passou por incontáveis revisões bibliográficas e atualizações conceituais até a publicação do livro em seu formato final. Uma vez procedida a atualização da obra, ela veio inaugurar uma nova série acadêmica: “Ägyptologische Studien Leipzig”, que se dedica à publicação de estudos monográficos sob as regras do regime “Open Access”, via Propylaeum-ebooks1 1 Pode-se obter uma cópia do livro através do link da plataforma Propylaeum-ebooks, da Universität Heidelberg: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529 .

Graças à sua estruturação acadêmica original, a obra fornece ao leitor uma importante contextualização temática e conceitual sob a forma de um estado da arte sintetizando um século de desenvolvimento dos debates sobre a magia egípcia. Desse modo, a autora apresenta uma discussão historiográfica sobre como a antropologia cultural exerceu e exerce influência sobre o debate egiptológico.

O título da obra, em tradução livre, informa: Magia como arma contra serpentes na Idade do Bronze egípcia. Logo, a cronologia abordada abrange o Reino Médio e o Reino Novo, cobrindo a história da civilização egípcia, desde o final do terceiro até o final do segundo milênios a.C.

O ponto de partida da autora é a análise dos encantamentos contra serpentes e a sua peçonha. Embora a língua egípcia possua uma rica variedade de sinônimos para designar o “mago”, o termo normalmente empregado para definir a força sobrenatural que manifesta e/ou instrumentaliza as virtudes criativas divinas é “heka”. Dito isto, a obra estabelece a análise de um corpus temático de textos epigráficos e papirológicos sobre os feitiços/encantamentos-heka.

Um corpus textual é entendido como a codificação de padrões propostos por uma tradição cultural (PARKINSON, 1996PARKINSON, Richard B. Types of Literature in the Middle Kingdom. In: LOPRIENO, Antonio(org.). Ancient Egyptian Literature. History and Forms. Leiden: Brill , 1996. p. 297-312., p. 298). Um corpus de encantamentos-heka revelou-se surpreendentemente heterogêneo e abrangente. Com base nessa análise de fontes a obra debruça-se sobre a sua questão central: “Por que a cultura egípcia desenvolveu práticas e textos mágicos?”.

Geralmente, os egiptólogos alternam-se entre duas linhas de reflexão para a abordagem do pensamento mágico egípcio. Pode-se buscar uma proposta a partir da teoria ritual (TAMBIAH, 1990TAMBIAH, Stanley J. Magic, Science and Religion, and the Scope of Rationality: The Lewis Henry Morgan lectures 1984. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.; 2002TAMBIAH, Stanley J. Eine performative Theorie des Rituals. In: WIRTH, Uwe(org.). Performanz. Zwischen Sprachphilosophie und Kulturwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp, 2002. p. 210-242.) e daí analisar-se o fenômeno segundo a noção do “poder das palavras” na mentalidade egípcia. Uma alternativa a essa abordagem é lidar com o caráter performático das palavras, onde um ritual mágico promoveria certa influência positiva através de algo similar ao “efeito placebo” (WESTENDORF, 1999WESTENDORF, Wolfhart. Handbuch der Ägyptischen Medizin. Leiden: Brill , 1999.).

Todavia, ao se estabelecer que os heka são, essencialmente, uma forma de comunicação, a obra propõe uma abordagem inovadora, baseada na análise das dramatis personae envolvidas no processo de realização de um encantamento. Assim, constrói-se uma correspondência segundo o modelo “falante” e “ouvinte” (MEGGLE, 2010MEGGLE, Georg. Handlungstheoretische Semantik. Berlin: De Gruyter, 2010.), caracterizada pelas ações e relações entre três agentes: “Aktant” - ou seja, aquele que evoca o poder mágico; “Adressant” - ou seja, a potência espiritual evocada pelo encantamento, e que também é o “ouvinte” da relação falante-ouvinte; e o “Patient” - ou seja, o “objeto” a que se refere o discurso do encantamento, referindo-se ao motivo/propósito da evocação.

