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Na saúde e na doença: o trabalho na produção de medicamentos

In sickness and in health: labor in the production of medicines

En la salud en la enfermedad: el trabajo en la producción de medicamentos

Resumo

Este artigo analisa a percepção dos trabalhadores sobre o ambiente de trabalho nas indústrias farmacêuticas com base em um estudo qualitativo composto por entrevistas semiestruturadas com trabalhadores do setor. Em posição antagônica ao cenário nacional de desindustrialização e desemprego, a produção de medicamentos segue em ascensão, em termos tanto de faturamento como de abertura de postos de trabalho, mesmo diante das recentes crises econômica e sanitária. Para compreender o modelo de produção da indústria farmacêutica e seus impactos na vida das pessoas que laboram no setor, foram entrevistados dez trabalhadores/as de duas fabricantes nacionais de medicamentos genéricos localizadas no Distrito Agroindustrial de Anápolis, em Goiás. Como resultado, observamos que as indústrias estudadas estão configuradas de acordo com formas sofisticadas de controle e intensificação da produção, o que deflagra um ambiente de trabalho passível de degradação da saúde física e mental.

Palavras-chave:
trabalho; indústria farmacêutica; medicamentos; saúde; controle

Abstract

This article analyzes the perception of workers about the working environment in pharmaceutical industries based on a qualitative study composed of semi-structured interviews with workers in the sector. In an antagonistic position to the national scenario of deindustrialization and unemployment, the production of medicines continues to rise, in terms of both billing and job opening, even in the face of recent economic and health crises. To understand the production model of the pharmaceutical industry and its impacts on the lives of people working in the sector, ten workers from two national manufacturers of generic medicines were interviewed located in the Agroindustrial District of Anápolis, in Goias (Brazil). As a result, we observed that the studied industries are configured according to sophisticated forms of control and intensification of production, which triggers a work environment that can degrade physical and mental health.

Keywords:
labor; pharmaceutical industry; drugs; health; control

Resumen

Este artículo analiza la percepción de los trabajadores sobre el entorno laboral en las industrias farmacéuticas, basado en un estudio cualitativo compuesto por entrevistas semiestructuradas con trabajadores del sector. En una posición antagónica al escenario nacional de desindustrialización y desempleo, la producción de medicamentos sigue en aumento, en términos de facturación y apertura de puestos de trabajo, incluso frente a las recientes crisis económicas y sanitarias. Para comprender el modelo de producción de la industria farmacéutica y sus impactos sobre la vida de las personas que trabajan en el sector, se entrevistó a dos trabajadores/as de dos fabricantes nacionales de medicamentos genéricos ubicados en el distrito agroindustrial de Anápolis, en Goiás (Brasil). A consecuencia, observamos que las industrias estudiadas están configuradas de acuerdo con sofisticadas formas de control e intensificación de la producción, lo que desentora un entorno de trabajo que puede degradar la salud física y mental.

Palabras clave:
trabajo; industria farmacéutica; medicamentos; salud; control

A produção nacional de medicamentos

Como um país marcado por sua condição periférica, de industrialização tardia e economia dependente, é apenas a partir de 1930 que o Brasil inicia a consolidação de seu mercado de trabalho por meio de investimentos em infraestrutura produtiva em políticas de proteção social aos trabalhadores (Barbosa, 2016BARBOSA, Alexandre F. O mercado de trabalho: uma perspectiva de longa duração. Estudos Avançados, São Paulo, v. 30, n. 87, p. 07-28, 2016. https://doi.org/10.1590/S0103-40142016.30870002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/TF6hhZK3Z6zCbpTDsdD6Sjg/?lang=pt. Acesso em: 12 fev. 2021.
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). No entanto, apesar da promessa de integração social por meio do assalariamento, as conciliações políticas que impulsionaram a industrialização ocorreram em detrimento da classe que vive do trabalho (Antunes, 2009ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo , 2009.), com a reprodução de uma sociedade marcada por desigualdades estruturais (Cardoso, 2010CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV, 2010.). As relações de trabalho configuradas nesse período ainda carregam elementos herdados de uma sociedade baseada na escravização de seres humanos, na qual a transição para o trabalho livre ocorre de forma lenta, de modo a contemporizar com os interesses das elites oligárquicas beneficiárias da escravidão (Cardoso, 2010CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV, 2010.; Barbosa, 2016BARBOSA, Alexandre F. O mercado de trabalho: uma perspectiva de longa duração. Estudos Avançados, São Paulo, v. 30, n. 87, p. 07-28, 2016. https://doi.org/10.1590/S0103-40142016.30870002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/TF6hhZK3Z6zCbpTDsdD6Sjg/?lang=pt. Acesso em: 12 fev. 2021.
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).

O país realiza a transição de uma sociedade tradicionalmente agrária para uma economia diversificada somente a partir de 1930, com o surgimento de novas bases industriais estruturadas para produção complexa. Entretanto, o dinamismo econômico é revertido a partir de 1990, quando o Brasil passa a se orientar por preceitos elaborados por economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI), por meio do chamado consenso de Washington. Novas formas de organização e de regulamentação levam ao rearranjo da produção industrial com fechamento de fábricas, desindustrialização e reestruturações em processos que atingem países do norte e do sul globais (Harvey, 1993HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.). O maior acesso ao conhecimento técnico e científico, com o controle do fluxo de informações, e a reorganização do sistema financeiro global mudam o equilíbrio de forças no capitalismo, dando mais autonomia ao sistema financeiro em detrimento dos investimentos no setor industrial, gerando um processo contínuo de desindustrialização e redução dos postos de trabalho (Xavier, 2020XAVIER, Glauber L. Estado burguês, planejamento econômico e industrialização no Brasil (1930-1980). Revista de Estudos & Pesquisas sobre as Américas, Brasília, v. 14, n. 2, p. 338-374, 2020. https://doi.org/10.21057/10.21057/repamv14n1.2020.27224. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/view/27224. Acesso em: 25 ago. 2022.
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). Se a expectativa de inclusão no mundo dos direitos pelo trabalho protegido não foi concretizada para a maioria da população no Brasil nem em épocas de maior dinamismo, na atualidade observa-se uma importante proporção de trabalhadores em ocupações precárias e desprotegidas ante um modelo de desenvolvimento incapaz de gerar empregos na quantidade e na qualidade necessárias (Antunes, 2020ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo , 2020.; Filgueiras e Cavalcante, 2020FILGUEIRAS, Vitor A.; CAVALCANTE, Sávio M. What has changed: a new farewell to the working class? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 35, n. 102, e3510213, 2020. https://doi.org/10.1590/3510213/2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/vtSqQzK7gKPYpZCL4qqGBbw/?format=pdf⟨=en. Acesso em: 12 fev. 2021.
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).

