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A construção de um improvável herói esportivo: o capoeira Cyriaco (1909-1925)

The construction of an unlikely sporting hero: The “capoeira” Cyriaco (1909-1925)

Resumo:

Uma das características mais marcantes do esporte moderno é a capacidade de transformar alguns atletas em heróis. Trata-se de um fenômeno no qual os meios de comunicação desempenham um papel fundamental na construção de uma aura mítica em torno de determinados esportistas. Sendo assim, o presente artigo busca analisar como a imprensa escrita brasileira elaborou a imagem heroica em torno da figura do capoeira Cyriaco, brasileiro que, em maio de 1909, se tornou famoso por derrotar um japonês praticante de jiu-jitsu até então apontado como invencível. As fontes selecionadas para alcançar tal intento foram localizadas na imprensa escrita, entre os anos de 1909 a 1925. Como conclusão aponta-se que Cyriaco foi um dos primeiros heróis esportivos brasileiros oriundo das classes populares alçado a um símbolo da nascente república, que carecia de ídolos que fossem identificados com a emergente nação mestiça

Palavras-chave:
Capoeira; Herói; Esporte

Abstract:

One of the most striking features of modern sport is the ability to transform some athletes into heroes. It is a phenomenon in which the media play a fundamental role in building a mythical aura around certain athletes. Therefore, this article seeks to analyze how the Brazilian written press elaborated the heroic image around the figure of the capoeira Cyriaco, brazilian who, in May 1909, became famous for defeating a Japanese jiu-jitsu practitioner who until then was seen as invincible. The sources selected to achieve this aim were located in the written press, between the years 1909 to 1925. As a conclusion, it is pointed out that Cyriaco was one of the first Brazilian sports heroes from the popular classes who was elevated to a symbol of the nascent republic that lacked idols that could be identified with the emerging mestizo nation.

Keywords:
Capoeira; Hero; Sport

Introdução

A riqueza do esporte baseia-se em sua capacidade de inflamar o coração de milhares de pessoas a ponto de alguns atletas se transformarem em heróis (Duret, 1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.; Vigarello, 2002; Fortune, 2022FORTUNE, Yohann. Emil Zatopek in the pantheon of long-distance running: The creation of a sporting myth.Sport in History, v. 42, n. 2, p. 257-279, 2022.). Mais do que um simples gasto energético, o desempenho dos heróis esportivos oferece um ponto de vista especifico sobre a vida em sociedade. No entanto, esses personagens incomuns muitas vezes são desconsiderados como objeto de pesquisa histórica. No Brasil são praticamente inexistentes produções que versem sobre os primeiros heróis esportivos brasileiros, que surgiram nas duas primeiras décadas do século XX (Silva et al., 2021SILVA, Marcelo Moraes e; POLYCARPE, Cyril; MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro; QUITZAU, Amgarten Quitzau. Primeras aventuras deportivas internacionales brasileñas. Cuadernos del Claeh, v. 40, n. 114, p. 67-84, 2021.; 2023SILVA, Marcelo Moraes e; POLYCARPE, Cyril; MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro; QUITZAU, Amgarten Quitzau. L’idéalisation des Jeux Olympiques par la presse brésilienne (1896-1920). Amerika: Mémoires, Identités, Territoires, n. 25, p. 1-14, 2023.).

A capoeira foi uma das práticas que forneceu um desses improváveis ídolos, visto que, em maio de 1909, Cyriaco Francisco da Silva foi elevado à figura de herói. O capoeira negro ganhou destaque ao vencer um lutador japonês de jiu-jitsu chamado Sada Miyako, que até aquele momento era considerado invencível (Cairus, 2011CAIRUS, José. Modernization, nationalism and the elite: The genesis of Brazilian jiu-jitsu, 1905-1920.Tempo e Argumento, v. 3, n. 2, p. 100-121, 2011.; 2012; Assunção, 2014ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Ringue ou academia? A emergência dos estilos modernos da capoeira e seu contexto global. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 21, n. 1, p. 135-150, 2014.; Santos Júnior, 2022SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes. A volta ao mundo do Benjamin Constant: por uma história global do jiu-jitsu. Iberoamericana, v. 22, n. 80, p. 163-183, 2022.; Lise et al., 2023LISE, Riqueldi Straub; SILVA, Marcelo Moraes e; LOUDCHER, Jean-François; CAPRARO, André Mendes. From “maltas” to regulated practice: “Capoeira” in the newspapers of the city of Rio de Janeiro (1901-1919). Sport in History, v. 43, n. 4, p. 387-409, 2023.). Cabe lembrar que a capoeira, nesse período, era marginalizada e sofria perseguição pelas autoridades republicanas (Reis, 1993REIS, Letícia Vidor de Souza. A capoeira: de “doença moral” à “gymnástica nacional”.Revista de História, n. 129-131, p. 221-235, 1993.; Soares, 1999SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999.; Downey, 2002DOWNEY, Greg. Domesticating an urban menace: Reforming capoeira as a Brazilian national sport.The International Journal of the History of Sport, v. 19, n. 4, p. 1-32, 2002.; Assunção, 2008; 2014; Gaudin, 2008GAUDIN, Benoit. Capoeira et nationalisme (1890-1937). Ciência & Trópico, v. 32, n. 2, p. 323-342, 2008.).

Lise et al. (2023LISE, Riqueldi Straub; SILVA, Marcelo Moraes e; LOUDCHER, Jean-François; CAPRARO, André Mendes. From “maltas” to regulated practice: “Capoeira” in the newspapers of the city of Rio de Janeiro (1901-1919). Sport in History, v. 43, n. 4, p. 387-409, 2023.) salientam que, na busca por aceitação social, a capoeira passou por um processo de institucionalização, que procurou criar em torno da prática uma série de dispositivos que visavam afastá-la de uma imagem de criminalidade, aproximando-a de uma cultura mais formal, regulamentada e moralmente aceita. Esse processo ocorreu concomitantemente a toda a repressão sofrida pela capoeira, pois mesmo sendo perseguida ela também foi celebrada por alguns intelectuais (Soares, 1999SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999.; Assunção, 2008ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destreza do mestiço” à “ginástica nacional”: narrativas nacionalistas sobre a capoeira. Antropolítica, v. 24, n. 1, p. 19-40, 2008.; Gaudin, 2008GAUDIN, Benoit. Capoeira et nationalisme (1890-1937). Ciência & Trópico, v. 32, n. 2, p. 323-342, 2008.). Sendo assim, a capoeira precisava sair das páginas policiais e incorporar códigos específicos da modernidade, e foi nesse cenário que surgiu a figura do negro Cyriaco.

A partir da vitória contra o japonês, Cyriaco foi considerado um herói, emergindo desse fato uma série de publicações na imprensa brasileira sobre seu triunfo. Nesse sentido, o presente artigo pretende investigar quais foram as retóricas usadas para a construção da figura do herói em torno de Cyriaco. Para alcançar tal intento foram utilizadas como fontes notícias vinculadas pela imprensa entre 1909 e 1925. Vale ressaltar, conforme aponta Sevcenko (2003SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), que os jornais e revistas eram, nesse período, o principal meio de comunicação em massa do país, com um papel que ultrapassava a ideia de mero repórter de fragmentos do cotidiano e assumia a posição de agente influente nas relações sociais.1 1 Vigarello (2002), ao analisar o contexto francês, indica que no processo de criação dos heróis esportivos a imprensa escrita desempenhou um papel fundamental, pois foi através dos seus textos que personagens esportivos passaram a ser celebrados por um público mais amplo. Foi através das páginas destas publicações que Cyriaco foi elevado à figura de herói, tendo seus feitos disseminados para toda a sociedade brasileira.

O jiu-jitsu não era invencível: o triunfo do negro Cyriaco

Na virada do século XIX para o XX o Japão obteve diversos êxitos militares. Derrotou a China no conflito de 1894-1895, anexou Taiwan em 1895 e superou os russos na guerra de 1904-1905 (Dezem, 2005DEZEM, Rogério.Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.). Freyre (2004FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global, 2004.), ao comentar o conflito, indica que inicialmente as simpatias brasileiras se dividiram, porém, com o desenrolar da guerra, os japoneses foram conquistando maior admiração. Foi nesse contexto que a Marinha nipônica se tornou exemplo para sua congênere brasileira.

