Acessibilidade / Reportar erro

O agente comunitário de saúde na Covid-19: análise dos planos de contingência da região Nordeste do Brasil

The community health worker in COVID-19: analysis of contingency plans in the Northeast region of Brazil

El agente comunitario de salud en Covid-19: análisis de planes de contingencia en la región Noreste de Brasil

Resumo

Na tentativa de criar estratégias próprias de mitigação à Covid-19, os sistemas de saúde municipais e estaduais se organizaram de forma independente, criando fluxos assistenciais próprios e, frequentemente, dando pouca ênfase ao trabalho realizado pela Atenção Primária à Saúde e pelo agente comunitário de saúde. Este estudo tem como objetivo analisar os planos de contingência disponíveis nos estados e capitais signatários do consórcio do Nordeste, sob as lentes do protagonismo da Atenção Primária à Saúde e da atuação do agente comunitário de saúde. Utilizou-se como fonte de dados 24 documentos públicos e de acesso livre, referentes ao ano de 2020, acessados entre os meses de fevereiro e abril de 2021. Esses dados foram discutidos com base em três categorias: fluxos assistenciais, assistência no primeiro nível de atenção e protagonismo dos agentes comunitários em saúde. Percebeu-se a priorização de serviços de alta complexidade e uma limitação importante nas ações da atenção primária. Destaca-se também a restrição do potencial da atuação do agente comunitário de saúde, profissional que, em grande parte dos planos analisados, teve sua atuação direcionada para a realização de atividades burocráticas, como a reorganização dos fluxos de trabalho, em detrimento das ações territoriais e de educação em saúde.

Palavras-chave:
atenção primária à saúde; agentes comunitários de saúde; Covid-19

Abstract

In an attempt to create own mitigation strategies for COVID-19, municipal and state health systems organized independently, creating their own care flows, and often placing little emphasis on the work done by Primary Health Care and the community health worker. The objective of this study is to analyze the contingency plans available in the states and capitals that are signatories to the Northeast consortium, under the objectives of the Primary Health Care and the action of the community health worker. Twenty-four public and free-access documents were used as data source, referring to the year 2020, accessed between February and April 2021. These data were discussed based on three categories: care flows, assistance at the first level of care and the role of community health workers. The prioritization of high complexity services and an important limitation in the actions of primary care were observed. It is also noteworthy the restriction of the potential of the community health worker, a professional who, in most of the plans analyzed, had its actions directed toward the accomplishment of bureaucratic activities, such as the reorganization of labor flows, to the detriment of territorial actions and health education.

Keywords:
primary health care; community health workers; Covid-19

Resumen

En un intento de crear estrategias propias de mitigación para el Covid-19, los sistemas de salud municipales y estatales se organizaron de manera independiente, creando sus propios flujos de atención y, a menudo, poniendo poco énfasis en el trabajo realizado por la Atención Primaria de Salud y el agente de salud comunitario. El objetivo de este estudio es analizar los planes de contingencia disponibles en los estados y capitales que son signatarios del consorcio Noreste, bajo los objetivos de la Atención Primaria de Salud y la acción del agente comunitario de salud. Se utilizaron como fuente de datos 24 documentos públicos y de libre acceso, referidos al año 2020, a los que se accedió entre febrero y abril de 2021. Estos datos se discutieron sobre la base de tres categorías: flujos de atención, asistencia en el primer nivel de atención y el papel de los agentes comunitarios de salud. Se observó la priorización de los servicios de alta complejidad y una importante limitación en las acciones de atención primaria. También cabe destacar la restricción del potencial del agente comunitario de salud, profesional que, en la mayoría de los planes analizados, tenía sus acciones dirigidas a la realización de actividades burocráticas, como la reorganización de los flujos de trabajo, en detrimento de las acciones territoriales y la educación en salud.

Palabras clave:
atención primaria de salud; agentes comunitarios de salud; Covid-19

Introdução

O surgimento de casos de Covid-19 em Wuhan, China, no final de 2019, desafiou os diversos sistemas de saúde do mundo a reformularem suas práticas de cuidado de forma rápida e decisiva (Wu e McGoogan, 2020WU, Zunyou; MCGOOGAN, Jennifer M. Characteristics of and important lessons from the coronavirus disease 2019 (COVID-19) Outbreak in China: Summary of a Report of 72314 Cases from the Chinese Center for Disease Control and Prevention. JAMA: Journal of the American Medical Association, v. 323, n. 13, p. 1239-1242, 2020. https://doi.org/10.1001/jama.2020.2648. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2762130. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://jamanetwork.com/journals/jama/fu...
). Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o surto como uma emergência de saúde pública de interesse internacional (ESPIN), e a Covid-19 foi considerada uma pandemia, caracterizada como a disseminação mundial de uma doença (Organização Pan-Americana da Saúde, 2020ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). OMS declara emergência de saúde pública de importância internacional por surto de novo coronavírus. Organização Pan-Americana da Saúde, 30 jan. 2020. Disponível em: https://www.paho.org/pt/news/30-1-2020-who-declares-public-health-emergency-novel-coronavirus. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.paho.org/pt/news/30-1-2020-w...
).

A resposta sanitária primordial do Brasil e de vários outros países no contexto da pandemia da Covid-19 foi a ampliação de serviços hospitalares, mantendo em segundo plano a ação dos outros níveis de complexidade, especialmente da Atenção Primária à Saúde (APS) (Medina et al., 2020MEDINA, Maria G. et al. Atenção primária à saúde em tempos de Covid-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00149720. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/rYKzdVs9CwSSHNrPTcBb7Yy. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/csp/a/rYKzdVs9Cw...
).