Nessa conjuntura, a indústria farmacêutica nacional desponta como um dos segmentos da produção complexa que se mantêm em ascensão com o propósito de fabricar bens de consumo voltados para a saúde da sociedade. Acompanhando o desenvolvimento dos segmentos da indústria química desencadeado a partir de 1970 no Brasil, a indústria farmacêutica é caracterizada por seu nível complexo de produção, o que requer exigências tecnológicas específicas (Almeida, Silva e Souza, 2012ALMEIDA, Neuler A.S.; SILVA, Carlos E.L.; SOUZA, Osmar T. Dispersão espacial e mudança estrutural da indústria química no Brasil. Revista Cadernos de Economia, Chapecó, v. 16, n. 30/31, p. 36-50, 2012. https://doi.org/10.46699/rce.v16i30/31.1645. Disponível em: https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rce/article/view/1645. Acesso em: 13 jun. 2022.
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). O processo histórico de formação da indústria farmacêutica não é desvinculado do desenvolvimento da indústria nacional; ela é constituída originalmente por postos fixos de trabalho, agregados na atualidade por métodos de gestão voltados para a multifuncionalidade e a individualização da responsabilidade (Lobo, 2008LOBO, Sônia. Das formas de controle e disciplinarização à resistência operária no cotidiano fabril: o trabalho na indústria farmacêutica. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, 2008. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5292. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/5292. Acesso em: 17 jun. 2021.
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). Em posição antagônica ao cenário nacional de desindustrialização e desemprego, a indústria farmacêutica segue em ascensão, tanto em termos de faturamento como em abertura de postos de trabalho,1 1 Segundo o Guia 2022, da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), o mercado farmacêutico brasileiro chegou a R$ 146,7 bilhões em vendas em 2021, apresentando um aumento de 55,1% no comércio de varejo desde 2017. Em relação aos postos de trabalho, nesse mesmo ano contabiliza 76.612 empregos no mercado de produção de medicamentos para uso humano. Disponível em: https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2022/08/Guia-Interfarma-2022.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022. mesmo em face das recentes crises econômica e sanitária. Diante dessas singularidades, este artigo analisa a percepção dos trabalhadores em torno do ambiente de trabalho na fabricação de medicamentos, um setor em que o Brasil ocupa o oitavo lugar no ranking mundial em faturamento do mercado farmacêutico em 2021 (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, 2022ASSOCIAÇÃO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA DE PESQUISA (INTERFARMA). Guia 2022. Disponível em: https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2022/08/Guia-Interfarma-2022.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022.
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). Parte-se dos pressupostos de que o mercado de trabalho brasileiro contempla características específicas devido ao seu processo histórico de formação e de que os trabalhadores que ingressam na indústria farmacêutica enfrentam as exigências de uma configuração produtiva complexa.

A indústria farmacêutica nacional atual reflete uma simbiose entre dois modelos de gestão, mesclando fordismo com toyotismo, de modo que seus trabalhadores ficam expostos a condições degradantes para a própria saúde, mas motivados por meio da propagação do discurso de que são os promotores da saúde da população (Lobo, 2008LOBO, Sônia. Das formas de controle e disciplinarização à resistência operária no cotidiano fabril: o trabalho na indústria farmacêutica. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, 2008. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5292. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/5292. Acesso em: 17 jun. 2021.
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). A configuração produtiva da indústria farmacêutica consiste em postos fixos de trabalho para produção em massa, combinados com responsabilidade para prevenção de erros. A individualização da responsabilidade como elemento da produção de medicamentos é potencializada pela necessidade de assegurar a qualidade nos processos e atender aos critérios sanitários da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). As exigências voltadas para produzir medicamentos com qualidade introduzem rigorosos métodos de controle voltados para padrões de qualidade. A necessidade de assegurar precisão e qualidade aos processos e atender às normas da Anvisa incide assim em investimentos constantes em automação (Lobo, 2008LOBO, Sônia. Das formas de controle e disciplinarização à resistência operária no cotidiano fabril: o trabalho na indústria farmacêutica. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, 2008. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5292. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/5292. Acesso em: 17 jun. 2021.
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).

A fabricação de medicamentos genéricos no Brasil requer o consumo de matérias-primas importadas. Os produtos que exigem maior nível de complexidade nos processos, como no caso da matéria-prima utilizada nos genéricos, são elaborados em países com maior investimento em pesquisa e desenvolvimento, o que não é uma tradição nacional. A fabricação de produtos farmacêuticos opera com elevada intensidade tecnológica, mas ainda fica dependente de insumos produzidos em cadeias produtivas com maior potencial de inovação (Hasenclever, Manhães e Miranda, 2022 HASENCLEVER, Lia; MANHÃES, Eduardo; MIRANDA, Caroline. Trinta anos de integração produtiva do setor farmacêutico: uma miragem ou uma possibilidade? OIKOS, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, 2022. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/oikos/article/view/52075. Acesso em: 3 de set. 2022.
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). O investimento em automação das indústrias farmacêuticas é viabilizado pelos grandes volumes produzidos que, por sua vez, são escoados por meio de estratégias de marketing que estimulam o uso massivo de medicamentos em detrimento do seu impacto na saúde da população (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Álvaro. Propaganda de medicamentos: como conciliar uso racional e a permanente necessidade de expandir mercado? Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 189-250, 2007. https://doi.org/10.1590/S1981-77462007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/SsnvSKFP9y9DkV3sHyfj4Wy/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2 out. 2022.
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). Com o objetivo de expandir o lucro, o setor farmacêutico investe em propaganda para elevar o consumo de medicamentos. Ao tratar o medicamento como uma mercadoria qualquer, as propagandas ignoram o seu uso ético e racional no processo terapêutico e estimulam a automedicação.

Outro fato que favoreceu a escalada da indústria farmacêutica foi a aprovação em 1999 da lei dos genéricos, n. 9.787, que possibilitou a cópia de medicamentos após o vencimento da patente de referência original e facilitou o acesso a esses produtos ao diminuir seus custos. Juntamente com as ações de marketing, a lei aumenta a comercialização de medicamentos no país e impulsiona o setor farmacêutico brasileiro (Barata-Silva et al., 2017BARATA-SILVA, Cristiane et al. Desafios ao controle da qualidade de medicamentos no Brasil. Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, p. 362-370, 2017. https://doi.org/10.1590/1414-462X201700030075. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/zdJBkFCB9tKdFSg897P4Bvb/ ?lang=pt. Acesso em: 13 set. 2022.
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). Deflagra-se, assim, uma tensão entre o melhor acesso da população aos medicamentos e o incentivo ao consumo massivo induzido pela publicidade. A venda de medicamentos ainda é potencializada pela hegemonia de uma lógica biomédica e hospitalocêntrica (Hora et al., 2013HORA, Dinair et al. Propostas inovadoras na formação do profissional para o Sistema Único de Saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 471-486, 2013. https://doi.org/10.1590/S1981-77462013000300002. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/1387. Acesso em: 17 fev. 2023.
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) e pelo investimento insuficiente na atenção básica do sistema de saúde brasileiro (Borges e Baptista, 2010BORGES, Camila F.; BAPTISTA, Tatiana. A política de atenção básica do Ministério da Saúde: refletindo sobre a definição de prioridades. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 27-53, 2010. https://doi.org/10.1590/S1981-77462010000100003. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/1610. Acesso em: 17 fev. 2023.
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; Viana, 2008VIANA, Ana L. d’Á. Financiamento da saúde: impasses ainda não resolvidos. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, 2008. https://doi.org/10.1590/S1981-77462008000300011. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/1689. Acesso em: 17 fev. 2023.
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).

