Acessibilidade / Reportar erro

O discurso que (re)vela o tradutor

The discourse that (re)vea/ils the translator

Resumos

Este trabalho tem o objetivo de analisar as representações dos tradutores sobre si mesmos e acerca da tradução. Fundamentados na Análise do Discurso, de linha francesa, investigamos quatro notas escritas por tradutores no início de quatro livros distintos. Apesar de os tradutores continuarem a consolidar, em seu discurso, a ideia de tradução como uma mera questão de transposição de significados para uma língua diferente, observamos que eles se veem como intérpretes dos textos, mesmo quando tentam negar.

análise do discurso; tradução; tradutor


This paper aims to analyse how translators represent themselves and the work of translation when they talk about it. Based on the theory of Discourse Analyses of French perspective, we investigated four notes written by translators in the beginning of four different books. Although, through their discourse, translators continue to consolidate the idea of translation as writing the same meaning in a different language, we can observe that they see themselves as interpreters of the texts even when they try to deny it.

discourse analysis; translation; translator


ARTIGOS

O discurso que (re)vela o tradutor1 1 Este texto foi apresentado como trabalho de qualificação de área para o programa de doutorado em Lingüística Aplicada, sob a orientação da Profa. Doutora Maria José R.F. Coracini, a quem agradecemos as ricas leituras e sugestões.

The discourse that (re)vea/ils the translator

Cristiane Carvalho de Paula Brito

UFU, Uberlândia (MG), Brasil, E-mail: carvalhodepaula@yahoo.com

RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de analisar as representações dos tradutores sobre si mesmos e acerca da tradução. Fundamentados na Análise do Discurso, de linha francesa, investigamos quatro notas escritas por tradutores no início de quatro livros distintos. Apesar de os tradutores continuarem a consolidar, em seu discurso, a ideia de tradução como uma mera questão de transposição de significados para uma língua diferente, observamos que eles se veem como intérpretes dos textos, mesmo quando tentam negar.

Palavras-chave: análise do discurso; tradução; tradutor.

ABSTRACT

This paper aims to analyse how translators represent themselves and the work of translation when they talk about it. Based on the theory of Discourse Analyses of French perspective, we investigated four notes written by translators in the beginning of four different books. Although, through their discourse, translators continue to consolidate the idea of translation as writing the same meaning in a different language, we can observe that they see themselves as interpreters of the texts even when they try to deny it.

Keywords: discourse analysis; translation; translator.

... toda cultura resiste à tradução mesmo que necessite essencialmente dela. A própria visada da tradução - abrir no nível da escrita uma certa relação com o Outro, fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro - choca-se de frente com a estrutura etnocêntrica de qualquer cultura, ou essa espécie de narcisismo que faz com que toda sociedade deseje ser um Todo puro e não misturado. Na tradução, há alguma coisa da violência da mestiçagem.

(Antoine Berman, traduzido por Maria Emília Pereira Chanut)

Venuti (1996), ao tratar da invisibilidade do tradutor, afirma que:

Os efeitos sociais da invisibilidade do tradutor acrescentam uma urgência ainda maior à necessidade de uma desmistificação da prática da tradução. Esta tarefa foi iniciada pelos prefácios que os próprios tradutores ocasionalmente anexam ao seu trabalho e pela maior sofisticação da literatura da área de tradução, de natureza tanto teórica como crítica. (VENUTI, 1996:112).

Concordamos com o autor que o prefácio seja um espaço para a visibilidade do tradutor. Entretanto, observa-se que esta visibilidade, muitas vezes, ocorre justamente para reforçar o discurso do apagamento do tradutor, já que o prefácio se constitui, antes de tudo, em um lugar de representações, por parte do tradutor, sobre si mesmo, sobre o que é tradução, língua, sentido etc.

Para Pêcheux (1997:82), "o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro". Estas representações, na verdade, consolidam sentidos e cristalizam discursos que moldam o imaginário dos sujeitos em relação a sua forma de conceber os mais diversos aspectos da realidade.

Em relação ao tradutor, pode-se questionar: que imagens são construídas e consolidadas em seu discurso, quando ele toma a palavra para se pronunciar acerca de si mesmo e de sua atividade? O que diz (ou não diz) o tradutor de si e de seu trabalho?

Conforme Orlandi (1998), ao significar, o sujeito se significa. Dessa forma, o processo de constituição de sentidos pelos sujeitos está intimamente relacionado aos processos de identificação que, por sua vez, são fruto dos movimentos de filiação dos sujeitos a redes de formações discursivas distintas.

Entendemos que, no discurso (e pela interpelação deste), são representadas as posições identitárias do sujeito (cindido, fragmentado, heterogêneo), sempre num movimento de repetição e deslocamento em relação ao(s) outro(s).

Vale ressaltar que assumimos a idéia de processo de identificação, por rejeitar a concepção tradicional de identidade como algo fixo e estático, o que pressupõe um sujeito uno, consciente, centrado. Pelo contrário, vê-se que o sujeito manifesta posições enunciativas contraditórias em seu discurso.

Nesse sentido, este trabalho tem o objetivo de analisar as representações de tradutor e tradução em notas introdutórias, presentes em livros de diferentes gêneros, à luz das concepções dos estudos da tradução. Utilizaremos aqui as notas explicativas encontradas no início de quatro obras2 2 A saber: Gramática de Port-Royal; Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação; a Bíblia na Nova Versão Internacional; e Pequena coletânea de poesias de língua inglesa) e que servem como um esclarecimento ao leitor do trabalho desenvolvido pelo tradutor. Não analisaremos, pois, as notas de rodapé, referentes ao texto traduzido e que são inseridas ao longo da obra.

É importante esclarecer que as obras foram escolhidas pelo fato de apresentarem notas de autoria do tradutor, o que não é muito comum em obras traduzidas, e, também, por se constituírem em obras de gêneros diferentes, o que nos possibilita averiguar possíveis distinções nas representações dos tradutores.

