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Cartografia das tensões no cuidado em saúde mental a partir da ferramenta analisadora “usuário-guia”

Cartography of tensions in mental health care from the “user-guide” analysis tool

Cartografía de las tensiones en el cuidado de la salud mental mediante la herramienta de análisis “usuario-guía”

Resumo

Ao partir da condução do método da cartografia, esta pesquisa buscou investigar, com trabalhadores e usuários de um centro de atenção psicossocial, os modos de invenção cotidiana do cuidado em saúde mental, considerando os efeitos da micropolítica do trabalho e o contexto pandêmico da Covid-19. O trabalho em saúde, nesse sentido, é uma produção micropolítica entre todos os atores envolvidos no território em que a Reforma Psiquiátrica acontece no cotidiano, perpassando por inúmeros desafios em um campo de forças e embates para a consolidação de um modelo de atenção psicossocial pautado no cuidado em liberdade, na cidadania e na autonomia dos usuários dos serviços de saúde mental. Para realizar a investigação, a cartografia se estabeleceu em dois atos: no primeiro, produziu-se, com um coletivo de trabalhadores de um centro de atenção psicossocial, a ferramenta ‘usuário-guia’, que pretende construir a narrativa do percurso de cuidado de um usuário; no segundo, construiu-se, juntamente com os usuários do mesmo serviço, seus percursos singulares na busca pelo cuidado em saúde mental.

Palavras-chave:
Reforma Psiquiátrica; cartografia; micropolítica; cuidado

Abstract

From the cartography method conduction, this research sought to investigate, with workers and users of a psychosocial care center, the ways of everyday invention of mental health care, considering the effects of micropolitics of work and the pandemic context of COVID-19. Health work, in this sense, is a micropolitical production among all the actors involved in the territory in which the Psychiatric Reform takes place in daily life, going through numerous challenges in a field of forces and clashes for the consolidation of a psychosocial care model based on care in freedom, citizenship and autonomy of users of mental health services. In order to carry out the investigation, cartography was established in two acts: in the first one, with a collective of workers from a psychosocial care center, the tool ‘user-guide’, which intends to build the narrative of a user’s care path; in the second, together with the users of the same service, their unique paths were built in the search for mental health care.

Keywords:
Psychiatric Reform; cartography; micropolitics; care

Resumen

A partir de la realización del método de cartografía, esta investigación buscó investigar, con trabajadores y usuarios de un centro de atención psicosocial, los modos de invención cotidiana de la atención en salud mental, considerando los efectos de la micropolítica del trabajo y el contexto pandémico de la Covid-19. El trabajo en materia de salud, en este sentido, es una producción micropolítica entre todos los actores implicados en el territorio en el que se desarrolla la reforma psiquiátrica en el cotidiano, que pasa por numerosos desafíos en un campo de fuerzas y embates para la consolidación de un modelo de atención psicosocial basado en la atención en libertad, la ciudadanía y la autonomía de los usuarios de los servicios de salud mental. Para llevar a cabo la investigación, la cartografía se estableció en dos actos: en el primero se produjo, con un colectivo de trabajadores de un centro de atención psicosocial, la herramienta ‘usuario-guía’, que pretende construir la narrativa de la ruta de atención de un usuario; en el segundo, se construyó, junto con los usuarios del mismo servicio, sus itinerarios singulares en la búsqueda de la atención en salud mental.

Palabras clave:
Reforma Psiquiátrica; cartografía; micropolítica; atención

Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira se deu com o protagonismo dos próprios sujeitos em sofrimento psíquico, seus familiares, comunidades e trabalhadores em saúde, os quais inauguraram o movimento da luta antimanicomial. Tal processo tornou-se fundamental para pautar - nos espaços da sociedade e das políticas públicas - a mudança dos modelos técnico-assistenciais e socioculturais que acolham e compreendam a loucura em sua dimensão complexa e construída com base nos determinantes sociais da saúde (Amarante, 2007AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.). Essa transição de modos de cuidar e tratar em saúde mental coloca os processos de trabalho diante de uma virada na concepção ético-política: não mais práticas estigmatizadoras e excludentes, não mais violação de direitos humanos no espaço fechado dos manicômios, mas agora cuidado em liberdade, vínculos comunitários, produção de vida no cotidiano do território e a inserção de um modo de fazer pautado em uma clínica ampliada e compartilhada.

Segundo Bezerra Jr. (2007BEZERRA JR., Benilton. Desafios da Reforma Psiquiátrica no Brasil. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 243-250, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v17n2/v17n2a02.pdf. Acesso em: 3 jun. 2020.
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), os inúmeros desafios na transição do modelo hegemônico de tratamento psiquiátrico para o modelo de cuidado em liberdade colocam a Reforma Psiquiátrica em um plano de lutas e embates: manter seus tensionamentos de um fazer ético-político ou ceder aos jogos de poder que visam conservar os modos tradicionais de conceber e tratar a loucura. Tal processo se intensifica diante dos desmontes das políticas públicas de saúde - em especial as políticas antimanicomiais - que fragmentam os serviços substitutivos e desarticulam os saberes do cuidado em liberdade no território.

Nessa direção, a pesquisa aqui apresentada resultou do processo de conclusão da formação em serviço proporcionada pela Residência Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Para tanto, teve-se como objetivo geral acompanhar os processos de cuidado percorridos tanto pelos trabalhadores quanto pelos usuários de um serviço de saúde mental, compreendendo quais são as narrativas singulares e como as relações vão se delineando nos modos de cuidar pautados na Reforma Psiquiátrica. Diante disso, a realização da pesquisa foi possível por meio de uma metodologia cartográfica, experimentando as produções de subjetividade que acontecem no plano da pesquisa e no encontro que se dá entre pesquisador e participantes, compreendendo-os como objetos coemergentes e que se engendram no percurso investigativo (Barros e Passos, 2015BARROS, Regina B.; PASSOS, Eduardo. Diário de bordo de uma viagem-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 172-200.), traçando mapas singulares da vivência desses atores no cuidado em saúde mental e das micropolíticas que estão em ato no cotidiano do trabalho na Reforma Psiquiátrica.

Previamente à sua realização, essa investigação passou por apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Escola de Saúde Pública da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (ESP/SES/RS), compreendendo o que foi disposto na resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 510, de 7 de abril de 2016. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf. Acesso em: 10 nov. 2021.
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); para tanto, as identidades dos participantes foram preservadas, bem como o local onde a pesquisa aconteceu. A pesquisa ocorreu no período que compreende o contexto pandêmico do vírus da Covid-19, o que resultou, portanto, em efeitos significativos no modo como a investigação se deu diante da necessidade do distanciamento social, bem como nas reverberações da emergência sanitária no funcionamento dos serviços de saúde.

A pesquisa se estabeleceu em dois momentos, aqui chamados de atos: um ato construído com a equipe de trabalhadores de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Rio Grande do Sul; e outro ato com usuários desse mesmo serviço. Para essa construção coletiva de análise dos processos de cuidado em um serviço de saúde mental, foi utilizado, no ato com os trabalhadores, a construção do usuário-guia, uma ferramenta que possibilita a construção de narrativas de um encontro sobre a produção do cuidado com usuários acompanhados em um serviço de saúde.

