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Capitalismo e natureza no Brasil colonial: a pecuária bovina no Ceará e a continentalidade do jogo das trocas (ca. 1680-1750)

Capitalism and nature in Colonial Brazil: the cattle in Capitaincy of Ceará and the continentality of game of exchanges (ca.1680-1750)

Resumo:

Entre 1680 e 1750, a colonização portuguesa na América adquiriu dimensão continental. Entre as atividades econômicas que impulsionaram o avanço dos caminhos do comércio e a edificação de ambientes coloniais destacamos a pecuária. Na Capitania do Ceará a pecuária transformou o ambiente, as paisagens e dinamizou o comércio com a produção de mercadorias que abasteciam o mercado interno e externo. Discutimos aqui as bases da relação entre exploração colonial e as dinâmicas da economia-mundo europeia, o processo de expansão do gado nas Capitanias do Norte, principalmente no Ceará, e a geografia do comércio que absorvia a produção da pecuária nas redes continentais e marítimas, de circulação e acumulação. Assim, apontamos que estudos atentos à interface entre história econômica e história ambiental podem se beneficiar de abordagens que situem a expansão da pecuária na relação com a totalidade dos espaços-tempo que estruturam a economia-mundo.

Palavras-chave:
Brasil colonial; Economia colonial; História ambiental

Abstract:

Between 1680 and 1750, the Portuguese colonization in America acquired a continental dimension. Amidst economic activities that boosted the advance of commerce and edification of colonial environments we highlight the cattle breeding. The livestock expansion in Capitaincy of Ceará transformed the environment and promoted the commerce with the production of goods supplying the internal and external markets. We discuss the bases of the relation between colonial exploitation and European world-economy dynamics, the livestock expansion in the capitaincies of the North, mainly the capitaincy of Ceará and the geography of trade that absorbed the livestock production in their nets of circulation and accumulation. Thus, we aim demonstrate that studies attentive to interface between economic history and environmental history may benefit of approaches which locates the cattle as part of a totality of space-time which structure the world-economy.

Keywords:
Colonial Brazil; Colonial economy; Environmental history

O período entre as últimas décadas do século XVII e meados do século XVIII foi marcado pelo avanço das conquistas e da colonização portuguesas no interior da América do Sul. A pecuária nas Capitanias do Norte1 1 Capitanias do Norte era como eram chamadas as capitanias do Estado do Brasil situadas ao norte de Pernambuco: Paraíba, Rio Grande e Ceará. Em meados do século XVII estas foram incorporadas ao governo de Pernambuco com o estatuto de capitanias anexas. ganha impulso durante e após a série de conflitos denominada Guerra dos Bárbaros. O sertanismo paulista promove expedições que resultaram em descobrimentos de ouro em terras que abrigariam as capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Ao sul, o comércio na bacia do Prata e a caça do gado selvagem estimulam a formação de ambientes coloniais. Tomados regionalmente, esses movimentos (e outros poderiam ser citados) revelam dinâmicas próprias e variadas (Puntoni, 2002PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão do Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2002.; Carrara, 2007bCARRARA, Ângelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007b.; Rosa, Jesus, 2003ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de. A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003.; Hameister, 2002HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c. 1727-1763). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002.; Prado, 2002PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa.Porto Alegre: Fumproarte, 2002.) Tomados no contexto das relações entre Portugal e Brasil, tais dinâmicas podem ser justificadas pelas necessidades econômicas, geopolíticas e militares de Portugal que, depois da perda de posições no comércio no Índico e no Pacífico Sul, centrou seus esforços no espaço atlântico (Godinho, 1953GODINHO, Vitorino Magalhães. Portugal, as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770). Revista de História (São Paulo). v. 7, n. 15, p. 69-88, 1953., p. 73; Boxer, 1973BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973., p. 191)

Neste artigo desenvolvemos o argumento de que o estudo da história ambiental do Brasil colonial pode se beneficiar de uma perspectiva que integre tanto os movimentos regionais quanto as relações entre Portugal e Brasil às dinâmicas da economia-mundo europeia (Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo , v. 3: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 12-34). A proposta de investigar a dimensão espacial, e particularmente continental, da colonização portuguesa como parte do processo de formação e consolidação do capitalismo é, antes de uma novidade, a retomada de caminhos que foram negligenciados nos estudos sobre o Brasil colonial (Moraes, 2011MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no longo século XVI. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2011.). Para avançar em nosso argumento, nos colocamos diante de um triplo desafio: a) retomar alguns caminhos, já delineados há algumas décadas, de estudos dedicados a desvendar os elos entre a formação do capitalismo e a colonização da América (ou do Brasil em particular); b) perceber os limites de perspectivas nem sempre muito atentas à diversidade e complexidade das mediações entre capitalismo, formações sociais e meio ambiente; c) incorporar a contribuição de estudos que ignoram ou mesmo negam a natureza capitalista da exploração colonial.

Capital mercantil e economia-mundo europeia

O sociólogo Florestan Fernandes afirmou que “o capital mercantil tecia as redes que não deixavam escapar os peixes grandes e seu apetite era insaciável” e enfatizou que o “circuito de apropriação” do excedente econômico gerado pela mercantilização dos produtos coloniais poderia ser mais bem compreendido no desdobramento do “negócio” como um todo e que a “parte substancial [...] se encontrava nos núcleos estrangeiros”. Entre o senhor de escravos, a Coroa, os negociantes da metrópole e os núcleos estrangeiros haveria, portanto, uma “superposição de formas de apropriação” (Fernandes, 1976FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: FERNANDES, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 30-76., p. 21). Para o autor, a “economia de plantação colonial-escravista articulou, entre si, várias formas de produção subsidiárias e várias regiões da Colônia” e acrescentou que “em muitas dessas formas de produção, o trabalho escravo encontrava uma utilização meramente seletiva e segmentar” (Fernandes, 1976FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: FERNANDES, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 30-76., p. 24). O esquema exposto por Florestan Fernandes possui uma lógica interna perfeita, lastreada por uma ideia de totalidade não comprometida com o estudo da diversidade de situações e contextos e sim com o desvendamento dos laços que permitiam a entrada de mercadorias e riquezas na “circulação engendrada pelo capital mercantil”. Essa circulação integrava a exploração escravista-colonial, a economia metropolitana, as economias comerciais hegemônicas e o mercado mundial (Fernandes, 1976FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: FERNANDES, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 30-76., p. 21). A mesma noção de totalidade é empregada pelo historiador Fernando Novais, de maneira muito mais densa e fundamentada, para descrever a estrutura e a dinâmica do Antigo Sistema Colonial (Novais, 1995NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1995., p. 57-116). Novais não negou a existência de um mercado interno, a diversidade de atividades econômicas, a variedade de ambientes coloniais, de agentes sociais e de formas de exploração do trabalho. Ainda assim, para o autor, a economia colonial é essencialmente caracterizada pela produção de mercadorias para o mercado europeu com a exploração do trabalho escravo e é essa caracterização que define o lugar e o sentido que a colonização assumiu no processo de transição do feudalismo ao capitalismo (Novais, 1995NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1995., p. 70-72). No entanto, mais do que um mecanismo de drenagem de riquezas, o Antigo Sistema Colonial é definido como um fenômeno político de longa duração que só pode ser percebido em conjunto com os “os demais componentes que dão a conformação característica da Época Moderna” (Novais, 1995NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1995., p. 62). Dessa maneira, o autor situa historicamente a exploração colonial subordinada aos laços políticos e às relações de poder característicos do Antigo Regime (Novais, 1995NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1995., p. 63).

Os estudos históricos desenvolvidos nos anos e décadas seguintes aos trabalhos de Florestan Fernandes e de Novais revelaram a diversidade e a complexidade das dinâmicas da economia colonial. Esses estudos fragilizam alguns dos pressupostos que fundamentaram a análise sobre os vínculos estruturais estabelecidos entre exploração colonial, escravidão e capital mercantil. Em primeiro lugar, destacamos os estudos atentos à demografia da escravidão. Exemplarmente, o minucioso estudo de Schwartz sobre a “sociedade do açúcar” no Recôncavo baiano revelou a diversidade de atividades econômicas desenvolvidas com base na escravidão e a disseminação de pouco mais da metade da população escrava (53%) em unidades produtivas que contavam no máximo vinte escravos (Schwartz, 1988SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 357-368). Ao comparar os índices da Bahia com estudos sobre São Paulo e Minas Gerais, Schwartz concluiu que “a escravidão no Brasil se distribuía largamente entre a população livre, constituindo a base econômica da sociedade como um todo e em uma forma extremamente comum e acessível” (Schwartz, 1988SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 357-368).

