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O luto nas páginas da revista A Estação: o que vestir, como vestir

Mourning attire in the pages of A Estação: what to wear, how to wear

Resumo:

O vestuário de luto era parte essencial das regras de etiqueta na segunda metade do século XIX, disseminadas por publicações como a revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família, que circulou no Rio de Janeiro entre 1879 e 1904. Em suas páginas, era possível encontrar indicações sobre o que vestir durante o luto - modelagens, tecidos, aviamentos, enfeites e acessórios em geral - e como usar todos esses elementos da indumentária na etapa do luto em que fossem mais apropriados. Através de um corpus bastante significativo de textos da revista que falam sobre o luto, o artigo propõe um panorama dessas recomendações, levantando questões importantes como a predominância do traje de luto feminino e as mudanças que ele sofre na passagem para o século XX.

Palavras-chave:
Luto; Impressos do século XIX; História do vestuário

Abstract:

Mourning clothes were an essential part of the etiquette rules in the second half of the 19th century. They were spread by magazines such as A Estação: Jornal Illustrado para a Família, which circulated in Rio de Janeiro between 1879-1904. On its pages, it was possible to find instructions on how to dress during mourning - models, fabrics, ornaments and accessories in general - and how to use all these elements on each fase of mourning. Through a very significant corpus of texts from the magazine, this articles aims to elaborate an overview of these recommendations, raising important questions such as the predominance of women’s mourning attire and its changes on the passage to the 20th century.

Keywords:
Mourning; 19th century publications; Fashion history

Introdução

Lê-se na coluna “Correio da Moda”, da revista A Estação, de 15 de dezembro de 1891, assinada por Paula Cândida: “Este véo adoptado para luto de viúva, de pai, de mãi, não vai com as ideias modernas. È pezado, emcommodo, prende em tudo (...) Não se mede a dor pelo comprimento do véo (...)”.1 1 A Estação, Correio da Moda, 15 dez. 1891, Manteve-se a grafia original de todas as citações. Toda a tônica do texto, crítico ao uso do véu pelas enlutadas, surpreende. O véu talvez seja a peça de vestuário mais emblemática do dó e usá-lo ostensivamente parecia ser a praxe na segunda metade dos Oitocentos. Mas o fim do século começava a sentir os ventos da “modernidade”, o que resultou no impressionante veredito da colunista: “este véo é de um outro tempo e não corresponde (...) á liberdade de andar e o desejo de passar desapercebido que caracterisa a mulher de nossos dias”.2 2 Ibidem.

O comentário de Cândida impressiona, pois o período vitoriano foi especialmente rígido na vigilância dos códigos lutuosos, tanto por seu aspecto de apego e homenagem ao morto quanto por sua função de diferenciador social. “No século XIX, o luto se desenrola com ostentação além do usual”, afirma Philippe Ariès (2003ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003., p. 71-72): é a época dos lutos “histéricos”, em que “os sobreviventes aceitam com mais dificuldade a morte do outro do que o faziam anteriormente”, fenômeno que causa o adensamento das práticas de manifestação da dor da perda. Há, nos ritos fúnebres, um protagonismo maior da família enlutada e a inflação de suas demonstrações de sofrimento (como o uso exagerado das roupas pretas, por longos períodos) - que caracteriza o que Michel Vovelle (1981) batizou de “luto burguês”. Por outro lado, como lembra Lou Taylor, esses trajes denotavam a riqueza e o status de quem os vestia, além de exigirem uma impressionante social expertise, a ser sempre exibida (Taylor, 1983TAYLOR, Lou. Mourning dress: a costume and social history. Londres: George Allen and Unwin, 1983., p. 65). As leis do luto, “em nenhuma parte escritas porém em toda parte observadas”,3 3 A Estação, Chronica da Moda, 15 nov. 1883. estavam longe de ser uma ciência exata, apesar de terem um caráter de obrigatoriedade. Dominá-las era um desafio imposto a todos que perdiam um ente querido e precisavam se ajustar às suas limitações.

Nesse sentido, os impressos da época tinham papel de destaque. Revistas femininas e de variedades editadas para o público brasileiro periodicamente publicavam conteúdos sobre o luto, ensinando sua importância, suas regras, seus períodos, os materiais a serem utilizados, as cores permitidas e as proibidas. Em nossa pesquisa sobre o luto no século XIX, descobrimos como títulos importantes à época, como o Jornal das Senhoras, o Almanak Laemmert e a Marmota Fluminense diversas vezes apresentaram essas informações aos seus leitores.4 4 Este artigo é parte de uma pesquisa maior, de pós-doutorado, “O vestuário de luto no Brasil oitocentista”, em que exploramos o tema de maneira mais abrangente. Ela foi realizada no programa de pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob supervisão da professora doutora Maria Cláudia Bonadio e finalizada em março de 2020.

O caso da revista A Estação: Jornal Illustrado para a família é, para nosso objeto de estudo, singular. Em todos os seus anos sendo publicada no Brasil, A Estação levou ao seu público colunas inteiras dedicadas ao tema do luto, inúmeras descrições de peças ou trajes completos para serem replicados pelas leitoras, respondeu dúvidas enviadas à redação sobre o assunto, relacionou o luto às tendências da moda e criticou suas diretrizes quando as considerou ultrapassadas. Acompanhar suas edições era aprender, de maneira muito didática, o que usar, como usar, quando usar, que tecidos empregar, quais ornamentos escolher e quais desprezar.

Neste artigo, tendo como fontes primárias os diversos textos contendo informações sobre o luto publicados n’ A Estação, acessados pelo site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,5 5 Disponível em <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. tentaremos traçar um panorama sobre o vestuário indicado para o luto no período de circulação da revista. Foram consultadas todas as 579 edições disponíveis no site, datadas entre 1879 e 1904. Analisaremos, primeiramente, a trajetória da revista no Brasil, sua linha editorial e público leitor. Em seguida, elaboramos suas principais diretrizes referentes ao dó, com base em nosso levantamento, tanto para sua primeira fase, o luto pesado, quanto para a seguinte, o luto aliviado. Também mencionamos algumas sugestões dadas para adaptar o luto aos lançamentos da moda. Por fim, comentaremos aquela que nos pareceu a maior reviravolta em relação aos seus usos na virada para o século XX: a modernização do traje de luto através da modificação do véu e do abandono do xale.

A Estação como fonte para o estudo do luto oitocentista

“Crear um jornal brazileiro indispensavel a toda mãi de familia economica, que deseja trajar e vestir suas filhas, segundo os preceitos da época”: era esse o compromisso firmado pelos editores de A Estação: Jornal Illustrado para a Família em seu primeiro número, de 15 de fevereiro de 1879.6 6 A Estação, Editorial, 15 fev. 1879. Os “preceitos da época”, em termos de vestuário, vinham da Europa, sobretudo da França. Logo, com base nesse editorial inaugural, poderíamos presumir que A Estação tinha como missão transmitir a moda europeia à mulher brasileira de classe média, “fornecendo-lhes os meios de reduzirem a sua despeza, sem diminuição alguma do gráo de elegancia á que as obrigava a respectiva posição na boa sociedade (...)”.7 7 A Estação, Editorial, 15 fev. 1879. . O objetivo era audacioso pois, como apontam no texto, um “jornal de modas brasileiro” era uma impossibilidade devido ao desencontrado ritmo das estações do ano (que regem as mudanças no vestuário), entre o velho mundo e os trópicos. Mas A Estação prometia estratégias para contornar essa dificuldade e se tornar “o primeiro jornal nesse gênero”. 8 8 A Estação, 15 fev. 1879.

