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Criminalidade escrava e cotidiano em Minas Gerais no século XIX: Juiz de Fora, 1850-1888

Slave crime and everyday life in Minas Gerais in the 19th century: city of Juiz de Fora, 1850-1888

Resumo:

O artigo analisa a criminalidade escrava na cidade mineira de Juiz de Fora durante a segunda metade do século XIX. Foram analisados 24 processos criminais nos quais os escravizados encontram-se como vítimas, réus e/ou testemunhas. A partir da análise dessa documentação foi possível apontar as motivações das realizações de determinados crimes, como, por exemplo, o roubo e o furto, e o tratamento dado pela justiça a escravos e escravas criminosos. Além desse aspecto, a análise dos processos criminais permitiu demonstrar a intervenção do Estado nas relações entre senhores e escravos ocorrida a partir de 1850 e reconstruir parte do cotidiano dos escravizados envolvidos nas ações criminais.

Palavras-chave:
Criminalidade; Escravidão; Século XIX

Abstract:

The article analyzes slave criminality in the Minas Gerais city of Juiz de Fora during the second half of the 19th century. Twenty four criminal cases were analyzed in which enslaved people are victims, defendants and/or witnesses. From the analysis of this documentation, it was possible to point out the motivations for carrying out certain crimes, such as robbery and theft, and the treatment given by justice to criminal slaves. In addition to this aspect, the analysis of criminal cases made it possible to demonstrate the intervention of the State in the relations between masters and slaves that occurred from 1850 onwards and to reconstruct part of the daily life of enslaved people involved in criminal actions.

Keywords:
Criminality; Slavery; Nineteenth century

Este artigo irá analisar a criminalidade escrava na cidade mineira de Juiz de Fora entre 1850, ano de emancipação desse centro urbano do termo de Barbacena (MG), a 1888, período no qual a escravidão foi abolida em definitivo no Brasil. Para desenvolver este estudo utilizei 24 processos criminais tramitados na referida localidade referentes aos delitos de: ameaças, tentativa de homicídio, furto, roubo, entrada em casa alheia e ferimentos e outras ofensas físicas. Essas ações apresentam escravos e escravas urbanos juiz-foranos enquanto vítimas, réus e/ou testemunhas informantes.1 1 De acordo com o Código do Processo Criminal de 1832 em seu artigo 89 os escravos somente poderiam ser ouvidos como “testemunha informante”, ou seja, essa informação poderia ser ou não levada em consideração pelo juiz (Brasil, 1832).

Contudo, é importante salientar que para chegar aos documentos utilizados nesta pesquisa foi necessária a realização de uma triagem nos 1.743 processos criminais sob a guarda do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.2 2 Arquivo Histórico de Juiz de Fora, doravante AHJF. Os processos estão listados no Inventário Sumário do Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci. Essa massa documental abrange o período de 1830, ano de promulgação do Código Criminal do Império, a 1891, quando entrou vigor em Minas Gerias o Código Criminal, após a proclamação da República.

Após a pré-seleção dos processos criminais de ameaças, tentativa de homicídio, furto, roubo, entrada em casa alheia e ferimentos e outras ofensas físicas cheguei à cifra de 808 documentos, compreendendo os anos de 1836 a 1891. Desse total, 24 processos criminais apresentam escravizados residentes em Juiz de Fora no período de 1888 a 1850.

O baixo número de processos envolvendo escravizados em Juiz de Fora não significa a ausência da prática criminal por essa parcela da população. Pelo contrário, em muitos casos os senhores optaram em fazer a “justiça” com “suas próprias mãos” ao invés de entregar seu escravo ou escrava criminoso(a) às autoridades. Em outras ocasiões, muitos delitos cometidos pelos cativos e cativas não desencadearam em ações criminais pelo fato desses serem “corriqueiros”, como eram os casos de bebedeiras, brigas, ajuntamentos, desobediência, pequenos roubos e outras “desordens” promovidas pelos escravizados nas cidades. As punições para tais delitos, em muitas ocasiões, estavam previstas nos Códigos de Posturas Municipais e, em geral, eram açoites, reclusão, condenação às galés (trabalhos forçados em obras públicas) e pagamento de multa, cabendo ao poder policial aplicar tais “correções”.