Para o ato com os usuários, os quais foram indicados pela equipe de trabalhadores participantes da pesquisa, por meio da técnica do incidente crítico, buscou-se a necessidade de traçar um determinado perfil de usuário participante da investigação com base no que foi construído ao longo dos encontros com a equipe do CAPS. No trajeto com esses usuários, a proposição foi de construção das cartografias trilhadas por esses sujeitos em sua relação com os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e nas suas circulações pelos territórios vivos da comunidade.

Ato um: o cuidado em saúde mental entre a criação de um plano comum de afetos e as capturas biopolíticas da loucura

Cartografar o cuidado no plano da Reforma Psiquiátrica é habitar a tensão própria de um trabalho que propõe a quebra de um paradigma do modo colonial de transpor o mundo: tutelar, prender, violar, encarcerar. O trabalho antimanicomial estabelece um outro paradigma: o da liberdade dos corpos. É com essa bússola que se sai em direção a um plano de pesquisa, em que os encontros com os atores envolvidos no cuidado em saúde mental darão as pistas para os modos de subjetivação vigentes no fazer cotidiano da Reforma Psiquiátrica.

O terapeuta é quem vai habitar o limite, a tensão própria do trabalho antimanicomial. Trabalho no qual se substitui o muro do hospício pelo corpo do terapeuta (Lancetti, 2016LANCETTI, Antonio. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2016., p. 104).

Começa-se essas trilhas pelo estabelecimento de um problema de pesquisa, uma pergunta que irá guiar o caminho a ser estabelecido: quais as concepções dos usuários e trabalhadores em saúde mental sobre o processo de acompanhamento e cuidado nos seus percursos trilhados na RAPS e no território? Com essa indagação, um diário de campo e algumas pistas metodológicas (Barros e Passos, 2015BARROS, Regina B.; PASSOS, Eduardo. Diário de bordo de uma viagem-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 172-200.), estabelece-se o plano da pesquisa, que se inicia com os trabalhadores de um CAPS. A proposta é que coletivamente possam ser construídas narrativas sobre o percurso de um cuidado, por meio da operacionalização de uma ferramenta chamada ‘usuário-guia’, a qual possibilita olhar para o modo como acontece um encontro entre um usuário e os trabalhadores que compõem um serviço. Em um primeiro momento, foram feitos os contatos com a Secretaria Municipal de Saúde e a Coordenação do CAPS para apresentação da pesquisa e definição dos tempos em que ela ocorreria. Assim, o primeiro ato com os trabalhadores foi realizado durante a reunião de equipe.

Ao chegar na primeira reunião de equipe, o cartógrafo apresentou a pesquisa e convidou os trabalhadores a participarem dessas trilhas a serem percorridas, estabelecendo-se ali um primeiro laço, momento definido por Kastrup (2015)KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade . Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 32-50. como rastreio, uma espécie de reconhecimento do campo, uma atitude de concentração naquilo que se passa no plano da investigação em curso. Durante o rastreio, os trabalhadores aceitam participar da pesquisa, com todas as limitações impostas pela pandemia da Covid-19; definiu-se que os encontros seriam quinzenais e se estabeleceu o número de três momentos para a construção do usuário-guia, bem como uma primeira tarefa para o próximo encontro: a escolha, pela equipe, de um usuário do serviço, para que se colocassem em análise as cenas que compuseram seus encontros e as linhas de cuidado adotadas.

Na construção do usuário-guia, consideram-se algumas pistas que iriam orientar o trabalho: prontuários, memórias, usuários e profissionais envolvidos (EPS em Movimento, 2014EPS EM MOVIMENTO. Usuário-guia. 2014. Disponível em: http://eps.otics.org/material/entrada-experimentacoes/usuario-guia. Acesso em: 20 set. 2020.
http://eps.otics.org/material/entrada-ex...
)1 1 A referência “EPS Em Movimento” é fruto de debates realizados em torno das formações para o ensino em serviço e educação permanente no SUS. O link de acesso ao texto - http://eps.otics.org/material/entrada-experimentacoes/usuario-guia -, que confere as pistas para realização do Usuário-Guia, se encontrava instável no momento da produção editorial do artigo. Caso o leitor não consiga acessar a referência, os autores possuem os textos e podem disponibilizá-los via e-mail. . Para dar conta de investigar essas categorias, foi utilizada uma hora de produção ao longo de três reuniões da equipe do CAPS; todos os encontros foram gravados, com autorização dos trabalhadores. Tais pistas indicam os registros feitos ao longo do tempo sobre o caso escolhido, compondo, assim, informações significativas sobre o usuário e sobre como a equipe conduz, ao longo do tempo, os modos de cuidar dele. A escolha do usuário, para que sejam feitas as análises de seu percurso de cuidado, deve ser coletiva e fundamentada em uma decisão da equipe em revisitar aquelas histórias em que o encontro com o usuário se configurou mediante um alto grau de complexidade (EPS em Movimento, 2014)EPS EM MOVIMENTO. Usuário-guia. 2014. Disponível em: http://eps.otics.org/material/entrada-experimentacoes/usuario-guia. Acesso em: 20 set. 2020.
http://eps.otics.org/material/entrada-ex...
.

Na condução desse processo, utilizou-se um roteiro de construção do usuário-guia, que consiste em três pistas com suas respectivas indagações: pistas dos prontuários, das memórias e de encontros com a rede. Juntas, tais pistas compõem a cena do encontro entre um usuário e uma equipe de saúde, potencializando a ferramenta do usuário-guia como um dispositivo analisador do processo de trabalho em saúde mental. Compreende-se, segundo Foucault (2014FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2014.), que o dispositivo é um conjunto de proposições que exerce função estratégica e se inscreve nas relações de poder e que, com base nas contribuições de Lourau (2004LOURAU, René. Campo socioanalítico. In: ALTOÉ, Sandra (org.). René Lourau, analista em tempo integral. São Paulo: Hucitec, 2004.), toma a dimensão de analisador como fenômeno catalisador de certas situações e processos instituídos que se passam em determinado grupo e instituição.

Ao retornar à reunião de equipe do CAPS, os trabalhadores apresentaram três nomes de usuários possíveis para realizar a produção do usuário-guia. Surgiram narrativas da dificuldade de se chegar no consenso de apenas um nome e o desejo de debater junto com o cartógrafo essa escolha, evidenciando uma importante etapa desse percurso: transversalizar a comunicação e abrir espaço para a passagem do desejo coletivo de decisão em uma equipe. A fala “existem tantos usuários que a gente precisa analisar o cuidado” demonstra que existem aberturas para se navegar nesse percurso cartográfico, ao mesmo tempo que fica evidente que a equipe precisa se deparar com seu próprio fazer, olhando para o seu cotidiano de trabalho.

O conceito de transversalidade, proposto por Guattari (2004GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias & Letras, 2004.), é fundamental na compreensão de que esse processo de intervenção com a equipe é clínico-político, ao se perceber a perspectiva de que o coeficiente de transversalização das relações institucionais se dá por meio das redes comunicacionais, apostando nas potências que emergem das relações dos diversos grupos entre si. Para Guattari (2004)GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias & Letras, 2004., a ‘transversalidade’ é uma oposição e, ao mesmo tempo, uma superação de dois impasses: a verticalidade e a horizontalidade. A verticalidade refere-se àquilo que ocorre nas estruturas e nos organogramas institucionais com base em uma comunicação hierárquica, enquanto a horizontalidade refere-se a um modo como as pessoas se comunicam segundo um pressuposto de homogeneidade das relações. A superação desses dois modos por meio da transversalidade opera no sentido de fazer emergir uma comunicação entre todos os atores dos diferentes níveis, considerando os diferentes sentidos que cada um compõe nesse processo.