As agências reguladoras do Brasil, atingidas pela reorganização do capitalismo nos anos 1990, voltada para maior liberdade de mercado e menor intervenção estatal, tiveram as possibilidades de intervenção fragilizadas, de modo que a Anvisa atua somente depois da vinculação da propaganda e com multa irrisória ante os rendimentos impulsionados pela publicidade. A busca pela maior rentabilidade dos negócios voltados para vendas de medicamentos contempla não só os interesses da indústria farmacêutica, mas também os de agências de publicidade, empresas de comunicação e comércio varejista. Esse conjunto de interesses empresariais gera poderosos lobbies que cercam o mercado de produtos farmacêuticos (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Álvaro. Propaganda de medicamentos: como conciliar uso racional e a permanente necessidade de expandir mercado? Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 189-250, 2007. https://doi.org/10.1590/S1981-77462007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/SsnvSKFP9y9DkV3sHyfj4Wy/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2 out. 2022.
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), em um contexto repleto de contradições entre respeitar a essência terapêutica dos produtos e aumentar a rentabilidade. A intensificação da produção para obtenção de volumosos estoques propicia o surgimento de condições adversas para saúde no trabalho. Configura-se um ambiente com métodos de controle acentuados para garantir a qualidade e atender os requisitos da Anvisa, juntamente com uma produção cada vez mais intensificada para aumentar a rentabilidade. Enquanto políticas regulatórias e de acesso a medicamentos são elementos importantes do ponto de vista da saúde pública, o aumento da produção e do controle de qualidade geram maior pressão sobre trabalhadores do setor.

Há um sentimento de ressignificação do trabalho entre trabalhadores produtores de medicamentos, expresso pela sensação de contribuir para a preservação da saúde da população, o que é estimulado por meio de discursos e treinamentos aplicados pela indústria farmacêutica. Todavia, esse discurso é utilizado para responsabilizar os trabalhadores individualmente pela qualidade do medicamento produzido; assim a responsabilidade é ampliada, mas a remuneração não (Pinto, 2012PINTO, Geraldo. O toyotismo e a mercantilização do trabalho na indústria automotiva do Brasil. Caderno CRH, Salvador, v. 25, n. 66, p. 535-552, 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-49792012000300010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/QkKrLKYyTZcYYytBwynwbSS/?lang=pt. Acesso em: 10 fev. 2021.
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; Mota e Castro, 2022MOTA, Fernanda R.; CASTRO, Fernando G. Os sentidos do trabalho em operárias de uma indústria farmacêutica: entre o individualismo e a subjetividade como recurso. In: CASTRO, Fernando G.; FERREIRA, João B. Neoliberalismo, trabalho e precariedade subjetiva. Porto Alegre: Editora Fi, 2022. p. 221-244.). Constitui-se uma configuração produtiva complexa e automatizada que avança sobre um mercado de trabalho forjado em condições específicas. Com base em tais pressupostos, analisam-se a seguir as percepções dos trabalhadores sobre esse ambiente constituído por processos complexos e sofisticados métodos de controle.

Trabalhadores e trabalhadoras da indústria farmacêutica de Anápolis

Este estudo parte de uma pesquisa qualitativa conduzida com entrevistas semiestruturadas realizadas com trabalhadores/as e ex-trabalhadores/as das indústrias farmacêuticas localizadas no Distrito Agroindustrial de Anápolis (DAIA).2 2 Todas as entrevistas estão de acordo com o estabelecido no termo de consentimento livre e esclarecido, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás. A opção pelas indústrias de medicamentos localizadas no DAIA se justifica pela sua importância na distribuição de medicamentos na realidade brasileira. O polo farmoquímico se destaca como um dos principais conglomerados do setor no país em termos de volume de produção de medicamentos genéricos e como gerador de empregos para a região periférica do município, além de sua localização geográfica ser privilegiada para o escoamento da produção (Furtado e Barbosa, 2019FURTADO, Lucas P.; BARBOSA, Ycarim M. A influência de um polo industrial na geração de empregos em um município: o caso de Anápolis-GO. Revista de Desenvolvimento Econômico: RDE, Salvador, v. 3, n. 44, 2019. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/rde/article/view/6459. Acesso em: 8 jan. 2021.
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).

As entrevistas foram realizadas com trabalhadores/as de duas grandes fabricantes brasileiras de medicamentos genéricos localizadas no DAIA de Anápolis, que aqui serão denominadas como fábricas I e II. Inaugurada na cidade de São Paulo no início dos anos 1950, a fábrica I se instalou em Anápolis no final dos anos 1980, onde estão empregados hoje em torno de três mil funcionários. É uma empresa de capital nacional, mas com ações à venda no mercado. A fábrica II foi inaugurada na cidade do Rio de Janeiro no final dos anos 1950 e teve sua base de Anápolis instalada no início dos anos 1990, onde hoje trabalham cerca de quatro mil funcionários. É uma empresa de capital nacional, fechada para o mercado de ações. Os medicamentos genéricos são o principal produto do portfólio das duas empresas, que consomem grande volume de matérias-primas importadas, ao mesmo tempo que exportam medicamentos para países da América Central, da América do Sul, da África e do Oriente Médio. As duas fabricantes apresentam produção em grande escala e de forma ininterrupta em três turnos de trabalho.

Para acesso aos entrevistados foi utilizada a amostragem bola de neve, uma abordagem não probabilística que requer que os participantes indiquem outros para a pesquisa (Vinuto, 2014VINUTO, Juliana. A amostragem de bola de neve em pesquisa qualitativa: um debate aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014. https://doi.org/10.20396/tematicas.v22i44.10977. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/10977. Acesso em: 14 out. 2021.
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). O processo pode ser finalizado no ponto em que o pesquisador considera a saturação nas respostas, o que ocorreu após a realização de dez entrevistas que contaram com cinco trabalhadores/as e cinco ex-trabalhadores/as das fábricas I e II.

As entrevistas foram realizadas com base em um roteiro semiestruturado para se compreenderem as percepções dos trabalhadores em torno do ambiente de trabalho na indústria farmacêutica. O conteúdo gerado durante as entrevistas gravadas foi transcrito obedecendo ao sistema linguístico dos respondentes. Depois da transcrição das entrevistas, os dados foram tabulados e categorizados, de modo que se obteve um banco de dados, o que possibilitou análises e interpretações (Bauer e Aarts 2003BAUER, Martin; AARTS, Bas. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George (orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 39-63.; Bardin, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Desse modo, foi possível sintetizar o perfil dos trabalhadores e trabalhadoras participantes desta pesquisa. De acordo com o estabelecido no termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo comitê de ética em pesquisa, a identidade dos/as participantes foi preservada, de forma que os dez participantes são referenciados como P1, P2, P3 e assim sucessivamente até o P10, de acordo com a sequência real dos participantes acessados. O Quadro 1 sintetiza o perfil dos trabalhadores e trabalhadoras entrevistados nesta pesquisa.

