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Monumento às Bandeiras: processo de construção e ressignificação simbólica

Monumento às Bandeiras: construction process and symbolic non-meaning

Resumo:

Este artigo se dedica à campanha pela construção do Monumento às Bandeiras, em 1936, e o processo de ressignificação que esse monumento passou nos últimos vinte anos. Para tanto, apresentamos os princípios que norteavam o Movimento Bandeira e a estruturação da Revista S. Paulo (1936). Neste estudo, avaliamos como o “mito bandeirante” permeou os enunciados em prol da construção do monumento que, para os simpatizantes do Movimento Bandeira, se consagraria como um lugar de memória para os brasileiros, em especial para os paulistas. Por fim, examinamos como alguns estudos destacaram o processo de ressignificação simbólica do Monumento às Bandeiras e as possibilidades abertas aos lugares de memória.

Palavras-chave:
Política; Lugar; Memória

Resume:

This article is dedicated to the campaign for the construction of the Monumento às Bandeiras, in 1936, and the resignification process that this monument has undergone in the last twenty years. To this end, we present the principles that guided the Bandeira Movement and the structuring of the Revista S. Paulo (1936). In this study, we assess how the “Bandeirante myth” permeated the statements in favor of the construction of the monument that, for supporters of the Bandeira Movement, would consecrate itself as a place of memory for Brazilians, but especially for Paulistas. Finally, we examine how some studies have highlighted the symbolic reframing of the Monumento às Bandeiras and the possibilities open to places of memory.

Keywords:
Politics; Place; Memory

Introdução

Ao visitar a capital paulista, encontramos diversos locais públicos que fazem referência às bandeiras do século XVII e XVIII como, por exemplo, a avenida dos Bandeirantes e as rodovias Raposo Tavares, Fernão Dias e Anhanguera. Além dessas vias públicas, também podemos citar o Palácio dos Bandeirantes - sede do governo do estado de São Paulo - e as estátuas dos bandeirantes que ornamentam o Museu Paulista e, ainda, outros lugares públicos como, por exemplo, a estátua do Anhanguera localizada no Parque Trianon. Apesar dessas diversas localidades, o lugar que sintetizou a mítica bandeirante na cidade de São Paulo foi, sem dúvida alguma, o Monumento às Bandeiras esculpido por Victor Brecheret.

Considerando o centenário da exposição da maquete do Monumento às Bandeiras, exibida ao público em julho de 1920, faremos um estudo sobre a campanha em prol da construção do monumento e seu processo de ressignificação. Nosso estudo parte da campanha empreendida pelo Movimento Bandeira para a construção do monumento no ano de 1936. Para tanto, veremos como o arcabouço ideológico desse grupo foi posto como estratégia discursiva para defender a realização dessa obra artística. De modo mais específico, veremos como os bandeiristas1 1 O termo bandeirista, nesse estudo, tem o mesmo valor de “novos bandeirantes”. Ambos farão referência aos integrantes do Movimento Bandeira. encontraram escopo para publicizar a campanha em prol da construção do Monumento às Bandeiras, o qual foi posto como lugar de memória para exaltar o passado paulista. Após essa análise, demonstraremos como alguns estudiosos abordam o processo de ressignificação pelo qual passou o referido monumento nos últimos vinte anos.

Na primeira seção, intitulada “O Movimento Bandeira e a Revista S. Paulo em defesa da memória dos heróis paulistas”, expomos os princípios que norteavam o Movimento Bandeira e a estruturação da Revista S. Paulo (1936). Nesse tópico, apresentamos a articulação entre esse movimento político-cultural e a imprensa. Esclarecer essa relação é fundamental para interpretarmos como se deu a campanha pela construção do Monumento às Bandeiras em 1936. Na seção seguinte, intitulada “Monumento ao bandeirante: lugar de culto às memórias dos heróis paulistas”, discutimos como os bandeiristas se apropriaram desses enunciados em 1936. Nosso foco será discutir como o “mito bandeirante” permeou os enunciados em prol da construção do monumento que, para os “novos bandeirantes”, se consagraria como um lugar de memória para os brasileiros, em especial para os paulistas. Na última seção, intitulada “Bandeiras, bandeirantes e monumento: ressignificações do lugar de memória”, examinamos como alguns estudos entendem a construção do “mito bandeirante”, o processo de ressignificação simbólica do Monumento às Bandeiras e as possibilidades abertas a esse monumento como lugar de memória.

Com base nessa estrutura, convidamos o leitor a nos acompanhar na elucidação do arcabouço ideológico do Movimento Bandeira e de como esse ideário serviu de suporte para validar a retomada da construção do Monumento às Bandeiras em 1936. Ao examinar a mensagem visual da Revista S. Paulo, demonstraremos, também, que os usos das imagens formaram estratégias ímpares para comunicar o ideário bandeirista e a construção do referido monumento. Refletir sobre essa interação é fundamental em nosso estudo, pois assim poderemos entender como os “novos bandeirantes” se posicionaram favoráveis à construção do monumento ao bandeirante como lugar de memória. Por fim, levantamos algumas considerações sobre a ressignificação simbólica desse monumento, tendo sua representatividade migrado da ideia de um lugar para consagrar os supostos heróis paulistas, para a consolidação de um lugar que representa os massacres perpetrados contra as populações indígenas e afrodescendentes no Brasil.

O Movimento Bandeira e a Revista S. Paulo em defesa da memória dos “heróis paulistas”

Para compreender a atuação do Movimento Bandeira, torna-se necessário trazer as considerações de Ângela de C. Gomes (1982GOMES, Ângela de Castro. O redescobrimento do Brasil. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Ângela Maria de Castro. Estado Novo: ideologia poder. Rio Janeiro: Zahar, 1982. p. 109-150.) e Lúcia L. de Oliveira (1980OLIVEIRA, Lúcia Lippi de (Coord.). Elite intelectual e debate político nos anos 30: uma bibliografia comentada da revolução de 1930. Rio de Janeiro: INL, 1980.) para nosso estudo. Para as autoras, a década de 1930 abriu, ao campo das ideias políticas, novas possibilidades de ordenação da sociedade e, nessa arena, alguns intelectuais redefiniram seu espaço de atuação, entre eles, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. No intuito de redefinir sua atuação política na década de 1930, esses dois modernistas foram responsáveis pelo planejamento do ideário2 2 O ideário bandeirista teve suas origens no grupo verde-amarelo, tanto na articulação das ideias quanto na composição dos integrantes, com exceção de Plínio Salgado, que se tornaria o principal líder do movimento Integralista. do Movimento Bandeira entre 1935 e 1937, estruturado para combater o comunismo, o integralismo e a liberalismo. Ao se contrapor a essas ideias políticas, lidas como “ideologias forasteiras”, os bandeiristas optaram pela instauração do Estado Forte e da Democracia Social Nacionalista no Brasil.

