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O sentido do trabalho para o adolescente trabalhador

The meaning of labor for the adolescent worker

Resumos

Este artigo tem como objetivo analisar o significado do trabalho para adolescentes que frequentam uma organização não governamental (ONG), cujo objetivo é oferecer formação técnica profissionalizante e buscar inserção na forma de estágios remunerados para adolescentes carentes. Para apreender o sentido do trabalho, entrevistaram-se trinta adolescentes ligados a essa ONG que estavam trabalhando. Uma análise de conteúdo automatizada, utilizando o software Alceste®, foi aplicada na análise das entrevistas. A análise dos dados indica três categorias de discurso, com aspectos positivos e negativos do trabalho: carreira profissional, na qual o trabalho aparece como uma via para ascensão social; trabalho, lazer e família, na qual o trabalho aparece como meio de prover a si e a família; projeto pessoal, na qual o trabalho aparece associado à responsabilidade e participação social.

adolescente; trabalho; mercado de trabalho


The purpose of this article is to analyze the meaning of labor for adolescents who frequent a non-governmental organization (NGO) that aims to offer vocational and technical training and seeks inclusion in the form of paid internships for disadvantaged young people. To grasp the meaning of labor, interviews were carried out among thirty adolescents who were associated with this NGO and were working. An automated content analysis, using the Alceste® software, was applied to examine the interviews. The analysis points to three categories of discourse, with positive and negative aspects of labor: careers, in which work appears as an avenue for social mobility; work, leisure, and family, in which labor is seen as a means to provide for themselves and their families; personal project, in which it is associated with responsibility and social participation.

adolescent; work; work market


ARTIGO ARTICLE

O sentido do trabalho para o adolescente trabalhador

The meaning of labor for the adolescent worker

Catarina Barbosa da Silva Rizzo1 1 Psicóloga da Prefeitura Municipal de São Luiz do Paraitinga, São Paulo, Brasil. Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Taubaté (Unitau). < catrizzo76@hotmail.com> ; Edna Maria Querido de Oliveira Chamon2 2 Professora assistente da Universidade de Taubaté (Unitau), São Paulo, Brasil. Doutora em Psychologie pela Université de Toulouse II, França. < edna.chamon@gmail.com>

Correspondência Correspondência: Universidade de Taubaté (Unitau) Rua Expedicionário Ernesto Pereira, s/n, Portão 3, Centro CEP 12030320, Taubaté, São Paulo, Brasil

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o significado do trabalho para adolescentes que frequentam uma organização não governamental (ONG), cujo objetivo é oferecer formação técnica profissionalizante e buscar inserção na forma de estágios remunerados para adolescentes carentes. Para apreender o sentido do trabalho, entrevistaram-se trinta adolescentes ligados a essa ONG que estavam trabalhando. Uma análise de conteúdo automatizada, utilizando o software Alceste®, foi aplicada na análise das entrevistas. A análise dos dados indica três categorias de discurso, com aspectos positivos e negativos do trabalho: carreira profissional, na qual o trabalho aparece como uma via para ascensão social; trabalho, lazer e família, na qual o trabalho aparece como meio de prover a si e a família; projeto pessoal, na qual o trabalho aparece associado à responsabilidade e participação social.

Palavras-chave: adolescente; trabalho; mercado de trabalho

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the meaning of labor for adolescents who frequent a non-governmental organization (NGO) that aims to offer vocational and technical training and seeks inclusion in the form of paid internships for disadvantaged young people. To grasp the meaning of labor, interviews were carried out among thirty adolescents who were associated with this NGO and were working. An automated content analysis, using the Alceste® software, was applied to examine the interviews. The analysis points to three categories of discourse, with positive and negative aspects of labor: careers, in which work appears as an avenue for social mobility; work, leisure, and family, in which labor is seen as a means to provide for themselves and their families; personal project, in which it is associated with responsibility and social participation.

Keywords: adolescent; work; work market.

A evolução do conceito de trabalho

O trabalho, nos dias atuais, é visivelmente valorizado, não só pelo retorno financeiro, mas pelo valor moral que ele assume em nossa cultura. Entretanto, tal percepção é histórica, tendo o conceito de trabalho evoluído ao longo do tempo.