Quadro 1
Perfil dos/as participantes da pesquisa

Observa-se que seis participantes são homens e quatro são mulheres, com idades que variam entre 26 e 58 anos, sendo que a maioria tem o ensino médio e duas pessoas completaram o ensino superior. Entre os participantes que possuem superior completo, P5 é formado em engenharia de produção e P9 é formada em tecnologia e logística. Ambos atuaram como operadores de máquina nas fábricas I e II, mas mencionam falta de oportunidades em atuar na área de formação. Os outros participantes com ensino superior incompleto são P1, que trancou o curso de história enquanto ingressava no trabalho noturno na fábrica I; e P4, que até a data da entrevista cursava a faculdade de química e trabalhava no controle de qualidade da fábrica II. Vários dos entrevistados buscaram maior qualificação por meio de um curso técnico. Entre os participantes, P3 especializou-se em eletrotécnica; P4 em técnica em química; P6 em elétrica; P7 em segurança do trabalho; e P10 fez o curso de técnico em RH. No entanto, somente P3 e P4 atuam na área de especialização. A falta de oportunidades para progredir na empresa foi destacada por P5 e P9, ao mencionarem a indiferença das fábricas perante a formação e a qualificação dos funcionários.

Na perspectiva de Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016. ), a dinâmica do capitalismo contemporâneo prioriza o mercado financeiro, gera uma redução de postos de trabalho e produz força de trabalho sobrante, aumentando a concorrência por vagas e favorecendo empregadores nas negociações com os empregados, ocasionando supressão salarial. Nesse contexto, as empresas acabam por desvalorizar trabalhadores que, em sua trajetória, se dedicaram a obter a própria qualificação. Há o avanço de uma retórica na qual o trabalhador deve desenvolver uma série de competências com vistas a adequar-se às novas formas de produção. Desse modo, é atribuído ao próprio trabalhador a responsabilidade por sua qualificação profissional e sua posição no mercado de trabalho. Todavia, esse discurso apresenta contradições quando observamos as barreiras nas diferentes trajetórias profissionais e sociais (Souza, Lemos e Silva, 2020SOUZA, Filipe; LEMOS, Ana; SILVA, Marcelo. Metamorfoses de um discurso: carreiras sem fronteiras e o novo espírito do capitalismo. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 27, n. 92, p. 95-112, 2020. https://doi.org/10.1590/1984-9270925. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/24501. Acesso em: 16 jan. 2021.
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). Com base nos relatos de entrevistas, pode-se perceber a dificuldade enfrentada pelos participantes em conciliar trabalho e estudo, o que é agravado ao não conseguirem atuar na área de especialização após todo o esforço para buscar maior qualificação.

Há um processo permanente de migração do interior do estado de Goiás para o munícipio de Anápolis, impulsionado pelas oportunidades de trabalho geradas por meio do seu processo de industrialização (Furtado e Barbosa, 2019FURTADO, Lucas P.; BARBOSA, Ycarim M. A influência de um polo industrial na geração de empregos em um município: o caso de Anápolis-GO. Revista de Desenvolvimento Econômico: RDE, Salvador, v. 3, n. 44, 2019. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/rde/article/view/6459. Acesso em: 8 jan. 2021.
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). Observa-se que, dos dez participantes, oito são remanescentes desse fluxo migratório. A busca por oportunidades de trabalho e estudo é motivadora dessa migração, agregando características específicas para o grupo estudado. O campo de interação social é um espaço distribuído em um conjunto de trajetórias, ao passo que as posições ocupadas no campo estão relacionadas com o tipo de recursos culturais, materiais e financeiros que o sujeito acessou durante sua trajetória (Thompson, 2011THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes , 2011. ). A população trabalhadora de Anápolis reflete elementos de um recorte específico do mercado de trabalho nacional. Ao se analisar a trajetória dos trabalhalhadores entrevistados, observa-se que as condições socioeconômicas de suas famílias de origem dificultaram o acesso aos estudos, visto que todos trabalhavam enquanto faziam o ensino médio ou tiveram que conciliar a jornada de trabalho com o ensino superior.

Trabalhadores mais jovens têm maior probabilidade de ingressar em trabalhos de baixa remuneração devido a sua pouca experiência (Carmo e Matias, 2019CARMO, Renato; MATIAS, Ana. As dimensões existenciais da precariedade: jovens trabalhadores e os seus modos de vida. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 118, 2019. https://doi.org/10.4000/rccs.8502. Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/8502. Acesso em: 6 jan. 2021.
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). A condição socioeconômica acarretada pelo trabalho desvalorizado gera efeitos nos sentimentos e nas concepções das pessoas, assim como na sua qualidade de vida. Nesse sentido, segundo os autores, a concepção de trabalho para os jovens se altera, causando desmotivação e descrença num futuro melhor. Nessa perspectiva, observa-se que a renda média dos entrevistados, considerando o último salário na indústria farmacêutica, contabiliza R$ 2.386 mensais. Embora todos recebam acima do salário mínimo, o valor médio está abaixo da renda média habitual real dos brasileiros ocupados, que foi de R$ 2.652 segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do segundo trimestre de 2022 (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA) Retrato dos rendimentos do trabalho: resultados da PNAD contínua do segundo trimestre de 2022. Carta de Conjuntura, Brasília, n. 56, nota 17, 2022. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/wp-content/uploads/2022/09/220901_cc_56_nota_17_rendimentos_e_horas_trabalhadas.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022.
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). Nas entrevistas, nenhum dos participantes demonstrou satisfação com seu rendimento.

As duas empresas organizam a produção em três expedientes de trabalho: das 8h às 18h, das 14h40 às 23h20 e das 22h às 6h45, com intervalos de uma hora para almoço ou jantar no refeitório da empresa. Existem pontos de ônibus distribuídos na cidade e no DAIA com transporte próprio para os funcionários. Nesses espaços de convivência, as pessoas trocam informações sobre postos de trabalho e as divulgam para amigos e vizinhos. Todos os participantes desta pesquisa tiveram conhecimento das vagas de emprego mediante essas trocas por meio de comunicação verbal e informal. Fora desses espaços, a comunicação é restringida pela utilização obrigatória de equipamentos de segurança, que de forma rigorosa protege pessoas e materiais contra contaminação.