Faz-se necessário definir, ainda que brevemente, o trabalho realizado pela APS brasileira, o qual é desenvolvido por uma equipe multiprofissional que assume responsabilidade sanitária considerando a dinamicidade do território de cobertura e as demandas de sua população. As ações da APS caracterizam-se por um conjunto de práticas em saúde que incluem tanto o cuidado individual quanto o coletivo e abrangem desde as dimensões da promoção até as de reabilitação e manutenção da saúde (Lavras, 2011LAVRAS, Carmen. Atenção Primária à Saúde e a Organização de Redes Regionais de Atenção à Saúde no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 867-874, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000400005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/CrHzJyRTkBmxLQBttmX9mtK. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201100...
). Dentre os atores que compõem a equipe de Saúde da Família (eSF) na APS, este estudo destaca a atuação do agente comunitário de saúde (ACS) como um facilitador no monitoramento e diagnóstico das necessidades de saúde da sua população, assim como no fortalecimento do vínculo entre a equipe de saúde e o território. Esse profissional é um grande conhecedor da comunidade em que atua e desenvolve estratégias importantes de promoção da saúde e prevenção das doenças, sensíveis à realidade local (Sossai, Pinto e Mello, 2010SOSSAI, Lilian C. F.; PINTO, Ione C.; MELLO, Débora F. O agente comunitário de saúde (ACS) e a comunidade: percepções acerca do trabalho do ACS. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 9, n. 2, p. 228-237, 2010. https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v9i2.11234. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/11234. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v...
).

São muitas as possíveis contribuições da APS em um contexto de pandemia, que variam desde ações de vigilância em saúde a rastreio de casos e contatos, cuidado individual de casos suspeitos e confirmados, ações comunitárias de apoio aos grupos vulneráveis e garantia de continuidade dos cuidados rotineiros aos usuários de maior risco (Giovanella et al., 2020GIOVANELLA, Ligia et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. SciELO Preprints, 2020. https://doi.org/10.1590/SCIELOPREPRINTS.1286. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1286/version/1380. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
). Contudo, é possível observar algumas fragilidades na organização inicial das estratégias brasileiras de combate à pandemia, em que não houve enfoque pelo governo federal às ações atribuídas ao primeiro nível de atenção à saúde. Nesse ínterim, pode-se entender que a resposta nacional à crise do coronavírus se deu de forma fragmentada e descoordenada, numa dinâmica que pressionou o sistema federalista ao sobrecarregar os entes subnacionais diante da ausência de políticas fortalecidas por parte da União (Cimini et al., 2020CIMINI, Fernanda et al. Análise das primeiras respostas políticas do Governo Brasileiro para o enfrentamento da Covid-19 disponíveis no Repositório Global Polimap. Belo Horizonte: Cedeplar; Universidade Federal de Minas Gerais, 2020. Disponível em: https://geesc.cedeplar.ufmg.br/analise-das-primeiras-respostas-politicas-do-governo-brasileiro-para-o-enfrentamento-da-covid-19-disponiveis-no-repositorio-global-polimap/. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://geesc.cedeplar.ufmg.br/analise-d...
).

Por se tratar de uma infecção pouco conhecida e na falta de uma diretriz nacional centralizada de resposta à crise, a elaboração de planejamentos operacionais e estratégicos regionais por meio dos chamados ‘Planos de Contingência’ e documentos semelhantes tornou-se uma ferramenta necessária a fim de otimizar ações de combate ao surto (Rossi e Silva, 2020ROSSI, Rinaldo C.; SILVA, Simone A. O Consórcio do Nordeste e o federalismo brasileiro em tempos de Covid-19. Espaço e Economia, ano 9, n. 18, 2020. https://doi.org/10.4000/ESPACOECONOMIA.13776. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/13776. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://journals.openedition.org/espacoe...
). Por essa razão, não há como elaborar uma avaliação em nível nacional das políticas de resposta à pandemia sem que sejam feitos recortes regionais.

Sob essa lógica, a articulação interestadual conhecida como Consórcio Nordeste foi o foco deste estudo por ter se apresentado como instrumento de relevância no contexto pandêmico. Surgido anteriormente à epidemia do coronavírus e formalizado no ano de 2019 como um aparato que visava fortalecer a prestação de serviços públicos e a proteção e a promoção dos direitos humanos ao povo nordestino, o Consórcio Nordeste já havia escolhido como prioritárias as ações nas áreas de saúde, educação e segurança pública, atuando mediante compras coletivas e cooperação em casos de emergência (Rossi e Silva, 2020ROSSI, Rinaldo C.; SILVA, Simone A. O Consórcio do Nordeste e o federalismo brasileiro em tempos de Covid-19. Espaço e Economia, ano 9, n. 18, 2020. https://doi.org/10.4000/ESPACOECONOMIA.13776. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/13776. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://journals.openedition.org/espacoe...
).

Com a eclosão da pandemia de Covid-19, as ações do Consórcio Nordeste foram impulsionadas e criaram-se estratégias conjuntas entre os estados integrantes para seu enfrentamento. Ainda que os estados e municípios da região tenham estabelecido ações diversas e independentes, há uma certa confluência nas políticas implementadas nesses territórios, as quais podem relacionar-se aos mecanismos do Consórcio (Rossi e Silva, 2020ROSSI, Rinaldo C.; SILVA, Simone A. O Consórcio do Nordeste e o federalismo brasileiro em tempos de Covid-19. Espaço e Economia, ano 9, n. 18, 2020. https://doi.org/10.4000/ESPACOECONOMIA.13776. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/13776. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://journals.openedition.org/espacoe...
).

Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo examinar criticamente os documentos oficiais relativos às estratégias sanitárias de combate à pandemia disponibilizados pelos estados e capitais signatários do Consórcio Nordeste, sob as lentes do protagonismo da Atenção Primária à Saúde e da atuação do agente comunitário de saúde.

Métodos

A opção metodológica pela busca dos planos de contingência e documentos semelhantes se deu no entendimento de que estes retratam a resposta de gestões regionais à emergência sanitária da Covid-19. Essa técnica exploratória usa os documentos públicos como uma abordagem de dados qualitativos, entendendo que tais materiais podem explicitar aspectos novos sobre um determinado tema e que estes “não são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto e fornecem informações sobre esse mesmo contexto” (Lüdke e André, 1986LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1986., p. 39). A escolha dos documentos, portanto, não é aleatória, mas de acordo com a questão que se apresenta na pesquisa (Lüdke e André, 1986LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1986.).

Entre fevereiro e abril de 2021, realizou-se uma busca das notas técnicas e dos planos de contingência dos nove estados e capitais do Nordeste brasileiro referentes aos meses iniciais da pandemia, no ano 2020. A investigação dos documentos se deu com a visita aos sites institucionais das gestões de saúde dos estados e municípios do Nordeste, tais como páginas eletrônicas das secretarias municipais e estaduais de saúde. Quando necessário, também se realizaram buscas em páginas como a do Conselho de Secretarias Municipais do Estado (COSEMS) e do Ministério da Saúde.