Sendo assim, a Marinha nacional contratou em 1908 dois instrutores japoneses para ensinar jiu-jitsu aos seus marujos. Foi devido ao recrutamento dos nipônicos que os membros da armada tiveram a oportunidade de ter um contato maior com a luta asiática, visto que ela já era conhecida no seio do oficialato desde 1905, quando o livro de Irving Hancock, Japanese physical training, foi traduzido para o português por dois oficiais da Marinha brasileira (Cairus, 2011CAIRUS, José. Modernization, nationalism and the elite: The genesis of Brazilian jiu-jitsu, 1905-1920.Tempo e Argumento, v. 3, n. 2, p. 100-121, 2011.; 2012; Santos Júnior, 2022SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes. A volta ao mundo do Benjamin Constant: por uma história global do jiu-jitsu. Iberoamericana, v. 22, n. 80, p. 163-183, 2022.).

O interesse em utilizar o jiu-jitsu na formação do marinheiro tinha o intuito de modernizar a armada, pois, conforme Almeida (2010ALMEIDA, Silvia Capanema. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições.Estudos Históricos, v. 23, p. 147-169, 2010.), Cairus (2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.) e Cancella (2014CANCELLA, Karina. O esporte e as Forças Armadas na Primeira República: das atividades gymnasticas às participações em eventos esportivos internacionais. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2014.), a partir desse momento os exercícios físicos, os sistemas de ginástica e educação física, bem como as práticas esportivas, começaram a ser levadas em conta pela Marinha. Foi nessa ambiência que a cúpula da armada, na figura de seu ministro, o almirante Alexandrino de Alencar, começou a olhar com certo interesse para a arte marcial japonesa.

Torna-se necessário lembrar que a capoeira possuía um vínculo com a Marinha desde a primeira metade do século XX, afinal, a armada, em diversos momentos, obtinha seus marujos de forma forçada entre segmentos marginalizados da sociedade brasileira (Almeida, 2010ALMEIDA, Silvia Capanema. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições.Estudos Históricos, v. 23, p. 147-169, 2010.). Vários destes indivíduos eram capoeiras que acabaram desempenhando papel fundamental nos conflitos nos quais o Império brasileiro se envolveu durante o século XIX, principalmente na Guerra do Paraguai. Todavia, apesar de terem sido protagonistas nestes confrontos, eles não eram vistos com bons olhos por parte do oficialato, pois diversas insubordinações e insurreições eram cometidas por este grupo de marinheiros (Reis, 1993REIS, Letícia Vidor de Souza. A capoeira: de “doença moral” à “gymnástica nacional”.Revista de História, n. 129-131, p. 221-235, 1993.; Downey, 2002DOWNEY, Greg. Domesticating an urban menace: Reforming capoeira as a Brazilian national sport.The International Journal of the History of Sport, v. 19, n. 4, p. 1-32, 2002.). Por esse motivo não foi aleatório o interesse pelo jiu-jitsu, já que a arte marcial asiática passou a ser considerada uma opção moderna à capoeira.

Cairus (2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.), afirma que essa forma de pensamento se materializou na tradução que os militares brasileiros realizaram da obra de Hancock. Tanto que os oficiais afirmaram no prefácio da edição vertida ao português que o ­jiu-jitsu poderia ser a contraposição civilizada à violenta capoeira. Os tradutores lamentavam que a prática brasileira tivesse sido mal-empregada pelas maltas que, nas suas palavras, eram “profissionais da desordem, armados de facas e navalhas” (Hancock, 1905HANCOCK, H. Irving. Educação physica japoneza. Rio de Janeiro: Companhia Typographica do Brazil, 1905., p. VI-VII). Essa menção não era algo destituído de sentido. Evidenciava os posicionamentos contrários à capoeira existentes no oficialato da armada, que passava a visualizar no jiu-jitsu um modelo de educação física mais adequado à lógica modernizadora almejada pela instituição (Cairus, 2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.; Santos Júnior, 2022SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes. A volta ao mundo do Benjamin Constant: por uma história global do jiu-jitsu. Iberoamericana, v. 22, n. 80, p. 163-183, 2022.). Porém, esta incorporação gerou tensões, ressoando inclusive num segmento mais nacionalista da imprensa brasileira:

Figura 1
Caricatura de um marujo brasileiro negro e capoeira.

A imagem publicada na revista Careta colocou em destaque um marinheiro negro que se utilizou do seguinte jogo de palavras: “- Quá jitsu nem jitsi. O inimigo é no gume da navaia ô na capoeira nacioná. Deixa vim os chineis do Japão!” O texto escrito em linguagem informal se referia debochadamente aos japoneses, visto que o personagem falava que era para deixar vir os “chineses do Japão”, afinal, iriam mostrar a superioridade da capoeira. Publicações como essa deixavam claro que existia um segmento da sociedade que considerava que a capoeira poderia ser utilizada na educação física da população. A prática, com as devidas adaptações, poderia se transformar na verdadeira “ginástica nacional” (Reis, 1993REIS, Letícia Vidor de Souza. A capoeira: de “doença moral” à “gymnástica nacional”.Revista de História, n. 129-131, p. 221-235, 1993.; Downey, 2002DOWNEY, Greg. Domesticating an urban menace: Reforming capoeira as a Brazilian national sport.The International Journal of the History of Sport, v. 19, n. 4, p. 1-32, 2002.; Assunção, 2008ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destreza do mestiço” à “ginástica nacional”: narrativas nacionalistas sobre a capoeira. Antropolítica, v. 24, n. 1, p. 19-40, 2008.; Gaudin, 2008GAUDIN, Benoit. Capoeira et nationalisme (1890-1937). Ciência & Trópico, v. 32, n. 2, p. 323-342, 2008.).

Apesar de todas as críticas ao jiu-jitsu não se pode considerar essa incorporação apenas como mais uma das “estrangeirices”, que, conforme aponta Freyre (2004FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global, 2004.), foram corriqueiras no Brasil no início do período republicano. Cairus (2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.) e Santos Júnior (2022SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes. A volta ao mundo do Benjamin Constant: por uma história global do jiu-jitsu. Iberoamericana, v. 22, n. 80, p. 163-183, 2022.), indicam que a utilização da arte marcial asiática na Marinha brasileira não estava deslocada do seu tempo. Os autores argumentam que essa proposta estava inserida em um movimento global, mais amplo, que ganhou ênfase no Brasil com o advento da República, visto que a reestruturação da armada buscava introduzir elementos formativos inspirados em modelos considerados mais modernos.

O primeiro instrutor de jiu-jitsu na Marinha foi Sada Miyako. Contudo, suas atividades não ficaram restritas ao ensino da arte marcial à marinhagem, visto que ele realizou diversas apresentações de jiu-jitsu em teatros, bem como participou de alguns combates, desafiando praticantes de outras modalidades de luta como o boxe, a luta livre e o savate (Cairus, 2011CAIRUS, José. Modernization, nationalism and the elite: The genesis of Brazilian jiu-jitsu, 1905-1920.Tempo e Argumento, v. 3, n. 2, p. 100-121, 2011.; 2012; Assunção, 2014ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Ringue ou academia? A emergência dos estilos modernos da capoeira e seu contexto global. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 21, n. 1, p. 135-150, 2014.; Santos Júnior, 2022SANTOS JÚNIOR, João Júlio Gomes. A volta ao mundo do Benjamin Constant: por uma história global do jiu-jitsu. Iberoamericana, v. 22, n. 80, p. 163-183, 2022.). Cabe mencionar que, desde o final do século XIX, já existia um dispositivo organizado nos circos e teatros da cidade do Rio de Janeiro, no qual diversos lutadores brasileiros e estrangeiros atraíam para suas contendas um público considerável (Lopes; Ehrenberg, 2020LOPES, Daniel de Carvalho; EHRENBERG, Mônica Caldas. Entre o pódio e o picadeiro: o “sportsman” circense Zeca Floriano. História da Educação, v. 24, e94488, 2020.).