Com relação à quantidade de homens e mulheres no setor, a configuração produtiva da fabricação de medicamento promove significativa participação feminina, o que representa um diferencial da indústria farmacêutica ante os demais ramos da indústria, segundo Saliba, Tápias e Luna (2021SALIBA, Clara M.; TÁPIAS, Bruna M.; LUNA, Ivette. Emprego industrial e desigualdade de gênero (2003-2017). In: DIEGUES, Antônio C.; SARTI, Fernando (org.). Brasil: indústria e desenvolvimento em um cenário de transformação do paradigma tecno-produtivo. Curitiba; Campinas: CRV; Unicamp, 2021. p. 113-126.). As autoras apontam que entre 2003 e 2017 a produção de medicamentos registrava 39% de trabalhadoras mulheres, ficando atrás somente da produção de vestuário, que registrava 62% de participação feminina. Nessa perspectiva, observa-se que a reorganização das atividades na indústria farmacêutica pode atingir não só funções e remunerações, mas também relações de gênero (Saliba, Tápias e Luna, 2021SALIBA, Clara M.; TÁPIAS, Bruna M.; LUNA, Ivette. Emprego industrial e desigualdade de gênero (2003-2017). In: DIEGUES, Antônio C.; SARTI, Fernando (org.). Brasil: indústria e desenvolvimento em um cenário de transformação do paradigma tecno-produtivo. Curitiba; Campinas: CRV; Unicamp, 2021. p. 113-126.).

Na percepção dos/as entrevistados/as, as fábricas da indústria farmacêutica de Anápolis teriam maior proporção de mulheres trabalhadoras. Dos dez entrevistados, sete indicaram que a maioria dos trabalhadores em seu ambiente de trabalho são mulheres. Os demais mencionam que a maior ou menor participação feminina depende do setor de produção. Como um dos setores da indústria com percentual significativo de trabalhadoras, a indústria farmacêutica se configura por determinadas atividades representadas como próprias às mulheres por necessitarem de atributos como paciência, atenção e destreza, enquanto as atividades que requerem mais força física são atribuídas aos homens (Souza-Lobo, 2011SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. ). Essa representação parte da concepção de divisão sexual do trabalho, que segundo Hirata e Kergoat (2007HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/cCztcWVvvtWGDvFqRmdsBWQ/?format=pdf. Acesso em: 13 fev. 2022.
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) pode ser explicada pelos princípios da separação e da hierarquização que estabelecem a diferença entre trabalhos de homens e de mulheres e instituem que o trabalho do homem tem mais valor do que o da mulher.

A maior participação feminina nas empresas produtoras de medicamentos relaciona-se às especificidades de suas operações, assim como nas suas formas de automação e relações de trabalho. Nessa perspectiva, observa-se que doenças ocupacionais de natureza física e psíquica podem atingir de forma mais acentuada homens ou mulheres, a depender das características das atividades e dos processos de produção, de modo que os sentidos atribuídos ao trabalho também serão provenientes dessa conjuntura de fatores (Lapa, 2019LAPA, Thaís S. O gênero do trabalho operário: condições de trabalho, divisão sexual e práticas sociais em indústrias metalúrgicas dos segmentos automotivo e eletroeletrônico. 2019. 424 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. ).

Condições de trabalho na produção de medicamentos

Durante a análise das entrevistas com trabalhadores das empresas pesquisadas, foram observadas, de forma recorrente, questões relacionadas às condições de trabalho subordinadas à intensificação da produção e dos métodos de controle. A necessidade de assegurar a qualidade exigida para a produção de medicamentos aliada ao anseio por maior rentabilidade intensifica os métodos de controle.

Segundo Braverman (1983BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. ), a aplicação de métodos de controle do trabalho é disseminada nas fábricas de produção em massa no final do século XIX para impor disciplina e empregar atividades repetitivas gerando grandes estoques. A separação das atividades no processo de trabalho para a imposição de um ritmo repetitivo e padronizado voltado para produção em grande escala objetiva reduzir as possibilidades de decisão do trabalhador, desumanizando o trabalho para aumento da acumulação do capital. A disciplina e os métodos de controle são fortemente difundidos nas fábricas aqui pesquisadas, de forma intensificada e com métodos sofisticados. As fábricas I e II mantêm sua essência orientada para produção em massa, organizada em postos fixos de trabalho. Existe a figura do operador de máquina que se mantém como operador fixo ao pé da máquina, obedecendo a um procedimento padrão. Todavia, há também o monitoramento por câmeras para inibir falhas e o consenso construído em torno da não possibilidade do erro individual.

Essa junção de métodos busca controlar o comportamento e a subjetividade de trabalhadores e pode ser percebida nas falas dos integrantes das fábricas I e II. Na perspectiva de Alves (2011ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.), o modelo de controle do trabalho organizado para produzir em massa vai mesclar seus preceitos aos novos métodos orientados para polivalência e pela gestão compartilhada. Assim, há integração intelectual do indivíduo com os processos da empresa em modelo de organização do trabalho que adentra as fábricas brasileiras a partir dos anos 1990 (Alves, 2011ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.). As práticas de controle das indústrias aqui pesquisadas incidem na vigilância, na padronização de processo e nas normas de conduta. Esses métodos de controle são provenientes da necessidade de se garantir a qualidade e atender aos necessários critérios da Anvisa. A exigência por atenção sobre o processo produtivo é um pressuposto para individualizar a responsabilidade sobre a obtenção de medicamentos com qualidade, o que foi percebido nas entrevistas e exposto na fala da participante P4:

Lá no fim deu problema. Por quê? Porque o operador não estava olhando! Por isso falo que atenção é principal, se não observar, vai tudo errado. Tem lugar que o manuseio é manual. Por exemplo, tem lugar que tem que colocar a bula com a mão. Mas tem um sistema que expulsa a caixinha porque ela pesa menos. Mas pode dar errado se não tiver atenção. Tem um controle de hora em hora, você tem que inspecionar uma caixa e tudo que está lá dentro. Conferência e mais conferência (P4, 26 anos, funcionária da fábrica II).

O operador que “não estava olhando” é a pessoa que tem uma função fixa ao lado da máquina e precisa garantir uma produtividade dentro de um tempo padrão. É o trabalhador que será responsabilizado individualmente pela qualidade do produto que sai da máquina. O nível de automação na indústria farmacêutica possibilita que as máquinas funcionem de forma automática e ininterrupta, agregando ao trabalhador as funções de administrar o processo para assegurar uma boa produtividade, além de inspecionar a produção contra possíveis falhas, o que é externado na fala: “atenção é principal, se não observar, vai tudo errado”. A busca pela garantia da qualidade é crucial na fabricação de medicamentos, mas com a pressão pelo aumento de vendas (Nascimento, 2007NASCIMENTO, Álvaro. Propaganda de medicamentos: como conciliar uso racional e a permanente necessidade de expandir mercado? Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 189-250, 2007. https://doi.org/10.1590/S1981-77462007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/SsnvSKFP9y9DkV3sHyfj4Wy/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2 out. 2022.
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) há a necessidade de se intensificar a produção, de modo que os requisitos qualidade e produtividade se fundem. Esses elementos são reforçados pela operadora de máquina P9, que trabalhou por nove anos na fábrica I:

Você não pode piscar, tem que ficar de olho o tempo inteiro! Porque um frasco que passa, rodava cento e vinte frascos por minuto, então a máquina está dosando, de repente está dosando e dosando, então ali pode passar um frasco trincado e você não viu, por causa do choque térmico. Mas assim, com relação ao manuseio era tranquilo, mas tem muita coisa que você tem que estar esperto, tem que se acostumar (P9, 33 anos, ex-funcionária da fábrica I).