Analisaram-se os documentos estaduais de Alagoas (Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Alagoas-Al, 2020CONSELHO DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE DE ALAGOAS (COSEMS-AL). Nota informativa: Enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Maceió: Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Alagoas, 2020. Disponível em: https://www.cosemsal.org/storage/uploads/documentos/anexos/1/hNWyo3KWpC6kBYZbobJToT9Q1PeX1KioPWi6E2if.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.cosemsal.org/storage/uploads...
; Alagoas, 2020ALAGOAS (Estado). Plano de contingência estadual para infecção humana pelo novo coronavírus 2019-nCoV. Maceió: Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas, 2020. http://cidadao.saude.al.gov.br/wp-content/uploads/2020/05/PLANO-DE-CONTINGENCIA-novo-coronavirus-ALAGOAS-EM-REVIS-O-1.pdf.
http://cidadao.saude.al.gov.br/wp-conten...
), Bahia (Bahia, 2020BAHIA (Estado). Plano estadual de contingências para enfrentamento do novo coronavírus 2019-n CoV. Salvador: Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, 2020. 56 p.), Ceará (Ceará, 2020aCEARÁ (Estado). Plano estadual de contingência para resposta às emergências em saúde pública: novo coronavírus (2019-nCoV). Fortaleza: Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, 2020a., 2020bCEARÁ (Estado). Cuidados em tempos de coronavírus (Covid-19): recomendações ao ACS para o período de isolamento social. Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará, 2020b. ), Maranhão (Maranhão, 2020MARANHÃO (Estado). Plano estadual de contingência do novo coronavírus 2019-nCoV. São Luís: Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, 2020. https://www.saude.ma.gov.br/wp-content/uploads/2020/02/Plano-de-Conting%C3%AAncia-nCoV_Atualizado.pdf.
https://www.saude.ma.gov.br/wp-content/u...
), Paraíba (Paraíba, 2020PARAÍBA (Estado). Plano de contingência estadual para o enfrentamento à infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV). João Pessoa: Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba, 2020. Disponível em: https://paraiba.pb.gov.br/diretas/saude/coronavirus/arquivos/plano-de-contingencia-estadual-para-infeccao-humana-pelo-coronavirus-_pb_-atualizado-22-06-20.pdf/view. Acesso em: 18 jul. 2023.
https://paraiba.pb.gov.br/diretas/saude/...
), Piauí (Piauí, 2020PIAUÍ (Estado). Plano estadual de contingência para o enfrentamento da infecção humana pelo coronavírus (2019-nCoV) do estado do Piauí. Teresina: Secretaria de Estado da Saúde do Piauí, 2020. http://www.saude.pi.gov.br/uploads/warning_document/file/468/Plano-de-contigencia-Coronavirus-Piaui-atual.pdf.
http://www.saude.pi.gov.br/uploads/warni...
), Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, 2020bRIO GRANDE DO NORTE (Estado). Plano de contingência estadual para infecção humana pela Covid-19. Natal: Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte, 2020b. https://portalcovid19.saude.rn.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/PLANO_RN_COVID19_V.7_FINALIZADO.pdf.
https://portalcovid19.saude.rn.gov.br/wp...
) e Sergipe (Sergipe, 2020SERGIPE (Estado). Plano de contingência estadual para infecção humana pelo novo coronavírus 2019-nCoV. Aracaju: Secretaria de Estado da Saúde de Sergipe, 2020, https://todoscontraocorona.net.br/wp-content/uploads/2020/03/Plano-de-Contingencia.pdf .
https://todoscontraocorona.net.br/wp-con...
). Não foi possível encontrar todos os planos municipais de enfrentamento à Covid-19 das capitais do Nordeste. Foram examinados apenas os de Fortaleza (Fortaleza, 2020 FORTALEZA. Plano municipal de contingência para enfrentamento da infecção humana pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. Fortaleza: Prefeitura Municipal, 2020. Disponível em: https://saude.fortaleza.ce.gov.br/images/coronavirus/PDFS/Plano-de-contingencia.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://saude.fortaleza.ce.gov.br/images...
), Salvador (Salvador, 2020aSALVADOR (Município). Nota técnica n. 01/2020, De 19 de março de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020a. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/Nota-técnica-01.2020-COVID19-Atualização-20.03.2020.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020bSALVADOR (Município). Nota técnica n. 02/2020, de 25 de março de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (COVID-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, https://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota_tecnica_DASAPS_N_02_de_2020_COVID19.pdf, 2020b.
https://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-...
; 2020cSALVADOR (Município). Nota técnica n. 04/2020, de 9 de abril de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde Consultórios na Rua no enfrentamento ao novo coronavírus (COVID-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020c. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/Nota-T%C3%A9cnica-04.2020-POP-RUA_09.04.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020dSALVADOR (Município). Nota técnica n. 05/2020, de 9 de abril de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020d. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota-Tecnica-DASAPS-N-05-de-2020-Atualizacao-09.04.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
; 2020eSALVADOR (Município). Nota técnica n. 11/2020, de 7 de julho de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020e. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/NT-n11-DAS.APS-0707-v6.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020fSALVADOR (Município). Nota técnica DAS/APS n. 09/2020, de 23 de junho de 2020. Orientações para a reorganização do processo de trabalho da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020f. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/14.-NT-DAS_APS-n.-09-de-23.06.2020-Reorganização-da-APS.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
; 2020gSALVADOR (Município). Plano de contingência para trabalhadores da Secretaria Municipal da Saúde de Salvador para enfrentamento da Covid-19. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020g. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Plano_de_Contigencia_Trabalhador_da_SMS_04062020.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
), Aracaju (Aracaju, 2020ARACAJU (Estado). Plano de contingência para enfrentamento da infecção humana pelo coronavírus SARS-Cov2-2019. Aracajú: Secretaria Municipal da Saúde, 2020. Disponível em: https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/download/1272_00e156ae6f8a1014d55496fe1cc241be. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca...
), João Pessoa (João Pessoa, 2020JOÃO PESSOA (Município). Plano de contingência do município de João Pessoa para enfrentamento da infecção humana pelo novo coronavírus Covid-19. João Pessoa: Secretaria Municipal da Saúde, 2020 https://pmtacima.pb.gov.br/wp-content/uploads/2021/05/Plano-de-Contigencia-da-COVID19-Tacima.pdf.
https://pmtacima.pb.gov.br/wp-content/up...
) e Recife (Recife, 2020RECIFE (Município). Plano municipal de contingência Covid-19. Recife: Secretaria Municipal da Saúde, 2020. Disponível em: http://www2.recife.pe.gov.br/sites/default/files/plano_de_contingaancia_de_recife_coronava_rus_covid-19_10.03.20.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www2.recife.pe.gov.br/sites/defau...
). No estado da Bahia, o município de Salvador usou notas técnicas produzidas pela secretaria de Saúde (Salvador, 2020aSALVADOR (Município). Nota técnica n. 01/2020, De 19 de março de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020a. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/Nota-técnica-01.2020-COVID19-Atualização-20.03.2020.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020bSALVADOR (Município). Nota técnica n. 02/2020, de 25 de março de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (COVID-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, https://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota_tecnica_DASAPS_N_02_de_2020_COVID19.pdf, 2020b.
https://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-...
; 2020cSALVADOR (Município). Nota técnica n. 04/2020, de 9 de abril de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde Consultórios na Rua no enfrentamento ao novo coronavírus (COVID-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020c. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/Nota-T%C3%A9cnica-04.2020-POP-RUA_09.04.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020dSALVADOR (Município). Nota técnica n. 05/2020, de 9 de abril de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020d. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota-Tecnica-DASAPS-N-05-de-2020-Atualizacao-09.04.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
; 2020eSALVADOR (Município). Nota técnica n. 11/2020, de 7 de julho de 2020. Orientações para organização da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020e. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covid/wp-content/uploads/sites/27/2020/08/NT-n11-DAS.APS-0707-v6.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/covi...
; 2020fSALVADOR (Município). Nota técnica DAS/APS n. 09/2020, de 23 de junho de 2020. Orientações para a reorganização do processo de trabalho da Atenção Primária à Saúde no enfrentamento ao novo coronavírus (Covid-19) no município do Salvador. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020f. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/14.-NT-DAS_APS-n.-09-de-23.06.2020-Reorganização-da-APS.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
) e de um documento para trabalhadores (Salvador, 2020gSALVADOR (Município). Plano de contingência para trabalhadores da Secretaria Municipal da Saúde de Salvador para enfrentamento da Covid-19. Salvador: Secretaria Municipal da Saúde, 2020g. Disponível em: http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Plano_de_Contigencia_Trabalhador_da_SMS_04062020.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.saude.salvador.ba.gov.br/wp-c...
), com recomendações em nível estadual para APS no estado baiano (Jesus et al., 2020JESUS, Cleber S. et al. (org.). Recomendações para enfrentamento à Covid-19 por meio da atenção primária à saúde. Salvador: Núcleo Regional de Saúde Sul, Região de Saúde Jequié, 2020. Disponível em: http://www.uesb.br/wp-content/uploads/2020/06/Recomendações-APS-Enfrentamento-Covid.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://www.uesb.br/wp-content/uploads/20...
). Sobre os estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte, encontraram-se, ainda, protocolos específicos para a APS (Pernambuco, 2020PERNAMBUCO (Estado). Novo coronavírus Covid-19: Protocolo de atendimento na atenção primária no período de pandemia Covid-19 no estado de Pernambuco. Recife: Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco, 2020. Disponível em: http://portal.saude.pe.gov.br/sites/portal.saude.pe.gov.br/files/protocolo_de_atendimento_na_aps_covid19_-_versao_1.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://portal.saude.pe.gov.br/sites/port...
; Rio Grande do Norte, 2020aRIO GRANDE DO NORTE (Estado). Caderno da atenção primária no RN: atenção primária à Saúde no contexto da pandemia da Covid-19. Natal: Secretaria da Saúde do Estado, 2020a. Disponível em: https://portalcovid19.saude.rn.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/Caderno_da_APS_covid.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://portalcovid19.saude.rn.gov.br/wp...
).

