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Cartas ao Pará: vida privada, cotidiano e política na correspondência pessoal do negociante Antônio José de Miranda (Portugal, 1828-1831)

Letters to Pará: private life, daily life and politics in the personal correspondence of the merchant Antônio José de Miranda (Portugal, 1828-1831)

Resumo:

A subida de D. Miguel ao trono português, em julho de 1828, desencadeou intensa repressão aos seus opositores, incluindo vários brasileiros, como o paraense Antônio José de Miranda. Dentre os papéis dele apreendidos pela polícia constava um copiador de cartas, principal fonte utilizada para este artigo. A partir dele, buscou-se discutir elementos da prática epistolográfica do personagem, apresentar aspectos do seu cotidiano e destacar os alinhamentos políticos de um membro de uma das mais importantes oligarquias do Brasil setentrional, no contexto da vitória da contrarrevolução miguelista em Portugal.

Palavras-chave:
Correspondência pessoal; Pará; D. Miguel I (1801-1886); Contrarrevolução

Abstract:

The rise of D. Miguel to the Portuguese throne, in July 1828, was marked by a fierce persecution of its opponents including some Brazilians activist such as Antônio José de Miranda, from the province of Pará. Among his documents (papers) seized by the police was a letter draft collection, which is the main source used in this article. Starting from these data some aspects of the espistolography practice of the character were pointed out, his daily life and his political alignments as a member of one the most important oligarchy family from north of Brazil in the context of the victory of the miguelist counterrevolution in Portugal were highlighted.

Keywords:
Private correspondence; Province of Pará; D. Miguel (1801-1866); Counterrevolution

Introdução

A carta, a tua voz mesma a dizer Muitas coisas, mas não que regressas.

(W.H. Auden, 2013AUDEN, W. H. Poemas. Tradução de João Moura Júnior e José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.)

Antônio José de Miranda poderia ser apenas mais um filho de uma destacada oligarquia paraense, encarregado dos negócios da família no comércio com Portugal, não fora pelo fato de ter sido preso, a 8 de setembro de 1830, pelas forças policiais de D. Miguel, juntamente com um seu conterrâneo, o estudante Casimiro José da Silva. O jovem comerciante, então com 24 anos, despertou a desconfiança das autoridades miguelistas ao exibir um passaporte1 1 “Like external passports, internal passports began to be granted on a more regular and effective basis after the Act of 15 January 1835, with the establishment of the Liberal government and the creation of the Secretaria Geral de Passaportes, a subdivision of the Intendência Geral da Polícia e da Corte created in 1760, which had more autonomy to control migratory movement” (Andrade, 2011, p. 276). que continha supostas rasuras no espaço destinado a informar a cidade à qual se dirigia: “para Lisboa, digo, Tomar”,2 2 Quando não indicado o contrário, os documentos citados encontram-se no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT); “Processo crime movido contra Casimiro José Rodrigues, estudante, filho de Caetano Jerônimo Rodrigues e de Mariana da Purificação; e Antônio José de Miranda, negociante, filho de Vicente Antônio de Miranda e de Floripes Joaquinas de Oliveira, ambos naturais do Pará; por, apesar de estrangeiros, se imiscuírem nas lutas partidárias, trocando o primeiro correspondência com o segundo, remetida, quando preso, de Tomar, por aí haver sido encontrado com passaporte alterado, sendo ainda portador de papéis cheios de impropérios e correspondência entre os dois onde se verificava os seus sentimentos hostis ao governo de D. Miguel. Por Acórdão de 19 de fevereiro de 1831 foram condenados a sair imediatamente do Reino, sendo conduzidos presos a bordo da embarcação que escolhessem para o fazer”. Maço 13, n.6, sem paginação. como se vê na Figura 1, ao lado.

Figura 1
Passaporte de Antônio José de Miranda

As suspeitas do corregedor da Comarca de Tomar ganharam corpo quando se revelou que Antônio de Miranda, que se fizera passar por português, da cidade de Guimarães, era natural da província do Pará, Brasil. Imediatamente, apreenderam-lhe um baú contendo todos os seus papéis que, já à primeira vista, pareceram suspeitos às autoridades municipais. Sem demora, enviaram-no de Tomar para Lisboa, onde ficou preso, em segredo e isolamento, na cadeia do Limoeiro. A leitura dos papéis apreendidos com o paraense revelou que ele era um crítico feroz do regime implantado por D. Miguel, em julho de 1828, quando o Infante foi aclamado rei pelas cortes tradicionais de Portugal. Após uma série de golpes de estado malogrados, intentados desde 1823, no pronunciamento militar que ficou conhecido como Vilafrancada (Lousada, Ferreira, 2009LOUSADA, Mª Alexandre; FERREIRA, Mª de Fátima Sá e Melo. D. Miguel. Rio de Mouro: Printer Portuguesa, 2009.), a ascensão ao trono do filho mais novo dos Bragança pôs fim à segunda experiência liberal portuguesa (1826-1828), iniciada com a outorga da constituição brasileira ao Reino, por D. Pedro I, imperador do Brasil. A repressão miguelista que se desencadeou contra os opositores do regime foi sem trégua. Numa população de 3 milhões de habitantes, estima-se que tenham sido feitas mais de 13 mil prisões (Lousada, 1987, p. 5). D. Miguel foi, ao lado de Carlos V, da Espanha, a figura mais destacada da contrarrevolução na Europa da época das restaurações (1808-1836) [Rújula, Solans, 2017RÚJULA, Pedro; SOLANS, Javier Ramón (Eds.). El desafio de la revolución. Reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). Granada: Comares, 2017.].

Mesmo que as posições de Antônio de Miranda sobre o regime não comprovassem que as possíveis rasuras no passaporte e a falsidade ideológica obedecessem a algum desígnio político, a associação dos fatos pelas autoridades legitimistas foi imediata. Até porque, os argumentos que o portador do passaporte usou para se eximir da culpa de adulteração de documentos, pareciam mesmo frágeis, ainda que, ao observador contemporâneo, não permitam afirmar, de forma categórica, que ele estivesse mentindo.

Sobre a rasura na indicação do local de destino, defendeu-se afirmando que fora feita pelo próprio responsável pela expedição do passaporte. Instado a responder como, se assim foi, explicaria que a tinta e a letra utilizadas para o reparo fossem diferentes das usadas na grafia original do escrivão, argumentou que a retificação fora feita na loja do funcionário, enquanto o documento original tinha sido expedido na casa da mesma autoridade. Em relação ao fato de querer passar-se por português, o suspeito disse tê-lo feito em razão da urgência que tinha para se deslocar de um lugar para outro, ciente que estava de que a expedição de passaportes para estrangeiros era mais demorada que a de portugueses.

De fato, o negociante tinha pressa. Daquela vez, a viagem ao Reino se devia ao tratamento de uma “doença de peito”, que lhe exigia frequentar cidades como Sintra, Caldas, Tomar e Punhete, famosas por suas fontes de águas medicinais e pelos bons e aprazíveis ares. Da mesma forma, eram urgentes os banhos revigorantes nas fontes de águas férreas e sulfurosas, em diferentes partes do país. Por isso mesmo, Antônio de Miranda era forçado a uma itinerância que foi registrada em uma carta enviada por um Sr. Castro a um amigo comum, Antônio Feliciano José Colares, a 14 de agosto de 1830. Em tom de troça, Castro dizia-se “Criado do Sr. Miranda” já que o destinatário não tinha paradeiro certo:

Escreve-me das Caldas dizendo-me que ia para a Pederneira, depois escreve para o Sr. Colares dizendo que ia para Punhete [...] escrevo-lhe para as Caldas e remeto a dita carta pondo a cedilha nas Caldas conforme a sua ordem pois julguei que assim como V. Mercê tinha deixado ordem para lhe remeterem as cartas para a Pederneira também o teria feito para Punhete e eis-me ainda sem resposta.

Tinha razão o amigo de se mostrar contrafeito, e quando Antônio Miranda descobrisse a causa pela qual mostravam tanta urgência em localizá-lo, o ficaria ainda mais. Castro tinha duas entregas a fazer que não poderiam ser mais preciosas: uma carta do pai de Antônio de Miranda e uma caixa de tapioca, que um terceiro amigo, de sobrenome Borges, certamente conterrâneo, lhe enviara. Por fim, revelando mais uma vez a proximidade com o negociante paraense, ainda que se dirigisse a “interposta pessoa”, diz, em tom de mofa: “Vossa Mercê safou-se das Caldas e não quis ver a triunfante entrada de S. Majestade”.

De volta ao baú dos papéis, junto com impressos e cópias manuscritas de panfletos liberais que circulavam em Portugal, foram encontrados o copiador do comerciante e sua correspondência passiva, recobrindo o período de sua chegada a Lisboa até a data de sua prisão. O conjunto de cartas ali reunido, do qual já se deu mostra pelos incidentes envolvendo o seu paradeiro, integra o processo político movido contra Antônio José de Miranda por autoridades designadas pela Comissão criada em 15 de agosto de 1828 “para julgar todos os crimes cometidos contra a Real Pessoa de El Rei... contra a Segurança do Estado”. Essa comissão era composta por um juiz relator e por nove juízes adjuntos. O processo de Antônio de Miranda apresenta-se como o documento mais completo de todos os encontrados, até aqui, entre os instaurados contra presos políticos estrangeiros do reinado de D. Miguel, assunto que venho pesquisando nos últimos anos (Gonçalves, 2013GONÇALVES, Andréa Lisly. A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto. Revista Brasileira de História (On-line). v. 33, p. 211-223, 2013., 2015aGONÇALVES, Andréa Lisly. “Cidadãos teóricos de uma nação imprecisa”: a ação política de estrangeiros no reinado de D. Miguel, 1828-1834. Tempo, v. 21, p. 171-191, 2015a.).