De fato, como aponta Arendt (2005), o trabalho necessário à satisfação das necessidades vitais era, na antiguidade, uma ocupação servil, que excluía da cidadania (isto é, da participação na pólis) aqueles que o realizavam. O trabalho era indigno do cidadão, não porque fosse reservado às mulheres e aos escravos, mas, ao contrário, ele era reservado às mulheres e aos escravos porque 'trabalhar era sujeitar-se à necessidade'. E só podia aceitar o assujeitamento aquele que, como o escravo, preferia a vida à liberdade, dando assim mostra do espírito servil.

Um aspecto importante dessa caracterização do trabalho, ressaltado por Gorz (2003), é a ausência de uma atividade realizada na esfera pública com vistas a uma troca mercantil - característica típica do capitalismo, que exacerba o valor de troca do trabalho.

Assim, partindo de um conceito de trabalho que remete fundamentalmente às tarefas desempenhadas pelos escravos, e atravessando a época clássica, em que ele aparece ligado centralmente às prestações dos servos, a concepção do trabalho se moderniza, alcançando sua qualificação dentro do modo capitalista.

Gorz (2003) ressalta que a ideia contemporânea do trabalho só surge, efetivamente, com o capitalismo manufatureiro. Até o século XVIII, o termo 'trabalho' (labour, arbeit, lavoro) designa a labuta dos servos e dos trabalhadores por jornada, produtores dos bens de consumo e dos serviços necessários à sobrevivência que, dia após dia, exigem ser renovados e repostos. Apenas com o surgimento do capitalismo industrial, o trabalho com finalidade econômica torna-se a atividade dominante.

Na raiz dessas concepções está a ideia de transformação do natural em artificial, para satisfação das necessidades humanas. No entanto, e essa é uma característica fundamental do trabalho humano, ele não é apenas o esforço para gerar produtos/serviços com valor para outros (e para o próprio indivíduo), mas, principalmente, a atividade consciente e proposital dirigida para isso. Nesse sentido, o trabalho é uma atividade que pertence exclusivamente ao homem.

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção do favo de suas colmeias. Mas, o que distingue de antemão o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo na cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente (Marx, 1985, p. 150).

Esse produto típico da espécie humana - o trabalho como atividade proposital orientado pela inteligência - transforma, por sua vez, a própria natureza do homem. A ação humana sobre o mundo externo modifica, ao mesmo tempo, o caráter do que é humano (Marx, 1985).

Mielnik (1987), ao falar sobre a mudança no sentido do trabalho ao longo da história do homem, destaca que ele já foi considerado uma atividade convencional, que visava ao sustento biológico da criatura humana (cultivo agrário, artesanato). Apenas modernamente o homem atribui ao trabalho um caráter de obrigatoriedade, como meio e recurso de sobrevivência, que fornece uma remuneração, um salário destinado a prover sustento biológico e sobrevivência econômica.

Além disso, em que pesem as críticas à centralidade do trabalho (Lucena, 2006), ele permanece fonte de satisfação psicoemocional e de realização da personalidade humana, conferindo posição social entre os membros de um grupo social.

Ainda que se adote uma perspectiva um tanto restrita do termo 'trabalho', considerando-o como atividade remunerada e exercida dentro de limites organizacionais, observa-se que o trabalho envolve a mobilização de energias físicas e mentais, emoções e sentimentos. A vivência do trabalho tem centralidade na vida dos indivíduos sociais, extrapola o ambiente da produção e se espraia para outras dimensões, envolvendo as relações familiares, a fruição dos afetos, o lazer e o tempo de descanso, comprometendo a reposição das energias físicas e mentais, a duração da vida, e os limites da noite e do dia (Iamamoto, 2001).

O trabalho na adolescência

O significado do trabalho para um adolescente reveste-se de características particulares. Considere um indivíduo em formação, que ainda não tem uma profissão estabelecida, mas precisa do salário que ganha para se manter e, muitas vezes, manter a família. Um indivíduo que ainda não tem experiência profissional, não tem os estudos concluídos e muito menos a personalidade formada.