Em segundo, destacam-se diversos estudos sobre a formação de ambientes rurais que demonstraram o caráter mercantil e a significativa presença de mão de obra escrava na produção agrária voltada para o mercado interno. O estudo de Guimarães e Reis (1986GUIMARÃES, Carlos Magno; REIS, Liana M. Agricultura e escravidão em Minas Gerais (1700-1750). Revista do Departamento de História da UFMG (Belo Horizonte). v. 1, n. 2, p. 7-36, 1986.), entre outros, revelou a importância do setor de produção agrícola de alimentos em Minas Gerais, em concomitância com a produção aurífera. Atividade que absorvia terras e escravos, destinados exclusivamente a estas atividades. Especificamente sobre a pecuária, há décadas já se demonstrou a presença de escravos africanos nas fazendas de gado (Gorender, 1978GORENDER, Jacob.O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978., p. 414-422; Mott, 1985MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985., p. 71-92; Silva, 1997SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil colônia. Estudos Sociedade e Agricultura (Seropédica). v. 5, n. 1, p. 119-156, 1997., p. 131-137), embora em diversas regiões e períodos seja possível perceber o predomínio do emprego do trabalho de indígenas, inclusive com a escravização (Santos, 2017SANTOS, Márcio Roberto A. dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano. São Paulo: Edusp, 2017., p. 235; Rolim, 2012ROLIM, Leonardo Candido. “No tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690-1802). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012., p. 62-63).

Em terceiro, destacam-se os estudos sobre as elites mercantis. Caio Prado Jr. já havia notado sua existência e importância. O autor afirmou que “o comércio é uma classe credora, que financia a grande lavoura. Senhores de engenho, lavradores, fazendeiros são seus devedores” que “oficialmente também, o negociante [...] está em pé de igualdade com as demais classes possuidoras”; percebeu a presença de “mercadores nas câmaras das vilas e cidades” e o fato de formarem “uma categoria reconhecida e oficialmente prezada, e nesta qualidade participavam dos conselhos da administração pública”, assim, “nas Mesas de Inspeção, criadas em 1751 [...] para superintenderem o comércio do açúcar e do tabaco, entravam os negociantes com dois representantes, ao lado de dois senhores de engenho e outros dois lavradores de tabaco”; ainda destacou o fato de o grupo mercantil ser formado fundamentalmente por “nativos do Reino” (Prado Jr., 1994PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 295-297).

Diversos estudos destacaram a ascensão e consolidação de elites mercantis - justamente no período que recortamos para a nossa análise, as últimas décadas do século XVII e a primeira metade do século XVIII - na Bahia (Flory, Smith, 1978FLORY, Rae; SMITH, David Grant. Bahian merchants and planters in the seventeenth centuries. Hispanic American Historical Review(Durham). v. 58, n. 4, p. 571-594, 1978.), Pernambuco (Mello, 1995MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos: nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 123-187), Rio de Janeiro (Sampaio, 2001SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001., p. 139-263). Essas elites controlavam o tráfego de escravos e de diversas outras mercadorias para o interior da América portuguesa, além de se beneficiarem de contratos para cobrança de tributos sobre a produção e circulação de mercadorias. Fragoso explorou minuciosamente a maneira como as cadeias de crédito e endividamento ligaram diversas regiões do Brasil colonial e possibilitaram que “a acumulação gerada no mercado interno, fosse, na verdade, em grande medida, retida por poucos negociantes abastados” (Fragoso, 1998FRAGOSO, João. Conexões atlânticas, capitalismo, rentismo e sobrenatural. In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer et al. Ramificações ultramarinas: sociedades comerciais no âmbito do Atlântico luso. Rio de Janeiro: Mauá; Faperj, 2017, p. 9-24., p. 255). Para Fragoso essa “hegemonia do capital mercantil” é constituída graças ao mosaico de espaços não capitalistas de exploração econômica, não suscetíveis às variações e não dependentes do mercado externo (Fragoso, 1998FRAGOSO, João. Conexões atlânticas, capitalismo, rentismo e sobrenatural. In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer et al. Ramificações ultramarinas: sociedades comerciais no âmbito do Atlântico luso. Rio de Janeiro: Mauá; Faperj, 2017, p. 9-24., p. 258-266). Mesmo a produção para exportação reiterava esses mecanismos, uma vez que a elite mercantil era a fonte de crédito para as grandes plantações e o mosaico de formas não capitalistas de produção abastecia os grandes latifúndios de alimentos e de mão de obra a valores pouco afetados pelas dinâmicas do mercado externo (Fragoso, Florentino, 2001FRAGOSO, João. Conexões atlânticas, capitalismo, rentismo e sobrenatural. In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer et al. Ramificações ultramarinas: sociedades comerciais no âmbito do Atlântico luso. Rio de Janeiro: Mauá; Faperj, 2017, p. 9-24., p. 48-49). Para completar a caracterização desse capital mercantil como não capitalista, demonstra-se como as “famílias de negociantes (seja na primeira ou na segunda geração) abandonam o comércio para se limitarem a seus afazeres agroescravistas” (Fragoso, 1998FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998., p. 368).

Concordamos com a advertência, recentemente reiterada por Fragoso (2017FRAGOSO, João. Conexões atlânticas, capitalismo, rentismo e sobrenatural. In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer et al. Ramificações ultramarinas: sociedades comerciais no âmbito do Atlântico luso. Rio de Janeiro: Mauá; Faperj, 2017, p. 9-24., p. 11) de que o sistema econômico que integrou o Brasil ao mercado atlântico é mais complexo do que “simples jogos de mercados”, mas a implicação lógica deste posicionamento não é o de negar os vínculos entre a esfera mercantil e a economia-mundo (Marquese, 2013MARQUESE, Rafael de Bivar. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira. Revista de História (São Paulo). n. 169, p. 223-253, 2013., p. 245-246; Arruda, 2001ARRUDA, José J. de Andrade. O sentido da Colônia: revisitando a crise do Antigo Sistema Colonial no Brasil (1780-1830). In: TANGARRINHA, José(org.). História de Portugal. Bauru: Edusc; Unesp; Instituto Camões, 2001. p. 169-187., p. 171-172). Defendemos a ideia de que essas elites mercantis coloniais configuravam um elo (nada simples) na rede de trocas que integrava um amplo conjunto, ou um mosaico formado por diversos espaços, à economia-mundo europeia (Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo , v. 3: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 285-286) por meio de redes interimperiais e transnacionais de comércio, formada por comunidades mercantis cosmopolitas (Elliott, 2006ELLIOTT, John H. Imperios del mundo Atlántico: España y Gran Bretaña en América, 1492-1830.Tradução de Marta Balcells. Madrid: Taurus, 2006., p. 331-351). Embora as elites coloniais pudessem dominar o transporte de escravos entre África e Brasil, os negócios do tráfico eram bem mais complexos e inseriram essas elites em relações de comércio vinculadas à metrópole e que integravam holandeses, ingleses e franceses em redes que interligavam diversos pontos da economia-mundo (Verger, 2002VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos (séculos XVII-XIX). 4ª ed. Salvador: Corrupio, 2002., p. 27-71; Acioli, Menz, 2008ACIOLI, Gustavo; MENZ, Maximiliano M. Resgate de mercadorias: uma análise comparada do tráfico luso-brasileiro de escravos em Angola e na Costa da Mina (século XVIII). Afro-Ásia (Salvador). n. 37, p. 43-73, 2008.). O ideal aristocrático dessas elites, sua inserção em uma sociedade de Antigo Regime, a pessoalidade nos tratos mercantis, o investimento em atividades menos lucrativas ou em bens que conferiam distinção social, entre outras características apontadas, são antes constituintes da natureza do capitalismo e expressão da sua vinculação à sociedade do que um atestado de “não capitalista” (Arrighi, 1996ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro poder e as origens do nosso tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 183).

Entre, de um lado, a negação dos vínculos entre a economia colonial e a formação do capitalismo e, de outro, as abordagens que tendem a simplificar ou a reduzir a complexidade das atividades econômicas coloniais, há um imenso campo de possibilidades. Propomos uma tentativa de síntese entre as abordagens expostas nos parágrafos anteriores e a perspectiva de Braudel sobre as dinâmicas do capitalismo no âmbito de uma economia-mundo europeia. Braudel explora a forma como o “jogo das trocas” coloca em rede os mais diversos mercados e espaços geográficos, desde os ambientes coloniais até os centros financeiros europeus. Explorar a perspectiva braudeliana sobre a relação entre o capital e a economia de mercado implica investigar a maneira como o capital penetra, estimula ou direciona as mais diversas atividades econômicas que integram as cadeias mercantis (Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo , v. 3: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009., v.2, p. 285-286; Arruda, 2001ARRUDA, José J. de Andrade. O sentido da Colônia: revisitando a crise do Antigo Sistema Colonial no Brasil (1780-1830). In: TANGARRINHA, José(org.). História de Portugal. Bauru: Edusc; Unesp; Instituto Camões, 2001. p. 169-187., p. 171-172).

Autores de referência para os estudos do “capitalismo histórico” reconhecem que há espaço para debate, questionamento e aprofundamento de seus modelos de análise (Wallerstein, 2011WALLERSTEIN, Immanuel. El moderno sistema mundial, v. 1: la agricultura capitalista y los origenes de la economia-mundo europea en el siglo XVI. México: Siglo XXI, 2011., p. xvii-xviii; Arrighi, 1996ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro poder e as origens do nosso tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 26). Arrighi, em particular, afirma ter explorado apenas “a lógica da camada superior” e reconhece que “daí decorre que nossa construção é parcial e meio inconclusiva” (Arrighi, 1996ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro poder e as origens do nosso tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 26)

A estratégia para colocarmos nossa proposta de análise à prova é estudar os meandros da espacialização de ambientes coloniais - tais como roças, fazendas, engenhos, currais, pousos, portos, arraiais, vilas, caminhos etc. As espacializações coloniais emergiram estreitamente vinculadas, como iremos demonstrar, às dinâmicas da economia-mundo europeia, mas não podem ser reduzidas a elas. Neste sentido a dimensão ambiental integra as espacializações não como efeito das dinâmicas do capitalismo, mas nas intersecções, complexas e contraditórias, entre as diversas dimensões que compõem a totalidade (Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo , v. 3: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009., v. III, p. 7-9) do processo de formação de ambientes coloniais na América.