Apesar de pouquíssimos estudos sobre o Movimento Bandeira, essa agremiação foi abordada por alguns autores, entre eles, Maria L. Guelfi (1987GUELFI, Maria Lúcia Fernandes. Novíssima: estética e ideologia na década de vinte. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1987.). Ao estudar o corpo editorial da revista Novíssima (1923-1927) e seus desdobramentos na década de 1930, a autora supôs que os bandeiristas se colocaram como terceira opção contra o comunismo e o integralismo, pois ofereceria um modelo político “mais ajustado” à condição brasileira. Discordamos dessa proposição, visto que os bandeiristas não se colocavam simplesmente como terceira via, mas como uma quarta via em relação ao comunismo, ao integralismo e ao liberalismo (Coelho, 2015COELHO, George L. S. O bandeirante que caminha no tempo: apropriações do poema “Martim Cererê” e o pensamento político de Cassiano Ricardo. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2015.).

Outra interpretação sobre os “novos bandeirantes” foi levantada por Marta R. Batista (1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985.). Ao estudar a história do Monumento às Bandeiras, a autora simplificou o fato de o Movimento Bandeira ser “uma versão de integralismo mergulhada em paulistanidade” (Batista, 1985, p. 51). Não reconhecemos que o integralismo e o bandeirismo sejam movimentos com profundas diferenças, mas é importante destacar algumas discrepâncias: o integralismo é contrário à autonomia dos estados, e o bandeirismo é federalista; e o integralismo é um partido político-eleitoral, enquanto o bandeirismo é um movimento político-cultural. A partir desses dois apontamentos, deduzimos que o bandeirismo não era apenas um integralismo transvestido em paulistanidade, mas um movimento com um programa distinto do projeto de Plínio Salgado.

Outro pesquisador que teceu comentário sobre o Movimento Bandeira foi Paulo Marins (2003MARINS, Paulo César Garcez. O parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu Paulista(São Paulo). n. sér. v. 6/7, p. 9-36 (1998-1999). Reeditado em 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5359/6889 . Acesso em: 23 mar. 2020.
http://www.revistas.usp.br/anaismp/artic...
). Também estudando a história do Monumento às Bandeiras, esse autor defendeu que o bandeirismo reinterpretou o “mito bandeirante” para um modelo de hierarquia e ordenação social e política a ser seguido por todos os brasileiros. Concordamos com essa assertiva, mas damos um passo além ao concebermos que, além de elaborar a releitura do “mito bandeirante” para abarcar todos os brasileiros dentro de uma comunidade imaginada, os bandeiristas reformularam esse mito para combater as “ideologias forasteiras”, defender a candidatura de Armando Salles de Oliveira à presidência da República e atacar o governo de Getúlio Vargas.

A despeito dessas análises sobre o Movimento Bandeira, corroboramos com os argumentos de Mônica P. Velloso (1983VELLOSO, Mônica Pimenta. O mito da originalidade brasileira: a trajetória intelectual de Cassiano Ricardo (dos anos 20 ao Estado Novo). Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1983.) e Maria J. Campos (2007CAMPOS, Maria José.Versões modernistas da democracia racial em movimento: - estudo sobre as trajetórias e as obras de Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo até 1945. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.). Consideramos que os “novos bandeirantes” se lançaram na arena política na década de 1930, de modo que seu ideário contava com quatro orientações básicas: incorporar a atualidade sem quebrar as tradições; valorizar a cultura brasileira, acima de tudo, a língua; negar os estrangeirismos; e, por fim, defender a arte com cunho político. Ao apropriarem-se do “mito bandeirante” como símbolo para seu projeto político-cultural, os bandeiristas construíram uma relação peculiar entre o tempo - passado e presente - e o espaço - região paulista -, bem como, uma associação sui generis entre a tradição e o moderno. Para esses sujeitos, somente com a união entre a tradição - o passado paulista - e o moderno - modernismo e industrialização - seria possível solucionar os dilemas políticos da década de 1930.

A Revista S. Paulo é um excelente documento para acompanhar a atuação dos bandeiristas. Essa revista circulou apenas no ano de 1936 sob a direção de Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Levém Vanpre. Sua periodicidade foi mensal até o oitavo número, passando a ser bimestral nos dois últimos. O mensário foi impresso pela Grafficars, com fotografias de Theodor Pressing e Benedito J. Duarte. A revista também contava com a colaboração de Lívio Abramo, como responsável pela produção gráfica, e Osmar Pimentel e Francisco de Castro Neves, como redatores. Além da função periférica de difundir o ideário do Movimento Bandeira, a Revista S. Paulo tinha como objetivo servir de base midiática para publicizar as ações do governo de Armando de Salles e, assim, edificar o projeto de sua candidatura à presidência da República em 1938.

Para Nelson W. Sodré (1966SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.), o controle dos meios de comunicação é uma luta onde aparecem instituições e pessoas das mais diversas situações sociais, culturais e políticas. Nesse campo, ocorre a disseminação de interesses e aspirações, na qual uma parte da sociedade consegue produzir notícias. Na mesma linha de raciocínio, Ciro Marcondes Filho (1989MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática, 1989.) ressalta que a busca das visões difundidas pela imprensa escrita é importante, pois ela é um campo de batalha onde indivíduos e grupos posicionam-se publicamente. Para o autor, o jornalismo pretende preservar certa impessoalidade capaz de promover seu poder e soberania através da construção de uma “verdade” planejada e, ao mesmo tempo, edificar uma versão parcial da realidade, a qual é ancorada na passividade, na acomodação e na apatia de seus receptores. A partir dessas exposições, podemos dialogar com Tânia R. de Luca (2008LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. 2ª ed. In: PINSKY, Carla Bassanezi(Org.). Fontes históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008, v. 1, p. 111-153.). Para essa autora, a imprensa periódica seleciona, ordena, estrutura e narra - de determinada forma - aquilo que se elegeu como digno de chegar ao público. Segundo a autora, a imprensa constrói uma identificação imediata e linear entre a narração do acontecimento e o próprio acontecimento.

Com base nas concepções de Sodré (1966SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.), Marcondes Filho (1989MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática, 1989.) e Luca (2008LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. 2ª ed. In: PINSKY, Carla Bassanezi(Org.). Fontes históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008, v. 1, p. 111-153.), podemos sublinhar que a Revista S. Paulo surgiu com duas funções bem definidas; popularizar o governo de Armando de Salles e difundir o ideário do Movimento Bandeira. Por essa razão, esse mensário é uma fonte privilegiada para discutirmos as estratégias que esses intelectuais utilizaram para fundamentar a construção do Monumento às Bandeiras em 1936. Ao mesmo tempo, esse mensário pode nos oferecer indícios sobre as formas como seus leitores entraram em contato com o ideário dos “novos bandeirantes”. Antes de revelar como os bandeiristas advogaram pela construção do monumento, o qual foi posto como um lugar de memória para os brasileiros, mas em especial para os paulistas, faremos mais algumas considerações sobre a revista em questão.