A argumentação da obra foi estruturada a partir de capítulos independentes, isto é, recortes temáticos que possuem as suas próprias conclusões. São, ao todo, sete secções, subdivididas em tópicos auxiliares. Os três primeiros capítulos são bastante concei­tuais. O primeiro apresenta um estado da arte sobre o estudo do pensamento mágico pela antropologia e o seu impacto na egiptologia desde o início do século XX. O segundo capítulo aborda aspectos da intertextualidade dos encantamentos, propondo também uma análise ontológica dos textos mágicos. O terceiro capítulo ocupa-se inteiramente das funções da historíola egípcia, ou seja, todo um contexto legitimador de origem mitológica e as suas respectivas referências, subentendidas nas entrelinhas de um dado encantamento (FRANKFURTER, 1995FRANKFURTER, David Narrating Power: The Theory and Practice of the Magical Historiola in Ritual Spells. In: MEYER, Marvin; MIRECKI, Paul(orgs.). Ancient Magic and Ritual Power. Leiden: Brill, 1995. p. 455-576.).

O quarto capítulo estuda a percepção da serpente no cotidiano egípcio, de modo a elencar as suas características positivas e negativas. Busca-se com isso reconhecer um embasamento social e cultural a ser refletido na “construção” das tipologias existentes no discurso simbólico dos encantamentos. O quinto capítulo complementa o anterior e debate o simbolismo da peçonha da serpente na sociedade egípcia. Há aqui uma analogia interessante entre os sintomas do envenenamento pela picada de uma serpente e a ação de um encantamento (STEGBAUER, 2019STEGBAUER, Katharina. Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit. Ägyptologische Studien Leipzig, Band 1, 2019. Disponível em: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529
https://books.ub.uni-heidelberg.de/propy...
, p. 136).

O sexto capítulo apresenta o corpus e descreve o catálogo das 52 fontes trabalhadas. Do Reino Médio, são 27 encantamentos provenientes do Texto dos Sarcófagos e de papiros diversos. Segue-se a eles uma lista com outros 25 encantamentos provenientes de fontes epigráficas e papirológicas do Reino Novo. O último capítulo é um apêndice, contendo tabelas e listas de referências para a identificação apropriada das fontes primárias traduzidas e analisadas. Essa parte é concluída por uma bibliografia das obras citadas e consultadas.

Impacto historiográfico

A egiptologia, enquanto disciplina consolidada entre os séculos XIX e XX na Europa moderna, industrializada e cristã, herdou a visão de mundo particular do seu meio. A separação entre magia (irracional) e ciência (racional) ocorrida na Europa entre os séculos XVII e XVIII foi determinante para o modelo tradicional de abordagem do pensamento mágico pelos acadêmicos. A premissa cultural eurocêntrica estabelecera que “magia” descreve algo falso (segundo o discurso cristão) ou um universo de possibilidades fantasiosas (segundo todo um folclore e uma literatura ficcional).

Ao longo do século XX a egiptologia limitou-se a abordar o pensamento mágico egípcio de modo superficial e etnocêntrico. Os paradigmas tradicionais defendiam a magia como uma prática “infantil” que visava encorajar ou amedrontar as massas (BUDGE, 1900BUDGE, Ernest A W.. Egyptian Religion. London: Kegan Paul , 1900., 1901BUDGE, Ernest A. W. Egyptian Magic. London: Kegan Paul, 1901.; GARDINER, 1915GARDINER, Alan H. Magic (Egyptian). In: HASTINGS, J. (org.). Encyclopaedia of Religion and Ethics. V. VIII. Edinburgh: T&T Clarc, 1915. p. 262a-269a.). Essas abordagens tentavam reproduzir anacronicamente a separação entre magia e uma racionalidade tipicamente europeia no modelo civilizacional egípcio.

