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A agência reguladora dos planos de saúde: poder econômico, jogo político e barreiras ao interesse público na saúde brasileira

BAIRD, Marcello F. . Saúde em jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. 215p.

Alguém que leia esta resenha em 2022 não terá dificuldades em compreender a centralidade dos temas discutidos no livro Saúde em jogo. A pandemia de Covid-19 trouxe bruscamente para o centro do palco muitos temas antes restritos ao interesse de especialistas, profissionais de saúde, associações científicas, pacientes e outras pessoas diretamente envolvidas com o sistema de saúde brasileiro.

Fenômeno já habitual para técnicos de futebol, a Saúde Pública viu seus temas entrarem na pauta de lares, fábricas, calçadas e botequins. Com a meticulosidade de quem escala a melhor dupla de laterais para a seleção brasileira, subitamente nos vimos debatendo o mérito de medidas preventivas, as tendências de indicadores de contágio e mortalidade, a eficácia de vacinas e o papel de agências reguladoras. O bem-vindo engajamento por esses assuntos e um tsunami de desinformação mal-intencionada desafiaram cientistas a ampliarem o diálogo com a realidade e a comunicação fora do ambiente acadêmico. Porém, o interesse mostrou-se insuficiente, como muitas outras ações pontuais, para evitar os resultados catastróficos da crise sanitária no Brasil.

As duras condições objetivas enfrentadas pela população, combinada por uma condução governamental criminosa e incompetente, impediram que esta experiência motivasse o fortalecimento de nosso sistema de saúde. Ao contrário, o que se viu foi a expressão extrema de suas principais distorções.

De um lado, o Sistema Único de Saúde (SUS) desempenhou papel crucial para amenizar a brutalidade da crise, mas expôs os problemas e limites de um sistema subfinanciado, fragmentado e com inúmeros desafios a serem enfrentados. Paralelamente, empresas de planos de saúde não pouparam esforços para se esquivar de responsabilidades, pleiteando vantagens regulatórias, acirrando a concorrência por recursos assistenciais escassos e intensificando práticas comerciais abusivas. O desfecho foi cruel, mas não surpreendente: o aumento inequívoco das desigualdades em saúde, simultâneo ao extravagante desempenho econômico do setor privado.

Por isso, é tentador ler o livro de Marcello Baird com uma ênfase retrospectiva. Publicada em 2020, com dados de uma pesquisa que se estendeu até o início de 2017, a obra adquire traço visionário diante da tragédia que sucedeu a publicação e suas consequências para o sistema de saúde.

Porém, como convém à boa pesquisa, seu mérito não depende do poder premonitório. Antes, vem da leitura aguda da realidade, do método atento, da competência em sua execução, da desmistificação de sensos comuns e da denúncia qualificada de práticas e discursos carregados de interesses pouco nobres.

Saúde em jogo nos oferece uma análise clara e objetiva das disputas de poder em torno da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Neste sentido, a potência do livro está em apresentar de forma acessível as estratégias de segmentos da saúde privada, em sua interação com o Estado brasileiro.

A pertinência da escolha do objeto precede as conjunturas emergenciais como a pandemia. Ela se expressa na formação de nosso ambiente institucional, na aparente normalidade do arcabouço regulatório, no cotidiano das disputas que atravessam a atuação da agência. A contribuição deste estudo é dada na medida em que coloca os holofotes sobre os interesses que incidem sobre o sistema de saúde, não em modelos abstratos ou formalidades jurídicas.

Sem prejuízo da profundidade teórica, o autor apresenta didaticamente o debate sobre regulação e estabelece a teoria positiva das instituições como marco teórico para interpretar as relações entre políticos, burocratas e empresários no contexto da saúde privada no Brasil. Traça as linhas gerais do mercado de planos e seguros de saúde e identifica apropriadamente as questões regulatórias mais relevantes para o setor, especialmente os temas econômicos e assistenciais.

O trabalho propõe a mensuração do poder das empresas do setor com base em uma combinação de seu porte, do volume de doações para campanhas eleitorais e da análise de redes sociais formadas pelos atores mais relevantes.

O conjunto das informações organizadas pelo autor subsidia a análise do jogo político e das redes de influência na ANS entre 2000 e 2017. Neste ponto do trabalho, Baird define sua periodização levando em conta dois momentos. O primeiro, chamado de “hegemonia sanitarista” (p. 127) (2000-2009), e o segundo, o “predomínio liberal” (p. 145) (2010-2017).