1. ANÁLISE DAS NOTAS

Tomaremos aqui quatro notas de livros de diferentes gêneros e destacaremos os trechos mais relevantes para nossa análise. Não nos interessa fazer uma análise exaustiva, mas tecer algumas considerações sobre a representação do tradutor quanto à sua prática e ao seu papel.

Vejamos, pois, a primeira nota.

Primeira nota - Gramática de Port- Royal

Tradução de Bruno Fregni Bassetto & Henrique Graciano Murachco.

Como critério básico de tradução, procuramos transpor para o português, do modo mais fiel possível, o que entendemos ser o pensamento dos autores, tentando evitar que nossas idéias e conceitos - por vezes divergentes - viessem a interferir; procuramos também, sempre que o vernáculo o permitia, manter as peculiaridades estilísticas da obra, o que nem sempre foi fácil, como se pode imaginar, tratando-se de autores do século XVII.

(...)

No decorrer dos quase três séculos e meio que nos separam da elaboração da obra, como era de esperar, alterou-se o significado de alguns termos, outros caíram em desuso e ainda outros foram criados, às vezes para o mesmo fato lingüístico; enfim, houve modificações terminológicas por vezes de largo alcance. Essa verificação levou-nos a elaborar algumas notas elucidativas, cuja finalidade precípua é ajudar o leitor a entender a terminologia dos autores, por sinal ainda bastante presos à tradição latina, em parte descritivista e normativa, relacionando-a com a da atualidade, sempre que isso nos pareceu útil ou necessário. Contudo, é preciso não desvinculá-la de sua época, nem de seu contexto histórico, sobretudo filosófico.

"Transpor", da forma "mais fiel possível" o "pensamento dos autores" e "interferir", de forma mínima, no texto fonte é o que os tradutores da Gramática de Port-Royal esperam. Vemos, aqui, a influência de pressupostos teóricos como os evidenciados em Catford (1980) e Theodor (1976), para quem a tradução aparece como transposição, transferência das intenções (pensamentos) de um autor "original" para uma outra língua.

Vejamos algumas de suas formulações:

"Tradução pode definir-se como a substituição de material textual numa língua (LF) por material textual equivalente noutra língua (LM)". (CATFORD, 1980:22). Ou, ainda, nas palavras de Theodor: "o próprio ato da tradução consiste em transferir uma comunicação determinada, expressa em um idioma definido, de tal maneira que ela surja de modo idêntico em outro". (THEODOR, 1976:21).

Nesta perspectiva, o tradutor recusa o seu papel de produtor de sentidos, pois seu dever é agir, inicialmente, como um receptor da mensagem de uma língua X e, posteriormente, como recodificador em uma língua Y.

Dessa forma, o valor de uma tradução é avaliado por sua fidelidade ao texto de partida. Na nota aqui analisada, o desejo de fidelidade se manifesta, como se vê no primeiro excerto, na tentativa, por parte dos tradutores, de "evitar" a interferência de suas próprias idéias e de "manter as peculiaridades estilísticas da obra".

No segundo excerto, esse desejo é marcado pela conjunção 'contudo', no último período. Pode-se constatar que, do ponto de vista dos tradutores, apesar das possíveis modificações requeridas pela tradução, os olhos de um tradutor devem estar sempre voltados ao texto "original", não se podendo desvinculá-lo de "sua época, nem de seu contexto histórico, sobretudo filosófico".

É interessante notar o paradoxo em que os tradutores se encontram: ao mesmo tempo em que prezam a fidelidade, parecem entender que esta nunca será alcançada por completo (somente até onde for "possível"), já que, depois de quase três séculos, "era de esperar" que o significado de alguns termos fosse alterado.

As incisas, presentes no primeiro excerto, reforçam esse paradoxo: os tradutores confessam que suas idéias e conceitos se mostraram "por vezes divergentes"; que houve a tentativa de manter as peculiaridades estilísticas da obra "sempre que o vernáculo o permitia", "o que nem sempre foi fácil, como se pode imaginar, tratando-se de autores do século XVII". Na verdade, essas incisas vêm comprovar a heterogeneidade da língua e dos sujeitos e a historicidade dos sentidos. Estes não podem ser imobilizados: há sempre um jogo de repetição e deslocamento na/pela linguagem.

Ao mesmo tempo em que almejam transpor o "pensamento dos autores", os tradutores sabem que podem modificá-los com seus próprios pensamentos, daí a tentativa de evitar a interferência de "nossas idéias e conceitos". Sabem que estarão sempre diante de uma leitura: daquilo que entendem "ser o pensamento dos autores".

O desejo de fidelidade à obra "original" esbarra na história: o texto traduzido não será jamais uma cópia exata do texto fonte, uma vez que não se podem reproduzir as condições de produção deste. Daí a afirmação, no segundo excerto, de que "houve modificações por vezes de largo alcance". Aqui, a historicidade dos sentidos vem confrontar a crença em sua transcendência: afinal, por que relacionar a terminologia dos autores com a da atualidade?

Se, por um lado, o tradutor deve ser aquele que não interfere no trabalho do autor, que deve permanecer submisso às idéias deste, por outro, ele parece deter o poder de esclarecer ao leitor o significado da obra fonte e de avaliar as partes desta que necessitam ser adaptadas. O tradutor tem a "chave" que desvenda os segredos contidos na outra língua, pois é capaz de elaborar "notas elucidativas" para auxiliar o leitor atual, "sempre que isso nos pareceu útil ou necessário".

Assim, os tradutores estão entre o desejo de não tocar (n)a obra e a constatação dessa impossibilidade. De fato, eles negam um poder que, ao mesmo tempo, reconhecem ter: eles são capazes de avaliar os pontos do texto fonte que devem ser explicados ("sempre que isso nos pareceu útil ou necessário"); entretanto, aclamam para si o papel de meros transportadores. Eles tomam a palavra para dizer que não estarão na obra que eles mesmos escreveram...

De fato, "o tradutor navega em águas turbulentas em que se misturam o desejo (ideal) de fidelidade e a consciência, ainda que parcial, de sua impossibilidade". (CORACINI, 2005a).

Passemos à análise da segunda nota.