Contudo, o combate entre Sada Miyako e Cyriaco iria mudar o curso dos acontecimentos. Tal confronto obteve ampla repercussão, pois nesse embate o brasileiro derrotaria o japonês, com a aplicação de um golpe denominado “rabo de arraia”, o que foi amplamente utilizado por setores nacionalistas da imprensa: “Sada Meyako, o campeão do jiu-jitsu, resolveu aprender a arte nacional da capoeira. Na primeira licção publicamente realizada no Concerto Avenida, o professor Cyriaco quebrou-lhe as até alli invencível queixadas (Careta, 8 maio 1909CARETA Capoeiragem vencedora do jiu-jitsu. Careta, Rio de Janeiro, p. 18, 29 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=083712&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 16). Outra matéria, publicada no jornal de tendência republicana, A Notícia, se referiu ao combate da mesma maneira ufanista:

Está desthronado o Jiu-Jitsu. Esta notícia vae naturalmente causar espanto e desgosto no orgulhoso império do Sol Nascente. Da guerra para cá, effectivamente, o Japão só tem tido victorias e triumphos sem conta e jamais em Tokyo se pensaria que no Brazil o Japão teria este desgosto que agora lhe causou o Cyriaco com o seu destro jogo da capoeira. Das innumeras superioridades que se atribuem ao japonez depois da victorias de Mandchuria o Jiu Jitsu figura como o jogo invencível e a suprema defesa do homem. Em Paris o Sr. Lépine mandou-o ensinar a vários agentes como um dos melhores meios de lucta da polícia contra os ‘apaches’ e em Lisboa cremos que esse ensino também foi ministrado à polícia que as vezes tem o infortúnio de encontrar-se com jogadores de páo, exímios (A Notícia, 3 maio 1909A NOTÍCIA. Cyriaco: o homem do rabo de arraia. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3, 18 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3).

A fonte criticava o destaque que o jiu-jitsu havia conquistado junto às forças policiais de Paris e Lisboa. A menção aos franceses e portugueses foi também um meio de atacar a Marinha brasileira por ter inserido a luta asiática na formação dos marujos:

Entre nós, dois distinctos officiaes da Marinha de guerra traduziram e publicaram um compendio inglez sobre esse jogo. Ultimamente o Benjamin Constant trouxe também dois jogadores de Jiu-Jitsu um dos quaes Saba-Myacho é o que estabeleceu o match em que foi vencido no ultimo sabbado. Tal tem sido a marcha por nós conhecida do famoso jogo. Aqui era fatal que elle despertaria logo a idéa do confronto com o famoso e perseguido jogo da capoeira, que agora acaba de triumphar. Conhecido lá fora esse resultado, que vae ser agora do Jiu-Jitsu? Até agora esse era o jogo supremo para os europeus e asiáticos e até para nós. E de repente do extremo do sul da América surge um outro que lhe é infinitamente superior e o derrota. E imprevisto e decisivo. A esta hora o Sr. Lepine já vae pensando vagamente em contractar o Cyriaco, o vencedor de Sada-Myaco, para iniciar os seus agentes no jogo da capoeira - e em Portugal, onde é tradicional o jogo do pau, não estaremos talvez longe de ver ser iniciado também o ensino desse jogo em substituição do Jiu-Jitsu, tão estrondosamente derrotado (A Notícia, 3 maio 1909A NOTÍCIA. Cyriaco: o homem do rabo de arraia. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3, 18 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3).

Para realizar sua crítica ao jiu-jitsu a matéria jornalística mencionou a tradução realizada pelos oficiais da Marinha do livro de Hancock e a contratação dos instrutores japoneses. Todavia, a fonte indica que foi a criminalizada capoeira, num canto remoto da América do Sul, que estrondosamente derrotou uma arte marcial que estava sendo propagandeada por todo o mundo como o jogo supremo. A título de provocação, o artigo indicou ainda que Cyriaco deveria ser contratado para ensinar capoeira aos europeus. A partir disso o texto caminha para seus apontamentos finais, nos quais o teor nacionalista atinge seu clímax:

O mais curioso, porém, será ver a capoeira em Tokio. Já a canção popular celebrando os triumphos aeronáuticas de Santos Dumont assegurava que a Europa, vendo voar o nosso famoso patrício, se curvará ante o Brasil. Nem só a Europa agora. A Ásia com todo o seu passado de seis mil anos, a sua civilisação em que se tem verificado a remota existência de todos os grandes inventos occidentaes, se vem agora juntar à Europa numa reverência ao nosso jogo e ao Cyriaco que é bem hoje um campeão mundial, derrotando, como derrotou, um jogo até então considerado invencível. Seria curioso agora saber o que pensa do caso o Dr. Alfredo Pinto, uma de cujas funções é perseguir esse jogo, considerado como uma das infrações do código. O seu embaraço deve mesmo ser grande [...] porque, si o código lhe manda que reprima a capoeiragem e a considere um crime, já o patriotismo o força a acceital-a como uma superioridade da nossa raça sobre todas as raças conhecidas, inclusive a do japonez que venceu formidável russo. Felizmente o código como todos os textos escriptos póde ser posto de lado, quando principalmente se trata de um triumpho que nos enche de tanto orgulho e nos põe seguros de que ninguém nos vencerá desde que temos dreadnoughts e capoeiras (A Notícia, 3 maio 1909A NOTÍCIA. Cyriaco: o homem do rabo de arraia. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3, 18 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3).

A vitória de Cyriaco foi colocada ao lado dos feitos de Santos Dumont, sua efigie foi alçada a de um campeão mundial, pois suplantou algo que estava sendo considerado invencível. O texto ainda provocava as autoridades sobre a criminalização da capoeira existente no Código Penal, dizendo que a capoeiragem era uma comprovação da superioridade da raça nacional e que não deveria ser perseguida e sim celebrada. Em suma, bastava ao Brasil ter navios de guerra (dreadnoughts) e capoeiras que seria uma nação imbatível. Cabe destacar que os relatos do triunfo do Cyriaco não ficaram restritos aos jornais cariocas; foram localizadas menções a sua vitória na imprensa de diversas cidades brasileiras:

Depois da última guerra o Japão se celebrisou [...] Uma das curiosidades japonezas levadas à Europa e logo adoptadas foi o celebre jiu-jitsu, jogo de destreza do corpo [...]. O jiu-jitsu, que é a capoeiragem japoneza, teve logo uns poucos de compêndios e entre eles um em portuguez. E a verdade é que o jogo japonez sahia sempre vencedor em todas as luctas, o que lhe augmentava cada vez mais o prestigio [...] O japonez Sada Miako anda pelo mundo em propaganda do jiu-jitsu e, chegando ao Rio teve de fazer desafios práticos num dos seus theatros. Appareceu-lhe então o pretinho Cyriaco da Silva, natural de Campos e conhecido por “Macaco”, que, no mesmo dia em que foi reconhecido o deputado Monteiro Lopes, medio as forças com o japonez. É inútil dizer que com meia dúzia de letras a capoeiragem nacional desbancou a capoeiragem japonesa [...]. Todas as victorias são boas e fazem orgulho. Eu mandaria o Cyriaco à Europa (A Província, 23 jun. 1909A PROVÍNCIA. O jiu-jitsu. A Província, Recife, p. 1, 23 jun. 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=128066&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 1).

O texto celebrava toda a população negra e mestiça do país. Para valorizar ainda mais o feito da brasileiríssima capoeira, o jornal pernambucano mencionou que o triunfo do “pretinho” Cyriaco aconteceu no mesmo dia que o jurista pernambucano Manoel da Motta Monteiro Lopes foi reconhecido como o primeiro negro deputado federal. O capoeira e o deputado tornavam-se motivos de orgulho para os negros e mestiços brasileiros que sofriam cotidianamente inúmeros processos de perseguição e marginalização. Desta forma, a vitória de Cyriaco passava a ser relacionada nos jornais com questões políticas mais amplas:

A figura publicada na revista O Malho apresenta dois episódios distintos, ocorridos em espaços diferentes. O primeiro no Pavilhão Internacional e o segundo no Catete. Na primeira tira encontram-se representados dois personagens, um relativo a Sada Miyaco e outro referindo-se a Cyriaco, tendo o capoeira desferido um “rabo de arraia” no nipônico. Por sua vez, o segundo momento traz o personagem Zé Povo tendo um diálogo com Afonso Pena, no qual a figura popular manda o “presidente japonês” “fazer política no inferno”, nocauteando o político com uma poderosa “cabeçada”.

O estivador negro, carregador de sacas de café no porto do Rio de Janeiro, lavava a alma de uma parcela da população brasileira contrária aos modismos vindos do estrangeiro. Nesse momento, o “rabo de arraia” passava a frequentar outras partes dos jornais, deixando de ser somente algo mencionado nas matérias policiais.

Figura 2
“Jiu-jitsu contra capoeira”, charge.

O negro Cyriaco: o improvável herói brasileiro

No episódio relativo à vitória de Cyriaco, a imprensa brasileira acabou por valorizar alguns elementos típicos do heroísmo esportivo (Duret, 1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.; Vigarello, 2002; Fortune, 2022FORTUNE, Yohann. Emil Zatopek in the pantheon of long-distance running: The creation of a sporting myth.Sport in History, v. 42, n. 2, p. 257-279, 2022.), construindo dessa forma a imagem do herói oriundo das classes populares, que havia superado, de forma improvável, uma luta estrangeira considerada superior. Sendo assim, o capoeira se tornava a representação da vingança do eterno humilhado que, de forma surpreendente, improvável e efêmera, se transformava num vencedor (Duret, 1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.).