Assim, aquilo que aumentou o infortúnio do negociante paraense, a descoberta de seu copiador pelas forças policiais, constitui um achado precioso para o historiador de hoje. Como se sabe, há a tendência de que os arquivos compostos por cartas pessoais, de gente ilustre ou não, principalmente, em fins do século XVIII e primeiras décadas do XIX, sejam formados pela correspondência passiva dos missivistas. Os Miranda, ao contrário de serem uma família comum, constituíam uma das oligarquias mais destacadas do Pará, o que coloca a possiblidade de que a correspondência da família viesse a ser preservada. Mas, no caso das cartas em questão, elas não foram reunidas e legadas à posteridade pela notoriedade do seu titular, mas sim pela ação da polícia política de um regime antiliberal, como foi o de D. Miguel. O fato de termos os rascunhos das missivas - e não apenas delas, como se verá - permite que tenhamos em mãos algo próximo à correspondência ativa do personagem.

Há que se destacar, também, que o réu não fora processado sozinho. Com ele estava Casimiro José da Silva, estudante em Coimbra, também paraense, com quem Antônio José mantinha uma correspondência bastante próxima e, aos olhos das autoridades, totalmente suspeita. Assim, a documentação reúne, além das cartas trocadas entre Antônio e Casimiro, a correspondência do estudante com pessoas que não eram do círculo do comerciante.

Se um dos motivos que me levaram a ter acesso a essa documentação foi o interesse pela oposição política ao reinado de D. Miguel por pessoas de diferentes nacionalidades, a natureza das fontes ali encontradas, especialmente, não só a correspondência pessoal entretida por Antônio de Miranda com o corréu, mas, sobretudo, com familiares e amigos, seja no Pará, seja no Rio de Janeiro ou em Portugal, levou-me a voltar a atenção ao campo da “escrita de si”.3 3 Retomando, assim, reflexões que fiz em meu livro História & gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Até então, havia me interessado pelos principais lances do envolvimento político de Antônio de Miranda, a partir da acusação das autoridades, dos depoimentos de testemunhas, da defesa do advogado, das respostas dadas pelo réu em seus interrogatórios, o que me exigiu a adoção de métodos próprios da pesquisa em história política (Gonçalves, 2015bGONÇALVES, Andréa Lisly. “Contra a Pessoa de El Rei e a Segurança do Estado”: brasileiros na resistência ao miguelismo em Portugal (1828-1834). Revista do Arquivo Publico Mineiro, v. LI, p. 132-143. 2015b., p. 132-143).

Já a abordagem que adoto neste artigo, e que faz com que ele assuma uma estrutura mais narrativa, seguiu uma estratégia que obedece a outros critérios. Em alguns momentos, cheguei mesmo a ceder ao fascínio que os registros íntimos exercem sobre boa parte de nós, leitores. Nesse particular, as cartas pessoais, desde os finais do século XVIII e pelo Oitocentos afora, destacam-se pelo fato de terem resultado da separação entre as esferas pública e privada; por se constituírem como o índice de uma nova forma de intimidade, marcada pelo individualismo e que, por isso mesmo, resulta em um pacto entre remetente e destinatário, este último, na maioria das vezes, constituído por uma única pessoa, fiel depositária das angústias, entusiasmos e confidências do remetente. As próprias condições de sua produção, a suposição de que não viriam a conhecimento do público, levariam a que prevalecesse a predisposição à sinceridade, o que pode ser sintetizado na ideia de que “a sociedade da sinceridade é também a da intimidade” (Gomes, 2004GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 7-24., p. 16), do que resulta “algo que pode enfeitiçar o leitor/pesquisador pelo sentimento de veracidade que lhe é constitutivo” (p. 15).

O livro A família Manzoni, de Natália Ginzburg, foi uma importante inspiração para o tratamento da correspondência de Antônio José de Miranda, a partir das informações pessoais da personagem. Na sua introdução, Salvatore Silvano Nigro afirma que se trata de um “romance-conversa que dispensa ficção”. Acrescenta, em seguida, que a autora “não inventa documentos e não manipula cartas”4 4 Além das cartas, a autora utilizou fontes visuais, contando com uma galeria de retratos “uma história de faces, olhares, gestos” que estão longe de serem “objetos ornamentais” (Nigro apud Ginzburg, 2017, p. 10, 15) e que se trata do “romance de uma família inteira dentro do âmbito de sua história, sem fazer nenhuma concessão aos expedientes de ficção”. Na obra, as questões do cotidiano, principalmente as doenças e os círculos familiares e de amizade da valetudinária Julia - filha de Cesare Beccaria - dividem o proscênio com a produção intelectual de Alexandre Manzoni, célebre escritor, autor de Os noivos. O romance encontrava-se entre os preferidos de D. Pedro II, resultando em uma animada troca de correspondência entre Manzoni e o imperador.5 5 “Alexandre Manzoni (Milão 1785-1873) é conhecido, no Brasil, desde os tempos de D. Pedro II. O famoso imperador gostava de travar amizade e manter relações com os homens mais ilustres de sua época. Alexandre Manzoni foi um deles. Os arquivos da Casa Imperial do Brasil, no castelo D’Eu, em França, contêm a correspondência trocada entre Manzoni e D. Pedro II. O imperador brasileiro teve para com o escritor italiano não somente simpatia, mas verdadeira admiração” (Castagnola, 1959).

Por que razão o livro é considerado, pela própria autora, um romance, já que as “cartas são autênticas” e que nenhuma sílaba foi trocada ou substituída e que não faltou sequer uma “seleta e criteriosa pesquisa bibliográfica”, é algo que me escapa à compreensão (Ginzburg, 2017GINZBURG, Natalia. A família Manzoni. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 9, 15). Talvez possamos conjeturar que Ginzburg, no fundo, ao reproduzir fielmente as cartas - chegava a ponto de transcrevê-las à mão para ter a sensação que os seus autores tiveram - quisesse mostrar que, no caso das correspondências, a separação entre realidade e ficção é ainda mais tênue, tornando imprecisa qualquer tentativa de classificação. Situação diferente da do historiador, pelo menos daquele pouco interessado em romancear a realidade, mas preocupado em reconstruí-la, a partir de métodos e questões bem definidas. As diferenças nos resultados alcançados, mesmo sendo sensíveis, não invalidam, porém, que haja uma inspiração mútua entre um gênero e outro, sobretudo em se tratando de um romance como o escrito por Natália Ginzburg.

Voltando a Antônio de Miranda, tinham me interessado, até há pouco tempo, quase que exclusivamente, as questões políticas que o levaram à prisão e, posteriormente, a ser repatriado para o Brasil, de acordo com a sentença do tribunal que o julgou, como já observado. Esse lado da experiência do negociante foi certamente o que singularizou aquela viagem a Portugal, iniciada no ano de 1828. Afinal, não era a primeira vez que ele viajara à Europa nem seria a última, mas fora aquela a vez em que lhe aconteceu de sofrer, na própria pele, os rigores de um sistema político tirânico, de acordo com expressões que encontramos em sua correspondência, para caracterizar o regime implantado por D. Miguel.6 6 “Brevemente sairão algumas embarcações a bloquear as ilhas rebeldes ao novo sistema, a Madeira, a Terceira, para assim aumentar o número de inumeráveis infelizes vítimas da tirania” (ANTT. Maço 13, n. 6, s. p.).

A existência do copiador e do conjunto de cartas preservado no processo político de Antônio de Miranda, recobrindo os dois anos e meio que transcorrem de sua chegada até a sua prisão, permite ir mais além, revelando aspectos das sensibilidades e do cotidiano de um jovem negociante, filho de uma família ilustre do Brasil, em viagem pelo Velho Mundo. A expectativa é de que o enredo criado permita não apenas confirmar a validade das questões teóricas e metodológicas, trabalhadas por vários autores que se dedicaram à “escrita de si”, mas, também, de que o próprio conteúdo das missivas contribua com a proposição de estratégias para o tratamento das cartas pessoais como fontes documentais.

Antônio José de Miranda e seu copiador

Uma consideração recorrente sobre a utilização de cartas pessoais como fonte para a história é a de que elas, diferentemente das memórias e biografias, apreendem um momento específico da trajetória do missivista, caracterizando-se por certa fugacidade, recobrindo as circunstâncias e momentos singulares da história de vida de uma pessoa ou de um grupo envolvido nessa prática. Por esse motivo, interessam-nos aqui os dados de Antônio José de Miranda disponíveis para os anos mais próximos de sua prisão, apesar da existência de informações sobre sua vida, principalmente quando ele se torna comendador ou quando participa, já na década de 1860, como sócio e a convite da presidência da província, da “organização de uma companhia com objetivo de realizar a navegação a vapor entre Belém e a ilha de Marajó, com escalas nos portos das vilas de Soure, Muaná, Chaves e da cidade de Macapá” (Gregório, 2008GREGÓRIO, Victor Marcos. Uma face de Jano: a navegação do rio Amazonas e a formação do Estado brasileiro (1838-1867). Dissertação (Mestrado), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008., p. 194).