As fazendas de gado nas Capitanias do Norte e no Ceará Grande

A colonização nas Capitanias do Norte do Brasil colonial (Alveal, Dias, 2000ALVEAL, Carmen, DIAS, Tiago Alves. Por uma história das Capitanias do Norte: questões conceituais e historiográficas sobre uma região colonial no Brasil. História Unicap(Recife). v.7, n.13, p. 10-32, 2020., p. 13), após a expulsão dos neerlandeses, na segunda metade do século XVII e primeiros anos do século XVIII, avança rapidamente com o gado bovino, um agente dinâmico do espalhamento para o interior do continente da biota portátil (Crosby, 2012CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 88) que os europeus trouxeram para a América. O gado ocupou terras consideradas não aptas para o plantio da principal commodity da América portuguesa, a cana-de-açúcar. Tal avanço para o interior, nas décadas finais do século XVII, se deu através das rotas há muito investigadas por Capistrano de Abreu, os sertões de dentro e os sertões de fora, estes com as investidas a partir do Recife acompanhando rotas mais próximas ao litoral até alcançar e adentrar a ribeira do Jaguaribe, na Capitania do Ceará Grande, aqueles com as investidas a partir do São Francisco até alcançar o rio Parnaíba, no Piauí (Abreu, 1907ALVEAL, Carmen. Transformações na legislação sesmarial, processos de demarcação e manutenção de privilégios nas terras das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Estudos Históricos (Rio de Janeiro). v. 28, n. 56, p. 247-263, 2015., p.131).

Alfred Crosby argumentou sobre a criação de neoeuropas por parte dos colonos europeus e toda uma “biota portátil”, que consistia em animais de pequeno porte como porcos e ovelhas, de grande porte como o gado vacum e cavalar, além de roedores, plantas e germes. Espécies invasoras extremamente competitivas, que, no Novo Mundo, por conta dos processos evolucionários distintos, encontraram facilidade de expansão e uma excelente adaptação. Nesse processo, religavam com violência o que as fissuras da Pangeia haviam apartado há milhões de anos. Crosby, entretanto, afirmava que as maiores transformações e as maiores adaptações na implantação e transplantação dessas colônias neoeuropeias havia se dado nas regiões temperadas, com condições de latitudes e temperaturas semelhantes às da Europa. Desse modo, as regiões tropicais permaneceriam como “fáceis de alcançar, mas difíceis de agarrar”, e, malgrado o domínio político dos colonizadores nessas “zonas tropicas”,2 2 Obviamente o “Trópico” é também uma construção histórica e a sua relação como constituinte e determinante de aspectos ambientais é construída no tempo. Para uma crítica a essas definições em Crosby, ver Braga (2019). permaneceriam estas regiões predominantemente marcadas pela presença dos grupos autóctones ou mestiços (Crosby, 2012CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 139). Elinor Melville se contrapõe a Crosby mostrando como o vale del Mezquital, ao norte de México-Tenochtitlan, sofreu uma verdadeira revolução ambiental por conta das escolhas feitas pelos espanhóis no século XVI. Primeiro, com a mortandade causada pelas sucessivas epidemias até a ocorrência da “grande Cocolistle”3 3 A Grande Cocolistle foi o nome atribuído a uma série de epidemias que devastou a Nova Espanha principalmente entre 1576 e 1581, depois seguida por ressurgências epidêmicas a cada década até a população indígena estabilizar-se por volta de 1621. na década de 1570, concorrendo para a drástica queda demográfica dos grupos otomis, posteriormente, com a substituição das práticas horticultoras intensivas pela presença sem precedentes de um número exacerbado de ovelhas e a instalação das estâncias espanholas no vale. Melville salienta que quando os ungulados4 4 Os ungulados são uma superordem de animais com casco, que compreendem cavalos, bois, ovelhas e porcos, aqui, uma característica que destacamos é sua grande capacidade de adaptação e velocidade de reprodução, diante de uma vegetação e ambiente que lhes sejam favoráveis. Melville destaca que num primeiro estágio diante de tal cenário favorável a taxa de mortes é baixa, novas gerações se reproduzem e a curva de população cresce rapidamente, pressionando o ambiente. se depararam com as excelentes pastagens, se reproduziram de forma acelerada e, como consequência, se deu uma rápida erosão dos solos e a substituição de uma paisagem, antes caracterizada pela horticultura, pelo avanço de espécies vegetais como cactos, magueis e mesquites, características do semiárido. Por conseguinte, estava montado o cenário da estigmatização das paisagens dos vales do norte do México como semiáridos quase que desérticos, e de seus habitantes, como os otomis e os chichimecas, como selvagens caçadores e coletores (Melville, 1997MELVILLE, Elinor. A plague of sheep: environmental consequences of the conquest of Mexico. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 24-59). Nas Capitanias do Norte, como no norte do México, as escolhas efetuadas pelos portugueses seguramente tiveram consequências ambientais pouco mensuradas. O gado adentrou facilmente através dos leitos e dos vales dos rios, resultando em lutas entre os indígenas e os adventícios na construção de um novo espaço para a colonização, as ribeiras, ricas em vegetações propícias à sua alimentação, principalmente espécies coriáceas presentes nos descampados. Igualmente, as áreas de salinas e barreiros de sal, os lambedouros, auxiliaram na escolha do modelo empreendido pelos portugueses. O gado passou a ser criado em espaços abertos e vastas regiões num modelo de pecuária extensiva que, afastado das zonas litorâneas, criou caminhos e veredas entre dois grandes espaços da América portuguesa, o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará. Se possuímos ainda poucos elementos para mensurar os impactos da pecuária extensiva na transformação ambiental da paisagem da Caatinga, podemos, entretanto, atentar para as impressões de uma série de cronistas e agentes coloniais sobre algumas características adversas desse ambiente no princípio da colonização. Em finais do século XVI, Gabriel Soares de Souza, ao referir-se ao umbu, relata: “dá-se esta fruta ordinariamente pelo sertão, no matto que se chama cátinga, que está pelo menos afastado vinte léguas do mar, que é terra seca de pouca água onde a natureza criou a estas árvores para remédio da sede que os índios ali passam (Souza, 1925SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado da terra e da gente do Brasil. Rio de Janeiro: J. Leite, 1925., p. 212-213). O padre Luís Figueira, que em 1607 integrou uma frustrada expedição, asseverou que o caminho por terra que do Ceará alcançaria o Maranhão era o “mais estéril [...] que há no estado do Brasil.”5 5 Carta de Luiz Figueira. Relação do Maranhão. Revista do Instituto do Ceará (Fortaleza). Ano XVII, p. 139, 1903. Não apenas as adversidades foram marcantes. As expectativas de encontrar “outro Peru” nos sertões da América portuguesa pululavam nas mentes e na imaginação geográfica (Holanda, 2000HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000., p. 102). À medida que o conhecimento prático sobre as terras interiores avançou, desfizeram-se os sonhos de riquezas minerais e os contatos com os indígenas ensejaram projetos de escravização e de descimento dos povos que percorriam a região. Projetos frustrados pelas derrotas frente aos indígenas, ainda na primeira década do século XVII. Entre os anos 1637 e 1654, durante a presença neerlandesa na capitania, a costa do Ceará Grande foi novamente alvo de expedições. Investigou-se o sal, o âmbar e, posteriormente, principalmente depois de 1649, houve também algumas malsucedidas incursões em busca de prata, além da exploração do trabalho indígena por parte dos batavos. Mas seriam os anos após a expulsão neerlandesa e todo o rearranjo post-bellum que impulsionaria o avanço para novas terras para exploração de outras atividades para além da cana-de-açúcar (Mello, 2007MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 317-373; Silva, 2003SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2003., p. 216).6 6 Oficialmente a capitania do Ceará foi parte do Estado do Maranhão até 1656, quando nos rearranjos de recolonização no post-bellum passou a fazer parte do Estado do Brasil, sendo então anos depois subordinada à capitania de Pernambuco como capitania anexa. O estatuto de capitania autônoma acabou ocorrendo somente em janeiro de 1799, então, com a possibilidade de comércio direto com o reino. Assim, por um lado, as impressões e os relatos compõem uma visão parcial sobre o mundo natural, eivada pelos interesses da colonização, a classificação do ambiente em razão das riquezas e potencialidades a serem exploradas. Por outro lado, os historiadores ambientais lidam com a difícil tarefa de observar o que Donald Worster denominou como os três “níveis” da história ambiental, quais sejam, uma história dos ambientes naturais, de sua formação propriamente dita, uma história da técnica, dos modos de interagir e se relacionar com a base material desse mesmo mundo natural e, por fim, uma história das ideias, valores, ideologias e percepções sobre o mundo natural (Worster, 1991WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos (Rio de Janeiro). v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991., p. 202). É certo que estes níveis estão intimamente conectados. Desse modo, o fazer-se dessa história ambiental é ancorado em uma perspectiva dialética atenta à inseparabilidade de construtos como “natureza” e “cultura”, e não deixa de refletir sobre as bases materiais de um mundo não humano, nem sempre apreensível pelas ideias e percepções das sociedades humanas.