A Revista S. Paulo foi editada em rotogravura e impressa em grande formato: 30cm×44cm. As reportagens tinham páginas duplas e, em alguns números, traziam páginas desdobráveis que trabalhavam com a linguagem dos cartazes (Mendes, 1994MENDES, Ricardo. A Revista S. Paulo: a cidade nas bancas”. Imagens, n.3, p.91-97, dez. 1994.; Barbosa, 2010BARBOSA, Carlos. Domínios da Imagem(Londrina). ano IV, n. 7, p. 53-62, nov. 2010.). Segundo Marina Takami (2006)TAKAMI, Marina Castilho. Fotografia em marcha: revista S. Paulo - 1936. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008., dois fotógrafos e um gravador cumpriam a função de executar o projeto gráfico, o qual tinha o caráter propagandístico e experimental ligado à estética das vanguardas artísticas europeias do início do século XX. Kariny Gravitol (2011GRAVITOL. Kariny. Viajante incansável: trajetória e obra fotográfica de Theodor Preising. Dissertação (Mestrado em Ciências da Computação), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011.) cogita que a fotografia era peça fundamental na estética da revista e, devido ao fato de propagandear um governo que modernizava a cidade, a fotografia e a diagramação também deveriam ser modernas. As autoras afirmam que os textos tinham funções acessórias,3 3 No que se refere à alegação de que os textos cumpriam uma função acessória, Maria Silva (2014) ressalta que a predominância do discurso visual do mensário fazia com que a sua publicação fosse acessível a letrados, analfabetos e estrangeiros. O material visual não era homogêneo, encontrando sequências de fotografias e de fotomontagens de padrão naturalista, renascentista, dadaísta e construtivista. sendo as imagens compostas por fotografias ou fotomontagens.

É consenso entre os estudiosos da Revista S. Paulo que a equipe técnica procurou uma estética que abrangesse a modernização local e, concomitantemente, fosse capaz de difundir os feitos do governo estadual em nível nacional. Além dessa posição, a revista foi um exemplo notável da apropriação do “mito bandeirante” na propaganda política nos anos 1930. A leitura dessa revista foi de suma importância para percebermos como ocorreu a interação entre escrita e imagens, assim como entre parte do campo artístico e do campo político paulista. Ao examinar a mensagem visual desse mensário, constatamos que os usos das imagens foram estratégias ímpares para comunicar o ideário político dos bandeiristas, no qual a figura do bandeirante era o principal elemento simbólico. Ter em conta essa interação foi fundamental para percebermos como esses sujeitos legitimaram a construção do monumento ao bandeirante como espaço de consagração da memória dos “heróis paulistas”. Veremos, no próximo tópico, como esses recursos publicitários se efetivaram no ano de 1936.

Monumento ao bandeirante: lugar de culto às memórias dos heróis paulistas

Diversas matérias da Revista S. Paulo são dedicadas ao campo artístico e, entre elas, a escultura ganhou uma atenção especial, em particular, a maquete do Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret. Os planos para a construção do referido monumento não eram novos nos meios artísticos, políticos e publicitários paulistas, haja vista que a primeira tentativa de edificação do monumento surgiu em 1920. A campanha pela construção do Monumento às Bandeiras somente seria reiniciada por iniciativa do governo paulista em 1936, sendo amplamente mencionada pelos bandeiristas por meio da Revista S. Paulo.

Apesar das similaridades entre o projeto de 1920 e o de 1936, Ana R. Uhle (2013UHLE, Ana Rita. Monumentos celebrativos: aproximações entre arte e história (1925-1963). Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/321726 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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) levanta uma questão pertinente: “a profunda transformação no contexto político local” (Uhle, 2013, p. 190). Para a autora, “enquanto, no ano de 1920, o estado de São Paulo desfrutava de um protagonismo nacional conquistado na República e mantido por meio da política do café com leite, em 1936 a situação seria bastante diferente” (Uhle, 2013UHLE, Ana Rita. Monumentos celebrativos: aproximações entre arte e história (1925-1963). Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/321726 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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, p. 190). Essa nova situação política resume-se a duas questões: a derrota paulista na Revolta Constitucionalista de 1932 e o fato de Armando de Salles ser o primeiro interventor natural de São Paulo desde 1930. Em 1936, as elites políticas e econômicas paulistas estavam se reorganizando para conquistar sua autonomia em relação ao governo centralizador comandado por Getúlio Vargas. Um terceiro ponto que merece destaque é o fato de que o Estado brasileiro estava sob o regime da Constituição de 1934, a qual estipulou que o ano de 1938 seria marcado pela primeira eleição presidencial desde 1930, na qual o governador Armando de Salles buscava projetar sua candidatura.

Diversos autores, entre eles Batista (1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985.), Irene B. de Moura (2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
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), Uhle (2013UHLE, Ana Rita. Monumentos celebrativos: aproximações entre arte e história (1925-1963). Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/321726 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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) e Valverde (2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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), sugerem que Armando de Salles apoiou a construção do Monumento às Bandeiras com a expectativa de reaver o orgulho dos paulistas abalados com os acontecimentos de 1932, onde o simbolismo trabalhado pelos modernistas paulistas poderia revigorar a bravura histórica dos antepassados quanto à atual conjuntura.

Paralelamente ao campo político, podemos trazer algumas referências ao campo artístico. Entre os escritores que atuaram do projeto de 1920 e que participaram da campanha em prol da construção do monumento de Brecheret na década de 1930, encontramos Menotti del Picchia, um dos assessores de Armando de Salles. Outro intelectual que tomou parte do projeto em 1936 foi Cassiano Ricardo. Esse secretário especial do governador não acompanhou o projeto de 1920, pois residia no Rio Grande do Sul entre 1919 e 1923, mas foi um importante modernista a partir de 1925. Com essa aproximação, o chefe do executivo estadual se cercou de escritores de grande prestígio para encabeçar sua propaganda política, daí os elos, defendidos por nós, entre a literatura e a política para anunciar a construção do Monumento às Bandeiras em 1936.