Nascido em Belém, no ano de 1806, Antônio José de Miranda era filho do português Vicente Antônio de Miranda e de Floripes Joaquina de Oliveira. No bairro da Cidade, Freguesia da Sé, no qual Antônio Miranda se criou, estavam instaladas, além dos Miranda, as principais famílias da província, como os “Chermont, os Bittencourt” (Guimarães, 2016GUIMARÃES, Luiz Antonio Valente. De chegadas e partidas. Migrações portuguesas no Pará (1800-1850). Tese (Doutorado), Universidade Federal do Pará. Belém, 2016., p. 129). Os investimentos da família Miranda, ainda que centrados no comércio “de longo curso, envolvendo a importação e a exportação, pelo menos, com Portugal” (Batista, 2004BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais. Elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1858-c1870. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004., p. 147)7 7 Os principais produtos exportados pelo Pará a Portugal, além do açúcar, eram: algodão, arroz, aguardente, borracha, em sacas e em pipas, cacau, couros secos, café, cobre, cravo, farinha, óleo de rícino, puxiri (nós moscada brasileira), salsa, tapioca, urucum (Guimarães, 2016, p. 145-146). eram bastante diversificados, incluindo atividades rentistas, escravos, propriedades rurais e urbanas.8 8 Ibidem, p. 117.

Em cartas ao pai, aos tios e aos irmãos, Antônio informou que a situação econômica da Antiga Metrópole ia de mal a pior, o que interferia, diretamente, nos negócios da família. Prova disso era o pequeno movimento de embarcações no porto de Lisboa. Se os anos finais da década de 1810 foram de retomada do crescimento da economia portuguesa, reconstruída após a expulsão das tropas francesas, em 1815, os anos 1820 terminavam em uma profunda crise. A esse respeito, os dados do comércio exterior, que incluem “nações estrangeiras”, o Brasil e as colônias, não podiam ser mais eloquentes:


Dados do comércio exterior: Portugal, 1815-1828

Aos dados constituídos a partir das Balanças do comércio, Rui Cascão acrescenta que a “situação é ainda menos lisonjeira quando se conclui que o montante do comércio com o Brasil e as colônias nos anos de 1824-1828 representa só 38,1% do observado em 1815-1819” (Cascão, 1985, p. 120). As finanças do Estado encontravam-se reduzidas a 62% de suas receitas de 1808, uma situação falimentar (Ramos, Sousa, Monteiro, 2009RAMOS, Rui; SOUSA, Bernardo Vasconcelos; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Orgs). História de Portugal. Lisboa: A esfera dos Livros, 2009., p.481).

No Pará, pelas ligações mais estreitas com Portugal, que se prolongaram para muito além da independência do Brasil, a crise iniciada com a subida de D. Miguel ao trono era sentida de forma direta. Tanto foi assim que, em 1829, “os Presidentes do Grão-Pará justificavam o caos financeiro da província, dentre outras coisas, pelo enfraquecimento do comércio com Portugal, causado por questões políticas” (Machado, 2009MACHADO, André Roberto de Arruda. Redesenhando caminhos. O papel dos representantes do Grão-Pará na primeira legislatura do Império do Brasil (1826-1829). Almanack Braziliense (São Paulo). n. 10, p. 75-97, nov. 2009., p. 77). Um dos ramos mais afetados de toda a economia era o do comércio de açúcar, conforme anotou Antônio José, de passagem, em seu copiador: “A disgraça em que está o comércio dos portos do Brasil é tal que [...] o açúcar está a 2600 @”, logo em seguida acrescentando que, se o governo de D. Miguel era o mal maior, não era o único: “e o mais é assim, o estrago dos piratas é extraordinário nas duas bandeiras”. A historiografia aponta que a própria crise dos impérios colonais levou à intensificação do movimento de corsários no Atlântico sul,9 9 “O ciclo corsário das guerras napoleônicas ainda se estendeu até (con)fundir-se com o ciclo das independências” (Secreto, 2016, p. 435). entre os anos de 1821 a 1830. A concentração das ações de corso, por sua associação aos movimentos de independência na América hispânica ficou conhecido como “corso insurgente”.10 10 “Privateering and piracy were practised on a significant scale during the Spanish American Wars of Independence. In the two decades following the outbreak of the Spanish American revolutions, insurgent and Spanish privaters, along with Cuban-based pirates, initiated more than 1600 prize actions. Raids were conducted throughout the Atlantic world in a range of different vessesl, from heavily armed private men-of-war to small open craft manned by only a handful of seafares.” (MacCarthy, 2013, p. 157) A ação dos corsários insurgentes só cessa no ano de 1829, quando Bolívar revoga a licença dada a corsários colombianos: “They [corsários insurgentes] were a persisten thorn in the side of Spanish seaborne trade throughout the Wars of Independence and only vacated Atlantic waters when Simón Bolivar revoked Colombian privateering licences in 1829” (p. 24). Se houvesse alguma dúvida de que as observações de Antônio de Miranda eram relativas ao corso que se desenvolveu como um dos corolários das lutas de independência da América Hispânica, bastaria para a desfazer uma passagem da carta endereçada ao Sr. Norberto Tavares de Madureira, também negociante, datada de agosto de 1828. Nessa missiva, Antônio José de Miranda utiliza o termo “insurgentes” no lugar de piratas: “chegamos a esta cidade no dia 22 de julho pp [...] viagem muito feliz e bem não obstante a má saída, que daí tivemos, e maus tempos, a felicidade de ter escapado aos insurgentes, louvado Deus que tem inteiramente derrotado o comércio do Brasil e Portugal”.

Há que se ressaltar, porém, que os dados sobre o comércio encontrados nos rascunhos das cartas de Antônio de Miranda, por sua insuficiência, não são de grande valia para o pesquisador interessado em reconstruir aspectos das relações econômicas, propriamente, no comércio de longa distância e de grosso trato dos membros de famílias como as de Antônio de Miranda. Eles revelam muito mais sobre como as redes de negócios se reproduziam nas relações pessoais; como os laços comerciais se traduziam em pequenos obséquios, no acolhimento dos comerciantes brasileiros em viagem à Europa, no socorro em momentos de necessidade, no apoio em casos mais extremos como prisões e doenças graves, quando o comerciante se encontra longe de casa e, por que não, no aconselhamento, na troca de confidências e de vivências íntimas.

O que não nos impede de afirmar que a crise do comércio com o antigo reino, desde que D. Miguel ascendera ao trono, influenciou as percepções e os posicionamentos políticos da personagem. Porém, e como se pretende abordar mais adiante, as convicções liberais de Antônio de Miranda não se restringiam à defesa imediata de seus interesses econômicos. A expectativa é a de que as abordagens se complementem, revelando-se, aqui, a proximidade dos vínculos entre o Pará e o antigo reino, tecida em torno do grupo de comerciantes que se estabeleciam entre aquela província setentrional e Portugal.

Voltando aos dados pessoais da personagem, duas fontes que constam no processo político de Antônio de Miranda fornecem informações sobre suas características físicas, aos 24 anos. Uma delas, o processo político, propriamente, em que consta ser ele um rapaz de olhos e cabelos castanhos e rosto redondo. A outra, mais completa, integra os apensos e consiste em um documento pelo qual a polícia concedia “residência por tempo de um ano a Antonio José de Miranda natural do Pará” que havia declarado estar indo se instalar na morada situada “na rua nova de S. Mamede n.30, bairro do Castelo”.11 11 No documento estava expressa, ainda, a seguinte advertência que não foi seguida à risca, pelo que veremos, por Antônio de Miranda: “Este bilhete só autoriza a residência do portador nesta capital, e de forma alguma lhe pode servir para transitar no Reino; para o que deve requerer passaporte.” Passado a 4 de junho de 1830, a se crer no esmero do funcionário ao registrar a informação, ficamos sabendo pelo documento que sua “estatura regular” correspondia a 1,52 metro (60 polegadas) e que, no Reino, o castanho admitia a variação “pardo” e a cor da sua pele poderia ser classificada como trigueira. O retrato que se segue foi feito no ano de 1895. Não sabemos qual imagem serviu de modelo, talvez uma fotografia, um daguerreótipo. O fato de que ele aparenta não ter chegado aos 30 anos indica que o retrato pode ter sido feito pouco depois de seu regresso, em 1831.

Figura 2
Retrato de Antônio José de Miranda

Mesmo não restando dúvidas de que Antônio de Miranda também cuidava das atividades mercantis da família no período em que esteve em Lisboa e que coincidiu com a ascensão de D. Miguel ao trono português, as referências à sua ocupação variam de um registro a outro, ainda que as informações não sejam excludentes. Em algumas genealogias da família, aparece como capitalista.13 13 A mística do parentesco. Disponível em: https://www.parentesco.com.br/index.php?apg=arvore&idp=32701, Acesso em: 30 nov. 2019. No documento citado logo acima, expedido pela Intendência de polícia, ele é apresentado como proprietário. Na maior parte das vezes, figura como negociante14 14 “O termo ‘negociante’ [...] se torna corrente durante o século XIX para denominar as elites económicas em diversos setores de atividade (comércio por grosso, indústria, finança e banca - neste caso concorrendo com a designação de ‘capitalista’ - eventualmente até agricultura, desde que os proprietários mantenham outros interesses)” [Pedreira, 1992, p. 410]. e, quando de seu interrogatório, perguntado sobre qual seria sua ocupação, ele respondeu “nenhuma”, talvez se referindo ao fato de que não foram os negócios que, dessa vez, o haviam feito se deslocar do Pará para Portugal.

Quanto ao copiador que a polícia apreendeu a Antônio José de Miranda, em sua folha de rosto está escrito: “Copiador de Cartas que teve princípio em 19 de junho de 1828”.