O periódico foi propriedade da Lombaerts & Cia, por 17 anos. Localizada no centro do Rio de Janeiro e administrada pelo belga Jean Baptiste Lombaerts e seu filho Henri Gustave, a editora e livraria trabalhava especialmente com jornais e revistas importados. Entre 1872 e 1878, a Lombaerts teve em seu catálogo La Saison, a versão francesa da revista alemã Die Modenwelt, publicada em Berlim pela editora Lipperheide, desde 1865. Dedicada a “ensinar às donas de casa como fabricar vestimentas para toda a família, bordar e decorar suas casas” (Silva, 2009SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009., p. 3), ela era traduzida para 15 idiomas e comercializada em 20 países,9 9 A Estação, 31 jul. 1888. e foi uma das primeiras revistas “verdadeiramente internacional, que contribuiu para a uniformização da imprensa feminina”, de acordo com Ana Cláudia Suriani da Silva (2009SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009., p. 1). Por aqui, ela era vendida com o título La Saison: Edição para o Brasil, acompanhada por um suplemento em português produzido pela Lombaerts (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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) com as explicações das gravuras traduzidas (Silva, 2009SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009., p. 9).

Em 1879, a Lombaerts passa a editar A Estação como uma versão brasileira de La Saison, mantendo sua continuidade10 10 Por isso em sua primeira edição, de 15 de janeiro de 1879, a capa informa que a revista está em seu oitavo ano, admitindo que A Estação era uma continuidade de La Saison. Segundo Ana Claudia Suriani, a tradução para o português era feita na Alemanha e as pranchas eram enviadas à Lombaerts, que se encarregava da paginação e da impressão (Silva, 2009, p. 6). e buscando, assim, fidelizar as leitoras que já assinavam a revista francesa. Talvez na tentativa de aumentar sua abrangência, decide-se por um maior escopo, trazendo outros conteúdos além da moda e adicionando a designação Jornal Illustrado para a Família (Crestani, 2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família. Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008. v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008., p. 328). Sua periodicidade era quinzenal, saindo regularmente nos dias 15 e 30 de cada mês. Podia ser assinada anualmente, tanto na Corte quanto nas províncias. Em 1882, sua tiragem foi de 10 mil exemplares (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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), uma cifra significativa, que correspondia a uma quantidade muito maior de leitores, devido às práticas comuns de empréstimo.11 11 Segundo Crestani (2008, p. 332), estima-se que atingisse cerca de 100 mil leitores, “o que permite perceber o nível de importância que a revista detinha na difusão cultural brasileira”. Tempos depois, já com dificuldades financeiras,12 12 Crestani (2008) explica em detalhes os motivos que levaram ao fim da revista no Brasil, devido ao seu progressivo aumento de preço a partir de 1891. passou a ser editada na livraria A. Lavignasse Filho & Cia, a partir de 1896. A última edição foi a de 15 de fevereiro de 1904.

O periódico era especializado em moda, comportamento, etiqueta, costumes, literatura e amenidades da “vida mundana” (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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), sendo dividido em duas partes com paginações independentes. A primeira era dedicada à moda, tinha oito páginas que eram impressas na Alemanha e que traziam a tradução da seção de moda e decoração da matriz alemã Die Modenwelt. A segunda parte da revista geralmente continha quatro páginas e era feita especialmente para a edição brasileira (Cretani, 2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família. Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008. v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008., p. 326), com conteúdo literário diverso (contos, novelas, poemas) criado por autores nacionais, anúncios, curiosidades e notícias locais, críticas de teatro, conselhos variados e respostas para dúvidas enviadas pelos leitores por cartas. Ou seja, a revista reproduzia padrões de beleza e de vestuário tipicamente europeus, ao mesmo tempo que dava espaço para obras de nomes como Machado de Assis, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Raymundo Corrêa e outros.

Deteremos-nos na primeira parte da revista, que serve aos nossos propósitos. Ela era dividida em uma coluna de abertura, que geralmente era colocada na primeira página, logo abaixo do cabeçalho, intitulada, até 1886, “Chronica da Moda”, assinada por Antonina Aubé ou por Brasilia Pinheiro. Nos anos seguintes, passou a se chamar “Correio da Moda”, sob responsabilidade de Paula Cândida. Nem sempre os créditos de autoria eram atribuídos ao texto e há mesmo incertezas de que não se tratassem de pseudônimos (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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). De qualquer maneira, as redatoras, escrevendo de Paris, comentavam e resumiam as últimas tendências e novidades diretamente de sua metrópole.13 13 A Estação, 15 fev. 1879. Como destaca Crestani (2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família. Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008. v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008., p. 331): “Sobre este ponto, cumpre assinalar a ausência de referência à filiação da revista à matriz alemã, Die Modenwelt. Dessa forma, tem-se a impressão de que a matriz seria a publicação francesa, La Saison, o que pode ser considerado como uma estratégia de venda da revista, já que no Brasil havia uma nítida atração por tudo o que fosse de origem francesa.”

As páginas seguintes eram preenchidas por inúmeras gravuras que mostravam cenas completas com figuras femininas e crianças em situações cotidianas ou imagens isoladas de trajes compostos, peças sozinhas, acessórios de todos os tipos (joias, sapatos, meias, gravatas, lenços, punhos, sombrinhas, chapéus, enfim, tudo o que fosse complementar ao vestuário e usado na época), artigos diversos de decoração, brinquedos infantis e alguns riscos de moldes. Dispostas entre as gravuras, estavam as suas descrições, como se fossem extensas legendas explicativas (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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), com detalhes sobre os materiais, cores, modos de fazer, medidas. Havia ainda uma ou duas páginas com ilustrações coloridas.

Todo esse material era originalmente pertencente à revista Die Modenwelt. Por esse motivo, o conteúdo de moda obedecia ao calendário europeu e, consequentemente, as informações não condiziam com a situação climática do Brasil. Em pleno verão, a revista propunha roupas pesadas, de lãs e peles; nos meses frios, as indicações eram de trajes fresquinhos e leves. Segundo Crestani (2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família. Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008. v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008., p. 329): “A solução encontrada pela direção do periódico para fugir, ou melhor, amenizar o ‘contra-senso’, é instruir as leitoras para adaptar as tendências parisienses às inconvenientes ‘exigências do nosso clima’. A impressão que fica é a de que não há outro caminho possível para uma revista de modas senão aquele cujo destino certo é Paris, ‘a capital da moda’.”

Outra estratégia da editoria, declarada em seu primeiro editorial, era colocar na redação “uma senhora que se acha em contacto immediato e constante com a sociedade elegante e escolhida dos nossos salões fluminenses” para “contar às nossas leitoras como são interpretadas pelas nossas bellas patrícias os preceitos da elegância dos salões do faubourg St. Honoré”.14 14 A Estação, Editorial, 15 fev. 1879. Isso significa que, além de transmitir as diretrizes da moda parisiense ao público brasileiro, a revista ainda faria o registro da vida elegante e dos salões fluminenses (Crestani, 2008CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família. Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008. v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008., p. 338), para registrar se e como a “boa sociedade” reproduzia a expertise francesa ensinada em suas páginas.

Podemos entender o conceito de “boa sociedade” como o descreve Maria do Carmo Rainho; segundo a historiadora, essa era a camada que, após a chegada da Corte no Rio de Janeiro, buscou igualar-se à burguesia europeia e à aristocracia portuguesa adotando valores e modos europeus, civilizando os costumes, eliminando hábitos coloniais e manifestando, por meio da aparência, o quanto se distinguia dos outros estratos.15 15 Ou seja, para Rainho, pertencer à “boa sociedade” não se vinculava, necessariamente, a ter riqueza e poder: “o perfil dos membros da “boa sociedade” é restringido, pois para ser caracterizado como tal não bastam a posse da riqueza, o acesso ao consumo de determinados bens ou o exercício do poder, sendo preciso também se destacar pelo requinte das maneiras, pelo polimento dos costumes e, especialmente, pela maneira de apresentar-se socialmente” (Rainho, 2002, p. 17). Atendendo às suas demandas, houve também uma “europeização” da vida social: uma sociabilidade exclusiva da elite, baseada nas festas particulares, nos salões, bailes e teatros. Era importante, nesses espaços, exibir-se “usando o que havia de mais parecido com as novidades de Paris. (...) Os trajes da moda tornam-se então indispensáveis (...) para aqueles que desejavam ser reconhecidos como membros da ‘boa sociedade’” (Rainho, 2002RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora UnB, 2002., p. 14, 58).