Além disso, pode-se presumir que a construção dessa aura em torno de Cyriaco se somou às tentativas de produzir a figura dos primeiros heróis esportivos nacionais. Note-se que a República havia sido instalada somente há duas décadas e como boa parte da população ainda aderia ao monarquismo, era necessário criar e/ou fortalecer símbolos que contribuíssem para a construção de uma identidade republicana (Carvalho, 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). Sendo assim, pode-se imaginar que a criação dos primeiros heróis esportivos brasileiros reforçava esse ideal (Silva et al., 2021SILVA, Marcelo Moraes e; POLYCARPE, Cyril; MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro; QUITZAU, Amgarten Quitzau. Primeras aventuras deportivas internacionales brasileñas. Cuadernos del Claeh, v. 40, n. 114, p. 67-84, 2021.; 2023). Uma reportagem sobre Cyriaco publicada na revista Careta apresenta alguns elementos relativos ao herói:

Figura 3
“A capoeiragem vencedora do jiu-jitsu”.

As fotografias mostram Cyriaco fazendo uma apresentação aos estudantes da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, demonstrando os principais golpes de capoeira a um dos segmentos mais privilegiados da sociedade brasileira. Cairus (2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.) sublinha que a presença de Cyriaco numa das principais faculdades do país tratava-se de uma tentativa de legitimar socialmente o jogo nacional. O jornal republicano A Notícia assim se reportou sobre a ida do representante da capoeiragem à escola de medicina:

Cyriaco o já agora celebre campeão da capoeiragem, visitou hoje a nossa Faculdade de Medicina [...] O fim dessa convocação é promover entre os generosos rapazes daquela escola os pequenos meios para Cyriaco poder retirar-se para Campos, sua terra natal. Em compensação desse pequeno beneficio, o valente capoeira proporcionará à mocidade daquela academia uns momentos de distracção agradável, mostrando aos rapazes, com proficiência que todos lhe reconhecem (principalmente o japonez do Jiu-Jitsu) os diversos movimentos, os mais clássicos movimentos do jogo da capoeiragem, jogo genuinamente nacional (A Notícia, 18 maio 1909A NOTÍCIA. Pequenos echos. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 3, 3 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3).

O improvável herói despertava a curiosidade, tanto que O Malho publicou uma matéria na qual informava que o capoeira confraternizava com alguns estudantes que o trataram de forma efusiva: “O creoulo Cyriaco, agilíssimo, pacifico e celebre capoeira, conduzido pela Avenida Central em alegre troca de estudantes que o proclamam em altas vozes - o vencedor do Jiu-Jitsu e doutor de borla e capello, em capoeiragem” (O Malho, 13 ago. 1910O MALHO. Villegiatura de um capoeira. O Malho, Rio de Janeiro, p. 49, 20 ago. 1910. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 28). Esse momento foi registrado com a seguinte fotografia:

Figura 4
“Troça de estudantes”.

A imagem evidencia que o improvável ídolo recrutado nas fileiras das classes populares foi celebrado por uma juventude sintonizada com valores nacionalistas. Foram indivíduos defensores de uma cultura nacional que formularam um discurso heroico em torno da vitória de Cyriaco. Uma charge encontrada n’O Malho apresenta algumas das estratégias utilizadas na construção do herói:

Figura 5
“Supremacia incontestável”, charge.

A imagem apresenta um texto introdutório e é seguida de um diálogo entre um marinheiro e um paisano. A parte preambular denominada “Supremacia incontestável” conta com o seguinte texto: “O sr. Cyriaco é brasileiro, trabalhador no commercio de café, e conseguiu vencer o seu antagonista aplicando-lhe um rabo de arraia formidável que ao primeiro assalto o prostrou. O brasileiro jogou descalço e o japonez pediu para que não fosse continuada a luta”. Já no diálogo ocorrido entre o marujo e o transeunte encontra-se uma retórica de cunho sarcástico que valorizava os elementos técnicos da capoeira: “Marinheiro: - Você não imagina como o Jiu-Jitsu é um jogo na hora... Basta ser japonez... Paisano: - Pois sim! Oia lá o que conteceu no Pavião Internacioná! O japonez foi ver ochina secco só com uma pantana que lhi mandô o Ciryco! Quá! Em matera d’essa economia polita, ninguém avence o nosso capoeral!” Um ponto que chama atenção no diálogo é a valorização dos elementos técnicos da capoeira, visto que mencionava alguns golpes como a “pantana” e o “rabo de arraia”. A menção a estas técnicas era algo recorrente nas matérias envolvendo Cyriaco. Nesse contexto, a reportagem “Jiu-Jitsu contra Capoeira: Cyriaco­ - o Heroe”, apresenta elementos interessantes:

Figura 6
“Jiu-jitsu contra capoeira: Cyriaco - o heroe”.

As fotografias tinham a intenção de consolidar Cyriaco como um herói genuinamente brasileiro, apresentando-o aos leitores em uma posição de combate bastante técnica. Sendo assim, as imagens alinhadas ao texto completavam a narrativa da construção heroica:

Teve um successo enorme a noticia illustrada d’O Malho próximo passado, acerca da luta do japonez Sada Myaco, jogador de Jiu-Jitsu, contra o nacional Cyriaco da Silva, jogador de capoeira. Nos bonds, nos trens, nas ruas, nos botequins e confeitarias, nos theatros populares e até nos lares domésticos, não se via outra cousa sinão grupos a olharem alegres e expansivos as illustrações coloridas desse encontro do jogo japonez, adoptado pela nossa marinha, com o jogo puramente nacional, que teve as honras da victoria, apezar de lhe faltar a consagração oficial (O Malho, 15 maio 1909O MALHO. Supremacia incontestável. O Malho, Rio de Janeiro, p. 14, 8 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 10).

A reportagem externalizava um sentimento de furor popular ocasionado pelo triunfo da capoeiragem, indicando que a arte marcial asiática adotada pela Marinha havia sido suplantada pelo jogo nacional que tinha sido erroneamente renegado pelas autoridades brasileiras. Na sequência, os contornos da edificação da figura do herói se tornam ainda mais evidentes:

Cyriaco é o homem do dia, popularíssimo agora, tendo apanhado de repente uma popularidade aguda [...]. Cyriaco é o heroico capoeira, que derrotou no ultimo sabbado (dia do reconhecimento do deputado Monteiro) no Concerto Avenida, o japonez Sada Myako, que aqui está introduzindo o afamado sport do Jiu-Jitsu. Travou-se uma luta entre a capoeiragem nacional e o sport japonez. Já diversos capoeiras tinham sido derrotados pelo valente Jiu-Jitsu, quando no sabbado ultimo Cyriaco fez que também a ‘Ásia se curvasse ante o Brazil’ (O Malho, 15 maio 1909O MALHO. Supremacia incontestável. O Malho, Rio de Janeiro, p. 14, 8 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 10).

Nessa ereção da figura heroica a importante revista de variedades mencionava a repentina popularidade obtida por Cyriaco, capoeira que fez com que a “Ásia se curvasse ao Brasil”. A continuidade da matéria foi marcada por uma entrevista com o improvável herói, que assim se pronunciou: “Não vê o sinhô que a rapaziada me convidaro pra luta com o tal japonez e eu então me arresorvi e mostrei que si eu não estrinbuchasse o homem ninguém mais podia (O Malho, 15 maio 1909O MALHO. Supremacia incontestável. O Malho, Rio de Janeiro, p. 14, 8 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 10). As menções ao triunfo de Cyriaco não ficaram restritas à imprensa do Rio de Janeiro, mostrando que seu “rabo de arraia” ficou conhecido nacionalmente:

A capoeira foi uma representação nacional adversária do sr. Sampaio Feraz, que jurou aos seus deuses republicanos dar capo das maltas que infestavam o Rio de Janeiro [...] O preto Cyriaco é uma apagada lembrança da arte que constituía o heroísmo desses terríveis cordões que deram grandes facínoras, mas também deram bravos. Havia capoeiras que só para o bem utilizavam os seus difíceis manejos de cabeça, de pernas e de braços, não empregando a navalha traiçoeira e assassina [...] A linguagem dos capoeiras era toda allegorica, mais dispunha também de uma technologia pittoresca. Tornaram-se populares as phrases banho de fumaça, alto da synagoga, casa de purgar e outras com as quaes os capoeiras designavam diversas partes do corpo ou feitos próprios do jogo. A rasteira era o meio empregado para um banho de fumaça (tombo a fio comprido). Alto da synagoga era a cabeça do inimigo que se ia encher (bater, derrabar, espancar). Qual o feito heroico do preto Cyriaco? Um rabo de arraia (A Tribuna, 9 maio 1909A TRIBUNA. A capoeiragem e o jiu-jitsu. A Tribuna, Santos, p. 1, 9 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153931&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 1; destaques no original).