Outra hipótese para a baixa presença de escravizados em processos criminais, tal como apontado por Adriana de Campos (2003CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003., p. 114), está associada ao fato no qual: “Mesmo aceitando sua inclusão como sujeito de Direito no processo criminal, pareceu aos legisladores que a participação dos cativos não deveria afrontar os fundamentos da sociedade escravista”. Essa suposição aponta como causa da baixa incidência de escravizados em processos criminais o fato da existência, em muitos casos, da manutenção do direito à propriedade assegurado aos senhores de escravos na sociedade brasileira do século XIX. Esse preceito estava presente até mesmo na Constituição do Brasil de 1824, em seu artigo 179 (Brasil, 1824BRASIL. Constituição do Brasil. Brasil, 1824. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm . Acesso em: 20 dez. 2022.
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).

Em relação às escolhas dos processos para o desenvolvimento deste artigo, apresento algumas justificativas. Em relação aos crimes de roubo, furto e entrada em casa alheia, ao realizar o levantamento dessas fontes, pude detectar que tais delitos ocorriam com maior incidência na cidade. Por outro lado, a escolha dos processos relativos à tentativa de homicídio, ameaças e ferimentos e outras ofensas físicas se deu porque essa documentação leva a momentos de tensão vividos no interior do cativeiro ou nas relações entre livres e escravizados.

Os processos criminais são importantes fontes para a reconstrução do cotidiano dos escravizados urbanos no Brasil oitocentista, uma vez que essa documentação apresenta a “fala” desses indivíduos. Mesmo esse discurso estando intermediado por advogados, curadores, escrivães e outros agentes públicos, diversos historiadores já demonstraram a importância dessa fonte para o estudo da história da escravidão (Azevedo, 1987AZEVEDO, Célia Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.; Chalhoub, 2011CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.; Grinberg, 2006GRINBERG, Keilla. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Editora Unicamp, 2006. p. 101-128.; Guimarães, 2006aGUIMARÃES, Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, segunda metade do século XIX. São Paulo: Annablume, 2006a.; Soares, 2007SOARES, Luiz Carlos. “O povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana do Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007.; Vellasco, 2004VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça, Minas Gerais - século XIX. São Paulo: Edusc, 2004.). De acordo com essas pesquisas, a leitura e análise dos processos criminais permite compreender parte do cotidiano dos escravizados e escravizadas ao possibilitar a reconstrução de algumas redes sociais desenvolvidas por esses indivíduos e os momentos de tensões e solidariedade vivenciados pela população escrava com seus parceiros de cativeiro e indivíduos livres.

Os processos criminais também propiciam a abordagem de outras questões referentes à sociedade escravista, como, por exemplo, as fugas, as tensões entre senhores e escravos, as motivações para um crime, o tratamento dado pela justiça à população escravizada do Brasil do século XIX, o “aquilombamento”, entre outros fatores. Dito isso, é possível verificar a importância e relevância contida nas fontes utilizadas por essa pesquisa.

Em relação à Juiz de Fora, destaca-se que essa localidade foi um importante centro urbano da Zona da Mata de Minas Gerais durante o século XIX (Pires, 1993PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870-1930. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993.). Sua economia se inseriu no contexto socioeconômico do Sudeste brasileiro oitocentista, ou seja, era embasada na cafeicultura de exportação e sua principal mão de obra era a escrava.

Conforme apontado por Anderson Pires (1993PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870-1930. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993.) graças aos investimentos oriundos da cafeicultura, Juiz de Fora se tornou o principal entreposto comercial de café, mercadorias, cativos, manufaturas e outros gêneros da Zona da Mata de Minas Gerais. Ainda de acordo com o autor, o sistema viário desenvolvido na localidade entre as décadas de 1860-1880 auxiliou nesse processo. Sendo assim, a estrada de rodagem União e Indústria (1861) e, posteriormente, as ferrovias Dom Pedro II (1875) e Leopoldina (1884) realizavam o transporte de café e de outras mercadorias de forma rápida e menos onerosa (Pires, 1993PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870-1930. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993.).