Por ser o modelo a ser seguido e a consumidora primária da cultura europeia que se importava ao Brasil, a boa sociedade era observada por uma classe média que almejava alcançar seu patamar e que às vezes conseguia gozar de sua convivência, tendo acesso a alguns eventos elegantes, como apresentações no teatro, saraus e acontecimentos afins. Outros métodos de aproximação incluíam a leitura de publicações que ensinavam os comportamentos adequados e esperados dos aspirantes à elite, como jornais femininos e de variedades e manuais de etiqueta.

Ambos eram o público-alvo de A Estação: a boa sociedade, que se via refletida em suas páginas e estreitava sua “fantasia de identificação cultural com a Europa” (Silva, 2009SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009., p. 21), e os setores médios, cujo sonho era ascender socialmente mas ainda dependia de táticas para economizar, que incluíam confeccionar suas roupas em casa. Voltada principalmente às mulheres dessas camadas, a revista parecia ser menos conservadora que outras publicações com perfil similar, pois não trazia ensinamentos religiosos e defendia a instrução feminina, desde que com moderação (Brasil, 2015BRASIL, Bruno. A Estação - Jornal Illustrado para a Família. Site da Biblioteca Nacional Digital, artigo arquivado na Seção Hemeroteca. 7 ago. 2015. Disponível em<Disponível emhttps://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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). Há ainda outro elemento relevante a ser considerado: receitas, moldes, explicações de costura e dicas de economia do lar ligam-se à inserção da mulher no mercado de trabalho (Silva, 2009SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009., p. 15), fenômeno característico da passagem do século XIX para o XX. Voltaremos a esse ponto.

Em relação ao luto, exceto em seu último ano de publicação no Brasil, em 1904, em que foram editados apenas três números, em todos os outros anos a revista trouxe informações sobre vestuário e comportamento de dó. Eles apareciam de maneiras diversas, como nas colunas publicadas na primeira página, a “Chronica da Moda” e, depois, o “Correio da Moda”. Podiam vir ainda na seção “Correspondência”, onde eram respondidas dúvidas das leitoras sobre o luto. Mas é nas páginas que compõem a seção de Moda que encontramos o maior volume de dados sobre os materiais e as modelagens: os curtos parágrafos configuram-se como descrições técnicas de trajes ou peças sozinhas, acompanhadas de sua ilustração. Estes desenhos, apesar de ajudarem na compreensão da legenda, são difíceis de interpretar, seja pela maneira como estão dispostos, seja pela sua qualidade. As figuras que trajam as roupas explicadas nos textos por vezes são colocadas sentadas, de perfil, de costas ou em ângulos que impossibilitam a visualização de todos os seus detalhes. Outros pormenores também se perdem nas imagens, como forros, botões internos, arremates que, muito provavelmente, a costureira experiente conseguia presumir apenas pela leitura, sem necessitar da visualização. No caso específico de nossas consultas aos exemplares digitalizados na Hemeroteca, muitas das ilustrações são prejudicadas pelo processo de cópia da página, que escurece demasiadamente os desenhos, fazendo com que a maioria dos traços se perca.

A despeito dessa dificuldade no trato com as imagens, encontramos uma quantidade bastante expressiva de material textual dedicado ao luto nas páginas dos exemplares d’A Estação do acervo da Biblioteca Nacional: 129 descrições de trajes, peças diversas e/ou acessórios, 15 textos de primeira página (“Chrônica da Moda” ou “Correio de Moda”), destinados inteiramente ou parcialmente ao tema do luto e nove ocorrências de dicas de paramentos em geral ou indicações de comportamentos de luto na seção “Correspondência”. Um corpus significativo se considerarmos um tipo de vestuário e uma prática social que, em tese, “nunca muda” ou que deveria ser “muito simples”.

Ou seja, diante de todo esse conteúdo, observamos que, apesar da roupa de luto ser sóbria e seu uso exigir parcimônia, era possível vesti-la com estilo. As leitoras d’A Estação, submetidas às regras do luto, tentavam entender seus limites e suas restrições para fazê-lo menos monótono. Os tempos eram longos,16 16 Por uma questão de limitar o escopo do artigo, não entraremos aqui nas definições dos tempos de cada luto. Um dos motivos é que essas regras eram extremamente variáveis de acordo com cada fonte consultada (e mesmo dentro da revista A Estação, encontramos indicações diferentes de edição para edição). O outro motivo é que essa discussão nos levaria a considerar outras fontes, como a Legislação Portuguesa que previa esses usos e que supostamente ainda estava em prática no Brasil (a Pragmática de 1749), manuais de etiqueta e outras revistas da época, o que foge dos limites deste artigo. e saber personalizar o traje com pequenos (porém distintos) detalhes fazia toda a diferença. Esses eram alguns dos ensinamentos trazidos explicitamente ou nas entrelinhas dos textos da revista sobre o luto, que passaremos a esmiuçar na sequência.

Triste uniforme da dor”: o luto nas páginas d’A Estação

O descompasso causado pela alternância das estações entre Europa e Brasil é perceptível na abordagem relativa ao luto. O tema vinha à tona associado à época de Finados ou à queda das temperaturas que prenunciavam a chegada do inverno. Vincular o frio à morte ou a escuridão das noites mais longas do ano com as cores das roupas lutuosas era uma constante. A coluna de moda diversas vezes fez uso desse subterfúgio para abordar o assunto.17 17 A Estação, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895. Por exemplo, em 30 de novembro de 1880, a edição rememora o Dia de Todos os Santos francês (La Toussaint, celebrado em 1 de novembro), e o texto, assinado por Antonina Aubé, dizia:

A primeira semana de Novembro em todos os pontos da christandade é tempo de recolhimento do espírito e de oração; no próprio Paris, durante todos os dias passados, não se encontravam senão toilettes sombrios, simples, vestidos de lã ou de seda preta, chapéos de feltro ou de pelúcia - e esta piedosa peregrinação aos vários cemitérios, que todas as parisienses, até as mais frívolas, as mais mundanas, consideram como de rigoroso dever, só admitte costumes pretos ou de cores escuras, e frequentemente, meu Deos! o mais completo luto, triste uniforme da dôr.18 18 A Estação, Chronica da Moda, p.1, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880.

Na poética conexão feita pela redatora, a atmosfera sorumbática da data refletia-se na festiva cidade-luz, que se transformava em cenário soturno dos costumes de lembrar os mortos. No Brasil, Finados é em 2 de novembro e combina com toilettes sombrios em preto e com a “piedosa peregrinação aos vários cemitérios”, mas dificilmente seria passado com chapéus de pelúcia, já que ocorre em plena primavera tropical. As incongruências são notórias: a revista indica, para essa época, o uso de peles como o castor de pelo raso e o astrakan19 19 A Estação, Correio da Moda, p. 1, 30 nov. 1889. e os veludos do Norte.20 20 A Estação, Correio da Moda, p. 1, assinada por Paula Candida, 15 dez. 1892. De qualquer maneira, a proximidade com a festa dos defuntos “entristece o espírito dando-lhe uma impressão melancólica que difficilmente póde-se combater”21 21 A Estação, Correio da Moda, p. 1, assinada por Paula Candida, 15 dez. 1891. e era a desculpa ideal para A Estação dar destaque ao luto em sua primeira página.