Contudo, no antigo Egito não se questionava a legitimidade da magia, ou mesmo a necessidade de distingui-la de conhecimentos técnicos, como a medicina, por exemplo (LOPES; PEREIRA, 2020LOPES, Maria H. T.; PEREIRA, Ronaldo G. G. The Gynecological Papyrus Kahun. London: Intech Open, 2020(no prelo).). Portanto, os egiptólogos tradicionalmente não reconheciam a importância cultural e conceitual do “heka”, seja como poder mágico ou como forma de conexão com a esfera divina. Por outro lado, já se reconhece que indivíduos capazes de realizarem “heka” eram socialmente valorizados (PINCH, 1994PINCH, Geraldine. Magic in Ancient Egypt. London: British Museum Press, 1994., p. 50).

Segundo o pensamento religioso egípcio, a ligação individual com a divindade estava constantemente em jogo. Aquilo que chamamos de “magia” estava permeado nas diversas esferas sociais e culturais egípcias. Portanto, é simplesmente impossível, ou mesmo incoerente, tentar isolar a magia das suas demais práticas cotidianas.

A “magia” é um tema recorrente na egiptologia desde a criação da disciplina. Em linhas gerais, o debate egiptológico sempre acompanhou o desenvolvimento do debate antropológico. Assim, a teoria da magia na egiptologia está influenciada pelos modelos etnológicos e religiosos emprestados da antropologia. Autores influentes do século XX trataram a magia como um fenômeno diacrônico e universal (FRAZER, 1922FRAZER, James G. The Golden Bough: a Study in Magic an Religion. New York: Abridged, 1922.; MAUSS, 1950MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950.). Essa percepção “evolucionista” da magia, enquanto estágio preliminar do pensamento racional/científico ou do surgimento da religião, influenciou o modo como a egiptologia abordou o tema.

A premissa da obra analisada assume que a magia é um “Denkstil”, ou seja, uma forma de pensamento particular a um grupo na organização da sua visão de mundo. Isso contesta a abordagem egiptológica tradicional, pois assume que magia é um conceito variável e dinâmico, posto que está sujeito a particularidades culturais e cronológicas. Portanto, a análise do pensamento mágico egípcio é tratada como uma faceta da própria especificidade da cultura egípcia. Consequentemente, através de uma abordagem êmica, articulou-se um diálogo entre a antropologia e a linguística em busca da compreensão dos aspectos culturais da magia egípcia.

Foi demonstrado ao longo da argumentação da obra, que para se entender a magia, ou qualquer outro aspecto cultural egípcio, é necessário um estudo conjunto da cultura e da língua egípcia. Sem essa transversalidade é impossível de se perceber corretamente a carga de significação e significado que certos termos e respectivos sinônimos carregam consigo. Trata-se de uma contribuição importante para uma sistematização de uma epistemologia sobre o pensamento mágico do antigo Egito.

Apreciação crítica

Nos países de língua portuguesa, especificamente Portugal e Brasil, a egiptologia é uma disciplina ainda em processo de consolidação. Uma das suas carências mais evidentes é a dificuldade de acesso à uma bibliografia recente e atualizada, capaz de auxiliar no desenvolvimento de pesquisas inovadoras do estado da arte das suas temáticas.

Se somarmos a isso a ausência de uma bibliografia significativa produzida em língua portuguesa, percebe-se a necessidade de importação de obras estrangeiras, sendo que, muitas delas são traduções inglesas e francesas de obras ainda mais antigas, produzidas noutras línguas, como o alemão.

Tomemos, a título de exemplo, a obra Egyptian Religion (MORENZ, 1992MORENZ, Siegfried. Egyptian Religion. Ithaca - NY: Cornell Press, 1992.). A obra, que ainda é reimpressa atualmente, é uma tradução inglesa, originalmente produzida em 1973, a partir do original Ägyptische Religion, de 1960. Embora a obra mereça ser lida e permaneça pertinente para o conhecimento do estado da arte, ela propõe separações tradicionais entre magia e religião, refletindo ainda influências evolucionistas (ERMAN, 1934ERMAN, Adolf Die Religion der Ägypter. Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1934.).