A escolha é baseada no perfil e trajetória profissional dos consecutivos diretores da agência, com menções a outros atores políticos presentes na “coalizão governamental” (p. 127). De acordo com esta chave, o autor elabora detalhada análise de ambos os períodos, captando nuances relevantes e compondo um quadro completo e abrangente sobre o funcionamento da agência.

As interpretações apresentadas se desdobram em muitos diálogos possíveis, o que demonstra a riqueza do trabalho. Destaco aqui uma ressalva possível, que é estruturante para a leitura do período e se reflete na conjuntura atual.

Embora sejam claros os critérios apresentados para justificar a periodização, a escolha reforça uma visão estilizada do período que abafa as interpretações mais importantes apresentadas pelo próprio trabalho.

Note-se, por exemplo, que é discutível a ideia de que vivenciamos no Brasil algo que se poderia chamar de ‘hegemonia sanitarista’, seja no âmbito do governo em geral, seja na atuação da própria ANS (Cf. Teixeira e Paim, 2005TEIXEIRA, Carmen F. S.; PAIM, Jairnilson. S. A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6037. Acesso em: 06/12/2022.
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). Sob esta ótica, e abusando da licença poética, talvez fosse mais adequado falar em ‘50 tons de capitalismo’. Até mesmo a criação do órgão e a evolução do marco regulatório podem ser lidos, a meu ver, como a manifestação do interesse de grandes empresas do setor, no sentido de dar previsibilidade aos negócios, atrair investidores e impor barreiras à entrada de empresas menores e iniciativas aventureiras.

Não se trata apenas de um incômodo em relação à nomenclatura adotada. Nem se pense que este breve comentário invalida as qualidades dos capítulos referidos. Contudo, acredito que os critérios usados para a periodização não fazem jus ao próprio resultado da análise.

Por exemplo, o autor é bem-sucedido ao apontar as grandes questões do setor que não foram equacionadas durante os governos petistas. Acerta também ao destacar os inúmeros elementos de continuidade entre os dois momentos que definiu. Esses achados coincidem com a literatura que aponta as dificuldades de regular a atuação privada na saúde e, paralelamente, a consolidação do SUS numa perspectiva sanitarista (Bahia et al., 2016BAHIA, Ligia et al. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2:e00154015, 2016. https://doi.org/10.1590/0102-311X00154015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/vTTZd9zPqrDjHwDZMZKTnMf/?lang=pt. Acesso em: 06/12/2022.
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; Sestelo, 2018SESTELO, José A. F. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: EDUFBA, 2018. 397 p.).

E esta é exatamente a contribuição maior do estudo: evidenciar que a presença de indivíduos em cargos proeminentes, alinhados ao nosso campo político-ideológico, com inequívoca qualificação em Saúde Coletiva, reverteu-se muito pouco numa atuação adequada e vigorosa da ANS. Prevaleceram, invariavelmente, os interesses alinhados à acumulação de capital no setor, cada vez mais intensa.

Voltamos a 2022, tendo vivido o drama social da pandemia, tendo nos habituado à barbárie bolsonarista − no governo e no cotidiano −, tendo recolocado Lula na Presidência. E o alcance da via institucional para promover mudanças reais segue sendo o bode na sala.

Este livro contribui enormemente para elucidar os arranjos e movimentações que moldam nosso sistema de saúde. E suas conclusões evocam as relações que impedem a realização de políticas de saúde capazes de reduzir desigualdades. Por isso ajuda-nos a refletir quais esperanças devem ser renovadas, quais ingenuidades devem ser abandonadas.

Por fim, mostra a necessidade de um marco regulatório e um aparato institucional que garantam a subordinação da iniciativa privada à racionalidade do sistema de saúde como um todo, ao planejamento e à utilização de recursos para a satisfação das necessidades da população, buscando a efetivação do direito à saúde de forma universal, igualitária e democrática.

Referências

  • BAHIA, Ligia et al Das empresas médicas às seguradoras internacionais: mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2:e00154015, 2016. https://doi.org/10.1590/0102-311X00154015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/vTTZd9zPqrDjHwDZMZKTnMf/?lang=pt Acesso em: 06/12/2022.
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  • SESTELO, José A. F. Planos de saúde e dominância financeira Salvador: EDUFBA, 2018. 397 p.
  • TEIXEIRA, Carmen F. S.; PAIM, Jairnilson. S. A política de saúde no governo Lula e a dialética do menos pior. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 29, n. 71, p. 268-283, set./dez. 2005. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6037 Acesso em: 06/12/2022.
    » https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6037

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2022
  • Aceito
    07 Dez 2022
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