Por maior que fosse a dor da perda, a revista adverte que “é preciso pensar em cobrir-nos”,22 22 A Estação, Correio da Moda, p. 1, Paula Candida, 30 nov. 1895. e havia as indicações do luto que não variavam de lugar ou de estação, independente das discordâncias climáticas. As redatoras sabiam da utilidade em recordá-las periodicamente e, embora dissessem se basear nos usos de Paris, sugeriam que se conformasse ao país que se habita.23 23 A Estação, p. 1, Chronica da Moda, p. 1, sem assinatura, 30 nov. 1888. Enfatizavam que o luto não seguia vogas passageiras e que as pessoas que tentavam conciliar as duas coisas perseguiam “uma quimera”.24 24 A Estação, p. 1, Chronica da Moda, p. 1, sem assinatura, 15 nov. 1883. No entanto, davam indicações tanto para um traje de luto que qualificavam como “imutável” quanto para novidades da moda que eram adaptáveis ao dó.

Com base em todos os textos que encontramos em A Estação sobre o luto, é possível elaborar um panorama sobre o que se devia usar e como, segundo a editoria.25 25 Todas as informações foram retiradas das seguintes edições de A Estação: 15 abr. 1879, p. 57; 30 jul. 1879, p. 129-130; 30 jan. 1880, p. 12; 30 abr. 1880; 15 jul. 1880; 31 ago. 1880, p. 164; 15 nov. 1880, p. 224; 30 nov. 1880, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 maio 1881, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 jul. 1881, p. 166; 15 fev. 1882, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 ago. 1882, p. 186; 15 maio 1883, p. 106; 15 nov. 1883, Chronica da Moda, sem assinatura, p. 246; 30 set. 1884, p. 144, Correspondência; 15 out. 1884, p. 150; 15 maio 1885, p. 72, Correspondência; 31 jul. 1885, p. 60; 30 abr. 1886, p. 58-63; 31 jul. 1886, p. 112, Correspondência; 31 ago. 1886, p. 128, Correspondência; 15 out. 1886, p. 150; 3 dez. 1886, p. 192, Correspondência; 31 mar. 1887, p. 48, Correspondência; 15 jul. 1887, p. 103-104; 15 out. 1887, p. 150; 15 dez. 1887, Chronica da Moda; 29 fev. 1888, p. 31; 31 maio 1888, p. 79. Correspondência; 30 jun. 1888, p. 90-96; 15 jul. 1888, p. 98-102; 31 jul. 1888, p. 107; 30 nov. 1888, Chronica da Moda, sem assinatura; 15 ago. 1889, p. 117; 30 nov. 1889, Correio da Moda; 15 abr. 1890, p. 56; 15 maio 1890, p. 69; 30 set. 1890, p. 142-143; 31 out. 1890, p. 160, Correspondência; 30 set. 1891, p. 143-144; 15 dez. 1891, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 jul. 1892, p. 110; 31 ago. 1892, p. 124; 15 out. 1892, p. 150; 15 dez. 1892, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 28 fev. 1893, p. 28-30; 31 jul. 1893, p. 107-112; 30 set. 1893, p. 138-143; 15 set. 1894, p. 132-134; 15 out. 1894, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 nov. 1894, p. 168; 15 dez. 1894, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 maio 1895, p. 79-80; 30 nov. 1895, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 dez. 1895, p. 192; 15 maio 1896, p. 70; 15 set. 1896, p. 134; 15 dez. 1896, p. 182-183; 31 ago. 1897, p. 124; 30 abr. 1898, p. 63; 15 maio 1898, p. 72; 15 set. 1898, p. 1310-1311; 15 dez. 1898, p. 183-184; 15 jun. 1899, p. 87; 15 ago. 1899, p. 115; 30 set. 1899, p. 140-144; 15 dez. 1899, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 maio 1900, p. 77; 15 out. 1900, p. 147; 15 dez. 1900, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 set. 1901, p. 131-136; 31 ago. 1902, p. 125-126; 30 nov. 1902, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 maio 1903, p. 68; 30 set. 1903, p. 143-144; 31 dez. 1903, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida. É preciso deixar claro que esse resumo parte, inevitavelmente, de algumas generalizações. O extremo rigor que a revista apregoava nas colunas de moda para o luto pesado, por exemplo, a ponto de condenar todo e qualquer enfeite nessa etapa, era muitas vezes quebrado nas sugestões que aparecem nas gravuras, que incluíam adornos, ainda que mínimos. Esses paradoxos são muito comuns quando estudamos o luto pois, como já explicado anteriormente, ele não é uma lei oficial ou uma regra lavrada em pedra, ele é um tipo de acordo social sistematizado por costumes e disseminado pela prática e pelos impressos de época - que, por sua vez, censuravam ou incentivavam certos usos.

Os períodos do luto variavam de acordo com o grau de parentesco que se tinha com o defunto (e a regra era de que quanto mais distante o vínculo, mais curto ele seria: poderia ser de cerca de dois anos, pela morte do marido, a dois meses, na perda de um primo ou prima)26 26 Como dito anteriormente, não entraremos nos detalhes sobre os tempos dos lutos neste artigo. . De maneira geral, o mais aceitável para qualquer tipo de luto e em qualquer estágio era a roupa preta em lã. Independente da sua extensão, a primeira metade era sempre de “luto pesado”, a fase de maior sobriedade e proibições.

O preto era a sua cor por excelência. Durante esse tempo, só era permitido vestir lã (como o merinó e a cachemira), crepe inglês ou crespos, sempre em preto e sem brilho. A modelagem sugerida era o vestido comprido sem folhos, cauda, apanhados nem guarnições. O véu de crepe e o xale de lã (e, posteriormente, a capa, como veremos à frente) eram indispensáveis. Os acessórios deveriam ser mínimos e sem fausto: luvas de seda ou de Suécia, pretas e opacas, cinto, colarinho e punhos de crepe preto, leques de armação de madeira preta fosca. Os chapéus de crepe, enfeitados apenas de laços ou vieses do mesmo crepe, poderiam ser em modelo capota, toque ou o Maria Stuart, cuja particularidade era a aba em ponta voltada para a testa e os rolinhos de crepe (brancos, à moda inglesa, ou pretos, como adotados na França). A roupa de baixo acompanhava o luto: as meias eram pretas de lã ou linho e as camisas, calçolas e saias, brancas guarnecidas de cambraia preta. A anágua poderia ser toda preta, guarnecida de renda - mas isso parecia ser mais uma extravagância do fim do século.27 27 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1900. Os lenços, brancos, com bordados ou debruns na bainha em preto. As joias eram severamente proibidas, exceto a aliança e o relógio, por ser “objeto de utilidade”.28 28 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.

Para esse momento, a revista indicava evitar qualquer evento que pudesse ser considerado como prazeroso e manter apenas os que não poderiam ser adiados, como trabalho ou obrigações familiares. Não receber visitas, a não ser dos parentes - e mesmo essas, nunca de noite para não haver a aparência de alegria ou festejo. As senhoras também não fazem visitas, a não ser curtas e íntimas a uma pessoa enferma ou idosa. Não aparecer nos teatros ou em jantares fora de casa (além dos motivos acima, porque a roupa preta de lã não era adequada a essas atividades), não assistir cerimônias de casamento (a menos que os laços com os noivos fizessem o comparecimento imprescindível e, só nesse caso, a roupa poderia ser de seda, com chapéu ornado de azeviche e de uma flor branca; poderia usar ainda um pouco de renda e uma pluma de tom roxo).29 29 A Estação, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880. Recomendava-se a maior simplicidade para o penteado (“As orelhas de cachôrro, com as quaes algumas pessoas emmoldurão o rosto, não dão em nada a ideia da tristeza, não parece bem, nem convem nestas circunstancias penosas”).30 30 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895. Na passagem do luto pesado para o meio-luto, crepes e filós sem brilho bordados com vidrilho poderiam ser usados em um jantar de família.31 31 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.