Segunda nota - Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação

Tradução de Marcus Vinicius Mazzari.

(...)

Sobre crianças, juventude e educação intitula-se originalmente esta antologia publicada na Alemanha em 1969, pela editora Suhrkamp. A sua primeira edição brasileira apareceu 15 anos depois, pela Summus Editorial. Para a presente edição da Editora 34/Duas Cidades, o tradutor refez o trabalho inteiramente, procurando corrigir os descuidos da primeira e elaborando notas que por vezes são imprescindíveis para a plena compreensão da argumentação benjaminiana.

(...)

"Tudo à perfeição talvez se aplainasse / Se uma segunda chance nos restasse", diz Goethe no dístico citado por Benjamim num ensaio em que ilumina, com a característica argúcia, o mundo dos jogos e das brincadeiras, regido pela lei da repetição. Desnecessário dizer que "perfeição" não é uma palavra que possa figurar no horizonte de uma tradução - sem contar que, no ensaio a "segunda chance" goethiana é substituída por um eterno "mais uma vez", por um "sempre de novo". De qualquer modo, esta segunda tradução guiou-se sempre, em cada um dos 19 escritos aqui reunidos, pelo intuito de apresentar ao leitor um texto o mais próximo possível do rigor e da rara sensibilidade de Walter Benjamim.

Ao comentar o trabalho que realizou, o tradutor, estranhamente se colocando em terceira pessoa ("o tradutor [ele] refez o trabalho inteiramente"), declara que procurou corrigir as imperfeições da primeira edição da obra e elaborar notas que permitissem uma "plena compreensão da argumentação benjaminiana".

Vemos, novamente, o desejo do tradutor de ser fiel ao texto ou ao autor do texto fonte. Aqui, este desejo parece potencializar-se: não basta que o leitor compreenda a obra, é preciso que ele tenha uma "plena compreensão", o que, por sua vez, só é possível por meio das notas do tradutor ao longo do texto.

Entretanto, o que seria uma "plena compreensão" de uma obra? Uma compreensão que esgotasse todos os possíveis sentidos do texto? Ou que desse conta de toda a sua heterogeneidade? Aliás, seria essa "plena compreensão" algo mensurável?

O tradutor aparece, pois, como aquele que é capaz de controlar os sentidos (certamente estáticos, fixos, centrados!) presentes no texto fonte e colocá-los no texto da língua alvo, de forma a propiciar uma "plena compreensão".

Todavia, por mais que se esforce, o tradutor tem consciência de que não alcançará a totalidade tão almejada, uma vez que é "desnecessário dizer que 'perfeição' não é uma palavra que possa figurar no horizonte da tradução". Desta forma, ao tradutor resta aquilo que é do plano do humano (a perfeição cabe ao divino, ou ao texto fonte...), ainda que seu alvo seja buscar a perfeição, apresentando ao leitor "um texto o mais próximo possível do rigor e da rara sensibilidade de Walter Benjamim".

Nesse sentido, o "original" seria uma obra completa, definitiva, enquanto a tradução estaria aberta à reelaboração. Apenas a tradução seria marcada por um "eterno mais uma vez", por um "sempre de novo".

Observamos, pois, uma concepção recorrente em estudos sobre a tradução: trata-se da noção da perda de sentido, que ocorreria ao se transportar uma mensagem entre duas línguas distintas. Newmark (1976:84) ilustra essa idéia ao afirmar que "translation is a craft consisting in the attempt to replace a written message in one language by the same message in another language. Each exercise involves some loss of meaning, due to a number of factors".

Algumas palavras desse excerto nos chamam a atenção, a saber: replace, same message e loss of meaning. De fato, somente se pode entender a "perda de sentido", conforme concebida pelas correntes teóricas mais tradicionais, ao se considerar a tradução como tentativa de "substituição" da "mesma mensagem" de uma língua para outra. Assim, a tradução consistiria na perda de algo (o sentido) fixo, estável, imutável justamente porque não se poderia transportar/substituir, sem danos, uma certa essência. Além disso, como admitir a existência de uma overtranslation ou de uma undertranslation, senão por meio da crença de que os sentidos estão localizados no texto? Aliás, o que (ou quem) indicaria ao tradutor a medida exata da tradução?

Ora, se a tradução é o lugar da perda (e o "original" da completude!), conclui-se que o trabalho do tradutor será sempre um trabalho de distorção, de imperfeição e de falhas. E, sendo assim, melhor é que ele nem apareça...

Concordamos com Arrojo (1993), para quem a tensão original x tradução reflete, na verdade, a polêmica relação lingüística do referente x signo. O referente, ou "a coisa-em-si", estaria para o "original", assim como o signo para a tradução. Conforme a autora mostra, essa idéia é questionada pela desconstrução derridiana, através do conceito de différance: o que de fato existe é um adiamento infinito: os signos sempre se referem a outros signos; não se alcança jamais a "coisa-em si". Em suas palavras:

Se toda tradução "falha" ao tentar reproduzir a totalidade de seu "original", é exatamente porque não existe essa totalidade como uma presença plasmada no texto e imune à leitura e à mudança de contexto, mesmo dentro do que chamamos de uma "única" língua, desestabilizando, assim, a concepção logocêntrica de origem e plenitude e, conseqüentemente, a crença na possibilidade de significados estáveis e independentes do jogo lingüístico. (p.75).

Vejamos agora as representações dos tradutores da Bíblia na Nova Versão Internacional.

Terceira nota3 3 Na verdade, trata-se de um prefácio, elaborado pela comissão de tradução, com o intuito de informar o leitor acerca do trabalho realizado. -Bíblia

Tradução pela comissão de tradução da Sociedade Bíblica Internacional

(...)