Pereira et al. (1994) destacam que, historicamente, o trabalho sempre esteve presente na vida de crianças e adolescentes das camadas populares mais baixas. O modelo pelo qual se organiza a sociedade brasileira gera desigualdades e impede a criação de mecanismos que revertam o processo de concentração de renda e de propriedade. Na verdade, o que muda no tempo é a proporção da demanda e oferta, as formas de inserção no mercado e as próprias condições de trabalho destinado ao segmento infantil. A pobreza, persistente na história da humanidade, leva os adultos a lançarem mão de seus filhos nas estratégias de sobrevivência do grupo familiar. O mercado de trabalho oferece espaços e incentiva a incorporação dessa mão de obra.

O Brasil tem uma longa história de exploração de mão de obra. Utilizou por praticamente quatrocentos anos a mão de obra escrava e sempre explorou, em maior ou menor grau, a mão de obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam para manter a si e suas famílias.

A referência mais antiga ao trabalho infanto-juvenil que encontramos na história de nosso país data do século XVI, onde oficiais faziam embarcar os próprios parentes como pajens, sublinhando o prestígio da classe e a possibilidade de ascensão aos mais altos cargos. As crianças embarcadas por seus próximos tinham a função básica de aprendizes, eram ajudantes nos navios que saíam da Europa e vinham para o Brasil, sendo submetidos a toda sorte de perigos, maus-tratos, humilhações, abusos e passando por sérias necessidades. Uma grande maioria dessas crianças e adolescentes não sobrevivia às longas viagens marítimas (Ramos, 1999).

Observa-se, assim, que a denominação 'aprendiz' não é recente como nos parece sugerir a lei n.º 10.097, de 2000, que discorre sobre o trabalho do menor aprendiz. Ela apenas reafirma o quanto a presença de adolescentes na força de trabalho tem sido encorajada pela sociedade, aí incluídas as políticas governamentais, como se expressa no Programa Primeiro Emprego do governo federal.

Segundo Pereira et al. (1994), nesse contexto é comum o próprio adolescente buscar trabalho, objetivando um aumento na renda familiar. Na maioria das vezes, encontra-o em atividades que exigem pouca ou nenhuma qualificação e que não abrem perspectivas para o futuro. Outros aspectos negativos do trabalho precoce, tais como desmotivação, cansaço e problemas de saúde, são destacados por vários autores (Cruz Neto e Moreira, 1998).

Por outro lado, como destacam Guimarães e Romanelli (2002), apesar de estar submetido ao controle que os superiores exercem sobre suas atividades laborais, o adolescente também tem a oportunidade de conviver com iguais e aprender a ordenar suas formas de sociabilidade e suas representações, o que amplia suas experiências e contribui para o processo de amadurecimento psicológico e intelectual. Aumento da autoestima e do sentimento de responsabilidade são aspectos positivos e benéficos da entrada precoce do adolescente no mercado de trabalho.

Com o trabalho remunerado, o adolescente conquista mais autonomia e, consequentemente, maior liberdade diante da autoridade dos pais ou responsáveis.

Pereira et al. (1994) ressaltam ainda a significativa contribuição financeira do adolescente em casa. Com o que ganham, colaboram em média com um terço da renda familiar e também poupam a família de gastos, pois pagam sua alimentação, seu material escolar, sua vestimenta e suas diversões. Esse processo leva o adolescente a assumir papéis sociais destinados, em nossa cultura, ao adulto: ao invés de ser consumidor da renda familiar, ele passa a provedor. Essa situação nem sempre é acompanhada de um amadurecimento psicológico e traz sérios prejuízos afetivos e intelectuais ao adolescente.

Agier (1990) denomina esse processo de 'adultização precoce', no qual os filhos passam a ter atribuições trabalhistas a partir de seis ou sete anos, seja por meio de tarefas domésticas, como cuidar da casa e dos irmãos menores, seja no próprio mercado de trabalho, olhando carros, lavando vidros etc.

De acordo com Oliveira et al. (2001), o trabalho precoce geralmente promove efeitos negativos no desenvolvimento físico e educacional, impedindo o jovem de dedicar-se às atividades extracurriculares, como atividades lúdicas e sociais próprias da idade, trazendo isolamento dos jovens entre seus pares e familiares, e sendo responsável pelo atraso escolar. Esses danos são de difícil reparação porque há um tempo certo para vivenciar as várias etapas da formação da adolescência.

Mielnik (1987) sustenta que o abandono da escola se deve, muitas vezes, a dificuldades econômicas dos pais, acarretando momentos difíceis para os jovens. Em outros casos, são percepções de incapacidade, de inadequação e de limitação intelectual que, confirmadas pelas repetidas reprovações, forçam o jovem a deixar a escola e a procurar trabalho.

