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Introdução à economia da saúde

RESENHAS

Fernando José Pires de Sousa1 1 Universidade Federal do Ceará < fdesousa@ufc.br>

Introdução à economia da saúde. Marcelo Gurgel Carlos da Silva. Fortaleza: UECE/Express, 2004, 152 pp.

Este livro é uma contribuição para o desenvolvimento do ensino da economia da saúde no Brasil, disciplina já bastante difundida, notadamente nos países que mais avançaram na estruturação dos seus sistemas de proteção social, em especial no campo da saúde. Nesse sentido, vale contextualizar a América Latina nesse processo, analisado a seguir, para melhor apreender o significado da obra em apreço.

A partir da segunda metade do século passado, o avanço capitalista na área de saúde experimenta uma evolução significativa estimulado pela expansão da cobertura dos serviços de saúde, conseqüência do processo de universalização dos sistemas nacionais de proteção social.

A 'inclusão' social promovida pelos pressupostos keynesianos de busca pelo pleno emprego se verificou, por um lado, pela incorporação massiva de trabalhadores no mercado formal de trabalho nos países desenvolvidos; por outro, pela ampliação dos direitos sociais, que passaram a contemplar praticamente todos os cidadãos e suas necessidades prementes.

Esse extraordinário aumento da cobertura - combinado com a especialização da medicina (por sua vez resultante do progresso da ciência médica e das descobertas tecnológicas), com o aumento da longevidade da população e com o aparecimento de novas patologias ou mesmo o ressurgimento de doenças que já haviam sido erradicadas - passou a exercer pressão crescente nos gastos de saúde, tanto públicos como privados.

Nos países de capitalismo retardatário e com forte tradição do poder do Estado na indução do desenvolvimento econômico, como é o caso da América Latina, em particular o Brasil, o avanço da medicina privada e as pressões sobre os custos dos sistemas de saúde se intensificaram a partir dos governos militares. Em busca de 'legitimidade', procuravam aliviar as tensões das classes desfavorecidas, por meio da expansão das políticas sociais e do acesso praticamente irrestrito aos serviços públicos, em especial, os de saúde.

Para atender à significativa demanda, até então reprimida, o recurso imediato foi, por um lado, reservar a assistência pública e gratuita para os pobres e, por outro lado, favorecer a inserção do grande capital internacional vinculado aos interesses da acumulação capitalista no ramo sanitário - ávido pela conquista de grandes mercados, como o brasileiro - direcionando-o para o atendimento terciário e da medicina especializada, ambos destinados às classes médias e altas e, numa dimensão não desprezível, para o excedente de demanda dos pobres não satisfeito pela oferta pública. Vale referir que essa garantia suplementar de atendimento constitui uma importante reserva de mercado para a iniciativa privada custeada pelo erário público, praticamente isenta de concorrência e, portanto, dos riscos de mercado inerentes, que condicionam a sobrevivência e o desenvolvimento do segmento médico-empresarial.

A realidade que se impõe a partir da crise capitalista e da recorrente crise fiscal do Estado no mundo desenvolvido e nos países do Terceiro Mundo, a partir de meados da década de 1970, marca uma nova conjuntura para os sistemas nacionais de proteção social, com forte repercussão no campo sanitário. Os dogmas neoliberais passam a predominar ideologicamente e as políticas que buscam o desmantelamento dos modelos universais de proteção e a substituição por programas sociais focalizados constituem a materialização desses pressupostos. A era desenvolvimentista sustentada nos gastos e investimentos previstos nos grandes planos de governo é superada pelo abandono do planejamento, imposto pela derrocada das economias nacionais, notadamente na América Latina, envoltas por recessões prolongadas, hiperinflações e astronômico endividamento interno e externo, comprometendo grande parcela dos recursos públicos com amortizações e pagamento de juros.

As políticas de ajustamento econômico preconizadas pelos organismos internacionais e consubstanciadas no propalado Consenso de Washington reforçam a abertura, a desregulamentação e a flexibilização dos mercados, visando a favorecer a entrada de produtos e de capitais externos, considerados necessários para o controle da inflação e o pagamento das dívidas.

No esteio desse programa de cunho liberal, impõe-se uma rígida restrição orçamentária por meio do estrito controle dos gastos e da redução dos investimentos públicos, como precondições para gerar superávits fiscais necessários para honrar os contratos (vide a Lei de Responsabilidade Fiscal, no caso brasileiro). São recomendadas a terceirização de atividades, a reengenharia e a reorganização funcional dos serviços públicos, o controle de qualidade, a disseminação de avaliações de custo (custo-benefício e custo-efetividade), a aplicação de sofisticadas técnicas econométricas de avaliação de sistemas de saúde e de procedimentos, como também a introdução de novas tecnologias e de novos equipamentos e medicamentos.