O propósito dos estudiosos que traduziram a NVI foi somar à lista das várias traduções existentes em português um texto novo que se definisse por quatro elementos fundamentais: precisão, beleza de estilo, clareza e dignidade. Sem dúvida alguma, a língua portuguesa é privilegiada pelo fato de contar com tantas e tão boas traduções das Escrituras Sagradas. A NVI pretende fazer coro a tais esforços, prosseguindo a tarefa de transmitir a Palavra de Deus com fidelidade e clareza, reconhecendo ao mesmo tempo a necessidade de uma nova tradução das Escrituras em português. Essa necessidade comprova-se particularmente em razão de dois fatores:

1. a dinâmica de transformação constante da linguagem, tanto no vocabulário como na organização de frases (sintaxe);

2. o aperfeiçoamento científico no campo da arqueologia bíblica, do estudo das línguas originais e de línguas cognatas, da crítica textual e da própria ciência lingüística.

A NVI define-se como tradução evangélica, fiel e contemporânea. Seu alvo é comunicar a Palavra de Deus ao leitor moderno com tanta clareza e impacto quanto os exercidos pelo texto bíblico original entre os primeiros leitores. Por essa razão, alguns trechos bíblicos foram traduzidos com maior ou menor grau de literalidade, levando sempre em conta a compreensão do leitor.

(...)

Com o propósito de melhor apresentar o perfil da NVI, queremos enumerar suas peculiaridades:

(...)

7. Notas de rodapé

As notas de rodapé são freqüentes na NVI. Tais notas enriquecedoras atendem a várias necessidades: a) tratam de questões de crítica textual (i.e, de leituras alternativas nas línguas originais), b) apresentam traduções alternativas, c) oferecem explicações e d) mostram qual seria a opção literal da tradução. Não há dúvida de que permitiram ao leitor uma compreensão muito maior do texto sagrado.

O primeiro parágrafo traz palavras que, dentro do discurso, vão construindo a representação do tradutor (neste caso, dos tradutores) acerca de si e de seu trabalho, a saber: precisão, clareza, dignidade e fidelidade.

Esses termos estão longe de ser unívocos. Afinal, o que seria um sentido preciso? O mais correto? O mais próximo do "original" ou exatamente como no "original"? O que dizer da clareza? Haveria um texto claro "em si"? Seria possível esclarecer, de vez, todos os seus sentidos para todos os leitores, independentemente do contexto histórico-social? Apesar da fragilidade desses termos, nota-se que, ainda assim, eles fundamentam o trabalho do tradutor.

Novamente, vemos a representação de um tradutor que, mesmo aceitando a existência de uma "dinâmica de transformação constante da linguagem", atribui a si a capacidade de controlar os sentidos (a ponto de torná-los claros e precisos), e o dever de esconder-se atrás do texto dito original, sem interferir em seu conteúdo. Prova disso é o fato de os tradutores afirmarem que a tradução apresentada comunica o texto fonte "com tanta clareza e impacto quanto os exercidos pelo texto bíblico "original" entre os primeiros leitores". O sentido, pois, transcenderia a língua, a história e a cultura dos leitores.

A palavra "dignidade", no primeiro parágrafo, é também bastante sugestiva, na medida em que revela uma posição tradicionalmente conferida ao tradutor: a de traidor. Ao aclamar a dignidade como um dos fundamentos de seu trabalho, os tradutores, na verdade, defendem-se contra qualquer palavra de acusação de que tenham sido "indignos" em algum momento da tradução.

O interessante, entretanto, é que sua defesa não consiste no questionamento que sustenta tal acusação, mas na aceitação desta. Os tradutores concordam que distorcer o "original" seria uma postura indigna, reprovável, o que talvez se acentue pelo fato de o texto fonte ser um texto de caráter sagrado.

Mas o que seria distorcer um texto? Perverter-lhe o sentido original? Modificar o seu "real" sentido? Quem, afinal, poderia julgar o "grau de distorção" de um texto? Alguém capaz de absorver na íntegra o seu sentido?

Muitas perguntas poderiam ainda ser feitas a fim de questionar a noção de fidelidade em que se assentam os tradutores da nota aqui analisada. Entretanto, cremos que os próprios tradutores acabam traindo-se a si mesmos, ao apresentarem as "peculiaridades"4 4 Referimo-nos, aqui, especificamente ao item sete da nota dos tradutores ( Notas de rodapé). de sua versão do "original".

Observe-se o ponto sete, que trata das "freqüentes" notas de rodapé introduzidas no texto traduzido. Mostra-se, aqui, que os sentidos, que tanto se tenta dominar, acabam escapando, para, novamente, tentarem ser capturados nas "traduções alternativas", na "opção literal".

Ora, o que seriam essas "traduções alternativas" senão a prova de que não há um sentido único, localizado no texto e de que os tradutores interpretam o texto fonte (e não apenas transferem mensagens de uma língua para outra), produzindo sentidos e avaliando a tradução que seria, diríamos, oficial, em contraposição à "alternativa"?

Se há, conforme eles, uma opção "literal", há, pois, a possibilidade de escolha, de tomada de decisão. Em outras palavras, não há um sentido único e fixo no texto à espera do tradutor; pelo contrário, é justamente devido à sua polissemia constitutiva que o texto fonte permite mais de uma versão para a língua alvo. Aliás, dentre as possibilidades de variadas versões para um "mesmo" texto, qual seria capaz de provocar o mesmo impacto do "original" nos leitores atuais?

Vê-se que, longe de ser um veículo neutro que transporta conteúdos de uma língua para outra, o tradutor é, antes, um sujeito que transforma, por meio de suas opções (conscientes ou não), o texto fonte.

Dessa forma, as notas de rodapé incluídas pelos tradutores em seu texto e que são vistas por eles como "enriquecedoras", na verdade, denunciam a sua própria "traição" ao texto "original", pois comprovam o fato de que eles não foram capazes de "absorver" o "sentido único" ou "correto" daquele, justamente por não existirem tais sentidos.

Assim, questionando a tão aclamada fidelidade, podemos nos perguntar: a que, de fato, foram fiéis os tradutores do texto em questão? A qual versão? A qual interpretação?