A análise crítica ocorreu com os objetivos de compreender as orientações feitas para gestores e trabalhadores da APS no contexto da pandemia, bem como o de verificar a ênfase dada à ação dos ACSs nesse cenário. Os arquivos eleitos para o estudo estão sistematizados no Quadro 1.

Quadro 1
Relação de documentos analisados por estado, 2020.

Para a análise dos documentos, considerou-se a perspectiva de Spink (2013SPINK, Peter. Análise de documentos de domínio público. In: SPINK, Mary J. P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. p. 100-126.), que qualifica os documentos de domínio público como práticas discursivas sociais. Para esse autor, os documentos institucionais públicos são tomados como gêneros de circulação no sentido de publicitar um discurso produzido em seu tempo e em seu contexto social. Analisar documentos, portanto, seria analisar mais que os seus conteúdos, mas como estes produzem ações e realidades sociais. Nesse sentido, documentos são não apenas traços da ação social, mas também a própria ação social. Constituem componentes dos cotidianos e tecem formas de narrativas e memórias sobre um tempo (Spink, 2013SPINK, Peter. Análise de documentos de domínio público. In: SPINK, Mary J. P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. p. 100-126.).

Spink (2013SPINK, Peter. Análise de documentos de domínio público. In: SPINK, Mary J. P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. p. 100-126.) trabalha com essa perspectiva de análise baseada no direcionamento das “práticas discursivas e produção dos sentidos no cotidiano” (Spink e Frezza, 2013SPINK, Mary J. P.; FREZZA, Rose M. Práticas discursivas e produção de sentido. In: SPINK, Mary J. P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. p. 1-21., p. 1). Para essas autoras, a escolha das categorias deve se dar por um tensionamento entre a fundamentação teórica e o material empírico colhido no momento exploratório.

Assim, após o exame da documentação colhida e do confronto com o referencial bibliográfico usado em conformidade com a questão proposta na pesquisa, definiram-se três categorias de análise (Quadro 2): ‘Fluxos de atendimento’, com análise do itinerário terapêutico sugerido para os usuários das unidades de saúde durante o contexto pandêmico; ‘Assistência na Atenção Primária à Saúde’, que observa a presença de ações estratégicas específicas voltadas para esse nível de atenção; e ‘Protagonismo dos agentes comunitários de saúde’, que analisa de forma crítica a centralidade desse profissional na estratégia local descrita para enfrentamento à pandemia.