A exigência para produzir em grande escala e com qualidade é alimentada pela necessidade de maior atenção, que por sua vez é impulsionada pela individualização da responsabilidade, como mencionado pela participante: “tem que ficar de olho o tempo inteiro”. Esses elementos foram agregados pelas empresas durante a restruturação produtiva brasileira, e na indústria farmacêutica foram ampliados por meio da pressão gerada pela não possibilidade de erro e pela introdução de câmeras de vigilância. A necessidade de evitar a contaminação dos medicamentos é uma das justificativas para que as empresas empreguem diversas normas de conduta e vigilância, como a fiscalização por meio de câmeras de vigilância. É o que pode ser observado na fala do participante P1:

Normalmente, quando eles acham algum medicamento com problemas, ou um lote, a Anvisa manda uma notificação para recolher esses lotes e é uma dor de cabeça danada, aí é caça às bruxas. Pega o lote, pega os registros, quem fez, quem não fez, por que fez, aí puxam as gravações nas câmeras. Eles tentam achar um culpado, tentam achar um bode expiatório (P1, 32 anos, ex-funcionário da fábrica I).

Para o entrevistado, as câmeras de vigilância têm finalidade punitiva, uma vez que, se utilizadas, podem detectar um ‘culpado’ para problemas relacionados às normas da Anvisa. Sua percepção a respeito da forte vigilância imposta pelas câmeras é de que não há como esconder o erro, uma vez que a empresa possui o registro e gravações das câmeras. Segundo Braverman (1983BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. ), a vigilância é um método de controle do trabalho voltado para a disciplina do corpo que reduz as possibilidades de decisão do trabalhador. Nas fábricas I e II, esses métodos foram sofisticados pelo monitoramento das câmeras, visto que a vigilância passa a abranger uma dimensão histórica. O trabalhador é inibido ao saber que é observado o tempo todo, assim como a empresa pode saber quem errou no passado. As câmeras são uma forma sofisticada de vigilância que pressiona o trabalhador a não errar e a seguir as normas de conduta da empresa. É o que pode ser visto na fala do participante P6, que trabalhou durante 22 anos na fábrica I:

As regras era [sic] entrar no horário certo, fazer seu serviço certo, essas coisas. Aí botaram lá câmeras, como se diz, com a tecnologia todo mundo tem câmera, para ver o que a pessoa está fazendo, se está usando os equipamentos, porque pelas câmeras dá para achar muitas coisas (P6, 51 anos, ex-funcionário da fábrica I).

As câmeras de vigilância provocam a sensação de monitoramento constante, de modo que eventuais erros do passado ficam registrados. O diferencial perante outras formas de controle é que as câmeras possibilitam à empresa saber o que o operador fez no passado. O consenso sobre a não possibilidade de erro existente na indústria farmacêutica torna as câmeras um objeto para averiguar falhas e desvios de conduta. Além das câmeras de vigilância, há a propagação de um discurso que tem por objetivo responsabilizar individualmente por eventuais erros, conforme a fala da participante P9:

Todo treinamento eles falam isso. Porque querendo ou não, joga a carga para cima de você. Então, eles falam que se você fazer [sic] alguma coisa sem qualidade, um parente seu pode estar tomando, você pode estar matando um parente seu. Então, eles jogam isso muito nos treinamentos, para você já pensar duas vezes. Porque ali, você trabalha com todo tipo de pessoa, tem pessoas que tem caráter, outras não. E tem gente que pode falar: “Ah, não tem ninguém vendo, vou dar um jeitinho aqui”. Então, a pessoa tendo caráter e tendo cuidado... mas assim, ali tem tudo isso. Então, eles já jogam a bomba para cima de você, para você pensar duas vezes (P9, 33 anos, ex-funcionária da fábrica I).

Segundo Lobo (2008LOBO, Sônia. Das formas de controle e disciplinarização à resistência operária no cotidiano fabril: o trabalho na indústria farmacêutica. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, 2008. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5292. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/5292. Acesso em: 17 jun. 2021.
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), os trabalhadores da indústria farmacêutica são motivados pelo discurso de que são os produtores da saúde da população, o que foi percebido durante as entrevistas. Os participantes entendem que as condições oferecidas pelas indústrias farmacêuticas ainda são melhores do que outras já vivenciadas devido aos percalços enfrentados durante suas trajetórias de trabalho e vida. Essa percepção é adensada pela motivação gerada com o discurso sobre a importância do trabalho na produção de medicamentos. A participante P9 destaca que esse discurso é explorado ao longo dos treinamentos da empresa. Percebe-se uma tendência em responsabilizar o indivíduo pela qualidade do medicamento produzido. Na perspectiva de Alves (1999ALVES, Giovanni. Trabalho e sindicalismo no Brasil: um balanço crítico da década neoliberal (1990-2000). Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 19, p. 71-94, 1999. https://doi.org/10.1590/S0104-44782002000200006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsocp/a/cqQdQF55TQF3Gb55DQqW4wc/?lang=pt. Acesso em: 15 ago. 2021.
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), os modelos de controle que passam a orientar a gestão a partir dos anos 1990 no Brasil são fundamentados na responsabilização de trabalhadores por meio do controle da subjetividade humana e integração intelectual do indivíduo com os processos da empresa. Percebe-se que a propagação discursiva em torno da não possibilidade de erro tem um elemento motivacional quando busca disseminar o sentimento de produtores da saúde, mas atinge a subjetividade no sentido de responsabilizar individualmente sobre eventuais erros.

Nesse sentido, pode-se observar uma orientação para a gestão compartilhada, que objetiva atingir requisitos de qualidade. Conforme Lacaz (2000LACAZ, Francisco A. C. Qualidade de vida no trabalho e saúde/doença. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, p. 151-161, 2000. https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hFX7d6ZpmF6qC9MZSwFWM7f/?lang=pt. Acesso em: 10 out. 2022.
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), a junção entre as duas metodologias, uma voltada para produção massiva e repetitiva e outra para gestão compartilhada, configura um ambiente que expõe trabalhadores ao risco de doenças físicas e psicológicas. Ocorre que a configuração produtiva da indústria farmacêutica condensa os dois modelos. Na produção de medicamentos, a lógica de padronização e controle das atividades vai se entrelaçar com as rigorosas e até necessárias normas de controle de qualidade. Esse modelo orientado para a padronização e o controle da qualidade pode ser observado na indústria farmacêutica pela adoção dos documentos denominados como procedimento operacional padrão (POP). Na indústria farmacêutica, o controle das atividades, assim como o controle de qualidade, decorre das definições descritas no POP, que é disponibilizado para o trabalhador por escrito. É dessa forma que o trabalhador deve se orientar sobre quais os procedimentos corretos para o cumprimento de sua função. A participante P4, que trabalha no controle de qualidade da fábrica II, analisa a centralidade do POP na empresa:

Ou tem gente que tem dez anos de empresa, chega equipamento novo não vai saber mexer, é procedimento. O técnico vai te ensinar a usar, e vão escrever um POP após testes e testes. A indústria farmacêutica é POP, tudo é POP, tudo tem POP, não só uma pessoa tem que saber, é tudo escrito, e verificado. Se tiver alguma coisa para melhorar, é mudar a documentação! (P4, 26 anos, funcionária da fábrica II).