Figura 3
Folha de rosto do copiador de cartas

A data coincide com as das primeiras cartas a serem remetidas ao Pará, redigidas pelo negociante e endereçadas ao pai e aos irmãos, separadamente. Percorrendo os fólios, logo percebemos que as páginas não serviam apenas ao rascunho das correspondências, sendo utilizadas para anotações diversas.15 15 O copiador passou a ser uma exigência legal, feita aos comerciantes, a partir do código comercial de 1850, “Em 25 de junho de 1850, foi aprovado o primeiro código comercial brasileiro. Neste código foram destinados dez artigos à regulamentação da contabilidade e da escrituração comercial, conforme segue... Art.11 - os livros que os comerciantes são obrigados a ter indispensavelmente... são o Diário e o Copiador de cartas. [...] Artigo 12... No copiador o comerciante é obrigado a lançar o registro de todas as cartas missivas que expedir, com as contas, faturas ou instruções que as acompanharem” (Silva, 2005, p. 48, 49). É provável que a exigência legalizasse uma prática já corrente, há muito, entre os comerciantes. Os registros acerca das atividades mercantis, pelo menos sobre as transações de longa distância, não predominam em suas anotações, exceto quando se referem aos efeitos das movimentações dos corsários sobre o comércio marítimo, como já referido, com destaque para o estabelecido entre Portugal e o Brasil.

O nosso personagem tinha, também, o gosto de transcrever versos líricos e de glosar poemas de Tomás Antônio Gonzaga:

Se eu hoje faltei a ver

A Marília amante há

Não uma só, mas mil vezes

Pensei nela estando cá

O que confirma o prestígio do poeta inconfidente, que teve a primeira parte de suas liras publicadas já em 1792, ano de sua chegada ao degredo em Moçambique. A partir daí, sua obra poética ganhou sucessivas edições, datando a sétima de 1810, a primeira publicada no Brasil (Jardim, 2014JARDIM, Ana Cristina Magalhães. O mito de Marília de Dirceu - 1792 a 1889: aspectos da construção e da apropriação de heróis românticos e a formação da Nação brasileira. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Ouro Preto. Mariana, 2014., p. 107, 108).

No copiador, estavam assentadas também tarefas do cotidiano que ocupavam boa parte do tempo de Antônio de Miranda. Assim era, por exemplo, com as peças do enxoval que levara em sua bagagem, item que lhe exigia cuidado e atenção pessoais. Ele mesmo registrava o rol das roupas enviadas para lavar e conferia, pessoalmente, se todas tinham retornado. No mês de sua chegada, não deve ter ficado nada satisfeito quando deu pela falta de dois lenços grandes, do tipo que se usava amarrado ao pescoço, de um total de oito que tinham seguido para a lavanderia.16 16 Os outros itens eram: toalhas, meias, camisas, lenços de mão. O guarda roupa de Antônio de Miranda evoca a figura do dândi ou, até mesmo, do flanêur, descrito por Walter Benjamin (2015)BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. São Paulo: Autêntica, 2015.. Porém, talvez faltasse a Antônio de Miranda o aburguesamento necessário para encarnar o personagem baudelairiano que perambulava pelas ruas de Paris, por mais que dominasse a língua francesa, como se verá. Parece que lhe apeteciam melhor as cavalgadas, as paisagens bucólicas e os prédios históricos: “[Sintra] é um lugar lindo pelos bons ares, vista e águas das serras vizinhas”. De uma das janelas da casa, na mesma Sintra, avistava “o convento de Mafra distante 3 léguas” sendo que, em uma oportunidade, demorou-se ali um dia inteiro, admirando as “duas torres donde se conta 57 sinos”, os “paineis de santo”, assim como a magnífica livraria “donde se acham 153 estantes, e soberbo templo onde não se vê cal pois tudo é pedra”.

Afinal, as oligarquias escravistas talvez se distanciassem dos setores das classes médias emergentes na Europa, mesmo que o ethos burguês destas últimas seguisse sendo referenciado nos antigos estamentos aristocráticos, em países como Inglaterra e França, do que nos dão conta as obras de Marcel Proust e de Honoré de Balzac, mas também, para ficarmos na historiografia, a A força da tradição: a persistência do Antigo Regime, de Arno J. Mayer (1987MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.).

Apesar de guardar algumas semelhanças com aquele gênero de escrita dos diários17 17 Um gênero, por sua vez, de difícil classificação: “Manter seus diários é, no século 19, uma prática corrente, e cada vez mais difundida. As origens e os significados são múltiplos. Encontramos nele o aspecto de ‘agenda’ dos livros de notas femininos, preocupados em registrar as despesas e o tempo que está fazendo, em regular os recursos e logo, o bem mais precioso: o uso do tempo. Por meio da crônica das doenças, o corpo tem ali um lugar. A alma também. Pois as fontes religiosas do diário íntimo são fundamentais” (Perrot, 2005, p. 95-96). que, desde o final dos Setecentos, ganhava cada vez mais adeptos nos países europeus, com destaque para os de religião protestante, o copiador de Antônio de Miranda parece ter mais proximidade com o que se conhece hoje como livro de assento. Destinados a um tipo de escrituração, ao mesmo tempo pessoal e contábil, os livros de assento eram mantidos por alguns membros das classes abastadas no Brasil dos Oitocentos. Neles, a maior parte das notações dizia respeito ao funcionamento das propriedades, à entrada e saída de víveres, à situação da escravaria. Informações que dividem o movimento das penas de seus autores com as datas de aniversário, as notícias sobre familiares e as visitas. Mas os escritos encontrados no copiador do negociante paraense parecem desafiar classificações mais estritas. O fato de se destinar, especialmente, a ser o borrador de sua correspondência pessoal, privada, faz desse copiador a expressão de novas subjetividades, ao mesmo tempo que contribui para a criação de “estruturas de sentir” originais.

Os hábitos de escrita de Antônio José de Miranda, portanto, até certo ponto, confirmam o que Evaldo Cabral de Mello observou, citando Georg Gusdorf, sobre a rarefação de diários pessoais no Império do Brasil, em contraste com os países que experimentaram a reforma protestante, nas quais o diário íntimo era “um exercício espiritual que procede diretamente da exigência religiosa” (Gusdorf apud Mello, 2002, p. 386). Nas sociedades católicas, as frequentes idas ao confessionário eximiam os fiéis e tornavam ociosas as anotações de cunho mais pessoal, como o eram os exames de consciência (Gonçalves, 2007GONÇALVES, Andréa Lisly. História & Gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.).

A explicação, no entanto, não seria suficiente, ainda de acordo com Evaldo Cabral, já que nada impediria que as confissões orais se transformassem em confissões escritas, exercício para o qual não faltavam exemplos na tradição católica, sendo os mais expressivos os de Santo Agostinho e de Santa Teresa d’Ávila. A associação entre o catolicismo e a ausência de uma escrita íntima deveria ser buscada no fato de que a Igreja criada por Pedro não exigia, ao contrário do protestantismo, o conhecimento da leitura para o acesso às sagradas escrituras.

Como um homem proveniente dos setores oligárquicos da sociedade brasileira, não faltava a Antônio José de Miranda o acesso à cultura escrita, do que já tivemos indícios com a sua admiração pela biblioteca do convento de Mafra. Pelo contrário. Na sua correspondência encontram-se vários exemplos de como a cultura letrada era vivenciada por ele e pelas pessoas de suas relações mais próximas. A começar pelo fato de que, das encomendas feitas pelos familiares, as mais comuns eram os livros. Logo nas primeiras cartas, ele queixava-se aos parentes de que um exemplar de A história de Gil Braz de Santilhana andava pela hora da morte, mesmo que a única edição disponível em português não fosse ilustrada. A obra, um romance de costumes e de sátira social, de autoria do francês Alain René Lesage (1668-1747), em quatro volumes, não sairia por menos de 1$900 (mil e novecentos réis).

Mais em conta, $960 (novecentos e sessenta réis), o Viagens de Altina, nas cidades mais cultas da Europa e nas principais povoações dos balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, de Luís Caetano de Campos (1750?-1820?), publicado entre 1790 e 1793 (Campos, 1790), ainda tinha a vantagem de ser divertido e instrutivo, qualidades que agradariam à sua tia Lizandra, conforme Antônio afirma em cartas remetidas ao Brasil. Na obra, comparável às Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1667-1745), a viajante Altina, depois de percorrer vários países da Europa, tem o curso de seu navio desviado pela ação de corsários - sempre eles! - para um continente fictício, a terra dos balinos, onde se desenrolam suas aventuras.

As encomendas e os preços dos livros eram zelosamente registrados, em listas, no copiador. Antônio José também se esmerou por encontrar obras que servissem ao irmão, Francisco, em seu aprendizado da língua francesa O caso mostra que os conhecimentos que ele tinha do francês permitiam que pudesse instruir um terceiro no aprendizado desse idioma. Depois de comentar que se aplicava no exercício de conversação, acrescenta que a moléstia o “embaraçava extraordinariamente”, e arremata, aconselhando: “Deves seguir o método que te prescrevi como de todos o melhor o que se encerra em passar do português para frânces pouco (?) mais que 6 linhas ao princípio. estudar o essencial da gramática quanto toca a verbos ditongos e continuando com os diálogos.”

Por sua correspondência passiva, somos informados de como foram, até certo ponto, baldados os seus esforços para encontrar livros que servissem à docência da língua estrangeira no interior de seu núcleo familiar mais próximo. A 3 de julho de 1830, recebeu carta de um amigo que assinava apenas “Bastos”, residente em Lisboa, dizendo que o resumo da “História de Portugal em português e francês” que Antônio Miranda lhe encomendara seria “De pouca utilidade para quem quer aprender a língua”. Embora se tratasse de obra bilíngue, o tal resumo “não era bom para a tradução pois que ele não consta senão dos Reis que teve Portugal os seus nomes, os anos que viveram, e reinado o tempo em que nasceram, e morreram, o que tudo está em algarismo”. As encomendas ao Bastos incluíam partituras musicais “Agora sei que o navio parte amanhã motivo porque não pode ir a música irá pelo Diana que sai brevemente”.