Diante disso, ao movimentar uma capacidade de tomada de decisão, o cartógrafo constrói - com a equipe - uma possibilidade de ampliação da transversalidade nas relações institucionais. A equipe, então, no segundo encontro, não entra em consenso sobre qual usuário será construída a narrativa do cuidado; nesse momento, imbricado com o processo de rastreio, pode-se perceber a emergência do ‘toque’ como passagem das sensações do que acontece no plano de pesquisa, o tatear de um relevo que se cria pela potência de afetação do cartógrafo (Kastrup, 2015KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade . Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 32-50.) e dos atores da cena da pesquisa. Após colocar em análise os impasses de decisão, a equipe escolhe um usuário para a construção do usuário-guia: uma mulher de 42 anos que, segundo relatos dos trabalhadores, mobiliza o serviço constantemente por conta de suas necessidades de cuidado em diversos campos de sua vida, bem como convoca a necessidade constante de uma costura multiprofissional na composição do caso clínico.

O usuário-guia convida o coletivo de trabalhadores para a discussão do caso clínico com suas implicações no cotidiano do serviço. Para Siqueira (2020SIQUEIRA, Anna L. M. T. O caso clínico como caso social. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (org.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 59-79.), a discussão de um caso clínico permite que se possa narrar um saber que parte da experiência, situando a compreensão de um sujeito que é atravessado por questões externas de tal modo que a separação entre clínica e política é inexistente, evidenciando, portanto, o caso clínico como um caso social. Quando se fala em social, refere-se às forças que compõem um mundo, campo de cruzamento entre o sujeito e a cultura, as instituições, os discursos e as relações de saber-poder que se agenciam nos modos de vida. As falas dos trabalhadores aqui trazidas são parte da composição dessa construção da análise do caso com base no usuário-guia.

Usuária tem 42 anos, mora sozinha, agora parece que está com um companheiro, a casa tava bem precária sem luz e sem água, mas isso já foi resolvido [...] não sabemos ao certo o que ela tem, parece que uma esquizofrenia, ela não costuma falar muito, mas já está aqui com a gente uns bons anos (Trabalhador da Equipe)2 2 Optou-se por identificar todas as narrativas dos trabalhadores do CAPS como ‘Trabalhador da Equipe’, uma vez que a pesquisa foi produzida em um espaço coletivo em que as falas foram sobrepostas em um plano comum de produção do usuário-guia. .

As narrativas que abrem a construção do usuário-guia trazem algumas percepções da equipe sobre a usuária. Entre os diversos elementos que compõem essa história, pelas precariedades e vulnerabilidades da casa da usuária ou pelo marcador diagnóstico da ‘esquizofrenia’ que surge como algo incerto, ficam evidentes os impasses de narrar o sujeito além do sofrimento. Afinal, quem é essa usuária? O que compõe a sua história além da loucura? A equipe, apesar da dificuldade de narrar o caso, evidencia um elemento crucial do cuidado no âmbito da Reforma Psiquiátrica: a presença. A exemplo dessa presença, há as seguintes falas: “não sabemos ao certo o que ela tem”, “[no entanto, está aqui] com a gente uns bons anos”. O corpo presente do terapeuta-coletivo surge como um agente do cuidado, como resistência às feridas causadas pelo sofrimento. A equipe do CAPS, nessa direção, exerce a potente tarefa de cuidar e oferecer o próprio corpo, apesar das incertezas e das vulnerabilidades, para além de um diagnóstico e do próprio silêncio da usuária. Mas há uma tensão nessa produção de cuidado: o tempo.

Quando nos deparamos com a afirmação “está com a gente uns bons anos”, fala-se de um curso de vida cerceado pela instituição. Sabe-se que a dimensão de tempo e espaço é fundamental no estabelecimento de instituições totalizantes, como acontece na lógica manicomial (Venturini, 2016VENTURINI, Ernesto. A linha da curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016.). Como abrir a potência do tempo intensivo da loucura no social? De que modo, como base no cuidado em saúde mental, pode-se inventar um tempo que abra um parêntese nas paralisias institucionais? O desafio aqui apresentado é poder, na construção coletiva entre os atores que protagonizam o fazer da Reforma Psiquiátrica, constituir aberturas no tempo que se imobiliza dentro da vida institucional. Lancetti (2016LANCETTI, Antonio. Clínica peripatética. São Paulo: Hucitec, 2016.) compreendia a tarefa de ‘turbinar o CAPS’ abrindo o serviço a uma potência de produção da vida.

Os profissionais que geralmente atendem é o psiquiatra, o pessoal da enfermagem e só. Os procedimentos que ela mais costuma fazer é consulta médica e a aplicação do remédio injetável intramuscular e às vezes aconselhamento com o técnico de referência. Ela vinha bastante no serviço pra tomar banho, na época que estava sem água e luz em casa. Quando ela vem fora do horário marcado, geralmente quem conversa é a técnica de referência dela (Trabalhador da Equipe).

A narrativa anterior evidencia, para o coletivo de trabalhadores envolvidos nessa cartografia, a questão da multiprofissionalidade no cuidado em saúde mental. Ao produzir-se, no usuário-guia, um processo de reflexão sobre quais profissionais se envolvem no acompanhamento do usuário, a equipe se depara com a centralidade nos procedimentos médico-psiquiátricos e o pouco investimento na relação usuário-trabalhador. Destaca-se aqui a contribuição de Merhy (2014MERHY, Emerson E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.) para conceituar as tecnologias de produção em saúde, valendo-se de um processo em que, no trabalho vivo em ato, o encontro de um trabalhador com o usuário produz uma tecnologia leve de cuidado que é permeada pela relação entre esses dois corpos e o estabelecimento de um vínculo. Todavia, ao olhar para o cotidiano do trabalho da equipe do CAPS, o dispositivo do usuário-guia nos desvela uma perda da dimensão cuidadora e uma lógica de produção de saúde centrada nos procedimentos em torno do saber psiquiátrico.

A propósito da biopolítica, tem-se como direção a contribuição de Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.), que a define como a ordenação de um conjunto de processos de intervenção sobre o homem-espécie que estabelece mecanismos de racismo de Estado, fazendo viver os corpos capturados na lógica de uma suposta normalidade. O poder sobre a vida toma forma na medida em que o usuário fica à mercê das intervenções de um saber hegemônico que define como modelo de tratamento, por exemplo, a centralidade das medicações psiquiátricas. Tal situação revela o que Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.) nomeia de ‘camisa de força química’, direcionando à atualização de um modelo manicomial no interior de um serviço comunitário de saúde mental.

No entanto, apesar dos efeitos biopolíticos na captura dos corpos pelo fenômeno da medicamentalização, constitui-se na narrativa dos trabalhadores uma relação paradoxal de produção de subjetividade na contemporaneidade, manifestada na vida da usuária que, mesmo diante da medicalização, evidencia resistências às institucionalidades produzidas em seu cuidado. Uma vez que o uso dos psicotrópicos aparece como oferta central em seu tratamento, ao mesmo tempo a utilização destes possibilita uma circulação por outros territórios, constituindo itinerários de promoção de autonomia. Visualizamos então, de um lado, um serviço que se limita à oferta medicamentosa como centralidade no cuidado para casos graves; e de outro, a usuária que, utilizando-se dos benefícios trazidos pelo tratamento farmacológico, produz autonomia circulando por outros espaços da rede intersetorial, como veremos nas narrativas a seguir.