Quadro 2
Documentos organizados por estado e dimensões de análise, 2020.

Resultados e discussão

Apesar do Consórcio Nordeste, a articulação dos estados nordestinos não uniformizou os planos de contingência estaduais, e cada ente federativo elaborou um planejamento específico. Com base nesses textos diretivos, o presente trabalho se debruça a seguir na análise dos resultados reunidos nas três categorias mencionadas no Quadro 2.

Fluxos de atendimento

Na eventualidade da emergência de uma pandemia, os contextos de organização do cuidado dentro das unidades de saúde se alteraram diante da situação sanitária e das novas demandas, exigindo uma readaptação do trabalho para a assistência à população de seu território. De acordo com a leitura dos documentos, percebe-se uma série de alterações nos fluxos que pode ter impactado a atuação da Atenção Primária à Saúde durante esse período. São essas reorganizações nos processos de trabalho e das formas de cuidado que chamamos aqui de ‘Fluxos de atendimento’.

A Atenção Primária à Saúde, conforme preconizado pela Política Nacional da Atenção Básica (PNAB), além de ser a porta de entrada dos serviços de saúde dentro dos territórios, visa ampliar o entendimento do que é saúde e complexificar as formas de cuidado, distanciando-se do modelo médico-centrado. Nessa direção, a APS atua sob a lógica de um cuidado integral, mediante ações de promoção à saúde e prevenção de doenças, recuperação, reabilitação, agravos e intervenção nos fatores de risco (Brasil, 2012 BRASIL. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012. (Série E. Legislação em Saúde). E-book.).

Demanda-se que cada unidade de saúde organize o seu próprio serviço acerca de seus fluxos assistenciais e de cuidado, gerando, assim, uma condição singular no que diz respeito a seus processos de trabalho e à dinâmica de funcionamento no interior do serviço, esta alinhada ao perfil da realidade e necessidades de seu território de cobertura (Ferreira Neto et al., 2018FERREIRA NETO, João L. et al. Cuidado integral, condições e processos de trabalho: o cotidiano de Unidades na Atenção Básica. In: SÁ, Marilene C.; TAVARES, Maria F. L.; SETA, Marismary H. (org.). Organização do cuidado e práticas em saúde: abordagens, pesquisas e experiências de ensino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018. p. 215-234.).

De forma geral, em consonância com o Plano de contingência nacional para infecção humana pelo novo coronavírus Covid-19 (Brasil, 2020BRASIL. Plano de contingência nacional para infecção humana pelo novo coronavírus Covid-19. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2020/04/Livreto-Plano-de-Contingencia-5-Corona2020-210x297-16mar.pdf. Acesso em: 4 jul. 2023.
http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-conten...
), os estados do Nordeste organizaram seus fluxos assistenciais de acordo com níveis de resposta, estabelecendo maiores ou menores restrições de acordo com a fase de criticidade da pandemia. Tais alterações apresentaram consonância quanto à importância de identificação precoce e notificação de casos suspeitos e contactantes, com ênfase no isolamento social ou na quarentena como principal estratégia de redução da transmissão.

Estabeleceram-se também fluxos e itinerários terapêuticos baseados na classificação de gravidade dos pacientes, com a totalidade dos documentos designando a APS como principal porta de entrada para casos leves e, para os demais casos, os serviços de média e alta complexidade.

No que tange ao reordenamento da APS, parte das diretivas se orienta sobre a necessidade de um espaço exclusivo nas unidades para atendimento aos sintomáticos respiratórios, dentre medidas diversas, como o uso da estratégia de fast track e outras relativas à higienização dos serviços. O estado do Maranhão trata da reorganização da agenda e da suspensão de atividades coletivas. Em alguns documentos, há direcionamentos, ainda que muitas vezes de forma superficial, para a implementação de protocolos de manejo domiciliar de casos leves, isolamento domiciliar, acionamento da vigilância e monitoramento dos casos, como os descritos nos planos da Bahia, Ceará e Maranhão.

Algumas especificidades se fazem relevantes, como a orientação de extensão do horário de funcionamento de unidades de saúde, detalhada nos estados do Sergipe e Pernambuco. O estado do Rio Grande do Norte cita a participação da APS na elaboração dos planos municipais de enfrentamento à pandemia.

No caso do estado da Bahia, um destaque importante é a sinalização da atenção a populações historicamente excluídas e com maior vulnerabilidade. A capital do estado também traz normas específicas que indicam a necessidade de acolhimento de pessoas em situação de rua sem prejuízo nas UBS. Vale destacar também que poucos planos possuem especificações da assistência por nível de complexidade ou especificamente para APS como os apresentados nos estados da Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Os atendimentos sofreram adaptações nesse período, com readequação no processo de trabalho e com a possibilidade de atendimentos remotos, os quais também foram contemplados nas notas técnicas da Bahia sobre a APS.

O referenciamento da modalidade do telessaúde também se fez presente, demonstrando que acompanhou a crescente expansão do uso dessa estratégia no período da pandemia dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse período, ainda que com dificuldades de implementação, pesquisadores afirmaram que a telessaúde poderia auxiliar no enfrentamento à crise por meio das teletriagens, consultas virtuais, suporte a especialistas, dentre outras ações (Caetano et al., 2020CAETANO, Rosângela et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00088920. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/swM7NVTrnYRw98Rz3drwpJf. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/csp/a/swM7NVTrnY...
).

A temática do envolvimento das tecnologias da informação nos serviços de saúde durante o período de pandemia recebeu especial destaque na resposta dada a essa situação sanitária. No âmbito internacional, mesmo considerando que diversas estratégias fossem usadas nas diferentes organizações dos sistemas de saúde, a mudança significativamente comum entre elas foi o envolvimento das tecnologias da informação em saúde (Prado et al., 2020PRADO, Nilia M. B. L. et al. The international response of primary health care to COVID-19: document analysis in selected countries. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 12, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00183820. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7ws7tVbWLS7LYk559MBJfLL. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/csp/a/7ws7tVbWLS...
).