As notas de rodapé5 5 Para uma análise das notas do tradutor, ver Mittmann (2003). presentes em textos traduzidos não se constituem em uma simples ferramenta de esclarecimento ou enriquecimento de que dispõem os tradutores. Trata-se, antes, da manifestação do desejo da completude constitutivo dos sujeitos. Trata-se do desejo de alcançar a totalidade dos sentidos da língua fonte. Desejo este que será sempre frustrado, uma vez que o próprio "original" não está fechado em si mesmo, mas oferece "leituras alternativas" (como se vê no item a).

Desse modo, dentro de uma perspectiva tradicional, pode-se dizer que, por mais que se esforce por ser "digno", o trabalho do tradutor será sempre suspeito, sempre passível de receber uma condenação, pois ele mesmo confessa - ainda que ingenuamente - que não pode ser totalmente fiel. Sem perceber, ele deixa os rastros de sua presença e confirma a acusação de que é sempre um traidor, já que sempre toca o "original".

Antes de passarmos à análise da última nota, cabe-nos ressaltar, a propósito da existência de uma "opção literal", que a discussão acerca da necessidade da fidelidade nos estudos da tradução está, sem dúvida, relacionada à controversa questão da literalidade. Afinal, em que, de fato, consiste uma tradução literal?

Arrojo e Rajagopalan (2003) argumentam que a literalidade refere-se à crença na existência de um sentido "protegido", independente de qualquer contexto histórico-social e capaz de não ser "atingido" por interpretações. Na verdade, os autores evidenciam que, de forma mais ampla, esta questão abarca as teorias de linguagem, de leitura e mesmo uma concepção de realidade, fundamentadas em oposições dicotômicas, camufladas de objetividade e neutralidade, tais como: realidade x ficção; ciência x arte; sujeito x objeto.

Passemos, agora, à análise da última nota.

Quarta nota6 6 O tradutor intitula esta parte de: "Sobre o livro, o autor e a editora". -Pequena coletânea de poesias de língua inglesa7 7 Vale ressaltar que este livro é constituído de duas partes: a primeira trata-se da apresentação bilíngüe de poesias de língua inglesa e a segunda da apresentação de poemas do próprio tradutor.

Tradução de Masini, André C. S.

Antes de tudo, a pergunta: "mas, afinal de contas, pode-se traduzir uma poesia do inglês para o português?" Minha resposta, assim como todo este livro, não está apoiada em método formal de estudo e não tem pretensões acadêmicas ou científicas, baseia-se exclusivamente em minha intuição pessoal e longa convivência com os dois idiomas.

Feita a ressalva, afirmo que existe um abismo entre uma poesia inglesa e qualquer tentativa de compreensão da mesma em língua portuguesa. Abismo que começa com a musicalidade, o ritmo (que no inglês é mais marcado tendendo freqüentemente ao staccato), a atenção dada aos fonemas, e o tamanho das palavras que é em média menor no inglês (o que torna muitas vezes impossível preservar na tradução simultaneamente o número de sílabas e o conteúdo). Abismo que se alarga quando se chega às raízes distintas das palavras mais comuns e à diferente bagagem emocional de palavras com significados próximos.

(...)

É possível, porém encontrar algumas pontes ligando os dois lados. A primeira ponte é a essência humana: tanto lá como aqui as poesias são escritas e lidas por seres humanos; lá e aqui, o drama e a beleza essenciais do ser humano são os mesmos, assim como os eram os de nossos longínquos vovôs nas cavernas, e continuarão sendo os de nossos longínquos netinhos em planetas distantes. Outra ponte, delicada, artesanal e imperfeita são as traduções. Trabalho manual de alguém que, além de ter excelente fluência nos dois idiomas, seja poeta e tente, com sensibilidade estética, minuciosa atenção à obra original, mirabolantes artifícios e árdua aplicação, trazer a musicalidade, o ritmo, a sensação, o impacto, e a mensagem para este ambiente exótico que é o outro idioma.

(...)

Meu objetivo é o mesmo, oferecer ao leitor elementos para que, com o uso de sua imaginação, comparando a tradução com o original, possa sentir um pouco da grandeza da obra, a partir do que não passa de um arremedo. Para isso, cada poema estudado é apresentado primeiramente no original, maculado apenas com referência a notas e comentários de diversos tipos. Paralelamente é oferecida uma tradução literal que procura ser o mais fiel possível ao significado de cada palavra, além de tentar preservar a estrutura sintática original. Esta tradução, em conjunto com as notas explicativas do texto em inglês, tem três objetivos: possibilitar uma ampla compreensão do significado expresso (denotativo); apontar significados subjacentes e recursos poéticos como ritmo, aliterações, rimas, e outros; e permitir ao interessado destrinchar significados de palavras e estruturas sintáticas, como forma de aprofundar o conhecimento da língua inglesa.

(....)

Esta nota é um pouco distinta das outras, pelo fato de que temos aqui um tradutor que também é autor de poesias. E, como se percebe em seu texto, encontraremos duas representações distintas para um sujeito que se coloca ora como sujeito-tradutor, ora como sujeito-poeta.

A pergunta que inicia o texto ("mas, afinal de contas, pode-se traduzir uma poesia do inglês para o português?") é, como evidencia Arrojo (2003a), recorrente na área da tradução. Ao tecer algumas reflexões sobre as teorias da tradução, a autora aponta que o questionamento acerca da possibilidade ou legitimidade desta permeia toda a literatura da área.

Em suas palavras:

A outra face - mais visível e mais conhecida - dessa questão é o preconceito generalizado com que se considera qualquer tradução, olhada de soslaio até mesmo pelos profissionais da área. A tradição tem sido, portanto, inclemente em relação à atividade do tradutor, atribuindo-lhe, freqüentemente, um caráter de precariedade, de remendo, de "mal necessário", em oposição a um "original" sempre pleno e completo em si mesmo. (ARROJO, 2003: 72).

O preconceito em relação à tradução aparece no discurso do tradutor aqui analisado quando este apresenta a sua solução para unir o "abismo" entre povos com línguas, cultura e história diferentes: trata-se da essência humana e da tradução.