Acerca da medicalização, compreende-se com Foucault (2010FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.) que está situada no contexto biopolítico do governo das vidas, agenciada pela gestão de tecnologias de poder que intervêm sobre os corpos a fim de serializar as subjetividades em uma função política do saber médico. A psiquiatria, como saber que regula uma determinada produção de verdades, situa-se entre esses campos de produção de saber que visam produzir corpos que respondam à biopolítica efetivada pelo Estado moderno e seu poder sobre a vida. Nesse contexto, a medicamentalização como efeito dessa mesma biopolítica no contemporâneo tem por fim constituir performances desejadas dos corpos em um cenário de produtividade neoliberal, capitalizando as experiências do sentir humano reguladas pela máquina química e farmacêutica.

A medicamentalização, em sua gramática de tecnologias de poder sobre a vida, constitui sua intervenção priorizando o uso de fármacos como prática privilegiada diante dos modos de cuidar do sofrimento psíquico. Segundo Desviat (2015DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.), é possível inferir que a existência dessa perspectiva medicamentosa pode ser compreendida como um dos efeitos das inúmeras pesquisas da indústria farmacêutica e como o protagonismo da neuropsiquiatria na tentativa de contrastar o modelo de atenção psicossocial e seus múltiplos dispositivos de cuidado. De um lado, há um certo modo de cuidar prioritariamente biologicista e centrado nos sintomas, queixa-conduta e patologização do sofrimento; de outro, a atenção psicossocial e seus equipamentos centrados no usuário, na escuta e na corresponsabilização de todos os atores envolvidos no cuidado em território, na produção de vida e autonomia. Revela-se assim um campo de disputa de concepções acerca da produção do cuidar em saúde mental no campo da Reforma Psiquiátrica, em uma complexa operação de produção de subjetividade em que as fronteiras que separam essas diferentes concepções de cuidado estão permanentemente borradas, constituindo um diagrama de forças na composição das tecnologias do trabalho em saúde mental.

Indagamo-nos agora, no curso desta cartografia, sobre o caráter paradigmático da medicamentalização como acoplamento das subjetividades no contexto neoliberal e as possibilidades de resistência ou captura diante do diagrama de saber-poder psiquiátrico produtor de institucionalizações e de um certo anestesiamento da vida. Vislumbra-se, na experiência da usuária-guia, um encontro com a medicalização que subverte sua posição de anestesia, produzindo resistências e indo ao encontro de sua autonomia, desde quando busca por suas consultas, vai em horários não marcados, ‘desaparece’ do serviço etc. Estabelece-se nessa dinâmica uma relação usuária-medicação, mediada pelos usos não institucionalizados dos fármacos, o que produz relações de singularização com o território e os serviços da rede intra e intersetorial.

Ela costuma circular bastante pelo CRAS [Centro de Referência em Assistência Social] também, além da UBS de vez em quando pra algumas consultas. No CRAS a gente teve bastante comunicação por conta do BPC [Benefício de Prestação Continuada] que a gente encaminhou juntos. A maior dificuldade com ela foi a aderência. Foi bem difícil ela [se] vincular nas oficinas e grupos, às vezes ela desaparecia e voltava depois de muito tempo... Uma dificuldade também foi o fato dela ser sozinha e a gente não ter rede de apoio familiar dela com quem contar, então tivemos que criar essa rede (Trabalhador da Equipe).

A narrativa anterior dá uma importante pista na construção do usuário-guia, que são os encontros que se estabelecem entre a equipe do CAPS e outros serviços da rede intersetorial. A partir de então, a palavra ‘circulação’ chama a atenção, mostrando uma pista sobre o próprio percurso singular da usuária. ‘Circular’, aqui, é inventar caminhos possíveis para se trilhar em direção a espaços de liberdade e acolhimento, que se encontram no território vivo e existencial da usuária e também nos encontros com os serviços e trabalhadores que compõem uma rede de cuidado em saúde mental. Nesse sentido, fica evidente a importância da rede intersetorial na composição da atenção psicossocial, afirmando, com isso, a potência da Reforma Psiquiátrica na promoção de um cuidado em liberdade e articulado com os territórios.

Nessa circulação por uma rede de atenção psicossocial possível para acompanhar percursos dos usuários dos serviços de saúde mental, Yasui (2019YASUI, Silvio. Apostas em uma atenção psicossocial menor. In: ONOCKO-CAMPOS, Rosana T.; EMERICH, Bruno F. (org.). SaúdeLoucura10: tessituras da clínica - itinerários da Reforma Psiquiátrica. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 209-231.) aponta uma direção de aposta na inventividade existente nas relações de encontro e produção de vínculo para a criação de múltiplos caminhos com aquilo que o território de cada sujeito oferta na composição do cuidado. Essa inventividade aparece nas narrativas da equipe quando se diz que, na falta de suporte de uma rede familiar na vida da usuária, a equipe, apesar das dificuldades, afirma que foi preciso ‘criar essa rede’, ou seja, convocar o território, os serviços e equipes que compõem o cuidado, fazendo emergir o ato inventivo do trabalho em saúde mental.

A condução no geral foi bem precária, sabe, acho que tem que rever muitas coisas no cuidado com a usuária, parece que fica centrado sempre em um só profissional da equipe, e eu acho que todo mundo, rede e todos os técnicos têm que se envolver... Mas às vezes a gente não consegue quebrar isso, parece que não pode mexer muito, sabe? Uma coisa importante acho que é poder retomar as funções de cada um na equipe, cada técnico tem seu trabalho, mas em algum momento isso tudo se mistura... Acho que falta comunicação, tem muita coisa do usuário que não chega... e às vezes parece que falta um entendimento maior também do que é esse cuidado, e vai se perdendo muita coisa (Trabalhador da Equipe).

No último encontro de construção do usuário-guia, surgiu uma importante pista dessa cartografia: a narrativa de avaliação do cuidado dos trabalhadores, a qual colocou em análise, de forma mais evidente, os processos de trabalho no cotidiano do serviço de saúde mental. Em uma atitude de reconhecimento atento, em que o cartógrafo agencia uma interseção entre percepção e memória (Kastrup, 2015KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade . Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 32-50.), a narrativa dos trabalhadores da equipe remonta a um momento em que o coletivo consegue ampliar um território de observação do que se passa no percurso de cuidado com a usuária.

A construção que se pretende realizar, portanto, é a de um modelo em que o CAPS seja o que Merhy (2014)MERHY, Emerson E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. denomina de ‘usuário-centrado’, ou seja, que aposta em um fazer em que as tecnologias relacionais e a produção de vínculos sejam capazes de inventar modos coletivos de atender às necessidades dos sujeitos que usam os serviços de saúde mental. Com base nessa cartografia, se estabelece um processo em que se pode vislumbrar, por meio do que Rolnik (2016)ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2016. chama de ‘olho vibrátil’ - que captura as intensidades micropolíticas da relação com o mundo -, os fazeres e escolhas cotidianos de uma equipe e seus modos de cuidar em saúde mental, os quais estão imbricados com o campo relacional e da emergência de afetos que se cruzam entre aquilo que se produz nas relações entre trabalhadores e usuários e os territórios que os compõem.