Para análise dessa questão, além da abordagem objetiva dos danos à saúde e ao aproveitamento escolar, igualmente importante é a abordagem das imagens que os atores sociais constroem do trabalho e de si próprios como trabalhadores. Essas imagens acabam por sustentar práticas sociais que tendem a priorizar o trabalho sobre o estudo e a manutenção do jovem trabalhador no mercado de trabalho, muitas vezes abandonando a escola precocemente, ainda num momento de escolarização obrigatória.

É sobre essa imagem construída, esse sentido atribuído ao trabalho que se concentra o essencial desta pesquisa.

Metodologia

A pesquisa tratou de um estudo de caso cujo objetivo foi investigar o significado do trabalho para adolescentes trabalhadores. De acordo com Gil (1991), o estudo de caso é caracterizado pelo exame profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita o seu amplo e detalhado conhecimento.

A opção por uma démarche qualitativa é uma consequência dos objetivos deste estudo. A busca do sentido atribuído por um grupo a um determinado objeto (neste caso, o trabalho) necessita que se incorpore à análise a valoração, a afetividade e a intencionalidade próprias ao fato humano.

A entrevista apresenta-se, neste caso, como um

instrumento privilegiado de exploração dos fatos dos quais a palavra é o vetor principal. Esses fatos dizem respeito aos sistemas de representação (pensamentos construídos) e às práticas sociais (fatos experienciados) (Blanchet e Gotman, 1992, p. 25, tradução nossa).

Dentre as diversas técnicas de entrevista, selecionou-se a semidiretiva como forma principal de sondagem, pois ela permite uma orientação parcial dos temas a serem abordados no discurso do entrevistado - o que favorece a validade da informação obtida - e oferece, ao mesmo tempo, a oportunidade ao entrevistado de estruturar seu próprio discurso, de maneira original e significativa, o que favorece a confiabilidade da informação recolhida.

Foram, dessa forma, entrevistados trinta adolescentes, escolhidos dentre os inscritos em uma ONG cuja missão é oferecer formação técnica profissionalizante e buscar inserção na forma de estágios remunerados para adolescentes carentes. Esse contexto permite estudar os adolescentes em situação de trabalho e estudo simultâneos.

Os adolescentes foram escolhidos de forma aleatória dentre aqueles que se disponibilizaram a ser entrevistados e o critério de parada foi a saturação dos temas, isto é, a amostra coletada foi considerada suficiente quando as respostas dadas pelos sujeitos da pesquisa não indicavam novos temas ou opiniões.

A técnica utilizada para o tratamento dos dados foi a análise de conteúdo por categorias (Bardin, 1991; Chamon, 2007), tendo sido empregado o software Alceste®.

A análise por categorias é uma das formas mais antigas e mais utilizadas de análise de conteúdo. Ela funciona a partir de uma segmentação do texto em unidades, seguida de uma classificação dessas unidades em categorias, definidas a priori a partir de uma análise teórica ou induzidas pelo próprio texto. Na prática, a classificação por temas representa a variante mais popular dessa técnica.

Resultados e discussão

O olhar da sociedade sobre o trabalho infanto-juvenil apresenta a imagem distorcida do jovem trabalhador, na medida em que concebe o trabalho como importante para o jovem 'aprender como é a vida', 'levar a vida a sério'. Essas concepções se apresentam por meio de expressões como 'ocupar o seu tempo', 'tirar da rua', 'tirar da marginalidade', 'aprender uma profissão', 'ajudar a família', que são frequentes nas entrevistas dos adolescentes.

Essas entrevistas, submetidas à análise de conteúdo automática, mostraram a existência de três grandes classes de discurso: 1) vida profissional; 2) trabalho, lazer e família; e 3) pessoal. Essas classes reúnem as falas dos adolescentes em grandes temas comuns.

O adolescente mostra a preocupação em progredir na vida, adquirir experiência e, principalmente, se preparar para o amanhã. No imaginário do adolescente, o trabalho aparece como uma alternativa importante e de possibilidade de ascensão, o que é um discurso típico da classe 1. Destaca-se o valor simbólico que é atribuído a essa ocupação, que faz o adolescente sentir-se valorizado e diferenciado.