As medidas de desinfecção dos espaços e as formas de evitar o contágio nos ambientes de saúde estavam presentes em todos os planos. Dentre elas está a importância do uso de equipamentos de proteção individual por profissionais e usuários dos serviços, como máscaras, luvas, avental e óculos para alguns profissionais. Outras orientações foram manter ambientes limpos e ventilados, ter local específico de atendimento de casos suspeitos, guardar distanciamento, evitar contato, fazer a higiene constante das mãos e ter frequência na limpeza das superfícies. Também aparece a necessidade de atenção às normas técnicas emitidas pela Anvisa.

Ressaltam-se, portanto, as novas formas de cuidado e assistência que se originaram durante o período da pandemia e como exigiram uma importante capacidade de inovação no trabalho em saúde por parte dos profissionais, como as já citadas ‘teleconsultas’, a utilização de novos e outros meios de comunicação percebida de maneira diversa em todo o Brasil, entre outros (Caetano et al., 2020CAETANO, Rosângela et al. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela Covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311X00088920. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/swM7NVTrnYRw98Rz3drwpJf. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/csp/a/swM7NVTrnY...
; Comunicação..., 2020COMUNICAÇÃO comunitária no combate à Covid-19. APS Redes, 2020. Disponível em: https://apsredes.org/covid19-municipios-apresentam-estrategias-para-aps-se-conectar-com-a-comunidade-na-resposta-a-pandemia/. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://apsredes.org/covid19-municipios-...
; Nunes et al., 2022NUNES, Camila H. et al. Rede de informações e comunicação sobre a exposição de trabalhadores/trabalhadoras ao Sars-CoV-2 no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, p. 411-422, 2022. Número especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042022E128. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/tmPNXWSVdMNwrqCMkfBRPhz/. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/tmPNXWSVd...
).

Tais experiências sinalizam a potencialidade da APS na produção de um cuidado ampliado em saúde, considerando as complexidades da assistência da atenção primária por meio da reflexão e atuação das diversas demandas e necessidades apresentadas no território adscrito. Conforme veremos mais profundamente nos próximos dois tópicos, embora os documentos analisados tenham explicitado dimensões curativistas e centradas no cuidado hospitalar, essas inovações em saúde podem demonstrar um caminho no sentido contrário a esse movimento.

Assistência na Atenção Primária à Saúde

Assim como a pandemia exigiu novos contextos de organização dos processos de trabalho, bem como de fluxos de atendimento dentro das unidades de saúde, os meios pelos quais o cuidado é produzido também sofreram alterações. Apesar de a APS não possuir, naquele início da crise sanitária de 2020, instrumentos para uma redução direta da letalidade da infecção pelo coronavírus, já apresentava ferramentas que poderiam minimizar os impactos da pandemia no que se refere à incidência da doença e à sobrecarga dos demais níveis de atenção (Gois-Santos et al., 2020GOIS-SANTOS, Vanessa T. et al. Primary health care in Brasil in the times of COVID-19: changes, challenges and perspectives. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 66, n. 7, p. 876-879, 2020. https://doi.org/10.1590/1806-9282.66.7.876. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ramb/a/43nPT3r3tSn9kQTxW57z54G. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/ramb/a/43nPT3r3t...
).

Dessa forma, entende-se que a APS brasileira tinha potencial para atuar como peça-chave nas medidas de vigilância e educação em saúde, no rastreio de indivíduos sintomáticos e de pessoas com quem tiveram contato, na identificação de situações de fragilidade e no cuidado longitudinal dos usuários (Gois-Santos et al., 2020GOIS-SANTOS, Vanessa T. et al. Primary health care in Brasil in the times of COVID-19: changes, challenges and perspectives. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 66, n. 7, p. 876-879, 2020. https://doi.org/10.1590/1806-9282.66.7.876. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ramb/a/43nPT3r3tSn9kQTxW57z54G. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/ramb/a/43nPT3r3t...
). Todavia, é possível perceber uma importante limitação dessa esfera nos planos estaduais de contingência analisados, especialmente no que se refere às duas últimas.

Tendo em vista que a maior parte dos planos aqui analisados não possuem orientações específicas para a APS - o que evidencia a lógica de cuidado ainda focalizada no nível hospitalar -, é importante lembrar que desde a reforma sanitária brasileira a atenção primária vinha se fortalecendo como porta de entrada no sistema de saúde. Ela é o local preferencial de contato entre o sistema de saúde e a população brasileira, com uma capilaridade que alcança e permite a criação de formas de cuidado condizentes com as diferentes realidades sociais no país, além de ser o centro de comunicação da rede de saúde, coordenadora do cuidado e ordenadora das ações de saúde (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: Brasília, DF, v. 183, seção 1, p. 67-76, 2017. ).

Orientações a respeito do rastreamento, buscas de novos casos, identificação e acompanhamento no isolamento domiciliar se fizeram presentes em todos os documentos analisados. São citadas as atividades de prevenção e de orientação à população sobre as formas de contágio; entretanto, não se observam direcionamentos mais específicos e estruturados acerca das estratégias de educação em saúde nos serviços.

Em relação à continuidade das atividades já desenvolvidas na APS, além da mudança de fluxos de acolhimento e suspensão de atividades coletivas em alguns serviços, não houve diretrizes específicas robustas na maioria dos documentos. Isso pode evidenciar mais uma vez o olhar verticalizado que desconsidera a importância das ações dentro do território para o combate da pandemia, ignorando a potencialidade de vigilância em saúde proporcionada pela capilaridade da APS (Giovanella et al., 2020GIOVANELLA, Ligia et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. SciELO Preprints, 2020. https://doi.org/10.1590/SCIELOPREPRINTS.1286. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1286/version/1380. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
). Essa realidade também foi encontrada em outros países latino-americanos onde os programas convencionais tiveram desaceleração ou simplesmente paralisaram (Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, Ligia et al. ¿Es la atención primaria de salud integral parte de la respuesta a la pandemia de Covid-19 en Latinoamérica? Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 19, e00310142, 2021. https://doi.org/10.1590/1981-7746-SOL00310. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSBJmsMrfwhkdJrL. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/CJX9Rs5gSB...
).