A constituição de imensos rebanhos de gado e de um complexo produtivo, comercial e de transformação nas Capitanias do Norte se deu graças a capacidade de adaptação e mobilidade de um agente não humano, o gado bovino, em um ambiente muito diferente do seu habitat de origem. O gado passou a compor paisagens, outrora forjadas nas dinâmicas e transformações oriundas das interações dos grupos indígenas com o ambiente, marcando o meio ambiente com suas agências, historicidade e necessidades, moldando e atribuindo nomes e sentidos aos animais, plantas e acidentes naturais (Cronon, 1983CRONON, William. Changes in the land: indians, colonists and the ecology of New England. New York: Hill and Land, 1983., p. 25-40). Mormente, nos interiores das Capitanias do Norte essas paisagens tinham as marcas históricas dos grupos Macro-Gê, denominados genericamente de tapuias. O regime de chuvas - marcado por um período fortemente chuvoso nos primeiros meses do ano e um longo período de estiagem, durando normalmente oito meses - fez com que nos últimos 10 mil anos, no final do Pleistoceno, a densa floresta tropical cedesse lugar a uma vegetação adaptada: as folhas caem nos meses secos, e em seu lugar, para evitar perda de umidade, coevoluíram espécimes com espinhos, as xerófitas, e espécies coriáceas, como xique-xiques, mandacarus e cactos, além dos umbuzeiros, juazeiros e angicos. Assim, no lugar da floresta densa, de bosques, característica de outras florestas tropicais na América do Sul, emergiu um tipo de floresta caracterizada como tropical seca sazonal, principalmente arbustiva-arbórea. Nessa formação histórico-geológica, os solos possuem base cristalina, quase 70% deste espaço de formação do período Proterozoico, e de bacias sedimentares, estes correspondendo por volta de 30%, com formação entre os períodos Paleozoico e Mesozoico (Silva, Leal, Tabarelli, 2017SILVA, José Maria Cardoso; LEAL, Inara R.; TABARELLI, Marcelo (eds.). Caatinga: the largest tropical dry forest region in South America. Cham, Switzerland: Springer, 2017., p. 6-7). Os grupos indígenas chamaram essa floresta de Caatinga, a mata branca, justamente pelo aspecto esbranquiçado e ressequido que apresentava no período das estiagens. É certo que há relatos sobre as migrações dos grupos indígenas do tronco Macro-Gê para o litoral e para as serras úmidas nos períodos de estiagem antes do adensamento do processo de colonização (Studart Filho, 1963STUDART FILHO, Carlos. Os aborígenes do Ceará. Revista do Instituto do Ceará. (Fortaleza). ano LXXVI, p. 153-217, 1963.), mas tais relatos sobre os efeitos mais violentos das estiagens se adensam principalmente em fins do século XVIII, com o progressivo aumento das fazendas de gado e o crescimento da população, onde se registram secas que chegaram a durar mais do que os oitos meses habituais, e chegou-se a registrar nos relatos coloniais períodos de seca de até três anos, como as dos anos 1777-1779 e 1791-1793, dizimando parcela considerável do gado, causando mortes e impelindo migrações. (Alves, 1953ALVES, Joaquim. História das secas: séculos XVII a XIX. Edição fac-símile. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, [1953]2003., p. 30).7 7 Sobre a seca de 1791, ver também Felipe (2020). Posteriormente, na década de 1840, as percepções na transformação radical da paisagem e a sensibilidade na mudança no clima da Província passam a ser objeto de estudo de intelectuais do Império, como Thomaz Pompeu de Souza. Ver Oliveira (2020).

Embora a criação fosse extensiva na América portuguesa, com o gado avançando pelas ribeiras e vales férteis, eram necessárias intervenções humanas que acarretavam transformações importantes no ambiente. O terreno para o gado era preparado retirando-se a vegetação considerada sem valor e não palatável, deixando somente as árvores de ramas comestíveis e semeando capins e leguminosas, esse processo era executado com uso sistemático do fogo, esperando que as cinzas deixadas enriquecessem o solo, entretanto, com isso o solo ficava cada vez mais exposto, provocando maior possibilidade de erosão e reduzindo sua permeabilidade (Felipe, 2020FELIPE, Mariely de Albuquerque Mello. “E a natureza os entregou aos jogos dos tempos”: a seca de 1791 na Capitania de Pernambuco e suas anexas. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2020., p. 52).8 8 Ver também Duque (2004). No início do século XIX, o ilustrado Antonio José da Silva Paulet, ajudante de ordens do governador Manuel Inácio de Sampaio, apontava as atividades humanas nas raízes das mudanças climáticas da capitania, afirmava que “a nova face, que a população e a cultura tem dado ao terreno; o mal entendido sistema em agricultura de derrubar todas as matas para semearem novos terrenos, aonde há lavouras [...] tem dissipado muitos princípios de humidade e acarretado uma quase não interrompida série de anos secos” (Paulet, 1898PAULET, Antonio José da Silva. Descrição abreviada da Capitania do Ceará. Revista do Instituto do Ceará (Fortaleza). Ano XII, p. 5-33, 1898.).9 9 Esse era um aspecto de preocupação difundido entre os ilustrados coimbrães em finais do século XVIII, principalmente a partir da teoria do dessecamento, desenvolvida a partir de observações de Stephen Halles, Buffon e Duhamel du Monceau. Ver Pádua (2000). O avanço do gado partiu principalmente do Estado do Brasil, afastando-se das zonas açucareiras e ocupando o sertão entre os rios Parnaíba e São Francisco. Já em 1687, quando o sertanista João Velho do Valle é incumbido pelo capitão-mor Gomes Freire de Andrade de encontrar um caminho para a Bahia, caminho este que finalmente ligaria o Estado do Maranhão e Grão-Pará ao Estado do Brasil - o sertanista relata que havia encontrado grupos indígenas que se afastavam daquelas paragens dos sertões do Estado do Brasil por conta do avanço sistemático do gado e da criação dos currais nas ribeiras que adentravam aqueles sertões.10 10 1687 - Outubro, 11, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei Dom Pedro II sobre o governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, a dar conta do descobrimento, por João Velho do vale dos rios Munim e Itapecuru. Anexo: carta e relação da jornada. AHU ACL CU 009 cx. 7, doc. 781. Em 1711, o jesuíta André João Antonil, relatava que

os rios de Pernambuco que, por terem juntos de si pastos competentes estão povoados com gado (fora o rio Preto, o rio Guaraíra, o rio Iguassu, o rio Corrente, o rio Grarignae, a Lagoa Alegre, e o Rio de São Francisco, da banda do Norte) são o rio de Cabaços, o Rio de São Miguel, as duas Alagoas com o Rio do Porto do Calvo, o da Parahiba, o dos Kariris, o do Açu, o do Podi, o de Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajaú, o Jacaré, o Kanindé, o de Parnahiba, o das Pedras, o dos Camarões e o Piagui. Os currais desta parte hão de passar de oitocentas léguas; e de todos estes vão boiadas para o Recife, e Olinda, e suas vilas, e para o fornecimento das fábricas dos engenhos desde o Rio de São Francisco até ao Rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piauí até a barra de Iguassú, e de Pernagna, o rio Preto; porque as boiadas destes rios vão quase todas para a Bahia, por lhes ficar melhor caminho pelas Jacobinas, por onde passam, e descansam as que às vezes vem de mais longe. Mas quando nos caminhos, se acham pastos, porque não faltaram as chuvas, em menos de três meses chegam as boiadas à Bahia, que vem dos currais mais distantes. Porém se por causa da seca forem obrigados a parar com o gado nas Jacobinas: aí o vendem os que o levam, e aí descansa seis, sete e oito meses, até poder ir à cidade” (Antonil, 1837ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brazil por suas drogas e minas. Rio de Janeiro: Souza e Companhia, 1837., p. 199).

Antonil estimou que somente nas proximidades do rio Iguassú haveria mais de trinta mil cabeças de gado. Nos sertões da Bahia, “se tem por certo, que passam de meio milhão, e mais de oitocentos mil hão de ser as da parte de Pernambuco”. Complementando que

assim como há currais no território da Bahia, e de Pernambuco, e de outras capitanias, de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e mil cabeças: assim há fazendas, a quem pertencem tantos currais, que chegam a ter seis mil, oito mil, dez mil, quinze mil, e mais de vinte mil cabeças de gado; donde se tiram cada ano muitas boiadas, conforme os tempos são mais ou menos favoráveis à parição, e multiplicação do mesmo gado, e aos pastos, assim nos sítios como também nos caminhos” (Antonil, 1837ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brazil por suas drogas e minas. Rio de Janeiro: Souza e Companhia, 1837., p. 200).