Não faltou nem mesmo, entre os livros comprados por Antônio de Miranda, diligente para que o irmão aprendesse uma língua estrangeira, o envio de um exemplar da Bíblia “em Francês que remeto ao mano Francisco comprado em segunda mão”. Junto com as sagradas escrituras, o negociante remetia ao Pará uns mapas que permitiam que “de um golpe de vista se [visse] o que vai por esse mundo”.

Por último, um incidente envolvendo livros ilustra como o apreço pela escrita variava de acordo com a origem social dos leitores, já que a disseminação da educação formal entre o grosso da população do Brasil nunca constou dos projetos dos construtores da nação imperial. A fonte na qual o episódio é narrado não provém do copiador, mas de carta apreendida a Casimiro José, preso com Antônio de Miranda, como já se afirmou. Do Pará, certo Felipe Neri C. de Assis informava a Casimiro o destino dos exemplares de um livro, cujo título não se deu a conhecer: “Logo que recebi os livrinhos tratei de os vender a 160 reis cada um; espalhei por todas as Aulas de 1ªs letras assim da cidade como da Campina.” Os resultados não foram os esperados e Felipe Neri desabafa: “Amigo acredita-me, fiz toda a diligência de os vender, como são livros não houve quem quisesse comprar, se fosse pomada e graxa então comprariam.” Mais uma vez, há que se dar razão a Evaldo Cabral de Mello, quando afirma que a pouca disseminação da escrita responderia, no Brasil, pela baixa frequência de escritos de cunho espiritual e pessoal.

Remetentes e destinatários

No que diz respeito aos aspectos formais da escrita, nosso personagem parece ser um bom exemplo daquilo que destacam os autores que se dedicam ao gênero epistolográfico, que é a existência de uma convenção para a escrita de cartas, um certo rigor formal, cujos procedimentos - data e local, saudações, tema, fechamento - são aprendidos nos bancos escolares e, por vezes, embaraçam a espontaneidade do que se registra na escrita, levando ao engano os analistas mais crédulos.18 18 “As cartas constituem um gênero fortemente tipificado que se apoia em um modelo universalmente conhecido e reconhecível. O registro do local e da data de sua escritura, bem como as saudações, as despedidas e a assinatura são, segundo os manuais epistolares, aspectos do código que fazem com que um texto seja reconhecido como carta” (Venancio, 2004, p. 119). Um exemplo é o de que, quando escrevia ao pai, aos irmãos ou a conhecidos menos próximos, no Pará, costumava reproduzir a mesma abertura ou introduzir no enunciado pequenas alterações, chegando a redigir modelos de apresentação, “exercícios de estilo”, sem que a eles correspondesse algum destinatário em especial.

Toda essa preocupação com os aspectos formais relaciona-se ao fato, um tanto óbvio, de que a escrita de cartas é uma prática relacional.19 19 As cartas “são textos íntimos, mas diferentemente desses [diários e memórias] são relacionais; textos nos quais o sentido do que é escrito só pode ser apreendido em função de um ‘outro’ e um outro singular. A prática epistolar estabelece assim uma espécie de circuito retroalimentado de significação, sendo importante reter que, depois de escrita, a carta já não é mais de quem escreve (se seu autor ou remetente), mas de quem a recebe (o destinatário), que se torna seu ‘proprietário’” (Gomes, 2004, p. 53). Assim sendo, não apenas o conteúdo, mas a sua forma, variam de acordo com o destinatário. A cada um ou a cada grupo específico de pessoas ao qual as missivas se destinam corresponde a construção de uma autorrepresentação (Luca, 2004LUCA, Tânia de. Monteiro Lobato: poder e auto-representação n’A Barca de Gleyre. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p.139., p. 139) do remetente, mesmo que não seja totalmente perceptível ao autor do texto epistolar:

“De este modo, ellas dan inicio a una inédita experiencia auto- representacional que, desde un discurso inscrito en las zonas privadas del yo, y que además apela a un tú próximo y familiar, configura un sujeto que se proyecta desde el ámbito íntimo y/o doméstico hacia lo público” (Salomone, 2013SALOMONE, Carol Arcos y Alicia. Mujeres e Independencia en Chile. La cultura del rato y la escritura de cartas. Teresa. Revista de Literatura Brasileira, n. 12/13, p. 205-221, 2013., p 217).

Tendo isso em vista, é possível classificar algumas cartas, rascunhadas no copiador de Antônio de Miranda ao longo dos mais de dois anos e meio em que esteve em viagem a Portugal, de acordo com o (a) destinatário (a),20 20 “Os estudos ‘sobre cartas’ deverão respeitar o caráter plural do objeto e, na medida do possível, apresentar uma análise de tipo fenomenológico da correspondência, considerando 1) as circunstâncias de sua produção e recepção. [...], 2) a necessária diversidade das abordagens em virtude da pluralidade do objeto” (Galvão, Gotlib, 2000, p. 395-399). o que possibilita, assim se supõe, perceber a emergência de diferentes autorrepresentações do remetente.

A que mais se destaca é a do filho amoroso, preocupado com a saúde do pai, mais do que com a própria, a qual, sabemos, inspirava cuidados, aprestado em cumular-lhe de mimos que aplacassem as plausíveis saudades que pudesse sentir do Reino, onde nascera. “Eu mando algumas maçãs... não mando uvas porque as deste tempo ainda não aturam o que farei logo que tenha ocasião própria.” A delicadeza do filho sendo frustrada pela verdadeira grosseria do comandante do navio: “Algumas frutas não chegaram o glutão do comandante as comeu.” Persistente, no mês seguinte, envia peras...

Todos os sentimentos genuínos, como quando poupa o pai, Vicente Antônio de Miranda, de notícias mais detalhadas sobre a conjuntura política de Portugal sob D. Miguel, abundantes nas primeiras cartas remetidas aos irmãos, ainda que não omita a situação de alguns paraenses e suas agruras em Portugal. “Nesta ocasião vai o Vilaças e o Brito com 3 irmãos que não puderam aqui persistir por falta de meios, o Vilaças diz que vai para vender o que lá tem. O Barata está para Braga porém sei que está resolvido a fazer o mesmo.” Faz questão de tranquilizar o pai, a quem escreve sobre a recepção afetuosa que teve na casa do comerciante Colares,21 21 “Desde 1812, temos notícias de que um importante negociante chamado Feliciano José Colares já possuía estabelecimento comercial e matrícula na Praça do Pará. Os Colares mantiveram importantes relações econômicas com a província paraense durante todo o século XIX. [...] Entre os membros da família Colares, Feliciano teve uma destacada posição. Em 1812, quando resolveu emigrar para o norte do Brasil, justificava que ‘a bem de seus negócios, se passou de Londres para esta Praça do Pará’. [...] No Brasil, seus negócios não se limitaram à província do Pará, pois observamos que havia relações comerciais com a província do Maranhão [...]. Feliciano manteve negócios de importação de mercadorias vindas de Portugal e envio de produtos locais. Em 1832, aparece como proprietário do navio ‘Maria’, que realizava esse comércio” (Guimarães, 2016, p. 156). logo de sua chegada em Lisboa: “Nada se foi mais recomendável que o agasalho com que fui recebido pelo Sr. Colares podendo dizer que me acho em casa de meu pai”.

Perto de completar um ano de sua estada em Portugal, a 26 de junho de 1830, encontrando-se em Caldas, esmera-se na escolha dos termos para mostrar-se como filho sempre reconhecido:

“Pelo Constante tive o prazer de receber a sua muito apreciável pela qual continuo a receber os sinais sempre evidentes emanados do amor ternura paternal e ternura paternal... do seu fraternal afeto de que jamais poderei deixar de olhar com olhos de reverenciamento e gratidão” (Tachado no original).

Somente o seu quadro de saúde, que não teria sofrido alteração sensível, não obstante os seus esforços, que incluíam banhos frios de água salgada, tomados em casa, principalmente durante o inverno, o impedia de voltar ao seio da família, no Brasil, especialmente ao convívio do pai. O assunto era abordado também sob o sensível prisma dos vultosos gastos com a viagem, estando subentendida a queixa paterna de que o filho não concorria para a sua manutenção na antiga Corte:

“Não há dúvida que eu deveria abraçar o seu aviso; Não há dúvida que a não serem os ... [ilegível] em que sempre me tenho visto, procurando os meios de me restabelecer me foram sempre os obstáculos que sempre eu tive para me poder dedicar às coisas úteis ao útil e proveitoso, porém sempre tenho aproveitado em alguma coisa. A vista do mundo serve de muito ao homem pois que melhor faz conhecer as coisas” (Tachado no original).

Como nos versos de Auden que servem de epígrafe a este artigo, o filho não deixava de escrever, amiúde, ao pai, mas não parecia disposto a dizer que o regresso era iminente.