No que concerne à retomada do projeto de edificação do Monumento às Bandeiras em 1936, os redatores da Revista S. Paulo recuperaram enunciados de 1920 para evidenciar as qualidades da obra de Brecheret. Como, nesse mesmo ano, o escultor havia retornado da França, onde residiu por quinze anos, o momento seria ideal para retomar o projeto abandonado de 1920. Para os redatores, o estilo de Brecheret “é uma afirmação violenta de personalidade” que “impõe-se pela originalidade”, pela “audácia” e pela “disciplina” (A direção, 1936A DIREÇÃO.Revista S. Paulo(São Paulo). p. 2, jul. 1936., p. 2). E, por isso, seu projeto “ombreia com os mais vigorosos trabalhos do gênero criados nos países mais cultos” e, assim, dotará “S. Paulo de uma obra de arte, que tem a torná-la única no continente” (O monumento..., 1936SÃO PAULO SÃO PAULO cidade bandeirante. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 8, ago. 1936., p. 3). E, apesar de o escultor ter o reconhecimento internacional, os redatores asseguram que - somente no Brasil - Brecheret construirá “sua maior obra”, a qual se tornará o “nosso altar cívico à formação da Nacionalidade” (A direção, 1936A DIREÇÃO.Revista S. Paulo(São Paulo). p. 2, jul. 1936., p. 2).

Após diversas explanações sobre as credenciais do artista, os redatores do mensário expõem com palavras eloquentes qual seria a função no Monumento às Bandeiras. Para os redatores:

É, certo de que não há grandeza de um povo sem o culto da pátria, preside a manifestações cívicas, que confraternizam os brasileiros pela evocação dos grandes feitos da nossa história e pede a construção do altar cívico do Monumento das Bandeiras, obra de reparação patriótica, dando ainda, como que uma forma litúrgica ao culto pelos heróis da Raça (O monumento..., 1936SÃO PAULO SÃO PAULO cidade bandeirante. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 8, ago. 1936., p. 3).

Os redatores fazem questão de salientar que os monumentos “não são meros motivos ornamentais”, pois “transcende a esse sentido [de ornamento] para se tornar um ato cívico”, uma “lição perpétua de grandes exemplos pelas memórias que evocam” e, acima de tudo, um “culto aos gigantes de botas” (O monumento..., 1936SÃO PAULO SÃO PAULO cidade bandeirante. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 8, ago. 1936., p. 3). De forma sintética, os bandeiristas explicam, ao leitor, qual seria a funcionalidade do monumento; um “altar cívico à formação da Nacionalidade” (A direção, 1936A DIREÇÃO.Revista S. Paulo(São Paulo). p. 2, jul. 1936., p. 2).

Na reportagem que reproduziu a maquete do Monumento às Bandeiras, os redatores exaltam os “antigos paulistas, que enchem de assombro e de glória” a geração atual (Bandeiras..., 1936BANDEIRAS paulistas. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 3-4, jan. 1936., p. 4). Como estratégia para construir uma ponte simbólica entre o passado e o presente, os redatores reconhecem que “hoje, ao contemplar a obra dos caçadores de léguas, assalta-nos a emoção cívica mais justa. O presente é a reafirmação [...] do passado” (Bandeiras..., 1936BANDEIRAS paulistas. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 3-4, jan. 1936., p. 4). Para o grupo reunido em torno da revista, a principal herança das bandeiras na sociedade paulista é a

organização, em torno da autoridade. Organização e autoridade continuam a ser, mais do que nunca, as marcas imperecíveis da gente de Piratininga [...] Assim, a função das bandeiras deixou de ser puramente geográfica para influir na própria preservação política da nacionalidade (Bandeiras..., 1936BANDEIRAS paulistas. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 3-4, jan. 1936., p. 4).

E, por essa razão, o Monumento às Bandeiras é “o anseio supremo do civismo dos paulistas” e, por isso, “está destinado a tornar-se um templo, junto da qual as gerações de hoje exaltarão a própria fé nos destinos de S. Paulo e do Brasil” (O monumento..., 1936SÃO PAULO SÃO PAULO cidade bandeirante. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 8, ago. 1936., p. 3).

Com essa posição, vemos a concepção temporal operada pelos bandeiristas, ou seja, recuperar o passado - o espírito das bandeiras paulistas - no presente seria fundamental para consolidar um futuro promissor para a Nação. Os redatores buscam publicizar esse “altar cívico” na Revista S. Paulo através de ilustrações que tinham o intuito de angariar apoio da opinião pública. Vejamos, então, a reprodução da maquete confeccionada por Brecheret em 1920:

Figura 1
Maquete do Monumento às Bandeiras

Em outra reportagem, os redatores reproduzem um croqui do monumento, também em página dupla. Vejamos:

Figura 2
Croqui do Monumento às Bandeiras

Ao observarmos a ilustração do estudo de implementação do monumento (Figura 2), percebemos claramente que o espaço a ser ocupado pelo monumento poderia ser utilizado para futuras festas públicas. Além dessa percepção, podemos ver que o ilustrador buscou representar a grandiosidade do monumento em relação às pessoas inseridas no desenho, ou seja, o ilustrador buscou realçar a monumentalidade da obra. Outra questão interessante nesse croqui é a entrada do pátio ornamentada com duas estátuas guardiãs e o monumento elevado em relação ao chão, elementos que amplificariam a grandiosidade da escultura e a sacralidade do fato histórico transfigurado em obra artística.

As remodelações ocorridas na capital paulista, como ações governamentais de Armando de Salles, são constantemente noticiadas no mensário. Uma das reportagens dá destaque para a abertura da avenida 9 de Julho, para a avenida Rebouças e para a construção do viaduto Martinho Prado. Essas obras, segundos os redatores, são símbolos da “expressão econômica” e da “fisionomia [...] de metrópole bandeirante” (São Paulo..., 1936A REDAÇÃO. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 1, abr. 1936a., p. 8). Nesse bojo, os redatores incluem a construção do Monumento às Bandeiras. Vejamos o desenho utilizado para ilustrar essa reportagem:

Figura 3
Remodelação da capital paulista

Ao noticiar sobre o projeto do governo estadual voltado para a reconstrução de pontes destruídas durante a Revolução Constitucionalista de 1932, os redatores novamente trazem notícias sobre o Monumento às Bandeiras, mas, dessa vez, fortalecendo a importância das moções. Segundo os redatores, as moções - como etapa fluvial das bandeiras - “enchem de glória esse trecho da nossa paisagem histórica” (A Redação, 1936aA REDAÇÃO. Revista S. Paulo(São Paulo). p. 2, ago. 1936b, p. 3). Nessa reportagem, os redatores sinalizam para o importante papel da cidade de Porto Feliz (SP) “na conquista das povoações jesuíticas do Iguatemi e Paraguai ou das sertanias de Mato Grosso” (Relíquias..., 1936RELÍQUIASRelíquias históricas do Bandeirismo. Revista S. Paulo, São Paulo, p. 26, nov./dez. 1936., p. 26). As relíquias preservadas nessa cidade, segundo a reportagem, têm “significação profunda, por tudo quanto nos traz à memória de humano e de vivo no nosso passado” (Relíquias..., 1936RELÍQUIASRelíquias históricas do Bandeirismo. Revista S. Paulo, São Paulo, p. 26, nov./dez. 1936., p. 26). Novamente, os redatores aproveitam para inserir uma imagem, mas dessa vez, uma reprodução do estudo em barro feito por Brecheret:

Figura 4
Detalhe do estudo em barro da maquete Monumento às Bandeiras

Para analisarmos o impacto visual da reprodução das maquetes de Brecheret nesse mensário, podemos dialogar com a concepção da técnica da reprodutividade da obra de arte de Walter Benjamin (1955BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, 1955. Disponível em: Disponível em: http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf . Acesso em:26 abr. 2020.
http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2...
). Para o autor, o século XX se conformou como a era da reprodutibilidade, no qual ocorreu uma mudança não apenas tecnológica, mas na forma de perceber e expressar o mundo. Segundo o autor, a obra de arte sempre foi reprodutível, contudo, sua reprodução técnica foi algo novo. Para o Benjamin, a reprodução atingiu um nível tal que conquistou o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos e publicitários. O autor avalia que a técnica de reprodução libertou o objeto reproduzido do domínio da tradição ao multiplicar o reproduzido, ou seja, deslocou a arte da ocorrência única e a transferiu para a ocorrência em massa. E, por isso, a técnica de reprodução permitiu à arte ir ao encontro de quem apreende e atualiza o reproduzido em cada uma das suas situações. Por essa razão, a obra de arte reproduzida se afastou da sua função do ritual (culto) e foi transferida para o campo da comunicação de massa (Benjamin, 1955BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, 1955. Disponível em: Disponível em: http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf . Acesso em:26 abr. 2020.
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).

No que concerne à reprodução das maquetes de Brecheret, a Revista S. Paulo reproduziu uma peça que podia ser vista apenas na Pinacoteca; assim, com a fotografia, a mão libertou-se das obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens (Benjamin, 1955BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, 1955. Disponível em: Disponível em: http://ideafixa.com/wp-content/uploads/2008/10/texto_wbenjamim_a_arte_na_era_da_reprodutibilidade_tecnica.pdf . Acesso em:26 abr. 2020.
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). Apesar de a reprodutibilidade ser usual na arte, a técnica de reprodução publicitária foi uma novidade que reconfigurou os modos de ver e apreender o artístico, característica essencial do mensário analisado neste estudo. Como a Revista S. Paulo interagiu com diversos campos - o literário, o político e o econômico - e com várias formas de escrita - a jornalística, a literária e a ensaística - e de linguagem - a verbal e a visual -, a reprodutibilidade técnica da obra de arte foi fundamental para divulgar a retomada do projeto do Monumento às Bandeiras em 1936.

Com base nessas associações, podemos ter em mente que as estratégias utilizadas pelo mensário estabeleceram vínculos entre a riqueza econômica e as criações artísticas paulistas com o orgulho regional, vínculos que seriam tomados de empréstimo por toda a Nação. Para tanto, o corpo editorial da Revista S. Paulo apropriou-se dos enunciados que defendiam a construção do Monumento às Bandeiras em 1920e o deslocou transformado para a revista, porque também outro era o público que pretendia alcançar. Quanto mais se unia escrita e imagem, mais os redatores do mensário - dois escritores verde-amarelos, dois fotógrafos e um ilustrador - se aproximaram de uma concepção de arte que pretendia atingir um público maior. Nesse novo suporte, as imagens unidas ao texto publicitário fatalmente lhe dariam nova interpretação e cativariam um novo público. Ao descobrirem novos suportes e aprenderem com eles sobre as possibilidades de apropriação, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia - os dois líderes bandeiristas - conseguiram conceber uma arte que se registrou na práxis da política e, por isso, gerou um novo significado. Nesse sentido, os redatores da revista se apropriaram dos mecanismos de reprodutibilidade técnica com a finalidade de ampliar sua recepção e impacto no campo da política.

Segundo os redatores, a decisão do governador Armando de Salles de construir o monumento imortalizará o atual governo, pois “define o seu sentido espiritual e seu [...] idealismo” (O monumento..., 1936O MONUMENTO das Bandeiras e a sua localização. Revista S. Paulo(São Paulo). p. 2, jul. 1936., p. 3). Os redatores fazem questão de transcrever o discurso do governador na Assembleia Legislativa de São Paulo, o qual, segundo Batista (1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985., p. 54), pode ser posto como um “segundo memorial descritivo do projeto de Brecheret”. Na mensagem lida no dia 9 junho de 1936, não por acaso, no mesmo dia em que se comemora a Revolução Constitucionalista de 1932, o governador assinala que os paulistas buscam na tradição os elementos “de força e renovação”, pois esses são “fios de aço, forjados na grande forja nacional, que os bandeirantes criaram” (O monumento..., 1936CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015., p. 3).

Após uma breve reflexão sobre o momento político brasileiro de então, Armando de Salles ressalta que a obra de Brecheret é “um instantâneo da vida de uma Bandeira”, fato histórico que representou os quatro pilares da tradição paulista: “o idealismo”, “a solidariedade”, a “autoridade” e “a hierarquia” (O monumento..., 1936CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015., p. 4). Não por coincidência, esses quatro princípios eram os pilares do ideário do Movimento Bandeira, por isso, podemos supor que Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo foram os redatores do referido pronunciamento, não apenas por serem os líderes do Movimento Bandeira, mas também por serem secretários especiais do governador de São Paulo.

De acordo com Batista (1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985.), essa mensagem oficial promoveu uma nova simbologia para o monumento, a qual buscou substituir a primeira explicação da escultura. Ao deduzir que essa nova iniciativa foi orquestrada sob o signo do ideário do Movimento Bandeira, a autora declara que “a saga bandeirante” foi relida com o intuito de atender “os interesses e aspirações da organização política do momento” (Batista, 1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985., p. 54). Essa releitura pode ser entendida com a convocação do governador para que “novos bandeirantes” saíssem em defesa da pátria, não mais para a conquista do território, mas para combater o integralismo, o comunismo e o liberalismo.

No último número da revista, os redatores escrevem uma matéria sintetizando o papel desempenhado por Armando de Salles na campanha pela construção do monumento. Para os redatores, o Monumento às Bandeiras foi tomado pelo governador

com a disposição firme de transformá-la em esplêndida realidade. S. Paulo será, dentro de dois anos, enriquecido de um monumento que vai ser, sem dúvida, quer pelas suas proporções gigantescas, quer pela sua formidável concepção, o maior e mais belo do continente americano (Obras..., 1936OBRAS do Monumento das Bandeiras. Revista S. Paulo (São Paulo). p. 28, nov./dez. 1936., p. 28).