Na Capitania do Ceará Grande, esse avanço sistemático para o interior pode ser percebido por meio dos pedidos de sesmarias, que ocorrem na década de 1680, quando Manuel Abreu Soares e seus filhos, todos residentes na Capitania do Rio Grande, afirmam que “os mais deles tinham servido a Sua Alteza em paz e em guerra com pessoas e fazendas e eram pessoas beneméritas de cabedal para povoarem e descobrirem terras assim no sertão como a beira mar da dita capitania”, afirmam ainda que “nas ultimas povoações do Rio Grande para a banda do norte havia um rio que se chamava Jaguaribe o qual nunca fora povoado de brancos e dado caso que algumas pessoas o pudessem não fizeram as povoações no termo da lei e estão as terras devolutas” e pediram que “lhes fizesse mercê dar de sesmaria [...] cinco léguas de terra em quadra para cada um dos companheiros, a qual terra se começa a medir e encher na barra do rio para o sertão tanto de uma e de outra parte do dito rio enchendo se os lugares as léguas e mais léguas donde a terra fosse capaz de ser povoada”.11 11 Registo da data e sesmaria de Manoel de Abreu Soares e seus companheiros, a primeira do Jaguaribe da barra ao Boqueirão da Cunha, concedido pelo mestre do Campo e Governador geral do Brazil, Roque da Costa Barreto, em 23 de janeiro de 1681, às folhas 57v. do Livro 1 das sesmarias, 3º da collecção. In: Arquivo Público do Estado do Ceará (org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. Fortaleza: Expressão Gráfica; Wave Media, 2006. 2 CD-ROM. (Coleção Manuscritos/Arquivo Público do Ceará, v. 3.) Em finais do XVII, a Coroa portuguesa criou uma série de mecanismos em relação às distribuições de sesmarias, como o estabelecimento do tamanho, a cobrança de foros anuais, a necessidade de demarcação por parte dos sesmeiros e ainda distribuiu alguns privilégios, como a ausência da necessidade de pagamento de foros por parte de integrantes dos grupos de paulistas que haviam lutado na Guerra dos Bárbaros contra os grupos indígenas (Alveal, 2015ALVEAL, Carmen, DIAS, Tiago Alves. Por uma história das Capitanias do Norte: questões conceituais e historiográficas sobre uma região colonial no Brasil. História Unicap(Recife). v.7, n.13, p. 10-32, 2020., p. 256-257).

Eram quinze os requerentes “companheiros” de Abreu Soares. Nos anos subsequentes, já na primeira década do século XVIII, os requerimentos de sesmarias já miravam as nascentes do rio Jaguaribe, no chamado Sertão dos Inhamuns, nas proximidades dos sertões da Capitania do Piauí. Em 1708 o capitão Antonio Esteves, e um companheiro, requerem três léguas de terras,

posto que tem seus gados assim vacuns como cavalares sem terem terras em que os possa acomodar e como de presente estão descoberto e estão devolutas e desaproveitadas como seja um riacho que está de parte de dentro dos boqueirões dos Inhamuns e porque está a mão direita indo da ribeira de baixo para cima das ilhargas da data do capitão Nicolau Fiuza as quais terras querem eles suplicantes povoar e cultivar com os ditos seus gados e mais criações para aumento dos dízimos.12 12 Data de sesmaria do Capitão Antonio Esteves e seu companheiro, de três léguas de terra em um riacho que fica dentro dos boquerones das Inhaúmas, nas ilhargas da data do capitão Nicolau Lopes Fiuza, concedida pelo capitão-mor Gabriel da Silva Lago, em 31 de janeiro de 1708, às folhas 90v à 92 do Livro das sesmarias. In: Arquivo Público do Estado do Ceará (2006).

Anos depois, terras - com recursos de água e pastagens naturais para as criações - continuavam a ser demandadas. Na transformação das espacialidades e paisagens indígenas em um novo espaço, constituído pelos caminhos do gado, emergem a organização por meio das ribeiras. No registro da data de Cosme Ferreira e Francisco Ferreira, os suplicantes afirmam que possuem gados vacuns e cavalares,

e não tem terras em que os podem criar; e porque de presente tem descoberto no pé de uma serra que faz entre o riacho do Bastião e dos Camaleões nas cabeceiras de uns riachos aos quais o gentio chama em sua língua a um Loucuncelle e ao outro Nanraniuou, e os brancos o riacho dos Tabuleiros e o outro das Pitombeiras nos quais há uns olhos de águas e alguns poços pelo pé da dita serra abaixo, e pelo riacho dos Tabuleiros acima, e pelo das Pitombeiras abaixo buscando o norte.13 13 Data e sesmaria de Cosme Ferreira e seu companheiro, de três léguas de terra em um olho dágua que fica entre os riachos dos Taboleiros e das Pitombeiras, concedida pelo capitão-mor Manoel da Fonseca Jayme, em 6 de setembro de 1717, às folhas 60v. à 61 do Livro das sesmarias In: Arquivo Público do Estado do Ceará (2006).

A sobreposição dos nomes de rios atribuídos pelos “gentios” e pelos “brancos” longe de demonstrar uma coexistência pacífica, ilustram os embates entre colonizadores e indígenas pelos recursos naqueles sertões. Por volta de 1704, João de Lencastre, governador de Pernambuco, observava a necessidade da criação do cargo de coronel de cavalaria da ribeira do Jaguaribe, investindo para tanto Gregório de Brito Freire. O coronel iria cobrir com suas atividades uma área desde o rio Choró até o rio Assu, já na Capitania do Rio Grande. Lencastre argumentava que isso se fazia necessário para o melhor aumento das freguesias do sertão e diante dos relatos que ouvia sobre os embates e confrontos com os Paiacu, afirmava que isso se fazia uma necessidade porque esta área era a mais “invadida e assaltada do gentio bárbaro que por aqueles contornos o habita”.14 14 Ant. A 1704, Outubro, 23, São José de Ribamar requerimento do coronel Gregório de Brito Freire ao juiz ordinário do Ceará, Domingos Pereira da Silva a pedir alvará de folha e que os escrivães falem de todas as culpas que dele tiverem. Anexo certidões. AHU_ACL_CU_006, Cx.1, Doc. 51.

O processo de espacialização de ambientes coloniais nos sertões após a Guerra dos Bárbaros, sob a pata do boi e com a força militar, resultou na fundação de duas vilas na Capitania do Ceará Grande. A primeira, a Vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, em 1738, localizada no entroncamento dos caminhos do gado, num importante afluente do rio Jaguaribe no sul da capitania, o rio Salgado, e a segunda, a fundação da Vila de Santa Cruz do Aracati, na barra do rio Jaguaribe, ancorada como “porto do sertão”, fundada em 1748. Em meados do século XVIII, a Capitania do Ceará Grande registrava 61.408 habitantes e computava 972 fazendas de gado (Menezes, [1766MENEZES, João César de. Ideia da população da Capitania de Pernambuco e suas anexas, p. 57, [1766]. In: ALVES, Joaquim. História das secas (séculos XVI e XIX). Edição fac-símile. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2003.] 2003MENZ, Maximiliano. Entre impérios. São Paulo: Alameda, 2009.).

O gado, os mercados e as fronteiras do comércio

Até a década de 1740, o gado dos sertões do Ceará precisava necessariamente percorrer um longo caminho até o litoral de Pernambuco ou para a região do vale do São Francisco para ser comercializado (Rolim, 2012ROLIM, Leonardo Candido. “No tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690-1802). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012., p. 68; Nogueira, 2021NOGUEIRA, Gabriel Parente. Às margens do império: a pecuária das carnes salgadas e o comércio nos portos da porção oriental da costa leste-oeste da América portuguesa nas dinâmicas de um império em movimento (século XVIII). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2021., p. 236). Nessas praças, o gado do Ceará misturava-se ao das demais Capitanias do Norte, compondo os circuitos mercantis sertanejos que ligavam diversas regiões criadoras (Jucá Neto, 2007JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. A urbanização do Ceará setecentista: as vilas de nossa senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Tese (Doutorado em Arquitetura), Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2007., p. 182).

No final do século XVII e princípio do século XVIII, a demanda das Minas Gerais desestabilizou o abastecimento de carne nos ambientes coloniais de vilas litorâneas, em especial Salvador (Santos, 2017SANTOS, Márcio Roberto A. dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano. São Paulo: Edusp, 2017., p. 104-105) e fomentou a expansão de currais já mais próximos da região das Minas, ao longo de toda a primeira metade do século XVIII. Já havia fazendas de gado no vale de Paracatu e do rio São Francisco mesmo antes dos descobrimentos auríferos (Santos, 2017SANTOS, Márcio Roberto A. dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano. São Paulo: Edusp, 2017., p. 63; Carrara, 2007aCARRARA, Ângelo Alves. Antes das Minas Gerais: conquista e ocupação dos sertões mineiros. Varia Historia(Belo Horizonte). v. 23, n. 38, p. 574-596, 2007a.). Muitas delas fundadas justamente por paulistas que lutaram nas guerras contra os indígenas (Santos, 2017SANTOS, Márcio Roberto A. dos. Rios e fronteiras: conquista e ocupação do sertão baiano. São Paulo: Edusp, 2017., p. 59-93). Além do gado em pé, entravam nas Minas, pela estrada da Bahia e do Rio São Francisco, as fazendas sertanejas, “sal dos currais, ceras, solas, sabão, couros e peixes” (Carrara, 2007bCARRARA, Ângelo Alves. Minas e currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007b., p. 126).