O texto publicado num jornal paulista era composto por elementos que buscavam descriminalizar a capoeira. Se o seu passado era ligado às criminosas maltas, agora a prática genuinamente brasileira poderia tornar-se um símbolo nacional. Para isso, o artigo explicou alguns de seus aspectos técnicos, apresentando um miniglossário ao leitor. O feito obtido com o “rabo de arraia” representaria o brasileiro típico que, mesmo em face a todas as adversidades, seria triunfador por natureza. Sua imagem se tornaria a representação que estava faltando a uma jovem república tão carente de atributos para a constituição de uma identidade nacional (Carvalho, 1990CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). Um texto localizado no importante jornal republicano O Paiz é bastante elucidativo sobre essa edificação do herói:

Um campeão do tal ‘jiu-jitsu’ aparece, aqui, no Rio, sobe ao palco de uma das nossas casas de diversões, oferece libras a quem for capaz de derrottal-o, dominando a todos aqqueles que alimentam essa pretensão. Eis que, afinal, aparece o Cyriaco. Era, sem dúvida alguma, o supremo reivindicador dos nossos brios conspurcados, dos nossos músculos opprimidos, da nossa tradicional galhardia. Emquanto, o japonez preparava o ‘venha comigo do seu jogo’, o Cyriaco julgou mais prudente, mais acertado e, sobretudo, mais patriótico fazel-o experimentar, previamente, o seu inocente ‘rabo de arraia’... Já todo o publico conhece o resultado do tal ‘rabo’... Durante vários dias, os jornaes cantaram, em prosa e verso, as excellencias do Cyriaco e a superioridade da nossa clássica capoeiragem sobre as famosas virtudes do ‘jiu-jitsu’ (O Paiz, 22 maio 1909O PAIZ. Tres tiras. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, 22 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=178691&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti...
, p. 2).

O teor patriótico da matéria assinada pelo articulista F.V. é evidente, visto que o “inocente rabo de arraia” seria a personificação do brasileiro, uma prova que elementos naturais existentes no Brasil poderiam ser mais eficientes que práticas racionais vindas do exterior e que, nesse caso especifico, estavam encarnadas no jiu-jitsu. Foi nesse cenário que Cyriaco e principalmente a capoeira passaram a ser cada vez mais mencionadas positivamente na imprensa:

Dizem os adeptos do jogo japonez que este é scientifico, pois aproveita os golpes do inimigo para vencel-o. A capoeiragem não será egualemnte um jogo scientifico? É, e todo o capoeira que se presa não abate o seu adversário aos primeiros passos. Primeiramente, elle espere uma rasteira, para mandar uma outra, que produza effeito, pois então o seu adversário estará em condições de cair, com os pés mais ou menos approximados, ou então, finge que dá uma bofetada para empregar o tombo à bahiana, sem o que o seu adversário grudar-se-lhe-ia ao gasganete com unhas e dentes, ou, então, ainda, entrega uma perna para que tenha resultados satistafórios o rabo de arraia. E, si assim não o fizer, o golpe perder-se-á, pois o inimigo abaixa-se e ‘joga o corpo fora’ e o feitiço virará contra o feiticeiro... [...] O Japão e os seus costumes revolucionaram o mundo e o jiu-jitsu teve entrada franca em todos os mercados, e a nossa marinha, abysmada com os ensinamentos do combate Tsuhima, acceitou-o também, sem procurar estudar as vantagens do jogo nacional. Não resta a menor dúvida que para a educação physica não se deve abandonar o jiu-jitsu, nem trocal-o pelos demais sports. Dahi para o ser mais forte, dahi para que todos os jogadores japonezes possam vencer todos os adversários vae uma grande differença, differença exuberantemente provada pelo Cyriaco, no palco do Pavilhão Internacional (Correio da Manhã, 20 jun. 1909CORREIO DA MANHÃ. Jiú-jitsú. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 jun. 1909, p. 2. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=089842&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti...
, p. 2; destaques no original).

A matéria assinada por Carlos Leite indicava que o jiu-jitsu tinha suas virtudes, mas sublinhava que a capoeira apresentava qualidades superiores à luta asiática. Nessa mesma linha argumentativa, outra reportagem publicada meses depois pelo mesmo autor detalhou os motivos pelos quais se considerava a capoeira superior a outras lutas:

Do jiu-jitsu só é aproveitável a parte physica, e isso pelos princípios que já indicamos, enquanto que a parte atacante é muito falha, irregular, com terríveis golpes de morte, que podem ser destruídos pela agilidade ou dextreza e, muitas vezes, até pela própria força [...]. O japonez obedece a um regimen de agilidade, sem o que o seu jogo não daria resultado prático, mas uma agilidade proveniente da gymnastica a que se entrega. O brasileiro, além da agilidade nativa da raça, é dextro e nisso reside toda a sua valentia. A dextreza nada mais é sinão uma derivante do magnetismo, e, com surpresa, vemos o capoeira não despregar os olhos do seu adversário, até que este, vencido, se abandone a uma posição propicia áquelle. É, com essa qualidade, o capoeira torna-se forte, e, sem tirar os olhos do seu adversário, conhece-lhe todos os golpes, aproveitando-se de todas as indecisões e de todas as posições boas, e, assim, sempre está prompto a receber um golpe [...] Entretanto, para este há os golpes successivos, pois o capoeira ágil, também procura, assim, embaraçar o jogo do adversário, para vencel-o também num golpe de dextreza. Pelo que acabamos de dizer, não convém a ninguém aprender a parte atacante do jiu-jitsu para lutar com um jogador de páo, com um lutador de box ou romano, nem tão pouco a capoeiragem para lutar com este ou aquelle, dadas as diversidades de golpes nos diversos jogos adoptados (Correio da Manhã, 23 nov. 1909CORREIO DA MANHÃ. Jiú-jitsú. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 jun. 1909, p. 2. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=089842&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti...
, p. 2; destaques no original).

A posição defendida por Carlos Leite era que o jiu-jitsu seria mais semelhante a uma ginástica e teria uma parte ofensiva limitada, visto que poderia ser anulada facilmente pela agilidade e/ou pela força. Assim, o texto passou a enfatizar os elementos da capoeira, enaltecendo a agilidade e a destreza que, segundo sua posição, era algo ingênito à raça brasileira. Foi nesse contexto que a figura de Cyriaco ficou para a posterioridade, pois mesmo passados diversos anos seus feitos seriam rememorados.

Rememorando o triunfo de Cyriaco: em busca de uma capoeira moderna

Após o improvável triunfo, Cyriaco se tornou figura celebrada por uma parcela da sociedade brasileira avessa aos “estrangeirismos”. Sua vitória foi utilizada como forma de valorização de uma cultura nacional, na qual a capoeira desempenharia um papel fundamental, pois seria a personificação da mestiçagem brasileira (Assunção, 2008ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destreza do mestiço” à “ginástica nacional”: narrativas nacionalistas sobre a capoeira. Antropolítica, v. 24, n. 1, p. 19-40, 2008.). Foi possível localizar reportagens que enquadravam Cyriaco nessa perspectiva:

Os nossos leitores hão de se recordar da emocionante lucta em que se empenharam num dos nossos theatros o capoeira Cyriaco e o campeão de ‘jiut-jutsu’ Sada Miako que havia vencido muita gente de força e agilidade no estrangeiro. Mas Cyriaco sahiu vencedor. Quando o japonez menos esperava levou um formidável ‘rabo de arraia’ cahindo vencido, sem sentidos. Consiste esse formidável golpe em se pôr as mãos no chão e fazer os pés girar em torno da cabeça. Nessa semi-circumferencia descripta os pés alcançam a cabeça do inimigo. Assim faz a arraia no mar. Descreve a curva com a cauda no mar e nessa trajectoria encrava o esporão no infeliz pescador que della se aproxima. Esse movimento foi que deu nome ao golpe usado pelos capoeiras. Pois, hoje pela madrugada, uma luta travou-se entre uma arraia e o pescador José da Paz, próximo à ilha do Catalão, onde elle reside. A arraia descreveu a curva com a sua cauda e apanhou o calcanhar direito do pescador, que se achava numa canoa. Tão certeiro foi o golpe que enterrou o esporão no Paz, deixando-o quase sem poder andar. [...] O ‘Cyriaco’ do mar seguio rumo ignorado, sem se importar com as glorias de uma lucta vencida... (A Noticia, 6 maio 1910A NOTÍCIA. O Cyriaco do mar. A Notícia, Rio de Janeiro, p. 2, 6 maio 1910. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=830380&pesq . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 2).