Não apareceram direcionamentos que pudessem potencializar o trabalho das equipes dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) nos territórios e não houve aprofundamento das atividades das categorias profissionais. Estudos sugerem que o NASF-AB no contexto de pandemia seria uma ferramenta fundamental nas ações de continuidade do cuidado, com a realização das consultas a distância, além de auxiliar também nos serviços de saúde mental diante do agravamento das situações de sofrimento psíquico (Giovanella et al., 2020GIOVANELLA, Ligia et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. SciELO Preprints, 2020. https://doi.org/10.1590/SCIELOPREPRINTS.1286. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1286/version/1380. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
).

Pôde-se evidenciar, portanto, a adoção de um modelo que vai em contraposição ao próprio desenho do SUS e às especificidades da APS, na qual há a valorização da participação popular e das demandas do território como diretrizes básicas do trabalho em saúde. A ausência de estratégias sanitárias que considerem tais características, conforme demonstrado nos documentos levantados neste estudo, demonstra não apenas o desafio posto sobre as formas de cuidado e inovação em saúde que se apresentaram durante a pandemia, mas principalmente expõe a necessidade de se pautar discussões em nível político da gestão em saúde para a efetivação do direito à saúde nos diversos entes federalistas, estando ou não em um cenário de crise sanitária.

Protagonismo dos agentes comunitários de saúde

Como a Atenção Primária à Saúde recebeu pouca atenção na maior parte dos protocolos aqui discutidos, é de se esperar também que houve pouca ênfase na atuação de um ator peculiar à APS brasileira: o agente comunitário de saúde. Nas orientações dos documentos citados, é evidente a ausência de direcionamentos específicos para esses profissionais e, nos documentos encontrados para os estados do Maranhão, Paraíba, Piauí e Sergipe, não existiu sequer alguma menção à atuação do ACS.

A ausência desses atores nas políticas e estratégias de combate à pandemia parece consonante a um movimento de precarização e desvalorização de incentivo já anterior à situação de pandemia instaurada no país. Tal processo, intensificado pela proposta de alteração da Política Nacional de Atenção Básica de 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: Brasília, DF, v. 183, seção 1, p. 67-76, 2017. ), sinaliza a possibilidade de redução do número de ACSs nas equipes, dentre outras mudanças que alteram e podem fragilizar o escopo de atuação desse nível de atenção, podendo revelar, ainda, uma precarização das condições para a produção do cuidado realizado por esses trabalhadores (Melo et al., 2018MELO, Eduardo A. et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, 1 Número Especial, p. 38-51, 2018. https://doi.org/10.1590/0103-11042018S103. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T43b6nPBCFg8F3p. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/Vs4dLSn6T...
).

As atividades realizadas pelos ACSs cumprem um trabalho de mediação que pode ser percebido de duas maneiras: tanto pela facilitação ao acesso a serviços de saúde, por causa do vínculo e da facilidade de alcance dos usuários a esse profissional, quanto pela atuação de certo ‘caminho do meio’ entre o saber popular e o saber biomédico (Bornstein et al., 2014BORNSTEIN, Vera J. et al. Desafios e perspectivas da Educação Popular em Saúde na constituição da práxis do agente comunitário de saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, p. 1327-1339, 2014. Suplemento 2. https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0437. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/Jjvb5zhG7R9FpnbyR3NJdFS. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/icse/a/Jjvb5zhG7...
). É nesse terreno fértil que brota a possibilidade de novas estratégias de um cuidado compartilhado em meio às crises de saúde, como no caso da Covid-19.

Nesse sentido, quando o ACS consegue ocupar um lugar de não neutralidade, ele assume uma posição de mudança fundamentada na construção coletiva, podendo mobilizar o território e potencializar o fortalecimento da autonomia dos indivíduos (Travassos, 2016TRAVASSOS, Ronaldo S. O trabalhador social em saúde. In: BORNSTEIN, Vera J. Curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde: textos de apoio. Rio de Janeiro: EPSJV, 2016. p. 43. ). Tal característica poderia ter sido uma forte aliada no contexto de enfrentamento à pandemia ao possibilitar, com ações de educação em saúde, uma conscientização acerca das medidas de prevenção e, consequentemente, um desaceleramento das superlotações dos serviços hospitalares.

Nas orientações dadas aos ACSs pelos planos de contingência, os estados da Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte apresentaram como funções principais: realização de ações de orientação à população sobre as formas de prevenção e identificação de sinais e sintomas; ações de busca ativa de usuários de maior risco; monitoramento clínico-domiciliar; e ações educativas. As estratégias dos demais estados não citam esse trabalhador.

Entre as funções presentes nos planos de contingência para a reorganização dos processos de trabalho durante a pandemia, encontrou-se que o ACS deveria auxiliar as equipes nos planejamentos, reorganizar agendas, atender telefones e fazer o acolhimento na unidade de saúde e a reorientação dos fluxos. É pertinente considerar que a maior parte das atividades designadas a esse trabalhador deveria possuir uma dimensão educativa, mas frequentemente as atividades burocráticas limitam a expansão desse cuidado em saúde (Bornstein e Stotz, 2008BORNSTEIN, Vera J.; STOTZ, Eduardo N. O trabalho dos agentes comunitários de saúde: entre a mediação convencedora e a transformadora. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 457-480, 2008. https://doi.org/10.1590/S1981-77462008000300004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/HXZkfKw3YhMmhx8Ywggy4Pv. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/tes/a/HXZkfKw3Yh...
).

Portanto, é possível inferir que suprimir a potência do trabalho do ACS nesse contexto, como agente fundamental entre o serviço e o território, abre espaço para a legitimação de trabalho cada vez mais burocratizado e menos sensível à realidade da população circunscrita em seu território de cobertura.

Pode-se questionar o motivo pelo qual o trabalho exercido pelos ACSs aparece de forma confusa e, muitas vezes, deslocada de seu objeto principal. Silva e Dalmaso (2002SILVA, Joana A.; DALMASO, Ana S. W. O agente comunitário de saúde e suas atribuições: os desafios para os processos de formação de recursos humanos em saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 6, n. 10, p. 75-83, 2002. https://doi.org/10.1590/S1414-32832002000100007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/VHNC9VSKF57ZmjghKf9GZVd. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.scielo.br/j/icse/a/VHNC9VSKF...
) refletem sobre o conflito permanente que é posto ao ACS: às vezes, pode ser visto como educador em saúde, outras como organizador de acesso, e, em não raros momentos, esse profissional é classificado como ‘olheiro’ da equipe em que trabalha. A ausência de uma compreensão da atuação do ACS de forma mais sistematizada, voltada para o trabalho com e para o seu território, pode muitas vezes fazer com que a sua potencialidade seja subestimada, sobretudo em momentos de pandemia como o que foi vivenciado, reiterando a alocação dos grandes holofotes para os serviços hospitalares.