Esse contexto fez com que, desde a metade da década de 1860, se desenvolvessem em Juiz de Fora negócios vultosos de intensa circulação de mercadorias e acumulação de capitais (Pires, 1993PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870-1930. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993., p. 110-113). Em decorrência desses fatores nessa localidade ocorreu a diversificação da economia, com a oferta de serviços e a presença de manufaturas (Pires, 1993PIRES, Anderson José. Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora, 1870-1930. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993.). Essas características fizeram de Juiz de Fora a cidade polo da Zona da Mata de Minas Gerais.

Nesse centro urbano, assim como em outros do Brasil oitocentista, existiam indivíduos livres, libertos e também escravizados e escravizadas que, por diversos motivos, cometeram atos criminosos ou foram suas vítimas e/ou testemunhas. Alguns desses delitos chegaram ao conhecimento judicial e geraram processos-crimes em Juiz de Fora. A seguir irei apresentar alguns desses documentos jurídicos nos quais os escravizados foram vítimas, réus e/ou testemunhas.

Criminalidade escrava na cidade de Juiz de Fora (MG)

Para buscar compreender os crimes praticados, sofridos e/ou presenciados pelos(as) escravizados(as) em Juiz de Fora entre 1850 a 1888 apresento o Quadro 1. Nele constam a natureza e os tipos de delito, conforme o Código Criminal do Brasil de 1830 (Brasil, 1830BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Brasil, 1830. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm . Acesso em: 20 dez. 2022.
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).

Quadro 1
Processos criminais particulares envolvendo escravos em Juiz de Fora, 1850-1888

De acordo com o Quadro 1, os processos criminais envolvendo escravizados na cidade de Juiz de Fora durante a segunda metade do século XIX eram, com exceção da tentativa de homicídio, de natureza Particular. Além dessa transgressão, conforme o Código Criminal de 1830, havia os delitos de caráter Público e Policial. A caracterização de tais delitos, de acordo com Elione Guimarães, era compreendida da seguinte maneira pela legislação do período:

  1. . Crimes Públicos: aqueles que por sua natureza afetavam a existência do Império, feriam os direitos dos cidadãos ou corrompiam a administração pública;

  2. . Crimes Particulares: crimes cometidos contra a pessoa e/ou a propriedade;

  3. . Crimes Policiais: crimes relativos à desordem, contravenções, ou seja, delitos de menor potencial ofensivo (Guimarães, 2006aGUIMARÃES, Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, segunda metade do século XIX. São Paulo: Annablume, 2006a., p. 83).3 3 Para melhor detalhamento dos crimes enquadrados nesses três grupos consultar o Código Criminal do Brasil de 1830 (Brasil, 1830). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 20 dez. 2022.

A partir das observações de Elione Guimarães, os dados do Quadro 1 permitem verificar que os escravos de Juiz de Fora, dentro da amostragem analisada, estavam envolvidos em delitos danosos à propriedade e/ou a pessoa. Dentre esses crimes houve destaque para o de ferimentos e outras ofensas físicas, representando 50% das ações. Em seguida vinham os de roubo e furto respondendo por, aproximadamente, 29% e 8%, respectivamente, da documentação analisada. Os crimes de tentativa de homicídio e entrada em casa alheia apresentam um processo cada, o que equivale a 4% da amostragem.

Os crimes de ferimentos e outras ofensas físicas, conforme o artigo 201 do Código Criminal do Brasil de 1830, eram aqueles que causavam alguma lesão ou corte no corpo da vítima (Brasil, 1830). As penas previstas eram de prisão de 1 a 10 anos e multa (Brasil, 1830BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Brasil, 1830. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm . Acesso em: 20 dez. 2022.
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).

Dos 12 processos de ferimentos de outras ofensas físicas utilizados neste estudo, oito remetem a momentos de conflito vividos entre escravizados e livres. Os motivos para provocar as lesões corporais eram diversos.

Em certos casos os ferimentos poderiam ser ocasionados em decorrência de divergências entre companheiros de trabalho. Esse foi o caso dos alfaiates José Alves e Leonardo. Ambos trabalhavam na alfaiataria de Jacob Ferreira Sião, na área central de Juiz de Fora, quando na noite do dia 24 de abril de 1865 o escravo Leonardo foi agredido com tesouradas por Alves após uma discussão. De acordo com os autos do processo a desavença ocorreu porque Leonardo havia desobedecido as ordens de Alves de fechar a porta da alfaiataria para que ambos pudessem dormir.4 4 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: Arquivo Histórico de Juiz de Fora, doravante AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos relativos a ferimentos e outras ofensas físicas, 24 abr. 1865.