A partir da década de 1740, no Aracati, se estabelece um porto que passa a dirigir boa parte do comércio da Capitania do Ceará. Ali era feita a salga e a produção da carne-seca com uso de trabalho indígena, a princípio, e posteriormente também com trabalho escravo africano (Rolim, 2012ROLIM, Leonardo Candido. “No tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690-1802). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2012., p. 124; Oliveira, 2006OLIVEIRA, Almir Leal de. A dimensão Atlântica da empresa comercial do charque: o Ceará e as dinâmicas do mercado colonial (1767-1783). In: Anais Eletrônicos do I Encontro Nordestino de História Colonial: Territorialidades, poder e identidades na América Portuguesa, séculos XV a XVIII. Universidade Federal da Paraíba, 2006.). Seja por Aracati, via navegação de cabotagem, ou pelos sertões das Capitanias do Norte, a criação de gado no Ceará interligava-se com o comércio interior e com os principais portos exportadores, com destaque para Recife (Dias, 2018DIAS, Tiago Alves. A família Costa Monteiro, os couros do sertão e as escalas mercantis no séc. XVIII.Revista Espacialidades(Natal). v. 12, n. 1, p. 1-36, 2018., p. 8; Melo, 2017MELO, Felipe Souza. O negócio de Pernambuco: financiamento, comércio e transporte na segunda metade do século XVIII. Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 588).

Além da carne, o couro encontrou uma demanda em expansão no mercado colonial e no mercado europeu. Antonil estimou que, para o começo do século XVIII, foram enviados para Portugal 110 mil meias peles, 50 mil pela Bahia, 40 mil por Pernambuco e 20 mil pelo Rio de Janeiro (Antonil, 1837ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Rio de Janeiro: M. Orosco, 1907., p. 205). Já a partir de 1713 os registros de exportação apontam para a regularidade e a crescente importância do couro para exportação (Pinto, 1979PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979., p. 205-211). A frota da Bahia de 1745 levou 74.920 meios de sola e 11.925 couros em cabelo (Carrara, 2009CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVIII: Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2009., p. 95). Nas frotas de 1749 registrou-se a exportação, pelo porto do Recife, da significativa quantia de 98.226 meios de sola, 37.360 unidades de couro curtido (“de atanado”), 16.551 couros “em cabelo” e do Rio de Janeiro saíram 41.305 unidades de “couros de cabelo” e 4.726 meios de sola (Arruda, 2001ARRUDA, José J. de Andrade. O sentido da Colônia: revisitando a crise do Antigo Sistema Colonial no Brasil (1780-1830). In: TANGARRINHA, José(org.). História de Portugal. Bauru: Edusc; Unesp; Instituto Camões, 2001. p. 169-187., p. 199-200). Para além da quantidade, os dados mais detalhados de 1749 permitem perceber o tratamento que o couro recebia antes de ser exportado por Recife o que implicou significativos investimentos em capital fixo e mão de obra (Dias, 2018DIAS, Tiago Alves. A família Costa Monteiro, os couros do sertão e as escalas mercantis no séc. XVIII.Revista Espacialidades(Natal). v. 12, n. 1, p. 1-36, 2018., p. 19). Dados de 1776 registram a exportação de 229.065 couros de Portugal para outros mercados dos quais se destaca o italiano com 151.649 para Gênova, 46.329 para a Holanda e 26.720 para a França e apenas com 1.023 para a Inglaterra (Pinto, 1979PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979., p. 207).

O couro também foi componente importante para a exportação de tabaco. O tabaco era vendido em rolos, cada um deles recoberto por uma meia pele de gado. Por volta de 1710, uma meia pele custava 1.300 réis, correspondendo a cerca de 18% do custo de produção do rolo de tabaco de oito arrobas. As cifras do comércio do tabaco são bem conhecidas (Nardi, 1996NARDI, Jean-Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial: lavoura, comércio e administração.São Paulo: Brasiliense, 1996., p. 108-109). Mais de 9,7 milhões de arrobas de tabaco foram exportadas na primeira metade do século XVIII, cerca de 2,4 milhões entre a Bahia e a Costa da Mina e 7,3 milhões entre Brasil e Portugal. Portanto, mais de 1,2 milhão de meias peles foram destinadas apenas para esse comércio (Nardi, 1996NARDI, Jean-Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial: lavoura, comércio e administração.São Paulo: Brasiliense, 1996., p. 366-394).

A vinculação da pecuária às demandas do mercado europeu, seja na exportação direta de derivados, seja servindo para sustentar a produção de ouro, açúcar e tabaco é, portanto, evidente. Poderíamos, assim, alinhar nossa interpretação à noção de commodity frontier, de Jason W. Moore (2000MOORE, Jason W. Sugar and the expansion of the early modern world economy: commodity frontiers, ecological transformations, and industrialization. Review: Fernand Braudel Center (Binghampton, NY). v. 23, n.3, p. 409-433, 2000.), e aplicada pelo autor para analisar a indústria da cana-de-açúcar nas Américas, sua cadeia produtiva e os profundos impactos ambientais, entre os séculos XVI e XIX. Moore parte da noção de commodity chain (Hopkins, Wallerstein, 1986HOPKINS, Terence; WALLERSTEIN, Immanuel. Commodity chains in the World Economies, prior 1800. Review: Fernand Braudel Center (Binghampton, NY). v. 10, n.1, p. 157-170, 1986.) e da perspectiva do sistema-mundo capitalista (Wallerstein, 2011). Ao analisar a “cadeia do açúcar” (Moore, 2000MOORE, Jason W. Sugar and the expansion of the early modern world economy: commodity frontiers, ecological transformations, and industrialization. Review: Fernand Braudel Center (Binghampton, NY). v. 23, n.3, p. 409-433, 2000., p. 410) o autor cita a criação de gado como parte do “complexo de atividades econômicas” que a fronteira do açúcar colocou em movimento (Moore, 2000MOORE, Jason W. Sugar and the expansion of the early modern world economy: commodity frontiers, ecological transformations, and industrialization. Review: Fernand Braudel Center (Binghampton, NY). v. 23, n.3, p. 409-433, 2000., p. 427). Por analogia, podemos pressupor o mesmo lugar para o gado na fronteira do ouro ou mesmo na fronteira do tabaco. Poderíamos ainda defender a relativa autonomia da fronteira do gado e sua posição de destaque para além de compor, de forma subsidiária ou acessória, algum “complexo”. É possível expor de forma gráfica como a expansão da fronteira do gado na América garantiu o crescimento da produção de derivados de couro na Europa15 15 Embora tenhamos mostrado alguns dados de exportação para a primeira metade do XVIII, é na segunda metade que os vínculos entre a manufatura/indústria europeia de derivados de couro e a pecuária no Brasil colonial ficam mais evidentes. Das exportações de Pernambuco (por onde escoava grande parte da produção do Ceará) é possível perceber que, durante a década de 1770, a preferência pelo couro cru no mercado internacional faz despencar a exportação de couro curtido (Melo, 2017, p. 184, 427-428). Além do mercado italiano, principal destino das reexportações portuguesas, tanto a demanda inglesa quanto a francesa eram supridas pelos couros da América do Sul. No caso da França, entre 1787-89, 61% do couro importado vinha da América, 13% diretamente das colônias francesas e 48% de reexportações portuguesas (24%) e espanholas (24%), enquanto o abastecimento inglês era garantido graças ao comércio britânico com Buenos Aires (Riello, 2008, p. 87). Esses dados, já das últimas décadas do século XVIII, incorporam a vertiginosa evolução dos rebanhos vacuns no Rio Grande e a integração da região à economia platina (Menz, 2009, p. 167-173). e, portanto, que, mais uma vez, a periferia arcou com os custos ambientais da indústria capitalista, demonstrando que “periferialização” não é marcada apenas pela desigualdade nas trocas comerciais e na divisão internacional do trabalho, mas também pela “troca ecológica desigual” (Moore, 2000MOORE, Jason W. Sugar and the expansion of the early modern world economy: commodity frontiers, ecological transformations, and industrialization. Review: Fernand Braudel Center (Binghampton, NY). v. 23, n.3, p. 409-433, 2000., p. 426).

Escolhemos, contudo, um caminho diverso para prosseguir a análise sobre as relações entre a pecuária e as dinâmicas do capitalismo. Nossa proposta é compreender o impressionante avanço dos currais como expressão da continentalidade que as redes de comércio assumiram no período entre as últimas décadas do século XVII e as primeiras décadas do século XVIII. A apreensão dessa continentalidade exige estudos mais detidos sobre a formação de ambientes rurais e suas relações com o comércio nas mais diversas escalas e, principalmente, atenção às formações sociais e às relações de poder estruturadoras da economia colonial.