Em relação às visitas no território no período de pandemia, elas foram reorganizadas nos planos do Rio Grande do Norte e de Pernambuco para a modalidade peridomiciliar, ou seja, não adentrando nos domicílios a fim de evitar contágio. Destaca-se a produção de uma cartilha para ACS no estado do Ceará, com orientações tanto para o trabalho do ACS no período da pandemia quanto para a manutenção dos vínculos com a comunidade por diversos meios e com materiais informativos e de cuidado preventivo em saúde mental.

Para além do exposto, é relevante notar que, com exceção de alguma preocupação expressa nos planos dos estados da Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, não houve direcionamento para a integração do trabalho realizado pela APS com as organizações comunitárias nos territórios, seja nas ações de vigilância, seja nas atividades de educação em saúde, para que acontecessem com suporte social. Além disso, não houve menção nos planos às ações intersetoriais para o apoio social, com exceção do estado do Ceará, que citou um programa de acompanhamento de idosos na situação de pandemia em conjunto com serviços da assistência social.

Em sentido oposto, tem-se as experiências de países como Cuba e Venezuela, que se destacaram nos resultados do enfrentamento ao contexto da Covid-19 com ações de enfoque comunitário e participativo, tais como assembleias pelos bairros, com informações epidemiológicas, decisões participativas, trabalho comunitário na entrega de máscaras, vigilância para evitar aglomerações, dentre outras (Giovanella et al., 2020GIOVANELLA, Ligia et al. A contribuição da atenção primária à saúde na rede SUS de enfrentamento à Covid-19. SciELO Preprints, 2020. https://doi.org/10.1590/SCIELOPREPRINTS.1286. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/1286/version/1380. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://preprints.scielo.org/index.php/s...
).

De maneira semelhante ao que foi visto sobre o protagonismo da APS, destaca-se a restrita atuação do ACS tendo em vista o grande papel que esse trabalhador desempenha dentro da atenção primária. Na situação sanitária da pandemia, ele poderia ter se apresentado como um ator potencial no cuidado das comunidades brasileiras por ser um profundo conhecedor do território onde atua e das famílias que acompanha, tornando-se essencial na compreensão da realidade de um lugar por meio das diversas linguagens, costumes e culturas (Speroni et al., 2016SPERONI, Katiane S. et al. Percepções dos agentes comunitários de saúde: contribuições para a gestão em saúde. Revista Cuidarte, Bucaramanga, v. 7, n. 2, p. 1.325-1.337, 2016. https://doi.org/10.15649/CUIDARTE.V7I2.338. Disponível em: https://revistas.udes.edu.co/cuidarte/article/view/338. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://revistas.udes.edu.co/cuidarte/ar...
).

Considerações finais

Através da análise dos planos de contingência da região Nordeste, é possível perceber como a gestão do SUS aconteceu de forma heterogênea no contexto da pandemia. De modo geral, foi encontrado como principal nó crítico a pouca estruturação do papel da Atenção Primária à Saúde nos direcionamentos governamentais de combate à pandemia, com pequeno protagonismo da APS como potencial articuladora das medidas de mitigação e de vigilância na maior parte dos planos analisados. Nessa direção, a atuação dos ACSs também foi minimizada, ao passo que em alguns documentos não foram sequer citados.

A fim de mitigar os efeitos da crise que extrapolou o campo da saúde e diante de um país de dimensões continentais, percebeu-se a necessidade da utilização da APS como uma estratégia de potência. Nesse sentido, pode-se pensar nas limitações estruturais encontradas na APS brasileira, que podem ter-se acentuado em razão das últimas mudanças no contexto político, as quais interferem no sistema de saúde brasileiro, tal como o congelamento dos gastos públicos trazido pela emenda constitucional n. 95 (Brasil, 2016BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Emenda constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm. Acesso em: 4 jul. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
).

Ademais, a priorização da dimensão curativista nesse cenário pode favorecer a adoção de um modelo biomédico que há tempos se busca superar. Em contraponto, acredita-se que o reforço às estratégias de educação em saúde seria um caminho possível no enfrentamento dessa lógica que tende a reduzir a complexidade da relação saúde-enfermidade.

Diante dessa constatação, o uso do referencial teórico que compreende os documentos de domínio público como práticas discursivas sociais auxiliou a perceber que, apesar dos grandes avanços e debates acerca do cuidado em saúde, tais documentos reproduzem nosso contexto social, em que a perspectiva biomédica, a burocratização e a precarização do trabalho em saúde ainda parecem ser as narrativas que pautam e orientam o cuidado e a assistência em saúde.

Ainda que haja limitações neste estudo, visto que trata de uma região específica do Brasil, esta pesquisa busca também auxiliar na construção de novas formas de cuidado e gestão no período posterior à pandemia, ratificando a necessidade do fortalecimento da APS em sua essência, com um trabalho que é realizado de maneira complexa com base na noção de território, implicando na valorização e no protagonismo dos ACSs.

Faz-se necessária uma leitura mais aprofundada em relação aos problemas estruturais vinculados à pandemia para a criação de estratégias de cuidado e gestão que sejam capazes de considerá-los.

Por fim, reitera-se que a efetividade de ações para o enfrentamento da situação de pandemia, assim como para os problemas sanitários encontrados em nosso país, passa pelo fortalecimento das políticas sociais garantidas pela Constituição de 1988, principalmente do SUS, assegurando seu caráter universal, público e de qualidade.

Referências

  • Financiamento

    Não houve.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2023
  • Aceito
    21 Jun 2023
Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio Avenida Brasil, 4.365, 21040-360 Rio de Janeiro, RJ Brasil, Tel.: (55 21) 3865-9850/9853, Fax: (55 21) 2560-8279 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revtes@fiocruz.br