Toda essa evolução observada no mundo capitalista, nas suas mais diversas conjunturas e contextos, envolvendo as complexas imbricações entre Estado e mercado, público e privado, desenvolvimento e subdesenvolvimento, igualdade e iniqüidade, de uma forma geral induziu à ampliação do saber, em especial através da incorporação da multidisciplinaridade. No segmento sanitário, sobressai a economia da saúde como disciplina agregativa ou, mais precisamente, como disciplina que procura entender, explicar e dar soluções para os mais diferentes problemas relacionados a essa área, utilizando como fundamento as teorias econômicas. Seu caráter multidisciplinar também faz uso de conhecimentos específicos de outros domínios, com destaque para a estatística, atuária, administração, sociologia e antropologia.

Tem sido extraordinário o desenvolvimento e a disseminação da economia da saúde nos países desenvolvidos nas últimas décadas e, mais recentemente, nos demais países, por meio da publicação de livros-texto e revistas, de pesquisa, de cursos de pós-graduação e da fundação de associações profissionais. No Brasil, pode-se considerar o ano de 1989 como marco institucional de inserção da economia da saúde, quando foi criada a Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres).

É nesse contexto que se destaca a contribuição de Marcelo Gurgel, graduado em medicina e economia, com relevante experiência de ensino e pesquisa em economia da saúde. Este livro de introdução à economia da saúde constitui, portanto, mais um aporte do autor para o avanço desta disciplina no Brasil.

Como livro básico, introdutório ao ensino da matéria, apresenta uma linguagem simples e didática, de fácil compreensão para quem ingressa na árida epistemologia da ciência econômica. Compreende onze capítulos, sendo que os nove primeiros discorrem sobre os temas comumente afetos ao ensino da economia da saúde, e os dois últimos empreendem uma análise contextual da saúde no mundo e dos desafios que se impõem ao desenvolvimento da economia da saúde, bem como a evolução desta no Brasil e sua importância para a formação de profissionais nesse domínio.

A obra apresenta ainda três apêndices que incluem uma série de questões de múltipla escolha, com o propósito de servir de avaliação de conhecimentos dos assuntos tratados no texto, uma lista de referências bibliográficas básicas de economia da saúde e outra de grupos de pesquisa existentes no Brasil, uma relação de endereços eletrônicos e diversas fontes de informação para consultas nesta área.

O livro se inicia com considerações acerca das definições e da importância da economia da saúde, como também da estrutura esquemática da disciplina. Faz uma incursão sobre a problemática que envolve saúde e desenvolvimento econômico, enfocando diversas interpretações de causa e efeito. Mostra a saúde como importante componente na formação do capital humano, sua reciprocidade com o desenvolvimento, e as implicações em termos de transição demográfica e epidemiológica. Aborda a questão do mercado de serviços de saúde, abrindo a discussão sobre suas peculiaridades que ferem as clássicas 'leis de mercado', o que implica a imprescindibilidade do Estado como regulador e promotor do referido mercado, com vistas a garantir acesso e saúde a todos, sem discriminação. Neste sentido, o livro envereda sobre o incremento dos custos em saúde que se verifica tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos, explicitando as causas e os tipos de custo.

Na seqüência, discorre conceitualmente sobre 'eficácia', 'efetividade', 'eficiência' e 'eqüidade em saúde' para inserir a avaliação econômica - como um conjunto de procedimentos e técnicas - e sua importância para a tomada de decisão. Esta abordagem é refinada com a discussão sobre a prática médica diária, no que se refere à avaliação do processo e do resultado do trabalho médico, o que constitui o campo da epidemiologia clínica e gestão clínica.

O autor conclui os nove capítulos consagrados aos aspectos teóricos e conceituais da economia da saúde com o tema 'financiamento', analisando as alternativas de fontes de financiamento público e privado, bem como as bases tributárias diretas ou indiretas. Enfoca ainda a expansão e racionalização dos gastos em saúde, destacando a elevação dos custos ao longo da fase áurea do Welfare State e dedicando um tópico ao problema do financiamento da saúde no Brasil, retrospectivamente, até chegar à discussão da Emenda Constitucional nº 29 de 2000.

Dada a complexa evolução dos sistemas de proteção social e, particularmente, de saúde frente às vicissitudes do avanço capitalista e do Estado, como evidenciado anteriormente, o estudo de economia da saúde torna-se cada vez mais imprescindível, revelando a importância de publicações atinentes à matéria, principalmente no caso brasileiro. Este livro constitui, portanto, importante contribuição para a produção acadêmica na referida área e, assim, para a disseminação de conhecimentos e o aprofundamento de pesquisas em economia da saúde no país.

Nota

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    Universidade Federal do Ceará <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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