Assim, com base nessa experimentação da construção de um dispositivo analisador, como o usuário-guia, com a equipe de um CAPS, é possível ir na direção do que Franco e Merhy (1999FRANCO, Túlio B.; MERHY, Emerson E. Programa de Saúde da Família (PSF): contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial. In: MERHY, Emerson E. et al. O Trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 55-120. , p. 352) apontam: “o mundo do trabalho se constitui como uma micropolítica, isto é, se produz sempre a partir do agir cotidiano coletivo e de cada um”. Diante disso, os processos de trabalho estão em um campo de forças de diferentes modos de produção do cuidado que se realizam em ato no encontro com os usuários.

Ao ativar, com isso, a criação de um cuidado coletivo e compartilhado em muitas mãos, tem-se acesso à invenção de um plano comum de afetos compartilhados no cuidado em saúde mental. Nesse sentido, Pelbart (2011)PELBART, Peter P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011. constata que as experiências do comum dão contorno ao laço social, extrapolam por todos os lados e resistem às capturas biopolíticas e capitalísticas. Assim, ativar um plano comum de cuidado é abrir espaço para a passagem de afetos inventivos nos modos de operar o trabalho em saúde mental, em que todos os sujeitos envolvidos protagonizam o percurso juntos.

Como parte do percurso ativado na construção do usuário-guia, é solicitada à equipe a indicação de usuários para a participação da pesquisa, com base na técnica do incidente crítico, definida por Flanagan (1973FLANAGAN, John C. A técnica do incidente crítico. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 99-141, 1973. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abpa/article/view/16975/15786. Acesso em: 9 jun. 2020.
https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/ind...
, p. 99) como um modo de coleta de informações que tem a ver com a observação de nuances dos comportamentos humanos em determinadas situações, utilizando-se desses incidentes como um modo de resolução de problemas práticos. Os incidentes são, portanto, “situações relevantes, observadas e relatadas pelos sujeitos entrevistados, podendo ser positivos ou negativos em função de suas consequências” (Andraus et al., 2007ANDRAUS, Lourdes M. S. et al. Incidentes críticos segundo os familiares de crianças hospitalizadas. Revista Enfermagem Uerj, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 574-579, 2007. Disponível em: https://curtlink.com/WWVHcg1. Acesso em: 17 ago. 2020.
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, p. 575). Nessa direção, pede-se à equipe para escolher os usuários da pesquisa com base nos incidentes críticos de gravidade dos casos, compreendendo as diferentes variáveis que mobilizam o trabalho da equipe em níveis de complexidade. Estabelecem-se assim, como incidentes críticos, as variáveis que mobilizam a equipe diante de casos considerados graves, moderados e leves no âmbito da saúde mental.

Essa classificação dos usuários participantes em subgrupos, com base em caso grave, moderado e leve, se faz necessária para poder captar a diversidade de perfis dos sujeitos que acessam os serviços de saúde mental, segundo os critérios de classificação de risco inspirados no Protocolo de Manchester. Esta pesquisa, por sua vez, se inspirou na Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo (2018)SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DO ESPÍRITO SANTO. Diretrizes clínicas em saúde mental. Vitória: SES/ES, 2018. Disponível em: https://saude.es.gov.br/Media/sesa/Protocolo/Diretrizes%20Clinicas%20em%20saude%20mental.pdf. Acesso em: 18 mar. 2021.
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, que elaborou uma versão adaptada para o acolhimento com classificação de risco em saúde mental. Para compor essas classificações, usaram-se as concepções de crise, emergência e variáveis diagnósticas em saúde mental propostas por Saraceno, Asioli e Tognoni (2019SARACENO, Benedetto; ASIOLI, Fabrizio; TOGNONI, Gianni. Manual de saúde mental: guia básico para Atenção Primária. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2019.).

Os critérios que compreendem usuários classificados como caso grave, segundo o protocolo referenciado, são: usuário com necessidade de atendimento recorrente, que apresenta risco de vida a si mesmo e aos outros ao seu redor (Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo, 2018)SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DO ESPÍRITO SANTO. Diretrizes clínicas em saúde mental. Vitória: SES/ES, 2018. Disponível em: https://saude.es.gov.br/Media/sesa/Protocolo/Diretrizes%20Clinicas%20em%20saude%20mental.pdf. Acesso em: 18 mar. 2021.
https://saude.es.gov.br/Media/sesa/Proto...
. Ressalta-se ainda a contribuição dada por Saraceno, Asioli e Tognoni (2019SARACENO, Benedetto; ASIOLI, Fabrizio; TOGNONI, Gianni. Manual de saúde mental: guia básico para Atenção Primária. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2019.), que avaliam uma emergência - transposta aqui como gravidade - em saúde mental com base em determinada situação que necessita de intervenções imediatas da equipe de saúde, quando entram em jogo variáveis sociais e familiares da vida do usuário, como exposição à violência, vulnerabilidade social, desintegração do meio social etc.

No caso moderado, o usuário tem condições de saúde mental que podem evoluir para agravamento, como: recursos individuais do paciente, do contexto do paciente, dos serviços de atenção e do contexto desses serviços no cuidado em saúde mental (Saraceno, Asioli e Tognoni, 2019SARACENO, Benedetto; ASIOLI, Fabrizio; TOGNONI, Gianni. Manual de saúde mental: guia básico para Atenção Primária. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2019.). Ao definir, por último, um usuário considerado caso leve, classificado como um sujeito com condições não urgentes e não crônicas, remete-se aqui ao usuário autônomo, retomando o conceito de autonomia proposto por Campos (2000CAMPOS, Gastão W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000.), de um sujeito que circula pelos territórios da sua vida, segundo o processo de cogestão de um cuidado que é transversalizado na construção coletiva de todos os atores sociais envolvidos - o usuário, os trabalhadores, familiares, comunidade.

Nessa construção de incidentes críticos pela equipe - grave, moderado e leve -, é importante ressaltar, como apontado por Saraceno, Asioli e Tognoni (2019SARACENO, Benedetto; ASIOLI, Fabrizio; TOGNONI, Gianni. Manual de saúde mental: guia básico para Atenção Primária. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2019.), que as variáveis que dizem respeito ao serviço e às equipes são importantes elementos para a compreensão do usuário, assim como as variáveis do seu contexto social e familiar, constituindo aqui um marco que localiza a classificação de riscos fundada não apenas em elementos diagnósticos ou orgânicos de saúde mental, mas também em uma concepção que vai ao encontro da perspectiva da atenção psicossocial.

Ato dois: itinerários vivos na tensão entre usuário-fabricado e usuário-fabricador

O segundo ato desta cartografia inspira-se na citação de Brecht (1973BRECHT, Bertold. Poemas. Tradução de Arnaldo Saraiva. Lisboa: Editorial Presença, 1973., p. 46): “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Olhar para o cuidado, do ponto de vista de quem o recebe - o usuário -, é ter em mãos o desafio de compreender, em uma perspectiva narrativa de primeira pessoa, as margens que comprimem os fluxos de vida no cotidiano de sujeitos em sofrimento psíquico. Como mencionado, têm-se em mãos múltiplos mapas construídos com a equipe do CAPS, que ora são capturados pelas tecnologias de poder sobre a vida, ora resistem e acionam recursos coletivos para agenciar o cuidado em liberdade.