Outra forma de autorrepresentação que se apreende da leitura das cartas é a do irmão zeloso, que não poupava esforços para o aprimoramento dos manos, como se viu no caso do ensino do francês. Iniciativas mais práticas também foram tomadas no sentido de ampliar as atividades da família, como quando Antônio de Miranda enviou, aos cuidados do Padre João, dois casais de coelhos que “estimarei cheguem e façam produção”. O envio de mercadoria tão especial é acompanhado por orientações detalhadas “o que eles comem ordinariamente é hortaliças, e devem estar presos em algum quintal abrigado para não levar descaminho” que sugerem que a criação dos animais não era prática comum no Brasil. Será que Antônio Miranda foi pioneiro nessa atividade? Não sabemos. A bibliografia sobre cunicultura, até os dias de hoje, não parece abundante. Alguns artigos estrangeiros informam que a Península Ibérica foi o local originário dos coelhos (Amelinckx, 2017AMELINCKX, Andrew. A brief history of domesticated rabbits. Disponível em: Disponível em: https://modernfarmer.com/2017/03/brief-history-domesticated-rabbits/ . 2017 Acesso em:19 fev. 2020.
https://modernfarmer.com/2017/03/brief-h...
). Outros indicam que apenas em finais do século XVIII e durante o século XIX verificou-se a criação doméstica de coelhos e a sua eleição como animal de estimação. Fato é que a iniciativa teve sucesso relativo.22 22 By the middle of the 19th century, the widespread practice of selectively breeding domestic rabbits had resulted in a large variety of breeds, ranging from the tiny Polish rabbit to the huge Flemish Giant. Up until the 19th century, domestic rabbits had been bred purely for their meat and fur, but during the Victorian era, many new ‘fancy’ breeds were developed for the hobby of breeding rabbits for showing. Industrialisation also meant that many people moving from the country to the expanding towns and cities, brought rabbits with them; apart from poultry, they were the only ‘farm’ animal to be practical to keep in town. Although many of these rabbits were bred for meat, it became increasingly common among the rising middle classes to keep rabbits as pets. Rabbits were connected with the countryside and the animals they had left behind, and became considered almost sentimentally (Bunnyhugga, 2010).

Alguns meses depois, em março de 1829, um dos irmãos o informa, por carta, da morte de um dos animais, do que ficamos cientes pela resposta de Antônio de Miranda “sinto ter-te morrido o coelho como me disse”. O negociante, então em Lisboa, segue aconselhando sobre a melhor forma de trazer a criação, advertindo ao irmão que “[se] pretendes deitar na horta ... te aviso o não faças por que fugirão sem dúvida segundo aqui me certificam, bom será contudo pô-los no quintal... para que aí será fácil tapar todos os buracos por onde possa sair”. Obstinado, comunica que, novamente pelo Padre João, “te mando mais um macho para serem 2 casais”.

Iniciativas similares se seguiram, com o envio de mudas de plantas, como quatro pessegueiros, seis macieiras, seis pereiras, duas gingeiras, dois marmeleiros, duas ameixeiras, videira, buxos e loureiros, acompanhadas das devidas instruções para o cultivo:

“As uvas aqui plantadas em forma de vinhas são melhores - os buxos aqui servem para fazer canteiros de muitas formas e aparados - as plantas como mandei dizer era melhor plantar em um terreno junto bastando só ter 15 palmos de distância para assim se lhe dar mais atenção por que depois então fazem-se os enxertos, o que aí deve haver quem saiba [fazer].”

Empreendimentos que sugerem, independentemente de seu êxito, a realização de algo próximo a “um outro Portugal” naquela província do Pará que, só muito lentamente, vai se desprendendo da ex-metrópole para efetivar laços em direção ao Rio de Janeiro.

Para encerrar esta seção, mais dois exemplos de destinatários, lembrando que os aqui tratados não esgotam os tipos de correspondência redigidos por Antônio de Miranda. Um deles aparece nas cartas mais íntimas, como as trocadas com amigos, consócios, em que são comuns as confidências. É assim a que escreve a Norberto Tavares de Madureira, seu tio, na qual, além de serem mais circunstanciadas as notícias sobre a conjuntura política portuguesa, são permitidos gracejos, típicos da mocidade: “por cá é bom em havendo que gastar porque há quanto o que se pode desejar, para se levar a vida divertida e suave” permitindo-se o uso de tratamentos como patife, de expressões como “é o diabo”, que não se veem nas cartas dirigidas à família. Nessa mesma articulação, são as endereçadas ao amigo João de Borges Miranda, a quem comunica que “poucas vezes frequento já a bela Ritinha... que decerto merece o nome”. Em seguida, pede desculpas, visivelmente retóricas e arrematadas, com um ditado burlesco: “Enquanto respeita a indecência da minha carta que V. Mercê me argui devo recomendar-lhe que tenha paciência” já que “inter amicos non datur gerinconsa”.23 23 “Entre amigos não precisa geringonça”, talvez uma paródia da expressão “Entre amigos não há cerimônia”. A palavra geringonça ou gerinconsa, conforme grafada por Antônio de Miranda, não se encontra registrada nos dicionários portugueses de época mais conhecidos: Bluteau, Moraes e Silva, Luiz Maria da Silva Pinto. Do francês “jargonce”, a palavra foi introduzida na Espanha no século XVI, jeringonza, sendo adotada em Portugal no mesmo período significando o que é mal feito, de funcionamento precário (Pedro, Lúcia Vaz. JN, 15 jan. 2017. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/ dossiers/portugues-atual/significado-e-origem-da-palavra-geringonca-5598165.html. Acesso em: 20 nov. 2021.

Também no registro íntimo, e a única encontrada em que a destinatária era mulher (quando escrevia à tia Lizandra dirigia-se também ao tio), há o rascunho de uma carta endereçada ao Rio de Janeiro, a uma senhora, Maria José, em que aparece o Antônio de Miranda enamorado e saudoso:

“Esta minha carta lhe deveria causar certamente admiração; e com razão: porém o desejo de saber da pessoa de V. M. e de como se tem dado nessa corte é a causa que me obrigou a escrever-lhe esta; mesmo porque não desejo se extinga a nossa amizade antiga: posto que parti e para isso motivo eu tinha bastante.”

Em seguida, informa à amiga, detalhadamente, sobre a situação de Portugal, o que revela bastante da interlocutora, mostrando que lhe interessavam os assuntos que diziam respeito à conjuntura internacional, apesar de o amigo ressalvar que esperava não ter “cansado a atenção de V. Mercê com estas narrações que penalizam os homens”. Começa dizendo “Vim achar este belo país donde se encontram todas as comodidades da vida na maior desordem, o que já lá se deverá saber”. Não faltam os detalhes sobre as prisões nas quais são jogados os melhores portugueses “chamados infames inimigos do Trono e Altar e como tais presos e maltratados: as cadeias e o mesmo Aljube estão atacados de inumeráveis infelizes vítimas do despotismo”. Melhor sorte não caberia à cidade do Porto, que “está hoje sendo teatro de devastação e o mesmo acontecerá às ilhas... hoje bloqueadas por treze embarcações donde estão os ministros para enforcar e confiscar”. Parece, também, serem do interesse de Maria José os principais lances da política internacional em relação ao governo de D. Miguel:

“Os ingleses que deveriam como se julgava obstar estes acontecimentos tem sido os mais pacíficos observadores... Contudo a França parece interessar-se muito por D. Miguel posto que obrigou a Espanha a retirar de cá seus ministros e isto haverá doze dias.”

Post-scriptum

A defesa de Antônio José de Miranda e de Casimiro José ficou a cargo do advogado Adriano Ernesto de Castilho Barreto (Lisboa, 1801-Rio de Janeiro, 1857). Além dos dois brasileiros, Adriano de Castilho representou os “réus políticos mais arriscados” e “sem que nenhum gênero de lucro, ou outro qualquer interesse, e em muitos casos, nem [que] relações anteriores me obrigassem” (Barreto, 1845, p.5), conforme registro feito de próprio punho. Do que resultou, exatos seis meses após defender Antônio José e Casimiro, na sua própria prisão, a 27 de julho de 1831, realizada pelos “esbirros” de D. Miguel quando se encontrava na casa de um “amigo francês”, na praça da Alegria, de onde foi levado para a cadeia do Forte de São Julião.24 24 Várias passagens da obra foram escritas em tom irônico, revelando um dos traços do autor: “Dirigiu-se a mim pelo meu nome [o oficial encarregado de sua prisão]; na realidade cortesmente, e me deu a voz de preso da parte de S. M. - Se viesse convidar-me para um baile em sua casa, não empregaria maneiras mais urbanas: fez-me lembrar aquela copla cantada por um esbirro num vaudeville, onde depois de se elogiar pelo que usa de fazer com os seus agarrados, remata com este verso: ‘Aussi Je suis aimé tous ceux que j’arréte’ (Ele mostra polidez com todos que prende).” O vaudeville ao qual Adriano Castilho se refere em seu livro é de autoria de Charles-Guillaume Étienne, Lenormand, Bruis et Palprat: comédie en un acte et en vers. De l’Imprimerie de Le Normant, 1807 (Barreto, 1845, p. 3). Em 1847, radicou-se no Brasil.

Foram dois os principais argumentos utilizados por Adriano de Castilho na defesa de Antônio José de Miranda. O primeiro, o de que suas opiniões políticas não passavam de “loucuras da mocidade”, típicas de “rapazes que se encontram longe da família”; de uma personalidade doidivanas, “imoderada”, alegação que o conteúdo das cartas mais pessoais contribuiria para fortalecer.