Aliás, o uso da palavra 'abismo' é bastante curioso: se existe um abismo, pode-se dizer que o trabalho do tradutor parece já marcado por um sentimento de impotência e dificuldade diante do texto fonte, uma vez que, como ele mesmo afirma, esse abismo apenas "se alarga quando se chega às raízes distintas das palavras mais comuns e à diferente bagagem emocional de palavras com significados próximos".

De qualquer forma, a primeira ponte (a essência humana) teria a capacidade de unir os homens, marcados sempre pelos mesmos "dramas" e "belezas". Assim, o conteúdo de uma poesia, expressão dessa essência, poderia ser transportado de uma língua para a outra, solucionando o "abismo". Em outras palavras, os sentidos atribuídos, por meio das poesias, que "são escritas e lidas por seres humanos", seriam identificados e reconhecidos em qualquer época pelos homens.

A tradução, por sua vez, é a ponte "delicada, artesanal, imperfeita". Esses adjetivos merecem atenção. A tradução é delicada, frágil, em oposição, talvez, à força e poder do texto "original". A tradução é artesanal, fruto de um "trabalho manual", de "mirabolantes artifícios", de "árdua aplicação". Ela é ainda imperfeita, provavelmente por ser resultado do trabalho de homens que tentam resgatar a inspiração que possibilitou a criação do texto fonte.

Essa imagem da tradução/tradutor como "ponte" é, como evidencia Coracini (2005b), um lugar-comum nas representações dos tradutores. Crendo ser alguém que simplesmente estabelece uma ligação entre duas línguas, duas culturas, dois contextos diferentes, o tradutor se esquece de que, nessa ponte, nesse espaço de transição, ele se constitui em um sujeito entre-línguas-culturas, lugar onde se mesclam e se confundem umas e outras, onde se apagam ou se embaraçam os limites, os contornos e as dicotomias arraigadas na cultura ocidental da qual somos todos herdeiros e na qual somos prisioneiros (Coracini, op. cit.).

Nota-se que, no dizer do tradutor aqui analisado, a "imperfeição da ponte" é amenizada pela "excelente fluência" do tradutor (observa-se, aqui, uma ênfase nos aspectos lingüísticos da tradução) e pelo fato de que este é também poeta, o que o autoriza a traduzir poesias. Torna-se, assim, capaz de trazer o impacto e a mensagem da língua fonte para a língua alvo.

Desse modo, observa-se que ao sujeito-poeta atribui-se a capacidade de criação, ao sujeito-tradutor, o papel de reprodução e de subserviência ao autor-original. O sujeito reconhece seu papel de autor, quando ele escreve suas poesias; contudo, a reescritura da poesia do outro aparece como um papel menor, secundário. A tradução não passa de um "arremedo". Nota-se que o "original" é colocado em um pedestal quase divino, de modo que qualquer "toque" pode "maculá-lo".

Observe-se que o leitor é convidado a comparar, "com o uso de sua imaginação", a tradução com o "original". Entretanto, nesse jogo de comparação, a tradução jamais vencerá, pois nunca possuirá a "grandeza da obra" primeira. Ela será sempre inferior e passível de ser desqualificada.

Conforme o tradutor da nota aqui analisada, uma tradução literal é oferecida paralelamente ao "original". Tal fato nos lembra o episódio da invenção da escrita no Fedro, de Platão (2004). Conforme o mito enunciado por Sócrates em seu diálogo com Fedro, Thot - um semideus - apresenta-se diante do rei dos deuses Thamuz com várias de suas invenções. Por fim, submete à apreciação do rei aquilo que seria um remédio (phármakon) para a memória e para a morte: a escritura. Entretanto, a sua oferenda é depreciada por Thamuz, já que, em seu parecer, a escritura viria auxiliar apenas a hypómnésis (re-memoração) e não a mnéme (memória viva), sendo, assim, maléfica a esta última.

Derrida (1991) chama a atenção para o fato de que, no Fedro, cabe ao rei a legitimação ou não da escritura, do phármakon. O rei atua como um pai. Um pai que vigia, que suspeita, que avalia, mas que, em contrapartida, só é pai em função do filho. O phármakon fala na ausência do pai e fala pelo pai. Entretanto, ao repetir suas palavras, a escritura pode trair o pai.

Não seria essa, nas concepções tradicionais, a situação da tradução? Uma oferenda necessária, mas, ao mesmo tempo, recusada por ser vista como reduplicação, cópia, distorção...

Na verdade, o que parece estar em jogo neste choque entre texto fonte e texto traduzido, entre sujeito-poeta e sujeito-tradutor é mesmo a noção da autoria. Como bem coloca Venuti (ou seu tradutor...):

Talvez o fator mais importante na atual marginalidade da tradução seja sua afronta contra o preconceito predominante de autoria. Enquanto a autoria é comumente definida como originalidade, auto-expressão num texto único, a tradução é derivada, nem auto-expressão nem única: ela imita outro texto. Dado o conceito dominante de autoria, a tradução provoca o medo da inautenticidade, da distorção, da contaminação. (VENUTI, 2002:65).

Nota-se, ainda, que o tradutor/poeta se fundamenta na concepção logocêntrica de literalidade, acreditando que é capaz de manter o significado original (denotativo) do texto fonte, mas também apresentar "significados subjacentes".

Novamente, temos aqui o paradoxo do tradutor: ao mesmo tempo em que se pretende fiel, neutro e invisível, revela que tem o poder de "apontar significados" e "possibilitar uma ampla compreensão" do sentido.

Cabe-nos, ainda, ressaltar a afirmação do tradutor, no terceiro excerto, de que o outro idioma é um "ambiente exótico". Seria apenas o outro idioma (no caso, o da língua de chegada) o lugar do exotismo, do estrangeirismo, do estranho? Aliás, o que seria um ambiente exótico? Para quem ele é exótico?

Tais questionamentos levam-nos a pensar a tradução como o jogo da hospitalidade/hostilidade, jogo de familiaridade e estranhamento (o unheimlich), pois ela é e não é (ao mesmo tempo!) o "original". Entretanto, esse jogo, esse "inquietante estranhamento" está já antes presente no "original", fruto das distintas interpretações.