A equipe indicou, então, os usuários que deveriam compor o ato dois da pesquisa, compreendendo uma construção coletiva com base nos incidentes críticos, ou seja, no grau de mobilização e afeto que esses usuários, com suas queixas e situações de vida, causam nos trabalhadores. Com uma lista e muitos nomes em mãos, o cartógrafo foi em busca dos usuários que iriam compor a cena da pesquisa, iniciando por contatos telefônicos, com a proposta de apresentação do percurso investigativo, aspectos éticos e explanação sobre a condução do processo. No entanto, um desafio se apresentou nas trilhas do cartógrafo: muitas ligações telefônicas, poucos retornos positivos e o aceite de dois usuários para compor o segundo ato, quando se esperava que fossem três participantes.

Seguiram-se as trilhas com aquilo que foi possível no cenário que se apresentou. No entanto, a atenção do cartógrafo fez pouso para escutar o que se passava entre as buscas por usuários participantes. Desde o acontecimento disruptivo da pandemia da Covid-19, os serviços de saúde passaram por uma intensa modificação de seus modos de produzir saúde, considerando os novos protocolos de biossegurança e, como ocorreu nos CAPS, a redução e até mesmo suspensão de atividades coletivas para mitigar a transmissão do vírus. Como um dos efeitos da pandemia - que são inúmeros, mas ressalta-se aqui o que chama a atenção no percurso cartográfico -, tem-se, então, a subjetivação da solidão dos usuários dos serviços de saúde mental. Compreende-se a subjetivação, segundo Foucault (2006FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: estratégia, poder-saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.), como modos de constituição dos sujeitos segundo os efeitos de práticas e técnicas que perpassam pelos discursos, formas jurídicas e sistemas de regras e incidências de poder e saber na relação consigo mesmo.

O longo período sem espaços de grupalidades, oficinas e outras ferramentas terapêuticas, somado à desarticulação do cuidado no âmbito da saúde mental e às evidentes precarizações das políticas públicas de saúde, resulta em um afastamento dos usuários da relação com o CAPS. Isso ficou evidente no desânimo generalizado, no modo como as relações entre trabalhadores e usuários tomaram uma dimensão de distanciamento afetivo, configurando um modo de subjetivação da solidão e do abandono, vivência de ruptura com os espaços de produção de um plano comum de cuidado em saúde mental.

O cartógrafo saiu então em busca das entrevistas com os dois usuários com que conseguiu contato. Os encontros se estabeleceram de forma individual e no formato de visita domiciliar, com o intuito de se aproximar dos territórios de produção da vida cotidiana dos sujeitos da pesquisa. As entrevistas feitas nesse ato com os usuários se estabeleceram não como mera coleta de informações ou conteúdos de uma experiência, mas sim, segundo Tedesco e colaboradores (2016TEDESCO, Silvia H. et al. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; TEDESCO, Silvia H. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. v. 2. Porto Alegre: Sulina, 2016. p. 92-127.), como a emergência de uma experiência em curso, palavra encarnada com os afetos das vivências evocadas. As narrativas dos usuários que participaram da pesquisa também foram gravadas com a devida autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e posteriormente transcritas na íntegra.

Iniciou-se, assim, a pesquisa com os usuários indicados, tendo em mãos algumas perguntas3 3 As perguntas feitas foram: 1) Como e quando chegou ao serviço de saúde mental? 2) Quais profissionais de saúde te atenderam no CAPS? 3) O que você costuma fazer no CAPS? 4) O que você costuma fazer fora do CAPS para cuidar da sua saúde? 5) Procurou ajuda antes de chegar ao CAPS? 6) O que sente que mudou depois da ida ao CAPS? que serviram como pistas para a compreensão do que se passava no percurso singular de cada um em suas circulações pela RAPS. As perguntas feitas se estabeleceram como um modo de cartografar junto com esses usuários seus mapas de cuidado no cotidiano da vida e do acesso ao CAPS, para colocar em perspectiva a construção dos modos de cuidar da equipe e as tensões existentes no encontro entre usuário e trabalhador. Com essas pistas, partiu-se para as construções com os usuários indicados pela equipe como um caso moderado (Usuário 1) e grave (Usuária 2).

Quando eu fui pro CAPS eu tava bem ruim, mas eu não aceitava ir no psiquiatra... aí minha família perguntava por que eu não queria, e eu falava ‘eu não sou louco’, mas aí foram me falando que era pro meu bem. Eu era bem ansioso, me irritava muito fácil e brigava com as pessoas, eu descontava minha raiva nas coisas, quebrei uns vidros... tenho as marcas até hoje nas mãos. Teve um dia que eu quebrei um vidro com tanta força que eu me cortei bem fundo, aí me levaram pro hospital e ali começou meu tratamento (Usuário 1).

Cheguei muito mal no CAPS, tava bem depressiva e triste com pensamento suicida, tinha automutilação, e então minha companheira me levou. Lá fui atendida pela enfermeira, pelo psiquiatra, mas a medicação me derrubou bastante, e acredito que nem todos precisam dela, , mas no início fiz o recomendado. Também fui atendida pelo psicólogo e queria uma resposta sobre o que eu tava sentindo, mas fui aprendendo que é um caminho, ? (Usuária 2).

Essas narrativas demonstram o momento no qual os usuários vivenciaram um sofrimento psíquico intenso, em que as marcas deixadas foram impressas no corpo. No entanto, percebe-se que o apoio familiar se estabelece como um importante fator de suporte para o início de um tratamento em saúde mental. O acontecimento que marca a entrada dos usuários no CAPS é a ocorrência de uma crise em saúde mental, momento entendido por Dell’Acqua e Mezzina (1991)DELL’ACQUA, Giuseppe; MEZZINA, Roberto. Resposta à crise. In: DELGADO, Jaques (org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Editora Resenha, 1991. p. 53-79. como o desenvolvimento de grave sintomatologia psiquiátrica e de ruptura com os planos familiar e social, compreendendo um desarranjo psíquico na tentativa de curar ou dar sentido aos problemas vivenciados pelo sujeito naquele período de sua história. Os usuários chegaram no serviço de saúde mental, portanto, em um momento de fragilização significativa, e é nesse lugar que se produzirá um espaço possível de ressignificação e produção de sentidos para os sofrimentos vivenciados.

Quando eu fui pro CAPS, eu desabafava bastante com as enfermeiras, gostava muito de falar com elas, eu me sentia muito apoiado. Toda a equipe sempre me recebeu bem, acho que todos ali são importantes pra mim. Quando eu vou no CAPS, eu geralmente faço o grupo de caminhada que tinha antes da pandemia, ?... Também a oficina de jogos, e um dia que a gente ia tirar fotos na rua... Eu vou todos os dias no CAPS, mas agora na pandemia eu indo bem pouco e sinto que eu regredi um pouco, fico muito parado em casa e não faço muita coisa, ? (Usuário 1).

Eu ia pras consultas, na oficina de fotografia e no acompanhamento terapêutico que me ajudou a olhar nos olhos das pessoas, ir pra rua... Isso foi bem importante porque eu queria me isolar, e ter a consulta na rua me ajudou a querer estar com outras pessoas de novo (Usuária 2).