De fato, seria impossível ao advogado negar as posições políticas assumidas pelo réu, como já se mostrou acima, especialmente, na correspondência remetida à Senhora, no Rio de Janeiro. Trechos como estes, a seguir, em uma carta escrita aos irmãos, logo de sua chegada, também não poderiam ser mais comprometedores: “Isto por cá tem estado na maior desordem a ponto de se terem retirado os Ministros estrangeiros. É incrível o número de gente que se acha presa; o melhor do povo” ao que acrescentava que “ainda continuam a prender e para isto basta um que denuncie e se queira vingar do outro”. A razão de tais desordens logo se faz saber: “D. Miguel foi aclamado Rei absoluto e por conseguinte é incrível o número das famílias que se acham desgraçadas” não sendo poupados nem mesmo aqueles de origem nobre “muitos fidalgos foram mandados despejar do Reino, muitos se acham presos” e a maioria “teve os bens sequestrados”. E arremata: “porque tornou finalmente em Portugal o tempo em que aí é vontade de um só homem!”

As notícias se repetiam, apenas com pequenas alterações, nas cartas enviadas aos amigos e aos parentes mais próximos, o que tornava evidente, às autoridades, que o réu era um “exaltado constitucional, e que se interessa o mais possível, em que triunfe o infernal, e desorganizador governo constitucional”. Não bastasse tudo isso, ao ser interrogado, “perguntado o que continham as ditas cartas, para que o obrigassem à prisão”, respondeu “que nas cópias das cartas que lhe foram encontradas participava para o Brasil as desordens deste Reino”.

A existência de provas tão evidentes, portanto, obrigava o advogado a adotar uma estratégia que não fosse a negação dos posicionamentos políticos de seu cliente. A segunda tese defendida foi a de que, por serem ideias expressas em cartas endereçadas para fora de Portugal, a um país estrangeiro, não teriam qualquer efeito disruptivo sobre o regime de D. Miguel. Nesse ponto, os argumentos do advogado contribuem para as reflexões acerca da prática epistolográfica. Ele reconhece a existência de um tipo de correspondência, a particular, endereçada a destinatários específicos, realçando a diferenciação entre o público e o privado, o que se afirma ao longo dos Oitocentos.

Após reconhecer que “ainda que mereça punição o estrangeiro, que murmura do Governo do país, em que reside”, segue afirmando que: “cumpre distinguir a murmuração pública da particular; e que esta, suposto não seja lícita, todavia não se lhe podem atribuir as consequências, que daquela resultam. A pública pode fomentar desordens e ... partidos, o que se não segue jamais da particular”. Talvez causasse algum embaraço à argumentação da defesa o conhecimento de situações em que a distinção entre as naturezas pública e privada das correspondências não fosse tão evidente, a exemplo do que ocorrera na América Hispânica, no contexto das independências, em que as missivas escritas por mulheres aos seus familiares, no exílio, se juntaram aos panfletos e às petições, com o objetivo de reforçar a luta política que se travava, então, no contexto da desagregação dos impérios modernos:

“En la época revolucionaria, la escritura de cartas es uma práctica discursiva dominante em las élites americanas como una forma de comunicación eficaz em um escenario político-militar alterado por las guerras, destierros, exílios, cárceles y distanciamentos familiares. Se trata de um género que tiene fuerte presencia en los debates públicos dada su incorporación en la prensa iluminista y también por sua publicación, junto a proclamas, pasquines y otros textos, com fines políticos y/o didácticos” (Salomone, 2013SALOMONE, Carol Arcos y Alicia. Mujeres e Independencia en Chile. La cultura del rato y la escritura de cartas. Teresa. Revista de Literatura Brasileira, n. 12/13, p. 205-221, 2013., p. 214-215).

Em todo o caso, não parece ter sido esse o destino da correspondência particular de Antônio José de Miranda. Não que se saiba. Convencidas ou não dos argumentos em favor dos réus, as forças repressivas do regime miguelista condenaram Antônio de Miranda e Casimiro José a saírem imediatamente do reino, sendo “conduzidos presos a bordo da embarcação que escolhessem para o fazer”. Uma pena pela qual, decerto, ansiavam.

A defesa intransigente do liberalismo por Antônio José de Miranda permite formular uma última questão. Enquanto na Europa, principalmente na Península Ibérica, a partir da década de 1820, assiste-se ao período das restaurações, ao avanço da contrarrevolução, nas Américas, a crise dos impérios coloniais fazia pender para o Novo Mundo a balança dos ideais iluministas e da crítica ao absolutismo. Nessa conjuntura, a existência de uma personagem como Antônio José de Miranda serve bem para exemplificar o quanto há de arbitrário, caso não se leve em consideração fatores históricos, na tão discutida distinção entre centro e periferia.25 25 Ainda que pese o fato de que as forças repressivas do regime português se mostrassem convencidas da distância civilizatória que separava Portugal do Brasil. O que transparece na primeira inquirição feita a Antônio de Miranda sobre as razões que o levaram a escrever ao seu país natal “querendo deste modo a esta pouco culta Nação Brasileira pintar o Nosso Soberano como um déspota e um tirano, próprias expressões de que usa em algumas de suas cartas”.

O posicionamento a favor do que havia de mais avançado em termos de ideário político poderia, inclusive, redefinir a noção de cosmopolitismo e, até mesmo, admitir o potencial de desenvolvimento de uma sensibilidade privada, na América austral, que as cartas escritas pelo personagem já davam mostras de ser cultivada, relativizando a discussão, feita anteriormente, a partir das considerações de Evaldo Cabral de Mello. Se a vivência da intimidade irá se traduzir na multiplicação de diários, na chamada era vitoriana,26 26 “A reserva mantida pela classe média emprestou alguma sustentação às suspeitas de que a burguesia do século XIX forjou uma conspiração do silêncio. Mas não havia conspiração alguma, nem tampouco, como o provam os diários, nenhum silêncio. O que havia era circunspecção, sobretudo quanto aos assuntos realmente importantes” (Gay, 1988, p. 323). na sua ausência, fora da Europa, poderia ser expressa na correspondência pessoal. As opções políticas, que também se expressam nas cartas, mostram o quanto Antônio de Miranda poderia representar um grupo afinado com o que havia de mais avançado no Novo e no Velho Mundo.

É assim quando escreve ao Senhor Gregório Ferreira da Costa: “às novidades ainda tudo se acha da mesma forma, os insultos, prisões e a perseguição contra os homens de gravata lavada nada tem diminuído; por que os bons vassalos hoje são os eclesiásticos, militares e a corja”. A expressão ‘gravata lavada’ remete à democracia jeffersoniana, difundida no Brasil, anos mais tarde, pelo mineiro da cidade do Serro, Teófilo Benedito Ottoni, em sua Circular, publicada em 1860. Mesmo afeito à monarquia - em vários de seus escritos, encontra-se registrado o seu apoio a D. Pedro, seja como imperador do Brasil, seja como herdeiro legítimo do trono de Portugal27 27 Lembrando que os liberais moderados da Espanha e de Portugal, principalmente os que se encontravam no exílio, acalentavam o plano de unificar a Península sob o cetro de D. Pedro e da constituição que ele outorgara a Portugal, em 1826. Sobre o tema, ver Brancato (2014). -, a república norte-americana poderia servir-lhe como farol. Afinal, ali, a compatibilidade entre liberalismo e escravidão mostrou-se tão evidente quanto no Brasil, estruturando-se como parte constitutiva dos dois novos Estados Nacionais contemporâneos que emergiam nas Américas.