Considero muito importante o adolescente trabalhar, porque o adolescente ficar dentro de casa à toa não é muito bom e o trabalho também é uma preparação para o amanhã; aos poucos você vai assumindo responsabilidades porque você não vai ser adolescente para sempre, você não vai ter a mesma idade e ficar dependendo dos pais para sempre, você vai ter que crescer e ser alguém na vida, então é importante ele adquirir experiência de trabalho desde cedo (Adolescente 30).

Também é visível a percepção do adolescente de que, com o trabalho, ele está adquirindo experiência e se tornando uma pessoa responsável, diferente daquela criança de antes. Alguns adolescentes se preocupam em fazer alguma contribuição social, ajudar alguém mais carente do que ele, pois ele também está sendo ajudado. Essa temática discursiva está associada à classe 3.

O trabalho é simbolizado ainda como uma oportunidade, que demanda esforço, mas, ao mesmo tempo, é uma coisa prazerosa e com sentido positivo.

Luta, garra, sem experiência a gente não vai para frente, o que é essencial para a nossa vida (Adolescente 20).

O discurso destaca ainda a preocupação do adolescente em usar o salário para comprar roupas, celular, lazer de um modo geral. É o consumo de bens que os pais não lhe podem proporcionar. Além disso, ele afirma contribuir para pagar as contas em casa, ou seja, mostra uma preocupação em prover a si e outras pessoas que fazem parte de sua família, o que muitas vezes o responsável pela casa não pode fazer. Esse discurso é próprio da classe 2.

O adolescente destaca a valorização da oportunidade de ajudar financeiramente em casa, pagar despesas com alimentação, moradia, água, luz e também as próprias despesas. Isso representa uma inversão de papéis, pois o jovem assume responsabilidades que deveriam ser dos pais, como o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prega. É interessante observar que, para nenhum dos entrevistados, essa responsabilidade financeira precoce aparece como motivo de revolta. Ao contrário, esse compromisso é visto pelo adolescente como motivo de orgulho, como se contribuindo dessa forma eles se sentissem mais úteis.

Destaca-se a valorização e o entendimento do quanto o adolescente aprende com a experiência do trabalho e o quanto isso é importante para uma inserção futura no mercado. A importância dessa aprendizagem aparece relacionada não só ao crescimento profissional e a um diferencial para o mercado de trabalho, mas principalmente ao ganho pessoal, à valorização e à autoestima.

Trabalhar é uma forma de produzir, mas o que estou aprendendo eu posso ensinar para os meus irmãos, posso ensinar para a minha mãe, que é analfabeta; eu aprendo e posso ir para a frente, tanto faz, em qualquer lugar, no trabalho ou em um curso (Adolescente 01).

Com relação ao estudo, destaca-se a ideia de um futuro melhor, de tornar-se uma 'pessoa decente', 'esperta' e 'com conhecimento', 'difícil de enganar'. É interessante destacar que o estudo, apesar de valorizado, não aparece representado como trabalho intelectual. Essa percepção de uma clivagem trabalho/estudo traz embutida a concepção restritiva de trabalho como atividade remunerada.

Outra evidência presente no discurso é a consciência de que a ausência de experiência profissional pode ser compensada por meio do estudo e do conhecimento adquirido na escola. Observe-se que esta é uma percepção específica a esse grupo. Em muitas situações, estudo e trabalho são excludentes, sendo os adolescentes obrigados a decidir entre as duas atividades e, normalmente, o estudo é deixado de lado. Não é o caso desses adolescentes, que se encontram em uma situação própria, proporcionada pela presença da ONG, permitindo-lhes conciliar/complementar as duas atividades.

É difícil conciliar trabalho e estudo, dá cansaço, estresse, mas nada que não dê para resolver. Até que eu tenho um pouco de paciência, sou calma, mas quando estou com dor é difícil sorrir (Adolescente 12).

Outra consequência importante do trabalho, destacada pelo adolescente, refere-se à sua contribuição para a afetividade e a autoestima. Ele passa a ser mais respeitado, a ser visto e a se sentir como adulto nos três ambientes principais em que ele convive: em casa, no trabalho e na escola. Em casa, os pais ouvem mais sua opinião, que antes era apenas a opinião de uma criança e agora é a de alguém que trabalha; no trabalho, ele se sente com responsabilidades importantes para a empresa; e na escola, mesmo quando ele chega atrasado, ainda assim é mais compreendido do que antes, pois 'ele chegou atrasado porque estava trabalhando'.