Qual o limite entre o eu e o outro? Entre o "original" e a tradução? Seria o primeiro auto-suficiente, autônomo, sempre igual a si mesmo?

Longe da pretensão de estabelecer respostas absolutas para essas questões, optaremos por finalizar a análise da quarta obra com mais uma pergunta:

Como é que se pode dizer e como saber, com uma certeza que se confunde consigo mesmo, que jamais se habitará a língua do outro, a outra língua, quando ela é a única língua que se fala, e que se fala na obstinação monolíngue, de modo ciosamente e severamemte idiomático, sem jamais por isso estar nela em sua casa? (DERRIDA, 1996:88).

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação às notas analisadas, pode-se dizer que elas se constituem em um espaço em que o tradutor toma a palavra para esclarecer o leitor acerca não apenas de seu trabalho ou da obra em questão, mas também de suas representações sobre o que é tradução e sobre si mesmo enquanto sujeito-tradutor.

Podemos afirmar que as análises das notas permitem-nos observar que o discurso do tradutor sobre a tradução é, nos quatro excertos, atravessado pelo que chamaremos de discurso da neutralidade. Trata-se do discurso consolidado pelas concepções mais tradicionais de tradução, que a consideram como mera transposição do conteúdo do texto de uma língua de partida para a língua de chegada. O discurso da neutralidade quer fazer crer que os sentidos são estáticos e centrados no texto, podendo, assim, ser transferidos para uma outra língua, independentemente da história. A tradução seria, pois, uma simples passagem da mensagem de um código para outro.

Nesse sentido, o tradutor se identifica como transportador dos sentidos da língua de partida para a língua de chegada. Assim, sua competência será tanto maior quanto for a sua capacidade de manter-se fiel ao texto dito original.

Outro discurso que atravessa o dizer dos tradutores é o discurso da contextualização. A tradução requereria, em certos momentos, uma atualização ou adaptação dos sentidos do texto de partida ao contexto sócio-histórico do texto traduzido. E, dessa forma, pode-se dizer que, por mais que esse discurso tente reforçar o discurso da neutralidade, representando o tradutor como um simples adaptador de contextos histórico-sociais de textos de línguas diferentes, ele acaba, de outro lado, por denunciar a natureza histórica da língua e dos sentidos e a impossibilidade mesma de qualquer neutralidade ou imparcialidade no processo tradutório. A tradução é, como observamos nos próprios discursos dos tradutores, fruto de uma leitura. Prova disso é a existência das "leituras alternativas", das opções literais de tradução, das notas elucidativas etc.

E, desse modo, os tradutores são representados como intérpretes e avaliadores do texto fonte. Por mais que pretendam ser apenas transportadores de sentidos, eles se colocam como aqueles que conhecem os pontos do texto "original" que devem ser elucidados ou como aqueles que podem possibilitar uma "plena compreensão" do texto fonte.

A tradução apareceu também representada através do discurso da imperfeição, como se pôde notar claramente nas notas 2, 3 e 4. A tradução é sempre o lugar da falha, da perda, da distorção, do arremedo, mas ao "original" cabe o status da perfeição, da completude. Neste sentido, o tradutor será sempre um devedor: por mais que tente, nunca alcançará a "sublimidade" ou a grandeza do texto de partida. Nunca será totalmente fiel...

Mesmo porque "nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é outro nome do impossível". (DERRIDA, 1996:88).

É preciso ressaltar que, ao questionar essa noção de fidelidade, não estamos defendendo uma tradução irresponsável, arbitrária, que simplesmente desconsidere o texto fonte. Na verdade, assumimos, aqui, a idéia de que toda e qualquer tradução é uma interpretação. Aliás, toda e qualquer leitura (em qualquer língua) é já interpretação.

Quanto a isso, Arrojo (2003b) discute a posição logocêntrica que pressupõe a existência da oposição entre compreensão e interpretação. Esta seria independente de qualquer contexto histórico e se fundamentaria em uma relação objetivamente previsível entre leitor e texto, já aquela consistiria no resgate de significados estáveis no texto. Assim, o sujeito só poderia interpretar um texto após compreendê-lo. A autora argumenta que:

Toda tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente uma compreensão "neutra" e desinteressada ou um resgate comprovadamente "correto" ou "incorreto" dos significados supostamente estáveis do texto de partida. (ARROJO, 2003b:68).

Derrida (1991) nos adverte sobre a impossibilidade de dissociar leitura de interpretação, como se fosse possível ler "sem tocar nos fios" do texto. Leitura imparcial? Objetiva? Neutra? Bobagem... Sempre há interpretação. Aliás, para ele, interpretar é traduzir. A tradução é a lei. Traduz-se sempre.

A análise das notas nos mostra, ainda, que os tradutores estão envolvidos em um "problema", conforme aponta Derrida (1991 e 2002). Trata-se da necessidade e impossibilidade da tradução, que é, por sua vez, tomada pelo autor de forma abrangente, não apenas de língua para língua. Ao mesmo tempo em que se mostra imperiosamente necessária - já que sem tradução não há interpretação, não há construção de sentidos, não há sobrevida da escritura - a tradução revela-se também impossível, pois é constituída pela falta, pela dívida, pelo desejo sempre adiado da completude.

Se, conforme o provérbio italiano, o tradutor é traditore, é porque, ao traduzir, se depara com a "falta na língua para a qual traduz, falta que se denuncia pela impossibilidade de transpor sentidos, pela incapacidade de fazer coincidir as palavras numa língua e na outra, falta que constitui o sujeito e a linguagem - incompletos, híbridos, disformes." (CORACINI, 2005a). Aliás, não seriam também traidores, nesse sentido, os autores dos textos "originais", já que, frequentemente, se veem frente à falta das palavras? Como diria Drummond, "gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair..."

Cabe ressaltar, entretanto, que essa falta é, do ponto de vista derridiano, constitutiva da linguagem e dos sujeitos e jamais será completada ou solucionada. Na verdade, não há traição. Nas palavras de Derrida (2002:44), "a tradução não buscaria dizer isto ou aquilo, a transportar tal ou tal conteúdo, a comunicar tal carga de sentido, mas a remarcar a afinidade entre as línguas, a exibir sua própria possibilidade".