Tudo estava favorável, em 20 de agosto de 1936 iniciaram-se as obras no Ibirapuera, em 10 de dezembro, a Lei n. 3.543 definiu a localização e, no dia 21 seguinte, Brecheret assinou o contrato com a Fazenda do Estado, tendo a previsão de entrega do monumento em 31 de julho de 1938 (Batista, 1985BATISTA, Marta. Bandeiras de Brecheret: história de um monumento (1920-1953). São Paulo: Departamento de Patrimônio Histórico, 1985.). No entanto, os defensores do projeto não contavam com a decretação do Estado Novo em 15 de novembro de 1937. Como lembra Valverde (2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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, p. 33), o “endurecimento do regime de Vargas [...] colocou em suspenso novamente a concretização do projeto”. Entre 1937 e 1945, o projeto foi praticamente paralisado, uma vez que as “manifestações de cunho regional foram desestimuladas porque era preciso ressaltar a unidade da nação” (Moura, 2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
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, p. 79). O projeto somente seria retomado após a saída de Vargas, em 1946 e, após muitos percalços, foi finalmente inaugurado - por ocasião das comemorações do IV Centenário da Fundação de São Paulo - em 23 de janeiro de 1953.

Conforme Valverde (2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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, p. 33), a mensagem que acompanhou a inauguração “era da primazia econômica paulistana e do seu papel para o direcionamento político brasileiro”, da qual emanava o “sentimento de orgulho regional”. Para Virava e Chiarelli (2019VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira; CHIARELLI, Domingos Tadeu. O Monumento às Bandeiras como processo: do presente ao passado. Quiroga, n. 16, p. 36-51, jul.-dez.2019. Disponível em:Disponível em:https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244 . Acesso em:23 jul. 2020.
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), o Monu­mento às Bandeiras se tornou, ao mesmo tempo, um símbolo da bravura dos pioneiros e da pujança econômica de São Paulo. Moura (2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
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, p. 78) remete para o fato de que “o bandeirante foi celebrado como personagem-chave do imaginário regional, apto a reforçar as velhas tradições”. Para a autora, esse monumento representou

melhor a época de sua execução do que o período que pretendem evocar. Assim, o Monumento às Bandeiras materializou um discurso corrente sobre o empreendedorismo dos paulistas, teve sua função descaracterizada em virtude do distanciamento do processo histórico que o gerou, fazendo com que assumisse outros papéis na cidade, sem perder o vínculo com a memória bandeirante (Moura, 2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
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, p. 86).

A peça foi composta por 240 blocos de granito com 12 metros de altura, 50 metros de largura e 15 metros de profundidade (Virava, Chiarelli, 2019VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira; CHIARELLI, Domingos Tadeu. O Monumento às Bandeiras como processo: do presente ao passado. Quiroga, n. 16, p. 36-51, jul.-dez.2019. Disponível em:Disponível em:https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244 . Acesso em:23 jul. 2020.
https://revistaquiroga.andaluciayamerica...
). Ainda, em conformidade com Moura (2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
https://revistas.pucsp.br/cordis/article...
, p. 83), Brecheret atualizou os conceitos estéticos, mas “conser­vou a ideia original do grupo anônimo, constituído por indígenas, negros, portugueses, mamelucos”. Ao lado esquerdo do pedestal existe uma placa que traz uma inscrição do poeta e líder bandeirista, Cassiano Ricardo:

Glória aos heróis que traçaram o nosso destino Na geografia do mundo livre, sem eles, O Brasil não seria grande como é.

Para Moura (2010MOURA, Irene Barbosa de. A cidade e a festa: Brecheret e o IV Centenário de São Paulo. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010. Disponível em:Disponível em:https://tede2.pucsp.br/handle/handle/12613 . Acesso em:23 jul. 2020.
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/126...
, p. 154), o poeta, nessa epígrafe, reiterou “as representações emblemáticas da força e determinação dos bandeirantes ao longo de décadas”. Segundo a autora, a escolha dos versos de Cassiano Ricardo para compor o conjunto de Brecheret colocou-o no mesmo patamar de importância de Taunay e de outros historiadores das bandeiras.

Vejamos, no próximo tópico, algumas leituras sobre o processo de ressignificação pelo qual o Monumento às Bandeiras passou nos últimos vinte anos.

Bandeiras, bandeirantes e monumento: ressignificações do lugar de memória

Para Valverde (2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/patr...
), o projeto de construção do Monumento às Bandeiras começou como uma demanda do grupo político paulista ligado a Washington Luís e ao Partido Republicano Paulista (PRP). Esses sujeitos, segundo o autor, buscaram enfatizar “a construção de um sentimento de coesão nacional”, no entanto, ao longo dos anos esse “esforço de propaganda foi sucessivamente transformado” (Valverde, 2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/patr...
, p. 31). Por essa razão, “antes de qualquer elemento próprio ao campo artístico”, deve-se enquadrar o Monumento às Bandeiras como “uma mensagem política apropriada, pensada e desenhada como forma de simbolizar um efeito sobre o poder” (Valverde, 2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/patr...
, p. 31). Completando as posições do autor, não podemos deixar de mencionar a relação intrínseca entre as campanhas em prol da construção do Monumento às Bandeiras e o “mito bandeirante”, os quais foram articulados para consagrar um lugar de memória patrocinado por parte das elites políticas e artísticas de São Paulo.

No que se refere ao “mito bandeirante”, Marins (2003MARINS, Paulo César Garcez. O parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu Paulista(São Paulo). n. sér. v. 6/7, p. 9-36 (1998-1999). Reeditado em 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5359/6889 . Acesso em: 23 mar. 2020.
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, p. 10) atenta para o fato de que esse mito foi a “mais eficiente e duradoura construção simbólica operada no estado durante a primeira metade do século XX”. Segundo o autor, essa construção simbólica edificou um eixo: “o ser paulista, seu passado e a formulação de seu futuro” (Marins, 2003MARINS, Paulo César Garcez. O parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu Paulista(São Paulo). n. sér. v. 6/7, p. 9-36 (1998-1999). Reeditado em 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5359/6889 . Acesso em: 23 mar. 2020.
http://www.revistas.usp.br/anaismp/artic...
, p. 10). Para o autor, esse mito “emergiu desde fins do século XIX, numa representação heroica que se prestava a legitimar historicamente a pujança das elites paulistas” (Marins, 2003MARINS, Paulo César Garcez. O parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista. Anais do Museu Paulista(São Paulo). n. sér. v. 6/7, p. 9-36 (1998-1999). Reeditado em 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5359/6889 . Acesso em: 23 mar. 2020.
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, p. 12). Segundo Manuel Pacheco Neto (2007PACHECO NETO, Manuel. Os livros didáticos como instrumentos disseminadores da concepção heroica do bandeirante. Educação e Fronteiras(Dourados). v.1, n. 2, p. 104-117, jul./dez. 2007.), no processo de heroicização dos bandeirantes, houve a transferência da característica regional para a construção simbólica da unidade nacional. Ao estudar o processo de construção dessa mitologia, Ricardo L. de Souza (2007SOUZA, Ricardo Luiz de. A mitologia bandeirante: construção de sentidos, 2007. Disponível em:Disponível em:http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/viewFile/215/207 . Acesso em: 6 abr. /2015.
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) reconhece que essas narrativas buscavam definir os paulistas como fundadores da nacionalidade. Segundo os autores, se de um lado há a associação entre o bandeirante e o paulista - que o transforma no símbolo da paulistanidade - de outro, valoriza-se a imagem do bandeirante como construtor da nacionalidade.