O estudo do período entre as últimas décadas do século XVII e o final da Guerra dos Sete Anos (1763) é fundamental para compreender o declínio holandês e o triunfo inglês na luta pelo posto de centro financeiro hegemônico da economia capitalista (Wallerstein, 1996WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno, v. 2: o mercantilismo e a consolidação da economia-mundo europeia, 1600-1750. Porto: Afrontamento, 1996., p. 76-77; 276-277; Braudel, 2009BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo , v. 3: O tempo do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 246-251; Arrighi, 1996ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro poder e as origens do nosso tempo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., p. 147). Arrighi destaca a dimensão territorial do “terceiro ciclo sistêmico de acumulação”, o britânico: “a supremacia inglesa baseou-se numa síntese harmoniosa da lógica territorialista de poder (TDT’) com a capitalista”. Portugal e seus territórios coloniais estiveram profundamente integrados ao processo de ascensão do “império comercial inglês” (Arrighi, 1996, p. 203-204). Como contextualizou Novais, a consolidação da Restauração portuguesa de 1640 dependeu de alianças com a Inglaterra que custaram “enormes vantagens comerciais aos ingleses, por proteção política” (Novais, 1995, p. 23). O Tratado de Methuen, em 1703, foi apenas um capítulo de uma história de acordos comerciais que datava desde 1642 (Novais, 1995, p. 22-43). A “matriz comercial” para a supremacia inglesa foi justamente o comércio atlântico (Arrighi, 1996, p. 203). Os tratados com Portugal, as vitórias contra os holandeses, o domínio de territórios coloniais na América e de rotas do tráfico de escravos, permitiram aos ingleses instituírem as bases para a “‘expansão terrestre continental’ dos dois séculos seguintes e a incorporação da América, Índia, Austrália e África na economia mundial capitalista centrada nos britânicos” (p. 203).

O caráter continental que as conquistas portuguesas adquiriram na América na primeira metade do século XVIII estão, portanto, em sincronia com a intensificação das relações de comércio, da colonização e da escravidão por parte das principais potências em ascensão no período, a Inglaterra e a França. A expansão da pecuária no Brasil colonial articulou-se a esse quadro, mas não respondeu espasmodicamente às dinâmicas externas. Neste ponto fazem-se pertinentes as críticas de Dale Tomich, ao afirmar “Wallerstein propõe um ‘sistema histórico’ que não tem história” (Tomich, 2011TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p. 36). Tomich propõe uma abordagem que explore “a totalidade complexa, multidimensional e estruturada das relações” de modo a revelar a “heterogeneidade espacial e temporal da economia mundial capitalista” (Tomich, 2011TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p. 36). Como afirmou o próprio Arrighi, “a lógica da camada superior tem apenas uma relativa autonomia das lógicas das camadas inferiores e só pode ser plenamente compreendida em relação a essas outras lógicas”. Tratar da totalidade do movimento “exige que tornemos a descer para explorar as camadas inferiores, da economia de mercado e da vida material, com os conhecimentos e indagações trazidas da viagem que este livro empreende pela camada superior” (Arrighi, 1996, p. 26). Descer às camadas da vida material e das trocas mercantis significa explorar a natureza da espacialização da economia-mundo e compreender a complexidade que amarra a diversidade de espaços e tempos às malhas das cadeias mercantis. A ponderação de Arrighi nos permite pensar em uma ideia de totalidade diferente da empregada pelos autores anteriormente citados. Trata-se da totalidade expressa nos estudos de Fernand Braudel que, mesmo ao privilegiar o estudo da economia, o fez de forma a integrá-la às diversas dimensões da experiência humana e à variedade de escalas e dinâmicas espaciais e temporais.

Pecuária, continentalidade da exploração capitalista e meio ambiente

A expansão da pecuária na Capitania do Ceará Grande ganha profundidade histórica quando relacionada às dinâmicas da economia-mundo europeia. O estudo sobre a continentalidade que a exploração colonial e mercantil assumiu entre 1680 e 1750 pode revelar elementos pouco explorados sobre a dimensão ambiental da história da expansão da economia-mundo europeia para o interior do continente americano. O avanço da pecuária no período contribuiu decisivamente para instituir as bases para a contínua incorporação de amplos territórios aos domínios coloniais e às redes mercantis. O comércio de derivados bovinos interligou uma diversidade de espaços-tempo, mas a dimensão ambiental do avanço do gado no interior do Brasil colonial não pode ser plenamente compreendida apenas à luz da demanda de mercadorias para o mercado europeu.

Nas regiões fronteiriças da bacia do Prata, Tape e Guairá, as missões jesuíticas introduziram a criação de gado na região. O gado se espalhou antes mesmo do desmantelamento das missões jesuíticas na margem oriental do rio Uruguai na primeira metade do século XVII, em meio às dinâmicas do tráfico de escravos indígenas (Alencastro, 2000ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 194; Monteiro, 1994MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo.São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 68-79). Uma imensa quantidade de gado bovino se tornou parte da paisagem e o que era inicialmente uma criação doméstica tornou-se selvagem e se espalhou pelos campos de pastagens naturais. A fundação da Colônia de Sacramento, em 1680, justificada por fatores geopolíticos e comerciais, também foi uma empresa animada pela “exploração dos rebanhos cimarrones” (Moraes, 2011MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no longo século XVI. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2011., p. 393-394). A Coroa portuguesa não demorou a implantar o quinto dos couros, em 1699 (Prado, 2002PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América portuguesa.Porto Alegre: Fumproarte, 2002., p. 48-49; Hameister, 2002HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c. 1727-1763). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002., p. 115). Do “tempo das coureadas” entre 1680 e 1720, passou-se para o “tempo das condutas das tropas” com a interligação, por terra, de Sacramento à Vila de Laguna (Hameister, 2002HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c. 1727-1763). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002., p. 129-130) e o estabelecimento da criação de gado no interior do “Continente do Rio Grande”, o que provocou a migração de lagunenses para a região dos Campos de Viamão, a partir de 1730 (Kuhn, 2006KUHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa, século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.). Aos interesses das elites locais, dos comerciantes (autorizados pelos contratos e os contrabandistas ingleses e franceses que atuavam na região) somava-se à geopolítica portuguesa (Prado, 2002, p. 40-41) e ao fato das disputas entre os impérios coloniais na América terem adquirido nítida continentalidade no período entre 1680 e 1750 (Rosa, 2003ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de. A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003, p. 11-49., p. 45). O conhecimento sobre o ambiente era fundamental para todos esses interesses. É exemplar o fato de um dos principais sujeitos envolvidos com o comércio de couros na região, Cristóvão Pereira de Abreu, ter passado aos “padres matemáticos” incumbidos de mapear a América Portuguesa (Almeida, 2001ALMEIDA, André Ferrand de. A formação do espaço brasileiro e o projeto do novo atlas da América Portuguesa. (1713-1748). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.), o roteiro do caminho entre Sacramento e Laguna, com a descrição dos acidentes geográficos, das distâncias e dos conhecimentos necessários para trilhar o caminho (Hameister, 2002HAMEISTER, Martha Daisson. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c. 1727-1763). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002., p. 130; Prado 2002, p. 50-51).

No centro da América do Sul, nas Minas de Cuiabá, os indígenas Mbayá-Guaykuru foram, entre 1720 e 1737, uma importante fonte de abastecimento de gado e de cavalos para a região. Os Guaykuru dominaram um extenso território ao norte de Assunção e ao sul de Cuiabá. Este domínio ocorreu graças ao sucesso dos Guaykuru, já em meados do século XVII, em suas investidas contra os ambientes coloniais espanhóis, incluindo as missões jesuíticas da região, no mesmo período atacadas pelas expedições paulistas de escravização indígena. A incorporação do gado e dos cavalos foi fundamental para que os Guaykuru configurassem entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do XVIII uma territorialidade que fez frente às investidas espanholas e portuguesas (Bastos, 1979BASTOS, Uacury Ribeiro de A. Expansão territorial do Brasil Colônia no Vale do Paraguai (1767-1801). São Paulo: Edusc, 1979.). Com o domínio sobre a região, na qual viviam outros povos indígenas, os Mbayá-Guaykuru, “renomearam a geografia do país”. Nas “terras mbaiânicas”, por exemplo, os rios Corrientes e Piray passaram a ser Apa e Aquidabam; o distrito que correspondia Pitun, PirayItati, passou a ser Agaguizo; o monte de San Fernando ganhou o nome de Itapucú-Guazú; o rio Guasarapo tornou-se Guache (Costa, 1999COSTA, Maria de Fátima. História de um país inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII.São Paulo: Estação Liberdade; Cosmos, 1999., p. 37). Em diversos documentos e mapas da primeira metade do século XVIII a extensão dos territórios dominados pelos Guaykuru, “dos índios cavaleiros” é representada.16 16 Como no mapa “Parte do gouerno de Sam Paullo e parte dos dominios da Coroa de Espanha”, ca. 1740. Biblioteca Nacional (Brasil) digital. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart325602/cart325602.html. Acesso em: 02/02/2022. Para os Guaykuru, no período em questão, o gado “vacum e cavalar” serviu em muitos momentos para virar ao seu favor a balança das relações de força com os colonizadores espanhóis e portugueses.

A expansão da pecuária reencontraria os Guaykuru, mas por outros caminhos. Com a conclusão do caminho de terra entre Cuiabá e Goiás, em 1737, a criação de gado avançou na direção norte-sul invadindo o bioma Pantanal. Em 1741, o ouvidor de Cuiabá se queixa do fato de muitos colonos estabelecerem fazendas de gado com mais de vinte léguas sem oficializarem as posses por meio de cartas de sesmarias.17 17 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 09-02-1741. Ms. Microfilme, rolo 3,, doc. 153. AHU - NDIHR/UFMT. Na segunda metade do século XVIII a expansão da exploração da erva-mate e das fazendas de gado, tanto na parte espanhola quanto na portuguesa, passaram a exercer pressão sobre os Guykuru, que se envolveram em um longo processo de conflitos e negociações diante das políticas de atração tanto para as povoações ‘mistas’ dos portugueses, Albuquerque e Vila Maria, quanto “para as reduções que os espanhóis mantinham separadas de Villa Real de la Concepción” (Carvalho, 2014CARVALHO, Francismar Alex L. de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014., p. 25-26). Entre tratados de paz, negociações, relações comerciais e conflitos, os Guaykuru seguiram suas incursões tomando gado e cavalos às estâncias durante toda a segunda metade do século XVIII (Carvalho, 2014CARVALHO, Francismar Alex L. de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014., p. 184-190).