Os métodos de controle aplicados nas indústrias farmacêuticas são acompanhados pela implementação do POP que traz normas de conduta para responsabilização perante a qualidade. Contudo, as instruções do POP não são capazes de abranger todos os acontecimentos possíveis na estrutura complexa da indústria farmacêutica. Segundo Pfeiffer (2016PFEIFFER, Sabine. Robots, industry 4.0 and humans, or why assembly work is more than routine work. Societies, v. 6, n. 16 p. 2-26, 2016. https://doi.org/10.3390/soc6020016. Disponível em: https://www.mdpi.com/2075-4698/6/2/16. Acesso em: 12 jan. 2021.
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), a automação aumenta a complexidade dos processos produtivos. Quanto maior for o grau de complexidade dos processos, maior será o empenho da experiência humana. O nível de automação reduz o trabalho repetitivo e aumenta as atividades não rotineiras (Pfeiffer, 2016PFEIFFER, Sabine. Robots, industry 4.0 and humans, or why assembly work is more than routine work. Societies, v. 6, n. 16 p. 2-26, 2016. https://doi.org/10.3390/soc6020016. Disponível em: https://www.mdpi.com/2075-4698/6/2/16. Acesso em: 12 jan. 2021.
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). Os diferentes níveis de automação das máquinas que processam uma diversidade de produtos químicos de distintas qualidades, de acordo com os diferentes níveis de conhecimento humano, agregam complexidades aos processos. Em suma, o POP não apresenta solução para variações de acontecimentos, mas responsabiliza individualmente caso a máquina não produza o medicamento segundo os padrões estabelecidos. Embora as determinações descritas no POP sejam revisadas conforme máquinas e processos são substituídos, os procedimentos disponibilizados no POP revisado não oferecem soluções para eventos inesperados característicos da indústria farmacêutica. Nesses casos, diante de imprevistos, é a experiência humana que deve entrar em ação.

Desse modo, as exigências não se restringem a simplesmente obedecer aos padrões do POP. As estruturas complexas exigem o empenho cognitivo para lidar com situações imponderáveis (Pfeiffer, 2016PFEIFFER, Sabine. Robots, industry 4.0 and humans, or why assembly work is more than routine work. Societies, v. 6, n. 16 p. 2-26, 2016. https://doi.org/10.3390/soc6020016. Disponível em: https://www.mdpi.com/2075-4698/6/2/16. Acesso em: 12 jan. 2021.
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). Na indústria farmacêutica, as exigências cognitivas coexistem com a padronização imposta pelos métodos de controle. O modelo produtivo condensa aplicação de controle para redução da decisão humana juntamente com a gestão compartilhada. A aglutinação de métodos advindos de diferentes modelos de produção utilizados para conciliar qualidade e rentabilidade é um potencial causador de adoecimentos físicos e psíquicos (Lacaz, 2000LACAZ, Francisco A. C. Qualidade de vida no trabalho e saúde/doença. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, p. 151-161, 2000. https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hFX7d6ZpmF6qC9MZSwFWM7f/?lang=pt. Acesso em: 10 out. 2022.
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). A mistura de métodos de gestão se agrava por meio da intensificação da produção gerada para atender a grande demanda impulsionada pelas estratégias de publicidade. A participante P10, de 37 anos, por exemplo, trabalhou durante dez anos na fábrica II, dentre os quais oito como operadora de máquina. Todavia, a máquina na qual trabalhava era relativamente ultrapassada, de modo que os anos operando o maquinário exigiram muito esforço e acarretaram uma série de doenças. É desta forma que a entrevistada relembra o processo de trabalho junto da máquina e seus efeitos:

Na máquina que eu trabalhava, a regulagem era muito manual, hoje tem máquina que a regulagem é mais robotizada, tem computador. As máquinas novas têm computador, e essa onde eu trabalhava era mais manual. Aí eu sou toda lascada das cadeiras, da cintura para baixo eu sinto muita dor. Porque dez anos, ? Eu estava trabalhando na rotuladora do biotônico, mas o ano passado eu não trabalhei. Fiquei afastada pelo INSS, porque fiz uma cirurgia na coluna para tirar uma hérnia de disco, aí esse trem não prestou, parece que a dor fez só aumentar. Fui sentindo muita, sentindo muita dor, até que o médico me receitou uma ‘remedeira’ forte, porque os remédios são muito forte! [sic] Te dá muita moleza no corpo, a mão treme, tem que tomar antidepressivo, porque seu psicológico não vale para nada, e tomando anticoncepcional, tomando o maior cuidado, ainda fui e descobri que estava grávida! (P10, 37 anos, ex-funcionária da fábrica II).

A automação altera as formas de trabalho de modo que as exigências físicas são substituídas por exigências cognitivas. Desse modo, ocorre a substituição de máquinas e processos, alterando as atividades (Pfeiffer, 2016PFEIFFER, Sabine. Robots, industry 4.0 and humans, or why assembly work is more than routine work. Societies, v. 6, n. 16 p. 2-26, 2016. https://doi.org/10.3390/soc6020016. Disponível em: https://www.mdpi.com/2075-4698/6/2/16. Acesso em: 12 jan. 2021.
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). Todavia, não houve a opção em paralisar a máquina e substituir o processo no caso da participante P10, o que certamente garantiu um volume produzido, mas acarretou o desenvolvimento de problemas físicos. A trabalhadora desenvolveu doenças ocupacionais de natureza física, se afastou do trabalho, voltou durante os primeiros meses da gestação, foi afastada por ser considerada como grupo de risco durante a pandemia de Covid-19, e no ano posterior foi demitida. Até o dia da entrevista, P10 ainda estava desempregada devido às suas debilitações físicas.

Conforme Nascimento (2007NASCIMENTO, Álvaro. Propaganda de medicamentos: como conciliar uso racional e a permanente necessidade de expandir mercado? Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 189-250, 2007. https://doi.org/10.1590/S1981-77462007000200002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/SsnvSKFP9y9DkV3sHyfj4Wy/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2 out. 2022.
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), os recorrentes investimentos em publicidade na indústria farmacêutica atropelam suas finalidades terapêuticas, aumentando sua demanda pelo consumo. Para se obter rentabilidade por meio dessa massa de consumo, a produção é intensificada para operar 24 horas por dia, ocasionando o trabalho noturno. No relato do participante P1, a necessidade de renda o fez aceitar o trabalho noturno, de modo que a intensificação da produção por meio dessa atividade fez parte dos seus problemas:

Tiveram seus percalços, engordei pra cacete, envelheci dez anos em um porque arrebentou minha saúde, tanto saúde psicológica quanto hipertensão. Eu tinha pressão descontrolada, lá eu piorei, adquiri hipertensão. Não adquiri, , porque é hereditário, meu pai tinha. Em algum momento da minha vida essa chavinha ia virar e eu me descobrir hipertenso, mas lá eu tive picos de pressão, estresse, de ansiedade (P1, 32 anos, ex-funcionário da fábrica I).