Consequentemente, os pesquisadores portugueses e brasileiros correm o risco de se extraviarem em meio a discursos obsoletos e discussões superadas, se não lidarem com essa bibliografia proativamente. Isso é bem evidente quando se adota acriticamente paradigmas reproduzidos por autores defasados, como Budge, Erman e Gardiner, insistentemente republicados, principalmente, devido ao seu status comercial de “obras de domínio público”.

A obra analisada chama a atenção para como se pode reconstituir uma cronologia de discursos antropológicos presentes em momentos específicos de produção acadêmica egiptológica. Ela oferece um enorme potencial para uma atualização teórica e metodológica da produção egiptológica lusófona. Os seus capítulos conceituais são particularmente úteis para a discussão de temáticas ligadas à religião, magia e intertextualidade no antigo Egito.

Seria interessante promover a tradução da obra ou, pelo menos, de alguns dos seus capítulos, sob a forma de uma coletânea de ensaios.

Referências

  • BUDGE, Ernest A. W. Egyptian Magic London: Kegan Paul, 1901.
  • BUDGE, Ernest A W.. Egyptian Religion London: Kegan Paul , 1900.
  • ERMAN, Adolf Die Religion der Ägypter Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1934.
  • FRANKFURTER, David Narrating Power: The Theory and Practice of the Magical Historiola in Ritual Spells. In: MEYER, Marvin; MIRECKI, Paul(orgs.). Ancient Magic and Ritual Power Leiden: Brill, 1995. p. 455-576.
  • FRAZER, James G. The Golden Bough: a Study in Magic an Religion New York: Abridged, 1922.
  • GARDINER, Alan H. Magic (Egyptian). In: HASTINGS, J. (org.). Encyclopaedia of Religion and Ethics. V. VIII Edinburgh: T&T Clarc, 1915. p. 262a-269a.
  • LOPES, Maria H. T.; PEREIRA, Ronaldo G. G. The Gynecological Papyrus Kahun London: Intech Open, 2020(no prelo).
  • MAUSS, Marcel. Sociologie et Anthropologie Paris: PUF, 1950.
  • MEGGLE, Georg. Handlungstheoretische Semantik Berlin: De Gruyter, 2010.
  • MORENZ, Siegfried. Egyptian Religion Ithaca - NY: Cornell Press, 1992.
  • PARKINSON, Richard B. Types of Literature in the Middle Kingdom. In: LOPRIENO, Antonio(org.). Ancient Egyptian Literature. History and Forms Leiden: Brill , 1996. p. 297-312.
  • PINCH, Geraldine. Magic in Ancient Egypt London: British Museum Press, 1994.
  • WESTENDORF, Wolfhart. Handbuch der Ägyptischen Medizin Leiden: Brill , 1999.
  • STEGBAUER, Katharina. Magie als Waffe gegen Schlangen in der ägyptischen Bronzezeit Ägyptologische Studien Leipzig, Band 1, 2019. Disponível em: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529
    » https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529
  • TAMBIAH, Stanley J. Eine performative Theorie des Rituals. In: WIRTH, Uwe(org.). Performanz. Zwischen Sprachphilosophie und Kulturwissenschaften Frankfurt: Suhrkamp, 2002. p. 210-242.
  • TAMBIAH, Stanley J. Magic, Science and Religion, and the Scope of Rationality: The Lewis Henry Morgan lectures 1984 Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
  • 1
    Pode-se obter uma cópia do livro através do link da plataforma Propylaeum-ebooks, da Universität Heidelberg: https://books.ub.uni-heidelberg.de/propylaeum/catalog/book/529

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    05 Out 2020
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org