A segunda metade do luto, o “meio-luto” ou “luto aliviado”, compreendia duas etapas. Na primeira, podia-se incorporar ao guarda-roupa seda sem brilho e peles pretas. As modelagens começavam a ser variadas: o vestido modelo polonesa ou túnica, o corpinho-blusa, a saia com folhos, cauda ou puff traseiro. As guarnições eram de crespos, de escomilha, de cetim, de veludo. O véu era menos comprido. Usavam-se luvas de Suécia ou de pelica, joias de vidrilho, de azeviche, de madeira dura ou de borracha, colarinhos e punhos de linho. Admitiam-se enfeites de rendas, fitas de seda e flores feitas em tecido. Tudo, sempre, na cor preta. Os chapéus eram em tecido ou palha preta, também adornados. Na parte final do luto aliviado, era permitida a inserção de cores como o cinzento escuro, o roxo, o branco. Nesse momento, o véu podia ser abandonado e tolerava-se o uso de joias pequenas de ourivesaria e pérolas. Desde então, era possível vestir-se com mais elegância (sem excessos, ficando-se “um pouco aquém da moda”),32 32 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895. usar fazendas como a cassa e a nobreza, assim como lantejoulas pequenas, fitas pretas e vidrilhos aplicados aos tecidos. Os leques poderiam ser de tartaruga com plumas de avestruz, os chapéus de palha branca enfeitados de preto e as luvas, sortidas. Não se devia esquecer que “seria de mau gosto abandonar o luto alliviado no próprio dia em que elle acaba”33 33 A Estação, Chronica da Moda, p. 1, 15 nov. 1883. e a transição para as roupas “normais” deveria ser discreta.

No luto aliviado, quando já se podia sair “em intimidade, quer dizer, para assistir a pequenos jantares ou pequenas soirées”, eventos sociais de pouca exposição, era permitido trajar branco com enfeites em preto.34 34 A Estação, Correio da Moda, p. 1, 30 nov. 1889. Em 1894, uma opção para essa fase era o vestido em fustão listrado branco e preto guarnecido de fitas de veludo (inclusive na gola), com enfeites de crepe mole e renda preta.35 35 A Estação, Vestido com partes-vestia curtas, para luto aliviado, p. 134, 15 set. 1896. Uma toilette de sarau poderia ser feita em faille e filó com folhos de renda plissada, com corpinho de veludo e enfeites de plumas, fitas e azeviche.36 36 A Estação, Toilette de sarau, p. 58-63, 30 abr. 1886. Em lutos bem pouco severos (por parentes muito distantes ou por consideração), usava-se o filó preto com lantejoulas pretas ou o filó branco bordado em preto e com vidrilhos.37 37 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892. Sabemos ainda, pela revista, que criados só tomavam luto pelos patrões no caso de morte dos chefes da casa e seus filhos, e que uma instrutora só assume o luto da família para a qual trabalha se lhe pedirem e oferecerem os trajes.

Ao contrário do que essas diretrizes podem sugerir, o luto era bastante influenciado pela moda, e muitas vezes apareceram na revista dicas para se ajustar as tendências do momento ao dó. Em 1887, a coluna recomenda penas de galo tintas de preto como enfeite para os trajes, e os tecidos em alta para o luto pesado eram os crepões de lã e os cachemires mates. Para o luto aliviado, as vigognes, o escot e a popelina (“fazendas que estão de novo na ordem do dia”).38 38 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1887. Em 1891, indicava o astrakan para luto pesado e um ornamento muito em voga naquele ano: o barrado do vestido em três ordens de pele. E, “querendo-se dar ao vestido uma nota de austera elegância”, sugeria juntar à barra da saia uma franja fosca (“esta guarnição (...) varre o tapete e dá à cauda ou meia cauda uma suavidade, uma espécie de morbidez muito apreciada das senhoras verdadeiramente elegantes”).39 39 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891. Em 1892, o crepe do luto pesado poderia ter um bordado fosco de florzinhas ou com trancelim. Ou ainda, bordado com contas sem brilho imitando madeira preta ou com aplicações de gaze e cordões imitando folhagens. E uma novidade eram os veludos russos, especiais para luto.40 40 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892. Em 1894, a fazenda em voga para o meio-luto era a “Flôr de seda”, o magnífico tecido vendido a oito mil e quinhentos réis que dispensa guarnições, e sedas foscas “de um preto differente do que emprega-se usualmente”, que combinavam ainda mais com a tristeza das circunstâncias.41 41 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1894. Em 1895, Paula Cândida chama a atenção para a moda das mangas presunto, adotada também nos vestidos de luto, que transformou as mangas lisas em “balões monstruosos” e que deviam ser usadas com cuidado (“As exagerações não convêem de modo algum ao vestido de luto”, ela aconselhava).42 42 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.

Em 1899, a novidade em relação ao luto eram os chapéus de crepe com filó, muito fino, que dava “um aspecto menos duro à physionomia”. As leitoras talvez pudessem estranhar a mudança: “As nossas amáveis assignantes vão com certeza nos dizer: Eis um luto que nos parece bem pouco severo? É que nas grandes cidades temos notado uma tendência bem accentuada a desembaraçar-se, o mais possível de todas as obrigações, mesmo as mais sagradas”, comenta Cândida.43 43 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1899. Sinal dos tempos: no começo do século XX, a colunista destacava a elegância sem antecedentes dos trajes de luto - sugerindo que quase passavam por trajes sociais normais - e a leveza dos novos crepes empregados nessas confecções. Em 1902, considera uma boa notícia que “o costume gênero alfaiate com jaqueta ou paletó curto é considerado luto pezado, com a condição que a saia seja guarnecida com vivos ou viezes de crepe”, e elogia o raglan e o peplum sendo empregados no luto.44 44 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1902. Sua severidade parecia diminuir gradativamente, admitindo recortes decorativos e modelagens mais práticas, e atingindo seu elemento mais icônico: o véu.

O véu, o xale e a modernização do luto na passagem para o século XX

No começo da década de 1880, o véu comprido de crepe preto era considerado indispensável para os lutos de maior grandeza, isto é, após a perda do marido, mãe ou pai, irmão ou irmã, pelo menos na fase do luto pesado. Deveria vir preso na parte de trás do chapéu e longo até abaixo do vestido (a peça que vai por cima da saia), cobrindo, assim, quase todo o corpo da enlutada. O luto aliviado ou o luto para avô, avó, tio ou tia, permitiam véu mais curto e mais leve. O grande xale de lã preta sem brilho era um segundo complemento obrigatório ao traje, sendo mais quente ou mais leve de acordo com a estação.45 45 A Estação, Chronica da Moda, 15 nov. 1883.

Alguns anos após essas indicações, em 1888, ainda o véu é de crepe preto, longo e amplo, ocultando o rosto e todo o vestido, chegando próximo da fímbria da saia. Para termos uma ideia de seu tamanho, uma publicidade da Casa das Fazendas Pretas do ano anterior recomendava que fosse de 2 metros de comprimento.46 46 Anúncio da Casa das Fazendas Pretas, com sugestões para o luto completo de viúva ou para qualquer senhora, publicado na Gazeta da Tarde, p. 3, 1 mar. 1887. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 15 nov. 2019. Mas uma modificação importante é apresentada em relação ao xale: foi substituído por uma capa, também de lã preta sem brilho e igualmente longa que, após o luto pesado, poderia ser trocada por um mantelete, do mesmo tecido que o vestido.47 47 A Estação, Chronica da Moda, 30 nov. 1888.

Essa substituição nos parece sintomática de uma demanda por um traje de luto que não atrapalhasse tanto os braços: basta atentar para as diferenças técnicas entre o xale, a capa e o mantelete. Usaremos, como fontes dessas explicações, o projeto Terminology: Vocabulary of Basic Terms for Cataloguing Costume, (Icom, s.d.), as obras The Dictionary of Fashion History (Cumming, Cunnington, Cunnington, 2010CUMMING, Valerie; CUNNINGNTON, C.W.; CUNNINGNTON, P.E. The Dictionary of Fashion History. Oxford, New York: Berg, 2010.) e Encyclopaedic Dictionary of Textile Terms (Kolanjikombil, 2018KOLANJIKOMBIL, Mathews. Encyclopaedic Dictionary of Textile Terms, v. 1-4. New Delhi: Woodhead Publishing India in Textiles, 2018.) e o “Glossário” da História do vestuário no Ocidente, de François Boucher (2010).

