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Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira

RESENHAS REVIEWS

Ivan Jairo Junckes

Universidade Federal do Paraná (UFPR) ivanjj@uol.com.br

Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek (Orgs.). São Paulo: Boitempo, 2010, 400 p.

Os 19 textos que compõem a coletânea Hegemonia às avessas têm o mérito de fundar, em grande estilo, o debate histórico sobre o lulismo. As significações sobre os fatos e os principais protagonistas desta era devem ser lidos como tenras e necessárias provocações acadêmicas. Assim o é porque as discussões sobre os fundamentos e os impactos econômicos, políticos e culturais dos governos de Lula da Silva possivelmente atravessarão décadas.

O desafio analítico vivido pelos autores e autoras e seus leitores e leitoras é tamanho que o professor Francisco de Oliveira aponta o estabelecimento de uma revolução epistemológica. A qual apresenta, dentre outras dificuldades, a agrura da indisponibilidade de um instrumental teórico adequadamente desenvolvido para sua realização.

Evidência das exigências deste momento são os diferenciais de significação do lulismo presentes ao longo dos textos. Inicialmente, Lula é vaticinado por ter perdido inteiramente o rumo logo no início de seu segundo mandato, e por se assemelhar a uma barata tonta que esvazia todo o conteúdo crítico da profícua era que o antecedeu. Ao final do mesmo mandato, o ex-presidente está significado com realizações próprias de um governante calculista que substituiu a política pela administração, com requintes de espetáculos midiáticos diários. Indubitavelmente "existe sempre uma íntima relação dialética entre aparência e essência", tal qual aponta Ruy Braga em sua apresentação.

Ao longo de suas 376 páginas estão contidas discussões que se complementam de forma bastante interessante, dentre as quais destaca-se a contribuição de Nelson Coutinho para identificarmos a composição de avanços e retrocessos da época neoliberal. Provocados pelo texto escrito antes da crise de 2008, percebemos que o autor antecipa-se a seu próprio tempo em vários questionamentos.

Mesmo que a crise tenha sido, segundo Carlos Eduardo Martins, apenas um petisco para o banquete que se anuncia para o próximo decênio, 2008 evidencia a intensificação de uma reforma às avessas, subvertida a ponto de ser conceituada como uma contra-reforma. O conteúdo concedente e modernizante que caracterizaria uma revolução passiva é forçosamente afastado no tempo e no espaço pelo aprofundamento das persistentes práticas de precarização do trabalho, tal aquelas assinaladas por Arne Kalleberg em sua pesquisa.

Os diversos textos promovem a percepção de que a combinação que nos confina à pequena política pouco ou nada nos indica qualquer revolução. Ante a pluralidade de posições que induz a esquerda à comemoração pelo desnorteamento da direita, o compromisso sugerido por Maria Elisa Cevasco em seu texto, o de uma desnaturalização dos horrores da vida cotidiana sob o capitalismo, parece-nos irrecusável. Invadir, matar e pilhar o novo mundo fora significado, ao longo de séculos, como descoberta e evangelização para a cura e a libertação. Produzido o ocidente e acumulados os recursos para realizar duas revoluções, a modernidade ampliou as práticas coloniais significando a barbárie do trabalho como ordem, progresso e desenvolvimento.

A irreversibilidade da história firma-se como marca contemporânea porque naturalizamos a barbárie mercantil. Parecemos crer na realidade social que construímos tal qual os soviéticos tentaram fazer da sua máquina burocrática um regime produtivo. Eles, e elas, tentaram impor o normativo ao real e se deram mal, tal qual descreve Yves Cohen em sua bela crítica ao planejamento normativo centralizado. Tanto quanto os soviéticos falsificavam sistematicamente seus dados para ajustá-los aos planos imperativos de seus líderes, também vivemos sob a necessidade de produzirmos estatísticas e relatórios que tornam riqueza a ficção dos papéis.

O rentismo seduz a (quase) totalidade dos seres que sonham porque formaliza no saldo da aplicação financeira, seja ela a modesta poupança ou o opulento mercado aberto global, o mágico poder de, legalmente, consumir sem produzir. Esta ficção nos implica como agentes ativos da ocultação sistemática da barbárie promovida pelo capitalismo rentista e de seu correlato estado de emergência tão bem discutido por Leda Maria Paulani em seu texto.