A fonte evidencia a simplicidade existente na técnica da capoeira, pois demostrava que o “rabo de arraia” era um golpe inspirado na forma natural de defesa de um animal. A maneira de se proteger da raia era uma analogia às dificuldades que a população brasileira, composta basicamente por negros e mestiços, sofria diuturnamente. A capoeiragem personificada no “rabo de arraia” de Cyriaco foi representada como uma das maneiras desse segmento populacional marginalizado se proteger contra as intempéries a que a estrutura da sociedade brasileira os submetia.

Porém, muitos heróis esportivos apresentam, segundo indica Duret (1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.), sua dimensão trágica, que no caso de Cyriaco foi o desenvolvimento de problemas de saúde. Uma reportagem comentou sobre o processo de vilegiatura realizado pelo capoeira, visto que ele realizou uma digressão recreativa a uma fazenda no interior de Minas Gerais: “Cyriaco, mestre de capoeiragem, celebre vencedor de Sada Miako e campeão das luctas do rabo de arraia com reflexos no alto da synagoga e na caixa do mastigo. Photografia tirada na fazenda do Sr. Eurico Lopes em Minas, onde Cyriaco passou algumas semanas, descansando e reconfortando-se” (O Malho, 20 ago. 1910O MALHO. Supremacia incontestável. O Malho, Rio de Janeiro, p. 14, 8 maio 1909. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=116300&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 49).

Figura 7
“Vilegiatura de um capoeira”.

Porém, mesmo buscando alternativas para a melhoria de sua saúde, o mestre do “rabo de arraia” sucumbiu à efemeridade da existência 3 anos após o seu triunfo. A notícia sobre o seu falecimento foi noticiada com pesar:

Cyriaco Francisco da Silva, ou melhor, o Cyriaco, como elle era conhecido, deixou hontem de existir. Campeão victorioso da capoeiragem [...] Cyriaco em mais de uma occasião, teve a opportunidade de mostrar quanto era mestre nesse sport, inegavelmente filho dos costumes nacionaes. Uma das suas últimas façanhas, praticou-a elle, em 1910, no Pavilhão Internacional, fazendo com que um professor de jiu-jitsu japonez, contratado pelo ministro da Marinha de então, e que lhe tinha desafiado para uma luta de terreno egual fosse comer poeira, levado de arrastão por um formidável rabo de arraia. Cyriaco cerrou os olhos, tristemente como um vencido impotente deante de uma grande força occulta... talvez lamentando naquelle transe derradeiro não poder bater ali mesmo, no seu leito de agonia a visão sinistra da morte, aparando-lhe a fatalidade ao golpe decisivo e fazendo-se recuar atordoada com um daquelles seus famosos rabos de arraia, que lhe valeram uma fama respeitada nos círculos dos cuêras e piabas... Exercia a profissão de estivador e tinha 38 annos de edade, sendo victimado por uma lesão cardíaca (Correio da Manhã, 19 maio 1912CORREIO DA MANHÃ. Cyriaco, campeão da capoeiragem nacional, falleceu hontem. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, p. 4, 19 maio 1912. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=089842&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti...
, p. 4; destaques no original).

A passagem de Cyriaco para outro plano foi utilizada por parte da imprensa como um momento de enaltecimento da cultura nacional:

O DESAPPARECIMENTO DO ‘RABO DE ARRAIA’: [...] Lembram-se os leitores do Cyriaco? Cyriaco era aquelle crioulo, ágil e desempenado que há três annos, em maio de 1909, se propoz a derrotar o professor de ‘jiu-jitsu’ que aqui apparecera, o Sada Miako, si não nos enganamos. Todas as noites no palco do Pavilhão Internacional desafiava quem se quizesse bater com elle no ‘sport’ japonez. Uma noite apareceu por lá o crioulo Cyriaco. Ninguém queria acreditar que um rapaz crioulo e franzino como era Cyriaco tivesse coragem e audácia de aceitar um desafio de luta de ‘jiu-jitsu’ com o japonez [...] O japonez quando viu Cyriaco diante dele para realizar a luta teve um sorriso de incredulidade. Seria possível que aquelle preto magro e desajeitado o fosse bater? [...] Cyriaco acertou-lhe um ‘rabo de arraia’. A luta cessou. [...]. Cyriaco andou pelas redacções explicando como ‘vencera’ o japonez. Andou pelas escolas superiores dias depois [...] Depois Cyriaco desapereceu. Volveu ao seu kister de carregador de café e ultimamente ao de trabalhador da estiva. Agora vem-nos a notícia de sua morte aos 38 annos de idade victimado por uma pertinaz enfermidade do coração. Pobre Cyriaco! Teve elle as glorias de uma noite elevando a dextreza indígena as honras de um grande ‘sport’ e nada mais na sua vida honrada do trabalhador (A Imprensa, 19 maio 1912A IMPRENSA. A morte de Cyriaco. A Imprensa, Rio de Janeiro, p. 3, 19 maio 1912. Disponível em: Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=245038&pesq=&pagfis=1 . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3).

O trecho enalteceu as façanhas do improvável herói, que mesmo contra as intempéries da vida dignificou uma cultura nacional. A menção ao óbito de Cyriaco não ficou restrita à imprensa carioca, visto que jornais do Paraná (Diário da Tarde) ao Acre (Folha do Acre) noticiaram o seu falecimento:

Não há quem desconhecesse o Cyriaco, o preto Cyriaco, aquelle destimido capoeira que, com um rabo de arraia, aleijou, no Rio, um japonez todo ufano no seu jiu-jitsu. O preto Cyriaco era um dos raros exemplares legítimos daquela legião de capoeiras que, em épocas passadas, fez proezas na capital do paiz e que muito bem representava o espirito arrojado do nosso creoulo. Pois, o celebrizado Cyriaco, depois de dar por mais de um milheiro de rabos de arraia, de dar muita cabeçada e canga-pé, foi dar agora com o rabo na cerca, isto é, foi continuar as suas proezas lá pelo outro mundo, onde certamente continuará a tirar a scisma de muito japonez (Diário da Tarde, 15 jun. 1912DIÁRIO DA TARDE, Curitiba, p. 1, 15 jun. 1912. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=800074&pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 1).

Acaba de falecer no Rio de Janeiro o celebre capoeira Cyriaco, campeão da capoeiragem nacional, e que, há dois annos, arrebatou a multidão que enchia o Pavilhão Internacional, quando um famoso rabo de arraia, atirou ao chão vencido, um japonez, perito jogador de jiujitsu, que, antes, derrubara, em poucos momentos, os mais fortes e mais ágeis individuos que se atreveram a enfrental-o. Os jornaes daquela capital dedicaram longas notícias à morte de Cyriaco (Folha do Acre, 16 out. 1912FOLHA DO ACRE, Rio Branco, p. 3, 16 out. 1912. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=101478&pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, p. 3; destaque no original).

As publicações sobre a morte de Cyriaco exaltavam as virtudes do herói (Duret, 1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.; Vigarello, 2002VIGARELLO, Georges. Du jeu ancien au show sportif: La naissance d’un mythe. Paris: Seuil, 2002.; Fortune, 2022FORTUNE, Yohann. Emil Zatopek in the pantheon of long-distance running: The creation of a sporting myth.Sport in History, v. 42, n. 2, p. 257-279, 2022.), que no Pavilhão Internacional, numa noite de um sábado no mês de maio de 1909, enchera de orgulho aqueles que advogavam em prol de uma cultura nacional. Sendo assim, seus feitos sempre que preciso eram relembrados:

Foi também nesse período que, por uma noite barulhenta e patriótica, no palco do Pavilhão, o preto Cyriaco, já fallecido, provou que a capoeira era muito mais séria que o jiu-ji-tsu, arrumando nos queixos do japonez um rabo de arraia definitivo e categórico. Houve um delírio de applausos pela sala repleta. O heroe da noite foi transportado em triumpho para a rua (A Noite, 29 abr. 1914A NOITE. O passado de um theatro: o Pavilhão Internacional. A Noite, Rio de Janeiro, p. 1, 29 abr. 1914. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=348970_01&hf=memoria.bn.br . Acessado em: 2 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReade...
, p. 1; destaques no original).