Outro ganho importante para os adolescentes é a amizade que surge quando ele começa a se relacionar com os colegas de trabalho e a desenvolver vínculos, com outras pessoas inseridas em seu círculo de convivência.

O adolescente destaca ainda o quanto anseia por um futuro diferente daquilo que ele vivencia hoje. Um futuro no qual tenha a oportunidade de fazer uma faculdade e proporcionar melhores condições para seus filhos.

Quanto aos aspectos negativos, o trabalho é visto pelo jovem como desgastante e estressante. Ele tem que aprender a lidar com a pressão da chefia e com as cobranças, e aprender a administrar seu tempo, que agora está reduzido por causa da nova ocupação. Algumas queixas dos adolescentes estão relacionadas a trabalhar nos finais de semana e nos feriados, ao pouco tempo que têm para ficar com a família e com os amigos.

Essas perspectivas positivas e negativas associadas ao trabalho corroboram resultados obtidos por outros pesquisadores, em estudos com outros grupos de adolescentes (Fischer et al., 2003; Silveira, 2008).

Dessa forma, a oportunidade do primeiro emprego aparece para esses jovens como conflituosa. Ora o trabalho está associado a uma valorização pessoal, onde o adolescente vê a possibilidade de adquirir experiência, ter seu próprio dinheiro e ser mais independente dos pais, ora sua função é vista como de pouca valorização, pois ele não se vê respeitado como profissional e a qualquer momento, por ser apenas um aprendiz, facilmente substituível, pode ser demitido. Os adolescentes também destacaram a falta de orientação no trabalho e a de alguém que os ajude a se organizar e a reivindicar o que é necessário. Assim, apesar de o trabalho ser considerado como algo que muda e molda o indivíduo, ele não é visto como forma de exploração ou opressão.

Considerações finais

O trabalho aparece como forma de fugir da condição social, como se trabalhar impedisse que ele se envolvesse com coisas erradas, por não ter tempo ocioso, mas principalmente por estar com a mente ocupada. Nesse sentido, o trabalho é visto como mais valorizado que o estudo, pois apenas ser estudante não impede que o adolescente tenha tempo para se envolver com coisas erradas.

É importante observar a construção que esses adolescentes elaboram do fato de ter dinheiro para pagar suas despesas e também algumas despesas da família, o que isso representa para eles: o trabalho é identificado com a liberdade econômica e o acesso ao mercado de consumo. Também se destaca um sentimento diferenciado por meio do qual o adolescente passa a se sentir mais útil, mais importante e mais valorizado. Esse representa um ganho concreto do trabalho que surge com o sentido de atribuir poder e status ao adolescente, poder de complementar o orçamento familiar, de participar do mercado de consumo e o status de adulto.

Apesar de o trabalho muitas vezes assumir uma conotação negativa, como atrapalhar os estudos ou não ser valorizado pelos outros, prevalece a tentativa de conciliar essa dupla jornada, pois o jovem acredita que essa seja a oportunidade de mudar sua realidade social e financeira, garantindo assim um futuro diferente. O adolescente tem consciência das dificuldades a enfrentar no mercado de trabalho, mas alimenta a esperança de que uma experiência profissional poderá ajudá-lo em sua trajetória profissional.

Nota do Editor

Este artigo é parte da dissertação de mestrado A representação social do trabalho para os adolescentes ao iniciarem uma atividade profissional, concluída no ano de 2008 e aprovada em Comitê de Ética da Universidade de Taubaté (Unitau).

Notas

Recebido em 14/08/2009

Aprovado em 22/03/2010

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    Professora assistente da Universidade de Taubaté (Unitau), São Paulo, Brasil. Doutora em Psychologie pela Université de Toulouse II, França. <
  • Correspondência:
    Universidade de Taubaté (Unitau)
    Rua Expedicionário Ernesto Pereira, s/n, Portão 3, Centro
    CEP 12030320, Taubaté, São Paulo, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2010

    Histórico

    • Recebido
      14 Ago 2009
    • Aceito
      22 Mar 2010
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