Para aplacar os temores provocados pela financeirização em nossa douta intelectualidade desenvolvem-se programas de domesticação ideológica, tais quais os investigados pelo professor Ary Cesar Minella. Identificando as conexões entre associações políticoideológicas ligadas às associações de classe do empresariado financista, Minella revela esquemas de construção da hegemonia rentista em diferentes pontos da América Latina.

Concentrando seus estudos transcorporativos no complexo de formação ideológica Center for International Private Eterprise (Cipe), o autor evidencia a atuação do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBCG) na defesa de temas centrados na democracia e no livre mercado em programas para economistas, jornalistas, empresários e juristas que discutem o combate à corrupção, a governança corporativa, a formalização econômica, a governança democrática, o apoio às mulheres e à juventude, a redução dos extremos de renda by empresariado e a redução das barreiras aos negócios.

Dialético, Minella aponta para o tensionamento intracapitalista provocado pela disputa de territórios simbólicos entre os complexos de formação ideológica. Distintos blocos de capital financista, vinculados a distintas identidades governamentais, desenvolvem distintos programas de expansão da sua hegemonia. Ou seja, sob a mesma bandeira da democracia e do livre mercado são executados diferentes hinos por distintas orquestras que nos motivam para erguer outras flâmulas e tocar outras partituras.

Percebese também, ao longo de outros textos, como esse capitalismo financeirizado vive paradoxos admiráveis. Um deles é depender da proteção estatal contra o próprio mercado, uma prática típica da acumulação primitiva, para fomentar arquiteturas sustentadas pela desformidade, pela retorção, pela desconstrução e desconstituição de seus objetos, tal qual descritas por Pedro Arantes.

Dependentes do compadrio e do privilégio de proximidade com o erário, os grupos especializados na especulação imobiliária constroem o sucesso das formas evanescentes promovendo a diferenciação, a exclusividade, a exclusão e a concentração. Em densas páginas o autor aponta como a arquitetura confundese com a genialidade midiática das marcas para realizar o fetiche de seus objetos arquitetônicos, fazendoos valorizar-se exponencialmente nos circuitos rentistas.

A fábrica das cidades globais, descritas por João Sette, é um bom exemplo dessa nova arquitetura capturada por um urbanismo de mercado que faz da cultura e do desenvolvimento os agentes da valorização fundiária. No Brasil, há décadas arrastamos a reforma agrária por conta de uma oligarquia grileira, todavia em poucos anos teremos campos férteis para a pirotecnia da arquitetura da renda com uma avalanche de super arenas esportivas para sediar eventos.

Legitimados no grande público, os atrativos globais de concreto, cristais e aço têm sua implantação estatizada e sua exploração privada, tal qual ocorrido com o fantástico Domo do Milênio. O estilizado circo custou ao erário britânico quase dois bilhões de dólares e rende a sua operadora, a O2/Telefónica S.A., o status de maior promotora de megaeventos culturais do planeta. Semelhante cartilha, com requintes de megalomania produtiva, segue o megaprojeto Coega (energia nuclear, processamento de alumínio, porto, complexo automotivo e petroleiro), relatado por Patrick Bond em seu texto "A desorientação do 'Estado desenvolvimentista'" na África do Sul.

Refletindo sobre a trajetória sul-africana, sobre o quanto a dominação branca miscigenou-se para que a subordinação continuasse negra, tal qual analisado por Luís Cabaço, questionamo-nos um pouco mais sobre o quanto o autoritarismo democratiza-se no Brasil para que se amplie a dominação econômica. Os textos contêm bons questionamentos sobre os limites da democracia burguesa e sobre a funcionalização da participação popular na institucionalidade socioeconômica. Provocam angústias que são confortadas no texto de Álvaro Bianchi sobre as reverberações do comunismo e da emancipação nos espaços criados pelas crises vividas sob a égide neoliberal. Torna-se persistente a questão de como tornar-se, ou manter-se, um agente coletivo da emancipação nos meandros da institucionalidade burguesa e de uma economia em ascenso. É um excelente motivo à leitura dos textos de Hegemonia às avessas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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