A fonte demonstra que mesmo após 5 anos, o celebre “rabo de arraia” não fora esquecido. O triunfo de Cyriaco era também reavivado quando se tinha o intuito de justificar a formulação de uma sistematização em torno da capoeira: “A nossa capoeiragem, com os ensinamentos preciosos do mestre Cyriaco, cathedratico no assumpto, deve ser também recommendada. Ser capoeira às direitas é uma arte perfeita, uma sciencia completa com as suas leis fixas, as suas prescripções immutavies, os seus dogmas infallíveis...” (Brazil Illustrado, n. 18, 1920BRAZIL ILLUSTRADO. Como defender-se na rua. Brazil Illustrado, Rio de Janeiro, n. 18, s.p., 1920. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=717746&pesq . Acessado em: 5 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docreade...
, s.p.).

Posicionamentos como este não foram aleatórios e nem únicos, afinal representavam uma posição que almejava construir um método que pudesse institucionalizar a capoeira como a “ginástica nacional” (Reis, 1993REIS, Letícia Vidor de Souza. A capoeira: de “doença moral” à “gymnástica nacional”.Revista de História, n. 129-131, p. 221-235, 1993.; Downey, 2002DOWNEY, Greg. Domesticating an urban menace: Reforming capoeira as a Brazilian national sport.The International Journal of the History of Sport, v. 19, n. 4, p. 1-32, 2002.; Gaudin, 2008GAUDIN, Benoit. Capoeira et nationalisme (1890-1937). Ciência & Trópico, v. 32, n. 2, p. 323-342, 2008.; Assunção, 2008ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destreza do mestiço” à “ginástica nacional”: narrativas nacionalistas sobre a capoeira. Antropolítica, v. 24, n. 1, p. 19-40, 2008.). Foi nesse contexto que o intelectual Raul Pederneiras publicou, em 1921, um artigo no qual, ao defender a sistematização da capoeira, rememorou Cyriaco:

Esse exercício nacional methodizado, daria excellentes resultados e, há annos, quando aventámos esse plano nas columnas do Jornal do Brasil, tínhamos em vista o aproveitamento da notável perícia do celebre Cyriaco, estivador que se destacou de modo brilhante, derrotando um lutador japonez, até então invencível em todos os processos de luta [...]. Cyriaco estava a preparar terreno onde organizaríamos uma escola de regras seguras, abolindo os golpes considerados mortaes; mas extravagante em extremo, o estivador dias depois tombou minado por uma pneumonia. Ultimamente o assumpto voltou à tona dos estudos e o professor Mario Aleixo, depois de paciente observação, organisou um systema de defesa pessoal digno de honras e referências. Assistimos a uma prova pratica e verificamos de prompto que o processo adoptado pelo professor Aleixo é excellente, alliando aos principaes passes da luta nacional alguns golpes da luta japoneza, de modo que o exercício ganhou vantagem para o desporto e mereceu ser adoptado pelos rapazes de agora. A capoeiragem tinha o valor da defesa e do ataque a distância - sem se deixar tocar pelo antagonista; - o processo actual do referido professor, allia essa vantagem de presteza e da agilidade à vantagem também importante da defesa quando o indivíduo é alcançado de seguro pelo contendor [...] o processo adoptado agora deve ser cultivado e propagado, por ser superior à luta romana, ao jiu-jitsu, ao box, à savata, enfim a todos os outros exercícios de defesa, porque favorece o defensor contra mais de um atacante (Revista da Semana, n. 18, 1921REVISTA DA SEMANA. A defesa nacional. Revista da Semana, Rio de Janeiro, n. 18, s.p., 1921. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=025909&pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti...
, s.p.).

A figura do capoeira que havia suplantado o invencível japonês era utilizada em prol de uma retórica que visava metodizar a capoeira. Torna-se oportuno mencionar que os anos 1920 foram um momento no qual um grupo de intelectuais buscou encontrar alternativas para conter o excesso de “estrangeirismos” na sociedade brasileira e estabelecer as bases de uma cultura genuinamente nacional (Freyre, 2004FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. São Paulo: Global, 2004.). Nesse sentido, existiam aqueles que viam com ressalvas a repercussão desse fenômeno no plano esportivo. Tais posicionamentos também se manifestaram num dos mais importantes jornais republicanos do período:

Outro dia, quando aqui chegaram os primeiros telegramas dando o resultado do encontro de box havido entre Dempsey e Firpo [...] em frente às redacções dos princi­paes jornaes, formaram-se grandes ajuntamentos [...] dando vivas geralmente a ­Dempsey e aos Estados Unidos [...] Ali, na rua, pelos clubes, a mesma loucura, o mesmo enthusiasmo barulhento, não só entre moços, como até entre cavalheiros maduros para não dizer velhos. Causou profunda tristeza; e por esse facto vi, concluir quanto a nossa gente, originaria de povos mal evoluídos tem parco apêgo ao que é nosso genuinamente nacional [...] Quereis cultivar um jogo elegante, próprio para a defesa individual, jogo de destreza nobre e não brutal e aviltante, tendes ahi o nosso inexcedível e invencível jogo de capoeira, jogo nascido dos factores raciais e mesológicos que plasmaram a nossa nascente raça [...] O nosso jogo, onde quer que se tenha enfrentado com outros aqui, na Europa ou na América Aretica, sempre tem vencido, e todavia esse jogo sem igual vive por ahi escondido (O Paiz, 22 out. 1923O PAIZ. Cultivemos o jogo da capoeira e tenhamos asco pelo da boxa. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 22 out. 1923. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=178691&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
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, p. 1).

O manuscrito assinado por Gomes Caruso sublinhava que causava tristeza o fato da capoeiragem e tudo aquilo que fosse genuinamente nacional tivesse sua importância diminuída em prol de esportes estrangeiros como o boxe. Foi na busca de uma contraposição a esse espirito que Cyriaco foi mencionado pelo autor da matéria como um símbolo da raça brasileira:

Assisti e, como eu, milhares de pessoas, nesta metrópole, áquelle celebre encontro havido entre o campeão mundial de jiu-jitsu, um japonez musculoso, ágil como um gato, orgulhoso de suas comntendas [...] e o nosso patrício moleque Cyriaco [...] Deram-se os lutadores à peleja. Cada passo desageitado de Cyriaco, cada salto felino do japonez, eram risadas e piadas que explodiam. Durava a pugna havia 30 minutos, quando Cyriaco, enfurecido pelas chalaças do público e visível desprezo por parte do japonez soltou de cá este brado: ‘Abre o oio japonez!’ E com um gesto rápido baixando sobre o soalho, poz o adversário por terra, desarticulado como um homem de trapo, fora dos sentidos. Esse feito estupendo, as vantagens que sempre levam os nossos marinheiros, quando brigam pelos portos extrangeiros, tudo está a recommendar a pratica e cultura do bello e invencível jogo de capoeira, não só pela mocidade civil, mas também pela marinhagem de guerra. Infelizmente, porém, até esta hora ainda nenhum brasileiro em situação de valorizar o nosso jogo teve coragem bastante para recommendal-o [...] Seja, porém, como fôr, rehabilitemos o brasileiríssimo jogo de capoeira e deixemos de parte a boxa selvagem e inesthetica (O Paiz, 22 out. 1923O PAIZ. Cultivemos o jogo da capoeira e tenhamos asco pelo da boxa. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 22 out. 1923. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=178691&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
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, p. 1).

Na busca do incremento de sua argumentação contrária ao boxe e ao jiu-jitsu, o manuscrito escrito por Gomes Caruso estabeleceu uma narrativa que reexaminava alguns aspectos históricos, criando uma aura mitológica em torno do confronto entre Cyriaco e Sada Miyako. Afinal, tratava-se de um negro desajeitado que superava o musculoso japonês que o havia tratado com desprezo. Explanações valorizando o feito foram frequentes, como a da revista Tico-Tico, destinada ao público infantil, que assim se referiu ao brasileiro:

É recente, está na memória de todos, e os camaradinhas podem perguntar aos seus pápás, uma celebre lucta entre um campeão japonez de jiu-jitsu e o Cyriaco, negro patrício e hábil capoeira, realisada num dos theatros desta Capital. Cyriaco, em segundos, depois de bambolear o corpo dum lado pr’o outro, deu no adversário um violento golpe que o poz fora de campo (Tico-Tico, 24 out. 1923TICO-TICO. A lucta nacional. Tico-Tico, Rio de Janeiro, s.p., 24 out. 1923. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=153079 &pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
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, s.p.).