Pacheco Neto (2007PACHECO NETO, Manuel. Os livros didáticos como instrumentos disseminadores da concepção heroica do bandeirante. Educação e Fronteiras(Dourados). v.1, n. 2, p. 104-117, jul./dez. 2007.) e Souza (2007SOUZA, Ricardo Luiz de. A mitologia bandeirante: construção de sentidos, 2007. Disponível em:Disponível em:http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/viewFile/215/207 . Acesso em: 6 abr. /2015.
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) ressaltam que a mitologia bandeirante foi tratada em uma mescla entre análise histórica e invenção de tradições no período que vai da Proclamação da República à Revolução Constitucionalista de 1932. A concepção adotada pelos autores é derivada da noção de “tradição inventada” de Eric Hobsbawn (Hobsbawn, Ranger, 1997HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção da tradição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.). Segundo o historiador britânico, a noção de “tradição inventada” pode ser entendida por um conjunto de práticas

normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado (Hobsbawn, Ranger, 1997HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção da tradição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997., p. 9).

Não julgamos que o grupo de intelectuais ligados à defesa pela construção do Monumento às Bandeiras tenham inventado tradições, em nosso caso, a construção simbólica dos bandeirantes como fundadores da nacionalidade. De qualquer modo, é importante deixar claro que esses intelectuais eram herdeiros de uma forma particular de idealizar o passado paulista, isto é, de uma tradição já estabelecida, a qual já se encontrava solidificada na década de 1910. Por outro lado, se formos pensar a partir da noção de invenção das tradições, podemos indagar: qual tradição não é inventada? O interessante não é pensar como essa tradição foi originada, mas como ela transitou entre o campo histórico, o campo artístico e o campo político. É de suma importância discutir como esse trânsito possibilitou formas de apropriação do “mito bandeirante” como suporte ideológico para a construção do Monumento às Bandeiras em 1936, o qual se tornaria um lugar de memória não somente para os paulistas, mas para todos os brasileiros.

Podemos levantar alguns questionamentos sobre a expectativa de construção do monumento sob a perspectiva do lugar de memória. Para Pierre Nora (1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Projeto História (São Paulo). p. 7-28 1993.), muito da memória nacional é reforçada com monumentos deliberadamente erguidos por segmentos políticos. Tais monumentos assumem a posição de “lugares de memória”, de forma que suas construções são direcionadas para restaurar poderes e saberes sobre o passado e sobre as origens da Nação. Conforme os argumentos contidos na Revista S. Paulo, essa observação feita por Nora estava posta como uma das principais funções desse monumento para os bandeiristas. Segundo Nora, os lugares de memória são restos que formam “uma consciência comemorativa” que nasce e vive do sentimento que há memória espontânea (Nora, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Projeto História (São Paulo). p. 7-28 1993., p. 12). O autor enfatiza, ainda, que o lugar de memória tem um sentido material, simbólico e funcional, e mais, é um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo e sobre sua identidade, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações.

No que concerne às extensões das significações dos lugares de memória, vemos que o Monumento às Bandeiras também foi apropriado como local para diversas ações de protesto. Virava e Chiarelli (2019VIRAVA, Thiago Gil de Oliveira; CHIARELLI, Domingos Tadeu. O Monumento às Bandeiras como processo: do presente ao passado. Quiroga, n. 16, p. 36-51, jul.-dez.2019. Disponível em:Disponível em:https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244 . Acesso em:23 jul. 2020.
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, p. 38) lembram que, nos últimos anos, vem ganhando força uma série de manifestações de cunho social e/ou polí­tico que tomaram a escultura “como cenário para reivindicações, sobretudo no que tange às ques­tões indígenas, ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e contra a repressão policial junto a comunidades periféricas e negras”.

Segundo Corina Moreira (2018MOREIRA, Corina Maria Rodrigues. Entre monumentos e bandeiras: o patrimônio como operador de leitura. Patrimônio e Memória (São Paulo). v. 14, n. 2, p. 401-415, jul.-dez. 2018. Disponível em: Disponível em: http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/ 794/1044 . Acesso em: 22 jul. 2020
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), a memória dos massacres, das violências e das expropriações das populações nativas do território foi propositalmente encoberta pelo “mito bandeirante”, particularmente pelo tom ufanista que permeou o Monumento às Bandeiras. Para a autora, as inúmeras pichações que o Monumento às Bandeiras vem sofrendo, abriram as possibilidades “para a produção de uma narrativa outra, legitimada no registro da resistência ao esquecimento que se tenta impor” (Moreira, 2018, p. 408). Esse episódio, segundo a autora, é a “memória viva, atualizada em cada massacre, violência e expropriação que ocorre com os indígenas ainda hoje, e em cada ato de resistência que, no presente, ilumina o que a imagem do bandeirante herói se esforça por obscurecer” (Moreira, 2018, p. 408). Sendo assim, o monumento “deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das elites”, pois abriu para um “amplo leque de memórias, sentidos e reconhecimentos” que provocou “novos olhares sobre o objeto-estátua tomado como semióforo da história nacional e indicando a possibilidade de que quem vê esse objeto, hoje, não o veja mais com os mesmos olhos” que seus idealizadores (Moreira, 2018CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015., p. 409).