No Pantanal, o gado também passou por uma “história natural” que forjou uma nova raça, o bovino pantaneiro, ou tucura, formada aos longos dos séculos XVI e XVIII por meio de um lento “processo de adaptação evolutiva da ação da seleção natural sobre os bovinos de origem ibérica” (Mazza et al., 1994MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino pantaneiro. Corumbá: Embrapa/Cpap, 1994., p. 47). No período entre as últimas décadas do século XIX e começo de século XX, os zebuínos introduzidos, em razão do seu maior valor comercial, gradativamente suplantaram e levaram o gado tucura à categoria de vulnerável na classificação de risco de extinção (Mazza et al., 1994MAZZA, Maria Cristina Medeiros et al. Etnobiologia e conservação do bovino pantaneiro. Corumbá: Embrapa/Cpap, 1994., p. 47).

Tanto na Capitania do Ceará Grande, como em outras regiões citadas, os documentos, na maioria das vezes, não explicitam a integração da pecuária às dinâmicas do comércio europeu. Compreender essa integração exige que percebamos que o couro é produzido por meio da espacialização de relações de poder, de interesses das elites locais, da geopolítica da Coroa portuguesa, nas dinâmicas dos conflitos e alianças com as sociedades indígenas, na exploração de diversas formas de trabalho (com destaque para a escravidão africana e indígena) e, evidentemente, em ligação com os diversos mercados locais que interligam as regiões interiores entre si e com as praças comerciais do litoral. A perspectiva que apresentamos neste artigo permitiu ainda fazer interagir, dialeticamente, os três níveis da história ambiental propostos por Donald Worster (1991WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos (Rio de Janeiro). v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991., p. 202), uma vez que a cultura geográfica, as paisagens e as dinâmicas ambientais são vistas de maneira integrada. Acreditamos, portanto, que tanto a história econômica quanto a história ambiental ganham em diversidade e profundidade dos seus objetos de estudo com a percepção da continentalidade que a integração da América portuguesa à economia-mundo europeia adquiriu entre 1680 e 1750.

Referências

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  • 1
    Capitanias do Norte era como eram chamadas as capitanias do Estado do Brasil situadas ao norte de Pernambuco: Paraíba, Rio Grande e Ceará. Em meados do século XVII estas foram incorporadas ao governo de Pernambuco com o estatuto de capitanias anexas.
  • 2
    Obviamente o “Trópico” é também uma construção histórica e a sua relação como constituinte e determinante de aspectos ambientais é construída no tempo. Para uma crítica a essas definições em Crosby, ver Braga (2019BRAGA, Daniel Dutra Coelho Colonialidade nos trópicos: a América Meridional e as viagens de volta ao mundo da Marinha francesa (c. 1815-c. 1852). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.).
  • 3
    A Grande Cocolistle foi o nome atribuído a uma série de epidemias que devastou a Nova Espanha principalmente entre 1576 e 1581, depois seguida por ressurgências epidêmicas a cada década até a população indígena estabilizar-se por volta de 1621.
  • 4
    Os ungulados são uma superordem de animais com casco, que compreendem cavalos, bois, ovelhas e porcos, aqui, uma característica que destacamos é sua grande capacidade de adaptação e velocidade de reprodução, diante de uma vegetação e ambiente que lhes sejam favoráveis. Melville destaca que num primeiro estágio diante de tal cenário favorável a taxa de mortes é baixa, novas gerações se reproduzem e a curva de população cresce rapidamente, pressionando o ambiente.
  • 5
    Carta de Luiz Figueira. Relação do Maranhão. Revista do Instituto do Ceará (Fortaleza). Ano XVII, p. 139, 1903.
  • 6
    Oficialmente a capitania do Ceará foi parte do Estado do Maranhão até 1656, quando nos rearranjos de recolonização no post-bellum passou a fazer parte do Estado do Brasil, sendo então anos depois subordinada à capitania de Pernambuco como capitania anexa. O estatuto de capitania autônoma acabou ocorrendo somente em janeiro de 1799, então, com a possibilidade de comércio direto com o reino.
  • 7
    Sobre a seca de 1791, ver também Felipe (2020). Posteriormente, na década de 1840, as percepções na transformação radical da paisagem e a sensibilidade na mudança no clima da Província passam a ser objeto de estudo de intelectuais do Império, como Thomaz Pompeu de Souza. Ver Oliveira (2020OLIVEIRA, Gabriel Pereira de. “O céu está muito alto e o imperador muito longe”: as matas da Caatinga e a questão climática no Império brasileiro (1825-1884). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2020.).
  • 8
    Ver também Duque (2004)DUQUE, José Guimarães. O Nordeste e as lavouras xerófilas. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2004..
  • 9
    Esse era um aspecto de preocupação difundido entre os ilustrados coimbrães em finais do século XVIII, principalmente a partir da teoria do dessecamento, desenvolvida a partir de observações de Stephen Halles, Buffon e Duhamel du Monceau. Ver Pádua (2000).
  • 10
    1687 - Outubro, 11, Lisboa. Consulta do Conselho Ultramarino ao rei Dom Pedro II sobre o governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, a dar conta do descobrimento, por João Velho do vale dos rios Munim e Itapecuru. Anexo: carta e relação da jornada. AHU ACL CU 009 cx. 7, doc. 781.
  • 11
    Registo da data e sesmaria de Manoel de Abreu Soares e seus companheiros, a primeira do Jaguaribe da barra ao Boqueirão da Cunha, concedido pelo mestre do Campo e Governador geral do Brazil, Roque da Costa Barreto, em 23 de janeiro de 1681, às folhas 57v. do Livro 1 das sesmarias, 3º da collecção. In: Arquivo Público do Estado do Ceará (org.). Datas de sesmarias do Ceará e índices das datas de sesmarias: digitalização dos volumes editados nos anos de 1920 a 1928. Fortaleza: Expressão Gráfica; Wave Media, 2006. 2 CD-ROM. (Coleção Manuscritos/Arquivo Público do Ceará, v. 3.)
  • 12
    Data de sesmaria do Capitão Antonio Esteves e seu companheiro, de três léguas de terra em um riacho que fica dentro dos boquerones das Inhaúmas, nas ilhargas da data do capitão Nicolau Lopes Fiuza, concedida pelo capitão-mor Gabriel da Silva Lago, em 31 de janeiro de 1708, às folhas 90v à 92 do Livro das sesmarias. In: Arquivo Público do Estado do Ceará (2006).
  • 13
    Data e sesmaria de Cosme Ferreira e seu companheiro, de três léguas de terra em um olho dágua que fica entre os riachos dos Taboleiros e das Pitombeiras, concedida pelo capitão-mor Manoel da Fonseca Jayme, em 6 de setembro de 1717, às folhas 60v. à 61 do Livro das sesmarias In: Arquivo Público do Estado do Ceará (2006).
  • 14
    Ant. A 1704, Outubro, 23, São José de Ribamar requerimento do coronel Gregório de Brito Freire ao juiz ordinário do Ceará, Domingos Pereira da Silva a pedir alvará de folha e que os escrivães falem de todas as culpas que dele tiverem. Anexo certidões. AHU_ACL_CU_006, Cx.1, Doc. 51.
  • 15
    Embora tenhamos mostrado alguns dados de exportação para a primeira metade do XVIII, é na segunda metade que os vínculos entre a manufatura/indústria europeia de derivados de couro e a pecuária no Brasil colonial ficam mais evidentes. Das exportações de Pernambuco (por onde escoava grande parte da produção do Ceará) é possível perceber que, durante a década de 1770, a preferência pelo couro cru no mercado internacional faz despencar a exportação de couro curtido (Melo, 2017, p. 184, 427-428). Além do mercado italiano, principal destino das reexportações portuguesas, tanto a demanda inglesa quanto a francesa eram supridas pelos couros da América do Sul. No caso da França, entre 1787-89, 61% do couro importado vinha da América, 13% diretamente das colônias francesas e 48% de reexportações portuguesas (24%) e espanholas (24%), enquanto o abastecimento inglês era garantido graças ao comércio britânico com Buenos Aires (Riello, 2008, p. 87). Esses dados, já das últimas décadas do século XVIII, incorporam a vertiginosa evolução dos rebanhos vacuns no Rio Grande e a integração da região à economia platina (Menz, 2009, p. 167-173).
  • 16
    Como no mapa “Parte do gouerno de Sam Paullo e parte dos dominios da Coroa de Espanha”, ca. 1740. Biblioteca Nacional (Brasil) digital. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart325602/cart325602.html. Acesso em: 02/02/2022.
  • 17
    CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 09-02-1741. Ms. Microfilme, rolo 3,, doc. 153. AHU - NDIHR/UFMT.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
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