Os usuários trouxeram sua experiência de circulação pelo serviço, imprimindo suas percepções e narrando os espaços que foram ofertados na composição de seu cuidado em saúde mental pela equipe. A escuta e o apoio produzidos pelos trabalhadores do CAPS aparecem nessas experiências como um encontro no qual o afeto produzido entre os corpos aumenta a potência de agir (Spinoza, 2009SPINOZA, Baruch. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.), trazendo à tona a criação de um espaço comum de cuidado que é produzido pela capacidade de afetação dos trabalhadores e usuários em seus atos de produção de saúde no cotidiano. A ativação desses encontros mostra que há uma interseção produzida entre os saberes da equipe de trabalhadores e os saberes e experiências dos usuários.

A experiência de circular pelo serviço de saúde mental e suas vicissitudes diante das ofertas realizadas pela equipe de trabalhadores para o cuidado aparecem na narrativa dos trabalhadores na construção do usuário-guia, revelando as impressões da equipe diante da dificuldade de aderência de uma usuária ao Projeto Terapêutico Singular proposto. Aqui, de modo diferente, vislumbra-se a possibilidade de um cuidado que ocorre na constituição coletiva de um projeto terapêutico que atende às necessidades dos usuários em articulação com os territórios da cidade. Desde a oficina de fotografia até a relação com a cidade pelo grupo de caminhada, constituem-se possibilidades de cuidado em rede e de produção de autonomia. Constitui-se, portanto, um paradoxo em relação à própria concepção de aderência ao tratamento, uma vez que ao passo que alguns usuários não estão dentro do CAPS, não necessariamente estão apartados das possibilidades de produção de vida e saúde em seus territórios.

A produção do cuidado em um plano comum de afetos, desse modo, inscreve os atos de saúde no âmbito da Reforma Psiquiátrica em um modo de subjetivação que, segundo Merhy (2014MERHY, Emerson E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.), opera por ‘fatores de afetivação’, abrindo espaço para a criação de si e do mundo, simultaneamente. Ademais, um acontecimento importante que perpassa pela narrativa do usuário é a parada das atividades do CAPS durante a pandemia, com seus impactos na produção do cuidado em saúde mental. Percebe-se que o acontecimento da pandemia como algo da ordem do inesperado apresenta um desafio para a produção de cuidado em saúde mental.

As experiências em grupo, nas oficinas e até mesmo na circulação pelo espaço aberto da cidade, por meio da prática do acompanhamento terapêutico, aparecem como dispositivos potentes na produção do cuidado com os usuários, tornando evidente o que Amarante (2007AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.) conceitua como a capacidade dos serviços de atenção psicossocial para atuar no território das pessoas, desenvolvendo recursos terapêuticos que estão disponíveis nas artes, na comunidade, nos espaços públicos, afirmando a aposta em um modelo que faz da liberdade a própria ferramenta de trabalho em direção à autonomia e cidadania das pessoas em sofrimento psíquico grave.

Fora do CAPS pra cuidar da minha saúde, agora eu fazendo exercício físico, tenho feito bastante quase todos os dias, tem dias que eu vou passear pelo centro da cidade e dou umas voltas, coloco meus fones de ouvido, gosto de caminhar escutando música, é muito bom. Acho que cuidar da aparência é um modo de se cuidar também, ? (Usuário 1).

Pra cuidar de mim, eu pratico esporte. Hoje estou em um time profissional de futebol. O esporte sempre foi um escape pra mim, e o CAPS me ajudou a entender isso também, fiz amizades, gosto de viajar nas cidades em volta aqui. Junto com a ida ao CAPS, busquei desenvolver o lado espiritual, busquei entender outros lados da vida, ? Acho que o que mais mudou foi a autoestima. Aprendi a cuidar de mim mesma, me ajudar mais e também entender que as pessoas são importantes, eu não preciso fazer tudo sozinha, posso ter minhas coisas e também ter ajuda (Usuária 2).

Com essas narrativas, acessam-se as experiências em curso do modo como os usuários produzem sua rede de cuidados em seus territórios de existência. Aqui, olha-se atentamente para as invenções cotidianas que os usuários com suas necessidades colocam em ato, configurando outros modos de cuidado que escapam às intervenções profissionais ou dos serviços de saúde, portanto, do movimento da vida que se aborda. Sobre essa fabricação de redes singulares, Souza e colaboradores (2014SOUZA, Ana L. M. et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.) a encontram na produção de diferentes regimes de regulação, entendidos como um processo social e instituinte do modo como os usuários buscam suas próprias produções de cuidado em saúde. Depara-se, então, com um regime de regulação definido pelo ‘agir leigo’, ou seja, “a valorização do conhecimento produzido pelo usuário, a partir, sobretudo, das suas experiências sociais, em contraposição com o saber científico dos especialistas” (Souza et al., 2014SOUZA, Ana L. M. et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, 2014., p. 115).

Desse modo, encontramos a construção de redes de autonomia e cidadania tanto nas narrativas dos usuários quanto nas reflexões trazidas pela equipe no usuário-guia. Quando os trabalhadores do CAPS contam que tiveram de ‘criar a rede’, estamos falando da invenção de dispositivos clínico-políticos aliados aos territórios de vida dos usuários, que são compostos por serviços de saúde, assistência, cultura; mas que também se aliam às possibilidades criativas do agir leigo na construção de linhas de cuidado. Um exemplo disso é a própria narrativa da Usuária 2, que, ao se vincular a um time de futebol, menciona que essa aproximação foi uma rede constituída pela própria equipe do CAPS, fomentando práticas de promoção de saúde no território onde a vida acontece.

Esse agir leigo, marcado pelos saberes dos usuários, suas redes comunitárias e seus modos de circulação pela vida, compõe a fabricação dos mapas singulares desses sujeitos, com base naquilo que eles mesmos definem como um caminho possível para si em direção ao cuidado em saúde, entrando em tensão com aquilo que as equipes fabricam para a produção de atos em saúde por meio dos saberes definidos pelos especialistas. Em relação a essa tensão, Souza e colaboradores (2014SOUZA, Ana L. M. et al. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.) definem o ‘usuário fabricado’ como alvo de disciplinamento e adequação ao sistema de saúde e ao paradigma da doença; em contrapartida, o ‘usuário fabricador’ é aquele que transgride as regras, circula pelas invenções dos seus próprios mapas singulares e cria seus modos de produzir saúde no cotidiano. O que se coloca em jogo nesses percursos, portanto, é a disputa entre os regimes de regulação da produção de atos em saúde - de um lado marcado pelo agir leigo dos usuários fabricadores, e de outro, por aquilo que se produz pela equipe de trabalhadores e pela conformação de seus atos e saberes que fabricam um modo de ser usuário no serviço de saúde mental.

Diante dessas tensões entre os regimes de regulação, compreende-se uma aproximação entre o ‘usuário fabricador’ e a produção do cuidado de si. Nesse sentido, Foucault (2020FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o cuidado de si. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.), ao se debruçar sobre os pensamentos filosóficos dos dois primeiros séculos, aponta para uma vasta construção de estéticas de vida, compreendidas como um conjunto de técnicas de ‘cultura de si’ que dão forma a uma determinada arte da existência implicada em uma ética das potências, que podem atravessar a constituição do corpo-subjetividade em sua relação com o mundo e com os regimes de produção de verdade. Destaca-se aqui a possibilidade de construção de uma ética do cuidado de si na invenção dos mapas singulares da vida dos usuários dos serviços de saúde mental, que em seus territórios existenciais fazem emergir a tensão entre a fabricação-de-si mesmo e a fabricação de um modo de subjetivação pelos atos em saúde produzidos pelos trabalhadores do CAPS.