Referências

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  • VENANCIO, Gisele Martins. Cartas de Lobato a Vianna. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da História Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • 1
    “Like external passports, internal passports began to be granted on a more regular and effective basis after the Act of 15 January 1835, with the establishment of the Liberal government and the creation of the Secretaria Geral de Passaportes, a subdivision of the Intendência Geral da Polícia e da Corte created in 1760, which had more autonomy to control migratory movement” (Andrade, 2011, p. 276).
  • 2
    Quando não indicado o contrário, os documentos citados encontram-se no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT); “Processo crime movido contra Casimiro José Rodrigues, estudante, filho de Caetano Jerônimo Rodrigues e de Mariana da Purificação; e Antônio José de Miranda, negociante, filho de Vicente Antônio de Miranda e de Floripes Joaquinas de Oliveira, ambos naturais do Pará; por, apesar de estrangeiros, se imiscuírem nas lutas partidárias, trocando o primeiro correspondência com o segundo, remetida, quando preso, de Tomar, por aí haver sido encontrado com passaporte alterado, sendo ainda portador de papéis cheios de impropérios e correspondência entre os dois onde se verificava os seus sentimentos hostis ao governo de D. Miguel. Por Acórdão de 19 de fevereiro de 1831 foram condenados a sair imediatamente do Reino, sendo conduzidos presos a bordo da embarcação que escolhessem para o fazer”. Maço 13, n.6, sem paginação.
  • 3
    Retomando, assim, reflexões que fiz em meu livro História & gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
  • 4
    Além das cartas, a autora utilizou fontes visuais, contando com uma galeria de retratos “uma história de faces, olhares, gestos” que estão longe de serem “objetos ornamentais” (Nigro apud Ginzburg, 2017, p. 10, 15)
  • 5
    “Alexandre Manzoni (Milão 1785-1873) é conhecido, no Brasil, desde os tempos de D. Pedro II. O famoso imperador gostava de travar amizade e manter relações com os homens mais ilustres de sua época. Alexandre Manzoni foi um deles. Os arquivos da Casa Imperial do Brasil, no castelo D’Eu, em França, contêm a correspondência trocada entre Manzoni e D. Pedro II. O imperador brasileiro teve para com o escritor italiano não somente simpatia, mas verdadeira admiração” (Castagnola, 1959).
  • 6
    “Brevemente sairão algumas embarcações a bloquear as ilhas rebeldes ao novo sistema, a Madeira, a Terceira, para assim aumentar o número de inumeráveis infelizes vítimas da tirania” (ANTT. Maço 13, n. 6, s. p.).
  • 7
    Os principais produtos exportados pelo Pará a Portugal, além do açúcar, eram: algodão, arroz, aguardente, borracha, em sacas e em pipas, cacau, couros secos, café, cobre, cravo, farinha, óleo de rícino, puxiri (nós moscada brasileira), salsa, tapioca, urucum (Guimarães, 2016, p. 145-146).
  • 8
    Ibidem, p. 117.
  • 9
    “O ciclo corsário das guerras napoleônicas ainda se estendeu até (con)fundir-se com o ciclo das independências” (Secreto, 2016, p. 435).
  • 10
    “Privateering and piracy were practised on a significant scale during the Spanish American Wars of Independence. In the two decades following the outbreak of the Spanish American revolutions, insurgent and Spanish privaters, along with Cuban-based pirates, initiated more than 1600 prize actions. Raids were conducted throughout the Atlantic world in a range of different vessesl, from heavily armed private men-of-war to small open craft manned by only a handful of seafares.” (MacCarthy, 2013, p. 157) A ação dos corsários insurgentes só cessa no ano de 1829, quando Bolívar revoga a licença dada a corsários colombianos: “They [corsários insurgentes] were a persisten thorn in the side of Spanish seaborne trade throughout the Wars of Independence and only vacated Atlantic waters when Simón Bolivar revoked Colombian privateering licences in 1829” (p. 24).
  • 11
    No documento estava expressa, ainda, a seguinte advertência que não foi seguida à risca, pelo que veremos, por Antônio de Miranda: “Este bilhete só autoriza a residência do portador nesta capital, e de forma alguma lhe pode servir para transitar no Reino; para o que deve requerer passaporte.”
  • 12
    Óleo sobre tela, de Franco de Sá, Paris 1895. In: Chermont de Miranda, 2016, p. 237. Disponível em: https://www.parentesco.com.br/index.php?apg=arvore&idp=32701. Acesso em: 30 nov. 2019.
  • 13
    A mística do parentesco. Disponível em: https://www.parentesco.com.br/index.php?apg=arvore&idp=32701, Acesso em: 30 nov. 2019.
  • 14
    “O termo ‘negociante’ [...] se torna corrente durante o século XIX para denominar as elites económicas em diversos setores de atividade (comércio por grosso, indústria, finança e banca - neste caso concorrendo com a designação de ‘capitalista’ - eventualmente até agricultura, desde que os proprietários mantenham outros interesses)” [Pedreira, 1992, p. 410].
  • 15
    O copiador passou a ser uma exigência legal, feita aos comerciantes, a partir do código comercial de 1850, “Em 25 de junho de 1850, foi aprovado o primeiro código comercial brasileiro. Neste código foram destinados dez artigos à regulamentação da contabilidade e da escrituração comercial, conforme segue... Art.11 - os livros que os comerciantes são obrigados a ter indispensavelmente... são o Diário e o Copiador de cartas. [...] Artigo 12... No copiador o comerciante é obrigado a lançar o registro de todas as cartas missivas que expedir, com as contas, faturas ou instruções que as acompanharem” (Silva, 2005, p. 48, 49). É provável que a exigência legalizasse uma prática já corrente, há muito, entre os comerciantes.
  • 16
    Os outros itens eram: toalhas, meias, camisas, lenços de mão.
  • 17
    Um gênero, por sua vez, de difícil classificação: “Manter seus diários é, no século 19, uma prática corrente, e cada vez mais difundida. As origens e os significados são múltiplos. Encontramos nele o aspecto de ‘agenda’ dos livros de notas femininos, preocupados em registrar as despesas e o tempo que está fazendo, em regular os recursos e logo, o bem mais precioso: o uso do tempo. Por meio da crônica das doenças, o corpo tem ali um lugar. A alma também. Pois as fontes religiosas do diário íntimo são fundamentais” (Perrot, 2005, p. 95-96).
  • 18
    “As cartas constituem um gênero fortemente tipificado que se apoia em um modelo universalmente conhecido e reconhecível. O registro do local e da data de sua escritura, bem como as saudações, as despedidas e a assinatura são, segundo os manuais epistolares, aspectos do código que fazem com que um texto seja reconhecido como carta” (Venancio, 2004VENANCIO, Gisele Martins. Cartas de Lobato a Vianna. In: GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004., p. 119).
  • 19
    As cartas “são textos íntimos, mas diferentemente desses [diários e memórias] são relacionais; textos nos quais o sentido do que é escrito só pode ser apreendido em função de um ‘outro’ e um outro singular. A prática epistolar estabelece assim uma espécie de circuito retroalimentado de significação, sendo importante reter que, depois de escrita, a carta já não é mais de quem escreve (se seu autor ou remetente), mas de quem a recebe (o destinatário), que se torna seu ‘proprietário’” (Gomes, 2004, p. 53).
  • 20
    “Os estudos ‘sobre cartas’ deverão respeitar o caráter plural do objeto e, na medida do possível, apresentar uma análise de tipo fenomenológico da correspondência, considerando 1) as circunstâncias de sua produção e recepção. [...], 2) a necessária diversidade das abordagens em virtude da pluralidade do objeto” (Galvão, Gotlib, 2000, p. 395-399).
  • 21
    “Desde 1812, temos notícias de que um importante negociante chamado Feliciano José Colares já possuía estabelecimento comercial e matrícula na Praça do Pará. Os Colares mantiveram importantes relações econômicas com a província paraense durante todo o século XIX. [...] Entre os membros da família Colares, Feliciano teve uma destacada posição. Em 1812, quando resolveu emigrar para o norte do Brasil, justificava que ‘a bem de seus negócios, se passou de Londres para esta Praça do Pará’. [...] No Brasil, seus negócios não se limitaram à província do Pará, pois observamos que havia relações comerciais com a província do Maranhão [...]. Feliciano manteve negócios de importação de mercadorias vindas de Portugal e envio de produtos locais. Em 1832, aparece como proprietário do navio ‘Maria’, que realizava esse comércio” (Guimarães, 2016, p. 156).
  • 22
    By the middle of the 19th century, the widespread practice of selectively breeding domestic rabbits had resulted in a large variety of breeds, ranging from the tiny Polish rabbit to the huge Flemish Giant. Up until the 19th century, domestic rabbits had been bred purely for their meat and fur, but during the Victorian era, many new ‘fancy’ breeds were developed for the hobby of breeding rabbits for showing. Industrialisation also meant that many people moving from the country to the expanding towns and cities, brought rabbits with them; apart from poultry, they were the only ‘farm’ animal to be practical to keep in town. Although many of these rabbits were bred for meat, it became increasingly common among the rising middle classes to keep rabbits as pets. Rabbits were connected with the countryside and the animals they had left behind, and became considered almost sentimentally (Bunnyhugga, 2010).
  • 23
    “Entre amigos não precisa geringonça”, talvez uma paródia da expressão “Entre amigos não há cerimônia”. A palavra geringonça ou gerinconsa, conforme grafada por Antônio de Miranda, não se encontra registrada nos dicionários portugueses de época mais conhecidos: Bluteau, Moraes e Silva, Luiz Maria da Silva Pinto. Do francês “jargonce”, a palavra foi introduzida na Espanha no século XVI, jeringonza, sendo adotada em Portugal no mesmo período significando o que é mal feito, de funcionamento precário (Pedro, Lúcia Vaz. JN, 15 jan. 2017. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/ dossiers/portugues-atual/significado-e-origem-da-palavra-geringonca-5598165.html. Acesso em: 20 nov. 2021.
  • 24
    Várias passagens da obra foram escritas em tom irônico, revelando um dos traços do autor: “Dirigiu-se a mim pelo meu nome [o oficial encarregado de sua prisão]; na realidade cortesmente, e me deu a voz de preso da parte de S. M. - Se viesse convidar-me para um baile em sua casa, não empregaria maneiras mais urbanas: fez-me lembrar aquela copla cantada por um esbirro num vaudeville, onde depois de se elogiar pelo que usa de fazer com os seus agarrados, remata com este verso: ‘Aussi Je suis aimé tous ceux que j’arréte’ (Ele mostra polidez com todos que prende).” O vaudeville ao qual Adriano Castilho se refere em seu livro é de autoria de Charles-Guillaume Étienne, Lenormand, Bruis et Palprat: comédie en un acte et en vers. De l’Imprimerie de Le Normant, 1807 (Barreto, 1845, p. 3).
  • 25
    Ainda que pese o fato de que as forças repressivas do regime português se mostrassem convencidas da distância civilizatória que separava Portugal do Brasil. O que transparece na primeira inquirição feita a Antônio de Miranda sobre as razões que o levaram a escrever ao seu país natal “querendo deste modo a esta pouco culta Nação Brasileira pintar o Nosso Soberano como um déspota e um tirano, próprias expressões de que usa em algumas de suas cartas”.
  • 26
    “A reserva mantida pela classe média emprestou alguma sustentação às suspeitas de que a burguesia do século XIX forjou uma conspiração do silêncio. Mas não havia conspiração alguma, nem tampouco, como o provam os diários, nenhum silêncio. O que havia era circunspecção, sobretudo quanto aos assuntos realmente importantes” (Gay, 1988, p. 323).
  • 27
    Lembrando que os liberais moderados da Espanha e de Portugal, principalmente os que se encontravam no exílio, acalentavam o plano de unificar a Península sob o cetro de D. Pedro e da constituição que ele outorgara a Portugal, em 1826. Sobre o tema, ver Brancato (2014).
  • **
    A pesquisa contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2020
  • Aceito
    02 Set 2021
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