Já o Diário da Manhã, jornal do estado do Espírito Santo, reavivou o triunfo com o desígnio de combater os esportes estrangeiros,

entre as gymnasticas que temos adoptado, como motivos de desenvolvimento physica dos nossos homens, não podemos contar com um jogo puramente nacional, de uma belleza de passes apreciáveis e de uma utilidade de defeza imcomparavel, a gymnastica, o jogo, o desporto, ou lá como queiram - a capoeiragem [...] Tenhamos em vista o “jiu-jitsu” que quase estivemos a importar do Japão se não fosse a tremenda sova que o seu campeão levou do negro Cyriaco, no Pavilhão Paschoal Secreto. Cyriaco, com três “rabos de arraia”, deu cabo do famoso campeão de “jiu-jitsu”, collocando o fora de combate [...] Mas a capoeiragem é brasileira e por isto está irremediavelmente fora de qualquer prestigio! Nos tempos que correm, até são ridículas as recordações de cousas nossas! Ah! mas-se no emtanto ella viesse a receber qualquer nome que cheirasse a “estranja”, seria adoptada, bemquista, e enthusiasticamente seguida como o “foot ball”, o “box”, o “jiu-gitsu”, o “basket-ball”, o “tennis” e tantos outros jogos cuja magna propriedade é terem origem estrangeira (Diário da Manhã, 17 nov. 1923DIÁRIO DA MANHÃ. Commentarios. Diário da Manhã, Vitória, p. 4, 17 nov. 1923. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=572748&pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
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, p. 4).

O excerto escrito pelo articulista de alcunha A. F. realizava uma censura à apropriação que se estava realizando de esportes estrangeiros no país, indicando que a capoeira foi deixada de lado por ser nacional e, para rechaçar tal condição, evocava o triunfo do Cyriaco. Em matéria publicada na revista Careta, em 1925CARETA. Esplendor e decadência da capoeiragem. Careta, Rio de Janeiro, p. 21-22, 14 nov. 1925. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=083712&pesq . Acessado em: 3 mar. 2023.
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, Cyriaco também foi relembrado para exaltar a cultura nacional:

Numa terra em que floresce tanta inutilidade de importação, tanto absurdo sem direito à vida, é de estranhar se o desapparecimento da capoeiragem com todos os característicos de instituição nacional [...] A capoeiragem está realmente aniquilada e vae de uma vez se extinguindo com seus remanescentes [...] Para comproval-o rememore-se o brilharéco do moleque Cyriaco que, tarde, embora, chegou a ter sua época e a sua aureola de triumphador [...] No antigo barracão do Paschoal [...] todas as noites uns campeões de ‘jiu-jitsu’ esmurravam os adversários de topete. Cyriaco, preto retinto, de loquacidade derramada, enxergando nisso uma afronta aos brios nacionaes, abalou do seu recanto de província para o Rio. Aqui pizando, acceitou o desafio dos japonezes que o olharam com escarneo [...] Cyriaco [...] pespegou-lhe um tremendíssimo ‘rabo de arraia’ que o atirou longe [...] O Pavilhão quase desabou. Aquele preto, rustico e descalço, com um ‘rabo de arraia’ formidável, desagravava os melindres nacionaes fazendo pela primeira vez o Japão, ou antes a Asia, ‘curvar-se ante o Brasil...’ [...] Com a morte de Cyriaco foi-se, para mim, o ultimo capoeira do Brasil [...]. Fiquei sabendo que a ‘capoeira’ é um exercício de lucta nacional que, libertado dos golpes prejudiciaes, póde ser adoptado com optimos resultados nos jogos desportivos. É sem contestação, superior à lucta romana, à savata franceza e ao ‘jiu-jitsu’ japonez, pois desenvolvendo em extremo a agilidade, facilita ao luctador a lucta contra mais de um [...] O ‘rabo de arraia’ é o golpe da ‘pantana’. O jogador ameaça, rápido, dá com mãos no chão um cambalhota em semi-círculo, levando os pés ao peito ou à cara do antagonista. Foi com esse golpe que Cyriaco derrubou o luctador japonez que era invencível no Pavilhão do Paschoal (Careta, 14 nov. 1925DIÁRIO DA TARDE, Curitiba, p. 1, 15 jun. 1912. Disponível em:Disponível em:https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=800074&pesq . Acessado em: 4 mar. 2023.
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, p. 21-22).

O texto assinado pelo diplomata Ildefonso Falcão questionava a importação de esportes estrangeiros, indicando que a capoeiragem havia sido erroneamente deixada de lado. Por isso o manuscrito escrito pelo membro do corpo diplomático brasileiro rememorava o “rabo de arraia” do “preto retinto” para reafirmar uma identidade nacional mestiça que deveria se manifestar na institucionalização da capoeira.

Considerações finais

Os heróis esportivos distinguem-se pelos seus feitos, mas sua principal característica é construída em torno de questões relativas ao talento e à virtude. Eles só se tornam heróis quando conseguem, tanto na derrota como na vitória, atrair a estima do público. Para além do apaixonado entusiasmo pelo ídolo esportivo é possível expor alguns mecanismos pelos quais determinadas figuras são engrandecidas. Estes enquadramentos narrativos permitem substituir a escatologia tradicional das fabulosas histórias esportivas por semânticas de uma casuística do engrandecimento (Duret, 1993DURET, Pascal. L’héroïsme sportif. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.).

Cyriaco se enquadra nesses elementos relativos à efígie do herói esportivo, pois trata-se de uma figura tipicamente popular. Afinal, um personagem como ele se torna emblemático por emergir dos bans-fond de uma sociedade altamente desigual como a brasileira. Trata-se da variação de uma mesma história, ou seja, a do indivíduo negro e de origem miserável que triunfa, mesmo que momentaneamente, frente a todas dificuldades impostas pelo meio social. Cyriaco, assim como o deputado negro Monteiro Lopes, se tornaram heróis, pois encarnavam a sede de vingança do perdedor transcendido inesperadamente na imagem de um vencedor.

Pode-se sonhar com melhor pretoriano de valores populares do que este mensageiro profético da glória futura dos desfavorecidos? Cyriaco não foi apenas uma promessa como também se aproximou da figura moderna do herói. Uma nova versão do soldado brasileiro, pois mesmo com triunfo ele virtuosamente permaneceu leal as suas origens e prin­cipalmente a sua capoeira. Tal questão oferece uma forma mais consumada do heroísmo nacio­nal, tornando seu nome sinônimo de um grupo social que historicamente foi marginalizado na sociedade brasileira. Nesse sentido, pode-se afirmar que Cyriaco foi um dos primeiros heróis esportivos oriundos das classes populares, que mesmo sendo um eterno perdedor teve seu triunfo eternizado, transformando-se num símbolo tão necessário para a nascente e emergente república mestiça.

Constatou-se ainda que, após uma exaltação inicial do jiu-jitsu, a arte marcial japonesa sofreu duras críticas por parte daqueles que almejavam alçar a capoeira ao posto de ginástica nacional. Essa intelectualidade nacionalista se aproveitou da vitória de Cyriaco, construindo uma retórica positiva em torno da capoeira. Esse acontecimento fez com que o interesse pela luta japonesa arrefecesse por alguns anos. Uma nova fase começaria em 1914, com a chegada de Mitsuyo Maeda ao Brasil. A partir desse momento, a arte marcial nipônica, conforme aponta Cairus (2012CAIRUS, José. The Gracie Clan and the making of Brazilian jiu-jitsu: National identity, culture and performance, 1905-2003. Tese (Doutorado em Filosofia), York University. Toronto, 2012.) entraria num outro momento que culminaria, nas décadas de 1920 e 1930, no início da sistematização realizada pelos Gracies daquilo que posteriormente se chamaria de Brazilian jiu-jitsu.

Referências

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    Vigarello (2002), ao analisar o contexto francês, indica que no processo de criação dos heróis esportivos a imprensa escrita desempenhou um papel fundamental, pois foi através dos seus textos que personagens esportivos passaram a ser celebrados por um público mais amplo.
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    Este artigo faz parte do projeto “A cultura física na Argentina, Brasil e Uruguai (1880-1950): a constituição de uma educação do corpo”, com bolsa de produtividade de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2023
  • Aceito
    19 Dez 2023
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