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Moura (2011MOURA, Irene Barbosa de. O monumento e a cidade: a obra de Brecheret na dinâmica urbana. Cordis. História, Arte e Cidades, n. 6, p. 77-93, 2011. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/cordis/article/view/10294/7683 . Acesso em:22 jul. 2020.
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, p. 90) alega que essa escultura participa da dinâmica da sociedade, uma vez que “a história contada pelo monumento é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, portanto, a certos interesses, o que é inevitável e também legítimo”. Por essa razão, Valverde (2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
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, p. 30) supõe que esse monumento é revelador na “disputa de narrativas políticas no século XXI, ganhando relevância como espaço de manifestações a partir das diversas cargas simbólicas e interpretações mobilizadas”. Para o autor,

este patrimônio da cidade São Paulo cumpriu um papel dinâmico ao longo do tempo, que foi condicionado em seus movimentos pelos conflitos políticos em São Paulo e no Brasil. Seu princípio se reflete na construção da nacionalidade brasileira pelo aparelho do Estado, migra para a reconstrução política e estética de grupos políticos de São Paulo fora do domínio do aparelho do Estado, é em seguida colocado como estratégico para a reificação simbólica do militarismo brasileiro durante o Regime Militar (1964-1985), é apropriado de modo agressivo por grupos anti-ditadura, e, mais recentemente, tem sido alvo de apropriações e manifestações por parte de grupos indígenas como forma de denúncia do contínuo genocídio indígena e celebração dos seus realizadores (Valverde, 2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/patr...
, p. 31).

A asserção do autor vai ao encontro do que ressalta Fernando Catroga (2015CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.). Para esse autor, o significado de um monumento como lugar de memória - em nosso caso o Monumento às Bandeiras - somente será apreendido “se as suas conotações forem confrontadas, tanto quanto for possível, com o que elas também omitem e ocultam” (Catroga, 2015CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015., p. 26).

Lemos o Monumento às Bandeiras - como patrimônio ou lugar de memória - como uma escultura que ultrapassou “a excepcionalidade artística ou a biografia de seu realizador e tampouco se constrói apenas em função da intencionalidade do seu artista ou mesmo do seu financiador a partir de um entendimento do passado” (Valverde, 2018VALVERDE, Rodrigo. O sentido político do Monumento às Bandeiras, São Paulo: condições e oportunidades para a multiplicação de narrativas a partir da transformação do espaço público. PatryTer - Revista Latino-americana e Caribenha de Geografia e Humanidades, v. 1, n. 2, p. 29-40, set. 2018. Disponível em:Disponível em:https://periodicos.unb.br/index.php/patryter/article/view/10117/11362 . Acesso em: 22 jul. 2020.
https://periodicos.unb.br/index.php/patr...
, p. 31). Em outras palavras, o patrimônio entendido como lugar de memória é um fenômeno político e dinâmico, pois seu sentido sofre alterações ao longo do tempo, ressignificando o sentido inicial de sua edificação. Por fim, parafraseando Pierre Nora (1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Projeto História (São Paulo). p. 7-28 1993., p. 11), a prática de reconstituir determinados mitos e interpretações significa que não nos identificamos mais com essa memória, mas ampliamos seus sentidos e produzimos uma desidentificação com aquela memória. Sendo assim, o monumento tinha a intenção de representar uma consciência de coletividade partindo de determinado grupo, mesmo com a hierarquia que a escultura simbolizava, mas, a partir das ações de reinvindicações sociais, o monumento passou a representar os genocídios do período colonial, as desigualdades sociais e a discriminação racial na sociedade brasileira.

Considerações finais

Como foi possível observar ao longo desse estudo, o Monumento às Bandeiras para os “novos bandeirantes” teria várias funções, entre elas, ser um lugar de memória, de culto aos heróis e obra que marcaria a administração do governo de Armando de Salles. Juntamente com a construção simbólica do referido monumento como lugar de memória para a Nação, os redatores promovem o governo de Armando de Salles e a modernização da capital de São Paulo. Por meio da leitura da Revista S. Paulo, percebemos como elementos históricos, artísticos e políticos permearam o projeto de releitura do “mito bandeirante” na década de 1930, os quais se confundiram com os fundamentos ideológicos do Movimento Bandeira.

Observamos, também, as diversas estratégias discursivas e visuais utilizadas pelos defensores da construção do Monumento às Bandeiras na década de 1930. Os bandeiristas tentaram colocar o suposto “espírito bandeirante” em defesa da Pátria contra as “ideologias forasteiras” - comunismo, integralismo e liberalismo - e, com isso, incorporaram questões políticas para justificar a validade da construção do referido monumento. Não podemos deixar de mencionar a relação intrínseca entre as campanhas em prol da construção do Monumento às Bandeiras e a ressignificação do “mito bandeirante”, os quais foram articulados para consagrar um lugar de memória patrocinado pelas elites econômicas, políticas e artísticas de São Paulo.

Através da leitura do mensário analisado neste estudo, podemos responder à seguinte interrogação: por meio de quais procedimentos e interações as imagens modificaram o olhar e propuseram novos valores, em nosso caso, à maquete do Monumento às Bandeiras? Essa forma de relação autores-obra-público não foi uma novidade escolhida por Ricardo e Picchia, mas uma expressão das mudanças na comunicação de massa do século XX. Essas foram estratégias utilizadas pelos bandeiristas para reacender o projeto de construção do Monumento às Bandeiras em 1936. O monumento era posto como representação da “nacionalidade nascente”, o “nosso altar cívico à formação da Nacionalidade”, o “altar cívico” para o “culto pelos heróis da Raça” e a “lição perpétua de grandes exemplos pelas memórias” dos heróis do passado. Para esses homens, o monumento seria destinado a perpetuar a memória dos heróis e dos fatos históricos do passado paulista.

Como aniversário do centenário da exposição da maquete do Monumento às Bandeiras, o processo de ressignificação simbólica do Monumento às Bandeiras e as possibilidades abertas aos lugares de memória deram outro sentido para a escultura, pois o lugar está constantemente aberto sobre a extensão de suas significações. No que concerne às extensões das significações dos lugares de memória, vemos que o Monumento às Bandeiras também foi apropriado como local para diversas ações de protesto e reinvindicações que não estavam presentes nos projetos de seus idealizadores.

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    » https://revistaquiroga.andaluciayamerica.com/index.php/quiroga/article/view/340/244
  • 1
    O termo bandeirista, nesse estudo, tem o mesmo valor de “novos bandeirantes”. Ambos farão referência aos integrantes do Movimento Bandeira.
  • 2
    O ideário bandeirista teve suas origens no grupo verde-amarelo, tanto na articulação das ideias quanto na composição dos integrantes, com exceção de Plínio Salgado, que se tornaria o principal líder do movimento Integralista.
  • 3
    No que se refere à alegação de que os textos cumpriam uma função acessória, Maria Silva (2014SILVA, Maria Cláudia Reis. A fotomontagem no Brasil: um estudo das obras de Athos Bulcão (1952-1956). Dissertação (Mestrado em Artes Visuais), Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2014.) ressalta que a predominância do discurso visual do mensário fazia com que a sua publicação fosse acessível a letrados, analfabetos e estrangeiros. O material visual não era homogêneo, encontrando sequências de fotografias e de fotomontagens de padrão naturalista, renascentista, dadaísta e construtivista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2020
  • Aceito
    10 Nov 2021
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