Assim, ao se caminhar por essas pistas cartográficas, compreende-se que a Reforma Psiquiátrica habita a tensão própria desses diferentes regimes de regulação: de um lado, há os usuários e a sua produção de cuidado de si; de outro, os saberes das equipes dos serviços de saúde mental que produzem um cuidado com base em seus arcabouços teórico-técnicos. Logo, ao se colocarem em perspectiva as narrativas construídas pela equipe, percebe-se que o grau máximo de fabricação de um usuário é a captura biopolítica do cuidado e o controle dos corpos por um conjunto de normas e procedimentos. Ao se olhar para os percursos singulares dos usuários, compreende-se a disposição de um certo cuidado de si que aumenta a potência da autonomia pretendida pelo modelo de atenção psicossocial construído nas últimas décadas no campo das políticas de saúde mental.

Considerações finais: implicações do cartógrafo nas trilhas do cuidado em saúde mental coletiva

Ao longo dos caminhos abertos por esta cartografia, deparou-se com algumas pistas que indicam os modos de subjetivação que operam na produção do cuidado em saúde mental. O plano da pesquisa operou por meio da intervenção e da experimentação naquilo que se passa entre as relações dos trabalhadores e usuários de um CAPS, ao ativar as potências do modelo de atenção psicossocial e fazer emergir as tensões cotidianas do poder sobre a vida e as resistências micropolíticas de ativação das potências de vida no campo da Reforma Psiquiátrica. O que se desvela é um campo de batalha de diferentes modos de produção do que se compreende por cuidado em saúde mental, já apontado anteriormente segundo a lógica de dois regimes de regulação: o usuário fabricado e o usuário fabricador.

O cartógrafo, nessa investigação, esteve imerso no plano em que a pesquisa aconteceu, habitando um lugar de pesquisador e, ao mesmo tempo, de trabalhador dessa equipe, sujeitos coemergentes dos modos de subjetivação que se passam nas cenas do cuidado em saúde mental. Sobre isso, Lourau (2004LOURAU, René. Campo socioanalítico. In: ALTOÉ, Sandra (org.). René Lourau, analista em tempo integral. São Paulo: Hucitec, 2004.) ressalta que as implicações como relações existentes entre pesquisador e sistema institucional configuram uma análise coletiva daquilo que se passou nas condições de realização da pesquisa. O cartógrafo, então, imbuído de suas experiências formativas no campo da Reforma Psiquiátrica, que levaram à condução da pesquisa, se deparou com o seu próprio percurso de produção dos atos de cuidar em saúde mental.

Ao longo das supervisões, das reuniões e dos encontros da pesquisa com os trabalhadores e usuários, foi-se afirmando a aposta do cartógrafo de que o modelo de atenção psicossocial que se deseja produzir na Reforma Psiquiátrica Brasileira é pautado na cidadania e autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico, segundo uma ética do cuidado que possa abrir espaço para a afirmação da potência da vida e dos encontros que se produzem com aqueles que se colocam, parafraseando Merhy (2007MERHY, Emerson E. Os CAPS e seus trabalhadores no olho do furacão antimanicomial: alegria e alívio como dispositivos analisadores. In: AMARAL, Heloisa; MERHY, Emerson E. (org). A Reforma Psiquiátrica no cotidiano II. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007. p. 55-66.), no ‘olho do furacão antimanicomial’, que são os trabalhadores e seus modos de produzir saúde mental em um campo de forças micropolíticas do cotidiano.

O contexto pandêmico em que a pesquisa foi realizada, no cenário de emergência sanitária imposto pelo vírus da Covid-19, não só coloca a equipe de trabalhadores do campo da saúde mental diante de um desafio de realocação das práticas, como também dimensiona a subjetivação da solidão no e pelo corpo dos usuários que se veem diante da necessidade de tecer outros mapas coletivos na composição de seu cuidado. O paradoxal esvaziamento dos espaços do CAPS como modo de mitigar a transmissão do vírus ora revela uma crise nos processos de trabalho e dificuldade nos modos de gerir o cuidado em saúde diante do distanciamento social, ora ressalta a experiência dos usuários que se veem diante da necessidade de operar o seu ‘agir leigo’ e buscar no território possibilidades de cuidado de si.

É evidente que existem as capturas de poder sobre os corpos que incidem em determinados modos de conduzir os atos de saúde - fabricando usuários normatizados. No entanto, o que interessa aqui é justamente vislumbrar as fagulhas de resistência que se produzem e afirmar os êxitos da Reforma Psiquiátrica em produzir cuidado em rede, no território vivo dos sujeitos e em suas comunidades. Ao tomar essa direção, o cartógrafo carrega consigo as experiências do fazer antimanicomial que o levam a apostar em um modelo de atenção psicossocial que constrói seus processos de trabalho e cuidado em saúde mental na ótica da criação de um espaço comum de afetos, em que a partilha dos saberes entre trabalhadores e usuários é capaz de criar um plano de intervenção que modifique o curso do sofrimento psíquico, expandindo, assim, as possibilidades de vida.

Ao fazer ruptura com o modelo historicamente vigente e hegemônico de tratar a loucura, a micropolítica da Reforma Psiquiátrica Brasileira opera nesta pesquisa ao evidenciar que os usuários fabricam seus próprios mapas de cuidado, ao mesmo tempo que agenciam seu acesso ao CAPS conforme suas necessidades de saúde, fazendo emergir no encontro com os trabalhadores uma ética do cuidado que se afirma no encontro com o outro e com a produção de vida nos territórios afetivos-existenciais agenciados por uma arte da existência. Em seu diário de bordo, o cartógrafo registrou suas inquietações: como trilhar caminhos de cuidado em saúde mental coletiva que possam fazer emergir uma invenção de outros mundos segundo uma ética dos encontros? Como resistir às capturas biopolíticas atualizadas em práticas normatizadoras e aprisionantes? Os caminhos devem ser inventados coletivamente, desenhados em um ato de criação que dê lugar à complexidade de um modelo de atenção em saúde mental que tenha como bússola a cidadania e a autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico.

Referências

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  • 1
    A referência “EPS Em Movimento” é fruto de debates realizados em torno das formações para o ensino em serviço e educação permanente no SUS. O link de acesso ao texto - http://eps.otics.org/material/entrada-experimentacoes/usuario-guia -, que confere as pistas para realização do Usuário-Guia, se encontrava instável no momento da produção editorial do artigo. Caso o leitor não consiga acessar a referência, os autores possuem os textos e podem disponibilizá-los via e-mail.
  • 2
    Optou-se por identificar todas as narrativas dos trabalhadores do CAPS como ‘Trabalhador da Equipe’, uma vez que a pesquisa foi produzida em um espaço coletivo em que as falas foram sobrepostas em um plano comum de produção do usuário-guia.
  • 3
    As perguntas feitas foram: 1) Como e quando chegou ao serviço de saúde mental? 2) Quais profissionais de saúde te atenderam no CAPS? 3) O que você costuma fazer no CAPS? 4) O que você costuma fazer fora do CAPS para cuidar da sua saúde? 5) Procurou ajuda antes de chegar ao CAPS? 6) O que sente que mudou depois da ida ao CAPS?
  • Financiamento

    Não houve financiamento para a realização da pesquisa.
  • Apresentação prévia

    Este artigo é resultante de uma pesquisa feita para o Trabalho de Conclusão de Residência do Programa de Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (RIS/ESP/RS).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    24 Mar 2023
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