Os casos de P1 e P10 indicam problemas de saúde de naturezas distintas, mas ambos ocasionados pela intensificação da produção na indústria farmacêutica. No caso de P10, houve a necessidade de manter o maquinário produzindo sem interrupção. No caso de P1, a produção em grande escala ocasiona o funcionamento da fábrica em três turnos, de modo que o trabalho noturno agravou seus problemas de saúde. O entrevistado relata o estresse e outras condições adversas com o trabalho noturno:

Passava a noite trabalhando, com luz ligada você perdia a noção de hora, esse período eu acho que envelheci uns dez anos. Eu falo para todo mundo, é maravilhoso trabalhar nesse horário porque você tem o sábado, domingo e segunda o dia todo para descansar, mas o sono da manhã era difícil, eu morava em um lugar muito barulhento, difícil de dormir (P1, 32 anos, ex-funcionário da fábrica I).

O caso do trabalho noturno entre os participantes desta pesquisa não se restringe a P1. Ocorre que tanto a fábrica I como a fábrica II operam 24 horas por dia. Dos dez participantes desta pesquisa, seis trabalham ou já trabalharam no terceiro turno, que começa por volta das 22h, atravessando a madrugada até 6h. Dos que trabalharam ou trabalham em período noturno, quatro são da fábrica I e dois da fábrica II; vale destacar que dos seis entrevistados com experiência em trabalhar à noite, cinco mencionaram esse tipo de trabalho como um complicador do sono e da qualidade de vida. A intensificação da produção leva ao funcionamento ininterrupto da linha produtiva, gerando três turnos de atividades que, segundo a participante P9, apresentam consequências negativas para a saúde:

O pessoal fala assim: “Ah, terceiro turno você se adapta”, e não se adapta! Sono a gente não se adapta, eu trabalhei nove anos à noite e posso te afirmar. Teve uma vez que me colocaram no segundo turno, porque eu estava bem cansada, não estava aguentando mais, e eu pedi. Então organismo fica tudo desregulado, então cada turno tem seu perfil... E geralmente terceiro turno, a pessoa quer começar trabalhar, precisa trabalhar, então oferecem a vaga do terceiro turno e o cara vai, e se você pôs o pezinho no terceiro turno já era, não volta mais. Tem gente que não dá conta, que não se adapta (P9, 33 anos, ex-funcionária da fábrica I).

A fala da entrevistada diz muito sobre os efeitos do terceiro turno para a saúde das pessoas e ainda demonstra elementos que levam as pessoas a aceitarem esse tipo de trabalho. A nova dinâmica econômica, produtora de trabalhos precários e mão de obra sobrante, sujeita as pessoas a aceitarem condições desfavoráveis de trabalho e vida, nas quais estão mais propensas a adquirir problemas físicos e mentais ao longo do tempo (Dardot e Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016. ; Lacaz, 2000LACAZ, Francisco A. C. Qualidade de vida no trabalho e saúde/doença. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, p. 151-161, 2000. https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hFX7d6ZpmF6qC9MZSwFWM7f/?lang=pt. Acesso em: 10 out. 2022.
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). Apesar de a configuração produtiva da indústria farmacêutica apresentar condições adversas de trabalho, entre os dez entrevistados oito mencionaram que as experiências anteriores de trabalho foram piores por causa dos salários.

Para atender à crescente produção da indústria farmacêutica, as fábricas I e II intensificam a produção, colocando suas operações para funcionar de forma ininterrupta, sem vislumbrarem problemas com disponibilidade de força de trabalho para cobrir suas atividades, considerando o contexto de reorganização do capitalismo e redução de postos de trabalho. Segundo Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016. ), essa conjuntura propaga maior concorrência entre trabalhadores que, em busca de um número cada vez mais reduzido de possibilidades, aceitam oportunidades de trabalho desfavoráveis para a própria saúde.

Considerações finais

Com o objetivo de traçar uma análise sobre o ambiente de trabalho nas indústrias farmacêuticas do Distrito Agroindustrial de Anápolis (DAIA), este estudo buscou captar, por meio das entrevistas, as percepções de trabalhadores e trabalhadoras para compreender os impactos do modelo de produção de medicamentos na vida das pessoas que laboram no setor. Percebem-se condições adversas à qualidade de vida, representadas em diversos aspectos do trabalho noturno e na rigorosidade dos métodos de controle, por exemplo. Apesar de a maioria dos participantes entender essas condições como adversas, eles ressalvam que eram melhores do que as encontradas em outras experiências de trabalho. Além disso, o trabalho na produção de medicamentos é entendido como relevante para a sociedade, a ponto de gerar satisfação nos trabalhadores.

A produção das empresas analisadas é seriada em grandes lotes, e os postos de trabalho são fixos. As métricas de controle de qualidade são rigorosas e impostas por métodos de controle de comportamento voltados ao bom manuseio do produto. Em suma, as fábricas pesquisadas mantêm uma orientação muito forte das suas origens tayloristas-fordistas e aderem a algumas práticas de produção enxuta voltadas para o controle de subjetividade. Essa configuração produtiva provém da necessidade de se assegurar a qualidade exigida pela Anvisa e também elevar a produção para obter grandes estoques e atender a demanda impulsionada pelas propagandas publicitárias e a hegemonia da lógica biomédica capitalista. Tal soma de fatores gerou uma configuração produtiva passível de degradação da saúde; por outro lado, segue na direção contrária do cenário nacional de desindustrialização, visto que está em ascensão e automação constante. Os postos de trabalho que oferecem condições desfavoráveis à saúde são preenchidos devido à redução contínua de empregos protegidos. Nesse sentido, mesmo diante de trajetórias que impeliram os trabalhadores a aceitarem condições muitas vezes adversas de trabalho, os produtores de medicamentos entendem vivenciar condições mais favoráveis que outros trabalhadores no atual contexto de precarização do trabalho.

Referências

  • 1
    Segundo o Guia 2022, da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), o mercado farmacêutico brasileiro chegou a R$ 146,7 bilhões em vendas em 2021, apresentando um aumento de 55,1% no comércio de varejo desde 2017. Em relação aos postos de trabalho, nesse mesmo ano contabiliza 76.612 empregos no mercado de produção de medicamentos para uso humano. Disponível em: https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2022/08/Guia-Interfarma-2022.pdf. Acesso em: 11 nov. 2022.
  • 2
    Todas as entrevistas estão de acordo com o estabelecido no termo de consentimento livre e esclarecido, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás.
  • Financiamento

    Não houve.
  • Aspectos éticos

    Aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (UFG), CAEE 55675721.0.0000.5083, parecer de n. 5.397.956, em 9 de maio de 2022
  • Apresentação prévia

    Este artigo foi elaborado com base em parte dos resultados da dissertação de mestrado de Fabio Henrique Belini, intitulada Trabalho e automação na indústria farmacêutica de Anápolis, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), defendida em 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    20 Mar 2023
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