Entende-se, pois, que o desejo da fidelidade é tão presente no discurso dos tradutores, porque se trata, sobretudo, de um desejo sempre adiado, já que a própria interpretação plena, completa, perfeita do texto fonte é também sempre adiada. Se assim não fosse, ele não sobreviveria.

Assim, tem-se um paradoxo: o tradutor tem poder sobre a obra, mas admitir este poder é deslegitimar seu trabalho, já que seu papel é fazer o autor (seus pensamentos e intenções) aparecer. O tradutor é um sujeito que deseja e "deve" manter o "original" "intocável". Contudo, se tal "dever" eleva o "original" à posição de sagrado, por outro lado, também revela que ele pode ser "maculado", "contaminado" pelo tradutor.

Desse modo, ao mesmo tempo em que, na nota, o tradutor quebra o silêncio e chama a atenção do leitor para o fato de que este se encontra diante de um texto traduzido, é também na nota que o tradutor reforça o discurso de que deve se silenciar para que a voz do autor prevaleça. É aí e é também em todo o seu texto que o tradutor vela pelo "original", e revela - ainda que sem saber - que não é possível velar sem revelar. Em outras palavras, por mais que tente manter o texto fonte "imaculado", protegido, intacto, o tradutor mostra que é impossível não tocar em seus fios.

Por mais que tente negar, o tradutor, como pudemos observar, apenas revela que:

Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não-verbal e, em segundo, porque todo signo e toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase. Entretanto, esse argumento pode ser modificado sem perder sua validade: todos os textos são originais porque toda tradução é diferente. Toda tradução é, até certo ponto, uma criação e, como tal, constitui um texto único. (PAZ, apud ARROJO, 1999).

Recebido: 03/12/2008

Aceito: 13/08/2009

  • ARNAULD, A. & LANCELOT, C. (2001). Gramática de Port- Royal (1660). Trad.: Bruno Fregni Bassetto & Henrique Graciano Murachco. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.
  • ARROJO, R. (1993). A tradução passada a limpo e a visibilidade do tradutor. In: Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
  • _______. (1986). Oficina de tradução: a teoria na prática. 4 ed. São Paulo: Ática, 1999.
  • _______. (1992). As questões teóricas da tradução e a desconstrução do logocentrismo; algumas reflexões. In: O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino Campinas, SP: 2 ed, Pontes, 2003a, p.71-79.
  • _______. (1992). Compreender x interpretar e a questão da tradução. In: O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino Campinas, SP: 2 ed, Pontes, 2003b, p.67-70.
  • ARROJO, A & RAJAGOPALAN, K. (1992). A noção de literalidade: metáfora primordial. In: O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino Campinas, SP: 2 ed, Pontes, 2003, p.47-55.
  • BENJAMIM, W. (2002). Sobre crianças, juventude e educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34.
  • Bíblia Sagrada: nova versão internacional (1993). Traduzido pela comissão de tradução da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Vida, 2000.
  • CATFORD, J.C. (1980). Uma teoria lingüística da tradução: um ensaio de lingüística aplicada Trad.: Centro de Especialização de Tradutores de Inglês do Instituto de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. São Paulo: Cultrix.
  • CORACINI, M. J. R. F. (2005a). (Auto-)Representações do tradutor: entre a fidelidade e a traição. In: Tradução e Comunicação, n.14, p. 91-108.
  • _______. (2005b). O sujeito tradutor entre a "sua" língua e a língua do outro. In: Cadernos de Tradução (Florianópolis), v. XVI, p. 09-24.
  • DERRIDA, J. (1972). A farmácia de Platão Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991.
  • _______. (1996). O monolinguismo do outro ou a prótese da origem. Trad. Fernanda Bernardo. Campo das Letras.
  • _______. (1987). Torres de Babel Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
  • MASINI, A. C. S. (2000). Pequena coletânea de poesias de língua inglesa São Paulo: A.C.S. Masini.
  • MITTMANN, S. (2003). Notas do tradutor e processo tradutório: análise sob o ponto de vista discursivo. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS.
  • NEWMARK, P. (1976). The theory and the craft of translation Language Teaching and linguistics abstracts.
  • ORLANDI, E. P. (1998). Identidade lingüística escolar. In: Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Signorini, Inês (org.). Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: FAPESP, p. 203-212.
  • PÊCHEUX, M. (1983). Por uma análise automática do discurso 3 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.
  • PLATÃO. (2004). Fedro. Trad.: Marins, Alex. São Paulo: Martin Claret.
  • THEODOR, E. (1976). Tradução: ofício e arte São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo.
  • VENUTI, L. (1986). A invisibilidade do tradutor. In: Palavra 3
  • _______. (2002). Escândalos da Tradução Trad.: Laureano Pelyrin & alli. Bauru (SP): EDUSC.
  • 1
    Este texto foi apresentado como trabalho de qualificação de área para o programa de doutorado em Lingüística Aplicada, sob a orientação da Profa. Doutora Maria José R.F. Coracini, a quem agradecemos as ricas leituras e sugestões.
  • 2
    A saber: Gramática de Port-Royal; Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação; a Bíblia na Nova Versão Internacional; e Pequena coletânea de poesias de língua inglesa)
  • 3
    Na verdade, trata-se de um prefácio, elaborado pela comissão de tradução, com o intuito de informar o leitor acerca do trabalho realizado.
  • 4
    Referimo-nos, aqui, especificamente ao item sete da nota dos tradutores (
    Notas de rodapé).
  • 5
    Para uma análise das notas do tradutor, ver Mittmann (2003).
  • 6
    O tradutor intitula esta parte de: "Sobre o livro, o autor e a editora".
  • 7
    Vale ressaltar que este livro é constituído de duas partes: a primeira trata-se da apresentação bilíngüe de poesias de língua inglesa e a segunda da apresentação de poemas do próprio tradutor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      03 Dez 2008
    • Aceito
      13 Ago 2009
    UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: spublic@iel.unicamp.br