Segundo nossas consultas, o xale pode ser descrito como uma grande peça de formato não específico, mas geralmente quadrada ou retangular, de variados tecidos (normalmente em lã) que se dispõe sobre o corpo sem fechos ou costuras, cobrindo a metade de cima do corpo ou mais (Icom, s.d., 2.1. “Shawl”; Boucher, 2010, p. 475). Seu uso foi voga durante todo o século XIX (Boucher, 2010, p. 475) e seu tamanho acompanhava a moda das armações das saias, alcançando, no auge das crinolinas, aproximadamente 3 metros e meio (Cumming, Cunningnton, Cunningnton, 2010CUMMING, Valerie; CUNNINGNTON, C.W.; CUNNINGNTON, P.E. The Dictionary of Fashion History. Oxford, New York: Berg, 2010., p. 183-184, “Shawl”). Podia ser portado pendendo sobre os ombros ou pela sobreposição de suas partes, passando suas pontas por cima de um ou dos dois ombros.

A capa seria uma peça de cima, em formato circular, usada sobre os ombros (Kolanjikombil, 2018KOLANJIKOMBIL, Mathews. Encyclopaedic Dictionary of Textile Terms, v. 1-4. New Delhi: Woodhead Publishing India in Textiles, 2018., “Cape”), com ou sem capuz, que cobre o corpo até a altura da cintura (acima ou abaixo) sem dar forma aos braços. Originalmente, sua função era proteger da chuva. Sua característica é ser aberta na frente, podendo ser fechada por um amplo agrafe, ou algum outro tipo de fecho (Icom, s.d., 2.3 “Cape”; Boucher, 2010, p. 459). Já o mantelete é definido como uma versão curta do manto, que por sua vez é uma roupa de cima que cobre os ombros, é aberto na frente (podendo ou não ter aviamento para seu fechamento) e possui recorte parcial para os braços (Cumming, Cunnington e Cunnington, 2010CUMMING, Valerie; CUNNINGNTON, C.W.; CUNNINGNTON, P.E. The Dictionary of Fashion History. Oxford, New York: Berg, 2010., p. 127, “Mantelet”). O mantelete seria um petit vêtement de mulher, segundo Boucher, a meio caminho entre a capa e a casaca, que tem recortes completos de mangas (Icom, s.d., 2.4 “Mantle”; Boucher, 2010, p. 467).

Vemos, portanto, a troca de uma peça que era usada solta (e, nesse caso, não protegia o peito) ou que, para ser fechada na frente, “amarrava” a parte de cima do corpo, limitando a abertura dos braços - o xale -, por outras modelagens que permitiam a cobertura da parte de cima do corpo (ombros, costas e peito) sem restringir a movimentação dos braços ao mesmo tempo (a capa e o mantelete).

Em 15 de dezembro de 1891, a seção “Correio da Moda”, assinada por Paula Cândida, destina todo seu espaço ao luto e ao dia de Finados, e anuncia a novidade de que o xale estava oficialmente dispensado do traje lutuoso (em prol da capa ou de casacas de mangas largas). Por ocasião dessa mudança, a colunista aproveita para tecer uma crítica contundente ao hábito do véu comprido de crepe, “que é o que o trajo feminino inventou de mais absurdo desde o primeiro vestido da nossa mãi Eva”. Descreve-o como pesado, incômodo e passível de manchas se não for de excelente qualidade (o que o fazia ser muito caro). Admite que a sua função primeva, de “envolver o rosto da mulher afflicta, isolando-a inteiramente do resto dos mortaes, para que ella podesse chorar livremente, sem que os olhos indiscretos podessem ver as suas pálpebras vermelhas” fazia sentido no caso das viúvas ricas que vão à missa amparadas por suas empregadas. No entanto, “a mulher que trabalha, que anda pelas ruas da cidade, levando e trazendo seu trabalho, a que accompanha seus filhos nos seus estudos, leva-os ás escolas e classes, usa o véo como deve? Não”.48 48 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891.

O apelo é assertivo. Cândida chega a mencionar as tentativas frustradas daquelas que o apanham em pregas, atando-o ao chapéu, para deixá-lo mais curto. Defende que seja abandonado, que o luto seja identificado apenas pelo vestido preto e o chapéu de crepe, já que “não se mede a dor pelo comprimento do véo”. Seu argumento, finalmente, era de que “este véo é de um outro tempo e não corresponde aos gostos simples (...) e sobretudo á liberdade de andar e o desejo de passar desapercebida que caracterisa a mulher dos nossos dias...”.49 49 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891.

Qual mulher? Provavelmente, trata-se da “nova mulher”, como a identifica Michelle Perrot, essa figura surgida na passagem do século XIX para o XX, cujas atribuições profissionais e/ou sociais a levam a frequentar o espaço público, tão limitado à atuação masculina até então: “jornalistas, escritoras ou artistas, advogadas, médicas, até catedráticas, que já não se contentam com papéis secundários, querem correr o mundo e amar à sua própria maneira” (Perrot, 1991PERROT, Michelle. À margem: solteiros e solitários. In: PERROT, Michelle(org.) História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Tradução: Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 287-303., p. 297-302). Para Perrot, essa escolha passava muitas vezes pela solteirice, pela solidão ou pela homoafetividade - cada qual com seu preço a ser pago (“Admiradas por alguns, vilipendiadas por outros, nada foi fácil para elas.” [Perrot, 1991PERROT, Michelle. À margem: solteiros e solitários. In: PERROT, Michelle(org.) História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Tradução: Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 287-303., p. 297-302]). Fa­zendo eco à colunista d’A Estação, poderíamos incluir nesse grupo qualquer “mulher que ­trabalha, que anda pelas ruas da cidade” e cujo desejo é a liberdade de andar e passar despercebi­da - ser apenas mais uma na multidão a cumprir com suas obrigações e não uma excentricidade dos tempos modernos.

Pensando nessas mulheres, era necessário uma resignificação do vestuário de luto que passava pela superação do xale e do véu, peças volumosas e chamativas pela maneira como cobriam a figura e atrapalhavam sua mobilidade (cujo objetivo era, justamente, manter a enlutada em isolamento). O dado é importante para percebermos que a etiqueta do luto, rigorosamente observada pela “boa sociedade” durante o século XIX, passava nesse momento por modificações direcionadas às classes médias e baixas às quais pertenciam as mulheres que seriam favorecidas por essas mudanças.

Para atualizar o luto a essa nova realidade urbana e aos desafios das “novas mulheres”, os trajes precisavam ser mais práticos. Tanto que, até o fim do século, o xale só continuaria a ser usado nos lugares “onde o luto é um uniforme tão severo que ninguém ousaria permittir-se a menor infracção a esta etiqueta”, isto é, países mais conservadores e províncias mais distantes da capital, Paris.50 50 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1899. Nas grandes cidades, a tendência era acentuada no sentido de desembaraçar-se das obrigações.51 51 Ibidem.

No ano seguinte, Cândida traz as novidades para a capa de luto que, usada no lugar do antigo xale comprido, poderia ser “a capa comprida com capuz, a capinha, a capinha com três collarinhos, as romeiras e as capas redondas” - que nos parecem mais funcionais e versáteis que o xale, além de configurarem um novo atrativo mercadológico, mais um produto com suas inúmeras variações a ser adquirido.

Nessa mesma coluna, outra inovação é anunciada: “os véos compridos soffrerão uma transformação das mais felizes”, sua forma agora era quadrada, mas um dos ângulos cortado arredondado e preso em pregas na beira frontal da capota, não correndo mais o risco de desprender-se, fazendo parte do chapéu. As outras três pontas caem nas costas: “Esta maneira de collocar o véo fatiga menos a cabeça do que a antiga, pois a amplidão e por conseguinte o peso estão melhor divididos.”52 52 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.

A alteração é relevante, pois facilitava a colocação e a retirada do véu, quando necessário. E supõe que uma mulher fora de casa estará o tempo todo com chapéu e véu, logo, era uma solução lógica costurar um ao outro. O que é admirável, pois “soluções lógicas” não costumam ser inerentes às tendências da moda nem são requisitos para suas mudanças incessantes.53 53 Ver mais em “Arbitrariedade da moda” (Simmel, s.d.). O que parece estar implícito é, portanto, uma adequação das obrigações do luto às reais necessidades das mulheres na virada do século. À guisa de referência, a revista, na década de 1890, traz nas descrições das gravuras de moda, sugestões de véus para o luto pesado que medem entre 1 metro e 30 centímetros a 1 metro e 75 centímetros de comprimento, por 30 a 75 centímetros de largura.54 54 Por exemplo, em A Estação, 28 fev. 1893, p. 28-30, “Vestido de luto pesado”; e A Estação, 15 dez. 1896, p. 183, “Chapéo de luto”; e A Estação, 30 set. 1899, p. 140-144, “Vestido com chale e chapéo-capota para luto de viúva”. Na edição de 15 de dezembro de 1895, Paula Cândida dá a entender que o véu assim longo continua sendo usado mas que um menos comprido e menos largo começava a ser aceito, por questões pragmáticas, pois “para as senhoras que se occupão muito fora, em negócios, em dar lições, é desnecessário dizer que um véo tocando no chão é de todo impossível para usar constantemente”.55 55 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.

Finalmente, no começo do século XX, a coluna revela que os crepes para o véu são cada vez mais leves, feitos sem goma e tão flexíveis “que parece incrível”.56 56 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1902. A severidade do luto parecia efetivamente diminuir, e a obrigatoriedade do véu comprido restringia-se aos primeiros oito dias do luto. Este véu poderia ser fixado com um alfinete à cintura, ou passado pelo cinto, o que dividia seu peso. Isso deixava no passado as famosas imagens das enlutadas vitorianas cobertas dos pés à cabeça com um pano negro inteiriço, como um fantasma da escuridão. Em 1903, A Estação considera a peça absolutamente inapropriada aos afazeres na cidade: “é evidente que não se pode circular com este véo sobre o rosto que impede de ver e encommoda para andar”.57 57 A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 31 dez. 1903. No último comentário sobre o luto publicado pela revista no Brasil, Paula Cândida escreve uma declaração categórica: a de que deve-se adequar o luto à vida que se leva. Afinal, o receio extremo com a etiqueta é apenas dos vivos: “os mortos não são tão exigentes”.58 58 Ibidem.

Considerações finais: o vestuário de luto, uma preocupação feminina

Publicação da segunda metade do século XIX e primeiros anos do século XX, A Estação: Jornal Illustrado para a Família foi um dos impressos responsáveis por disseminar as regras do vestuário de luto na sociedade brasileira, reafirmando a importância desse tipo de traje como manifestação do apego e do respeito aos mortos e como norma de civilidade que deveria ser observada e seguida. Reflexo de seu tempo, ao mesmo tempo que legitimava os hábitos e os consumos da elite, forjados em Paris, insinuava transformações importantes no comportamento feminino e defendia mudanças no rigor do luto.

Como foi possível observar em nossa análise sobre o tratamento dado à etiqueta de luto nos textos de A Estação, essa era uma preocupação prioritariamente das mulheres. O dado se confirma em nosso levantamento: em todas as menções relativas ao luto que encontramos na revista A Estação, apenas uma refere-se ao vestuário masculino, e diz: “Traje completo em panno de cheviote ou todos os estofos do mesmo gênero sem brilho, crepe de toda a altura do chapéu; luvas de seda preta.”59 59 A Estação, Chronica da Moda, sem assinatura, 30 nov. 1888. A simplicidade dessa única descrição acentua o exagero do escrutínio pelo qual o assunto passa do lado das mulheres. De acordo com Lou Taylor, eram elas as sobrecarregadas pelo dever de vestir roupas que consideravam feias e deprimentes por longos períodos de suas vidas, enquanto os homens, uma vez terminado o funeral, precisavam apenas portar a braçadeira de fumo:

essa diferença é simbólica de toda posição social das mulheres na segunda metade do século XIX. As mulheres eram tratadas, às vezes voluntariamente e até ansiosamente, como peça de exibição, para mostrar a respeitabilidade da família, senso de conformidade e riqueza. (...) O vestuário de luto talvez fosse o veículo mais perfeito para esse propósito (Taylor, 1983TAYLOR, Lou. Mourning dress: a costume and social history. Londres: George Allen and Unwin, 1983., p. 134-136. Tradução livre).

No quadro geral das atitudes diante da morte, o período é caracterizado pela inflação das expressões da dor familiar, mas parece que a atuação feminina era a mais crucial, a mais esperada no corpo social. O complexo (e caro) guarda-roupa de luto que precisavam assumir após a perda de um ente querido fazia delas a vitrina do sentimento da família enlutada, tirando parte do peso dessa responsabilidade de seus membros masculinos. Ainda que a redatora de moda d’A Estação insistisse que “a única significação do luto consiste em livrar as pessoas que o vestem, das frivolidades da toilette; significa o desprendimento do prazer, da alegria, do ruído, do luxo, levando-nos ao affastamento do mundo”,60 60 A Estação, Chronica da Moda, sem assinatura, 15 nov. 1883. é evidente, pelo corpus analisado nesse artigo, que cabia à mulher se conformar às minúcias desse tipo de indumentária.

Referências

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  • BOUCHER, François. História do vestuário no Ocidente Tradução: André Telles. São Paulo: CosacNaify, 2010.
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    » https://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-esta cao-jornal-illustrado-para-a-familia/
  • CRESTANI, Jaison Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Illustrado para a Família Revista da Anpoll: A língua portuguesa na imprensa: 1808-2008 v. 1, n. 25, p. 323-353, 2008.
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  • ICOM. International Committee for the Museums and Collections of Costumes. Terminology: Vocabulary of Basic Terms for Cataloguing Costume, s.d. Disponível em:<Disponível em:http://terminology.collectionstrust.org.uk/ICOM-costume/ >. Acesso em:8 jul. 2020.
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  • KOLANJIKOMBIL, Mathews. Encyclopaedic Dictionary of Textile Terms, v. 1-4. New Delhi: Woodhead Publishing India in Textiles, 2018.
  • PERROT, Michelle. À margem: solteiros e solitários. In: PERROT, Michelle(org.) História da vida privada 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra Tradução: Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 287-303.
  • RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções - Rio de Janeiro, século XIX Brasília: Editora UnB, 2002.
  • SILVA, Ana Claudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação IARA: Revista de Moda, Cultura e Arte (São Paulo). v. 2, n. 1, p. 1-26. set./dez. 2009.
  • SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos Tradução: Artur Morão. Lisboa: Texto & Grafia, s.d.
  • TAYLOR, Lou. Mourning dress: a costume and social history Londres: George Allen and Unwin, 1983.
  • VOVELLE, Michel. Le deuil bourgeois. Du faire-part la statuaire funaire. Revue Le Débat (Paris). n. 12, p. 60-82, 1981.
  • 1
    A Estação, Correio da Moda, 15 dez. 1891, Manteve-se a grafia original de todas as citações.
  • 2
    Ibidem.
  • 3
    A Estação, Chronica da Moda, 15 nov. 1883.
  • 4
    Este artigo é parte de uma pesquisa maior, de pós-doutorado, “O vestuário de luto no Brasil oitocentista”, em que exploramos o tema de maneira mais abrangente. Ela foi realizada no programa de pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob supervisão da professora doutora Maria Cláudia Bonadio e finalizada em março de 2020.
  • 5
    Disponível em <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
  • 6
    A Estação, Editorial, 15 fev. 1879.
  • 7
    A Estação, Editorial, 15 fev. 1879. .
  • 8
    A Estação, 15 fev. 1879.
  • 9
    A Estação, 31 jul. 1888.
  • 10
    Por isso em sua primeira edição, de 15 de janeiro de 1879, a capa informa que a revista está em seu oitavo ano, admitindo que A Estação era uma continuidade de La Saison. Segundo Ana Claudia Suriani, a tradução para o português era feita na Alemanha e as pranchas eram enviadas à Lombaerts, que se encarregava da paginação e da impressão (Silva, 2009, p. 6).
  • 11
    Segundo Crestani (2008, p. 332), estima-se que atingisse cerca de 100 mil leitores, “o que permite perceber o nível de importância que a revista detinha na difusão cultural brasileira”.
  • 12
    Crestani (2008) explica em detalhes os motivos que levaram ao fim da revista no Brasil, devido ao seu progressivo aumento de preço a partir de 1891.
  • 13
    A Estação, 15 fev. 1879.
  • 14
    A Estação, Editorial, 15 fev. 1879.
  • 15
    Ou seja, para Rainho, pertencer à “boa sociedade” não se vinculava, necessariamente, a ter riqueza e poder: “o perfil dos membros da “boa sociedade” é restringido, pois para ser caracterizado como tal não bastam a posse da riqueza, o acesso ao consumo de determinados bens ou o exercício do poder, sendo preciso também se destacar pelo requinte das maneiras, pelo polimento dos costumes e, especialmente, pela maneira de apresentar-se socialmente” (Rainho, 2002, p. 17).
  • 16
    Por uma questão de limitar o escopo do artigo, não entraremos aqui nas definições dos tempos de cada luto. Um dos motivos é que essas regras eram extremamente variáveis de acordo com cada fonte consultada (e mesmo dentro da revista A Estação, encontramos indicações diferentes de edição para edição). O outro motivo é que essa discussão nos levaria a considerar outras fontes, como a Legislação Portuguesa que previa esses usos e que supostamente ainda estava em prática no Brasil (a Pragmática de 1749), manuais de etiqueta e outras revistas da época, o que foge dos limites deste artigo.
  • 17
    A Estação, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892; A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.
  • 18
    A Estação, Chronica da Moda, p.1, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880.
  • 19
    A Estação, Correio da Moda, p. 1, 30 nov. 1889.
  • 20
    A Estação, Correio da Moda, p. 1, assinada por Paula Candida, 15 dez. 1892.
  • 21
    A Estação, Correio da Moda, p. 1, assinada por Paula Candida, 15 dez. 1891.
  • 22
    A Estação, Correio da Moda, p. 1, Paula Candida, 30 nov. 1895.
  • 23
    A Estação, p. 1, Chronica da Moda, p. 1, sem assinatura, 30 nov. 1888.
  • 24
    A Estação, p. 1, Chronica da Moda, p. 1, sem assinatura, 15 nov. 1883.
  • 25
    Todas as informações foram retiradas das seguintes edições de A Estação: 15 abr. 1879, p. 57; 30 jul. 1879, p. 129-130; 30 jan. 1880, p. 12; 30 abr. 1880; 15 jul. 1880; 31 ago. 1880, p. 164; 15 nov. 1880, p. 224; 30 nov. 1880, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 maio 1881, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 jul. 1881, p. 166; 15 fev. 1882, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé; 31 ago. 1882, p. 186; 15 maio 1883, p. 106; 15 nov. 1883, Chronica da Moda, sem assinatura, p. 246; 30 set. 1884, p. 144, Correspondência; 15 out. 1884, p. 150; 15 maio 1885, p. 72, Correspondência; 31 jul. 1885, p. 60; 30 abr. 1886, p. 58-63; 31 jul. 1886, p. 112, Correspondência; 31 ago. 1886, p. 128, Correspondência; 15 out. 1886, p. 150; 3 dez. 1886, p. 192, Correspondência; 31 mar. 1887, p. 48, Correspondência; 15 jul. 1887, p. 103-104; 15 out. 1887, p. 150; 15 dez. 1887, Chronica da Moda; 29 fev. 1888, p. 31; 31 maio 1888, p. 79. Correspondência; 30 jun. 1888, p. 90-96; 15 jul. 1888, p. 98-102; 31 jul. 1888, p. 107; 30 nov. 1888, Chronica da Moda, sem assinatura; 15 ago. 1889, p. 117; 30 nov. 1889, Correio da Moda; 15 abr. 1890, p. 56; 15 maio 1890, p. 69; 30 set. 1890, p. 142-143; 31 out. 1890, p. 160, Correspondência; 30 set. 1891, p. 143-144; 15 dez. 1891, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 jul. 1892, p. 110; 31 ago. 1892, p. 124; 15 out. 1892, p. 150; 15 dez. 1892, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 28 fev. 1893, p. 28-30; 31 jul. 1893, p. 107-112; 30 set. 1893, p. 138-143; 15 set. 1894, p. 132-134; 15 out. 1894, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 nov. 1894, p. 168; 15 dez. 1894, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 maio 1895, p. 79-80; 30 nov. 1895, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 dez. 1895, p. 192; 15 maio 1896, p. 70; 15 set. 1896, p. 134; 15 dez. 1896, p. 182-183; 31 ago. 1897, p. 124; 30 abr. 1898, p. 63; 15 maio 1898, p. 72; 15 set. 1898, p. 1310-1311; 15 dez. 1898, p. 183-184; 15 jun. 1899, p. 87; 15 ago. 1899, p. 115; 30 set. 1899, p. 140-144; 15 dez. 1899, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 31 maio 1900, p. 77; 15 out. 1900, p. 147; 15 dez. 1900, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 set. 1901, p. 131-136; 31 ago. 1902, p. 125-126; 30 nov. 1902, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida; 15 maio 1903, p. 68; 30 set. 1903, p. 143-144; 31 dez. 1903, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida.
  • 26
    Como dito anteriormente, não entraremos nos detalhes sobre os tempos dos lutos neste artigo.
  • 27
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1900.
  • 28
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.
  • 29
    A Estação, Chronica da Moda, assinada por Antonina Aubé, 30 nov. 1880.
  • 30
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.
  • 31
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.
  • 32
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.
  • 33
    A Estação, Chronica da Moda, p. 1, 15 nov. 1883.
  • 34
    A Estação, Correio da Moda, p. 1, 30 nov. 1889.
  • 35
    A Estação, Vestido com partes-vestia curtas, para luto aliviado, p. 134, 15 set. 1896.
  • 36
    A Estação, Toilette de sarau, p. 58-63, 30 abr. 1886.
  • 37
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.
  • 38
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1887.
  • 39
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891.
  • 40
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.
  • 41
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1894.
  • 42
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.
  • 43
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1899.
  • 44
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1902.
  • 45
    A Estação, Chronica da Moda, 15 nov. 1883.
  • 46
    Anúncio da Casa das Fazendas Pretas, com sugestões para o luto completo de viúva ou para qualquer senhora, publicado na Gazeta da Tarde, p. 3, 1 mar. 1887. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 15 nov. 2019.
  • 47
    A Estação, Chronica da Moda, 30 nov. 1888.
  • 48
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891.
  • 49
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1891.
  • 50
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1899.
  • 51
    Ibidem.
  • 52
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 15 dez. 1892.
  • 53
    Ver mais em “Arbitrariedade da moda” (Simmel, s.d.).
  • 54
    Por exemplo, em A Estação, 28 fev. 1893, p. 28-30, “Vestido de luto pesado”; e A Estação, 15 dez. 1896, p. 183, “Chapéo de luto”; e A Estação, 30 set. 1899, p. 140-144, “Vestido com chale e chapéo-capota para luto de viúva”.
  • 55
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1895.
  • 56
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 30 nov. 1902.
  • 57
    A Estação, Correio da Moda, assinado por Paula Cândida, 31 dez. 1903.
  • 58
    Ibidem.
  • 59
    A Estação, Chronica da Moda, sem assinatura, 30 nov. 1888.
  • 60
    A Estação, Chronica da Moda, sem assinatura, 15 nov. 1883.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2020
  • Aceito
    28 Set 2020
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