Após o ocorrido Alves fugiu da alfaiataria com medo de represálias, porém, foi preso minutos depois pela ronda policial. Depois de promover o interrogatório da vítima (Leonardo) e do réu (Alves), analisar o corpo de delito e ouvir as testemunhas, o subdelegado concluiu o inquérito policial, julgou a denúncia de ferimento ao escravo Leonardo procedente e a encaminhou para julgamento. O mesmo ocorreu em 22 de maio de 1865, quando o juiz municipal julgou que os ferimentos realizados em Leonardo por José Domingos Alves podiam ser considerados “leves”, por esse motivo não caberiam punições ao réu. Sendo assim, Alves deveria ter a prisão relaxada e pagar as custas do processo.

Em alguns momentos o excesso da bebida poderia desencadear agressões que levavam a lesões. Os ferimentos de navalha causados no escravo Antônio por Germano Augusto Bastos exemplificam esse caso. O crime aconteceu em um domingo de novembro de 1887 na casa de negócios de Gabriel Silveira de Oliveira. Nesse estabelecimento, entre “um copo e outro de pinga”, Bastos causou ferimentos em Antônio com golpes de navalha. As motivações das agressões não foram apresentadas nos autos do processo. Talvez houvesse alguma desavença entre a vítima e o réu ou mesmo alguma rixa. Mesmo defendendo sua inocência Germano Bastos foi condenado após o julgamento pelo crime de “ferimentos e outras ofensas físicas”, sendo condenado a 15 dias de prisão e multado em 48$750 (quarenta e oito mil setecentos e cinquenta réis).5 5 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos relativos a ferimentos e outras ofensas físicas, 6 jan. 1887.

Além dos processos de ferimentos e outras ofensas físicas, a ação de ameaça presente no Quadro 1 também apresenta momentos de tensão vividos entre livres e escravizados em Juiz de Fora. Conforme previsto pelo Código Criminal de 1830 no artigo 207, o crime de ameaça era caracterizado por “prometer, ou protestar fazer mal a alguém por meio de ameaças, ou seja, de palavra, ou por escrito, ou por outro qualquer modo” e sua punição era prisão de 1 a 6 meses e multa (Brasil, 1830).

Dito isso, o citado processo se iniciou em 3 de outubro de 1875 com a prisão em flagrante do escravo Aureliano por portar um revólver e promover ameaças de morte ao alemão Fernando Vistch em uma casa de negócios em Juiz de Fora.6 6 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 16: Processo de crime de ameaças, 2 out. 1875. Conforme os autos do processo, as intimidações foram originadas porque Vistch havia proibido o cativo de entrar nos fundos de sua casa após uma discussão entre ambos. Nenhuma testemunha soube informar os motivos dessa “alteração”.

A punição desse delito, conforme o Código Criminal do período, deveria ser aplicada pelo delegado, subdelegado ou juiz de paz, pois Aureliano foi preso em flagrante (Brasil, 1830). Contudo, de acordo com os autos do processo, o escravo foi libertado da prisão antes mesmo de cumprir a pena. Os motivos para tal ato não constam nessa fonte; talvez o senhor de Aureliano tenha intervindo em sua soltura por meio de sua influência e conhecimentos em Juiz de Fora.

Os três processos apresentados acima levam a alguns momentos de tensão vividos entre livres e escravizados ao compartilharem o mundo do trabalho e o cotidiano. De acordo com Ivan Vellasco (2004VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça, Minas Gerais - século XIX. São Paulo: Edusc, 2004., p. 263) essa interação, em muitos casos, “ultrapassava as fronteiras dadas pela cor e condição”. Ademais, conforme apontado pelo autor, em alguns conflitos envolvendo esses grupos sociais ocorriam “tentativas de reestabelecer essas fronteiras e distinções” (p. 263).

Essa questão ficou evidente nas agressões feitas por José Alves ao escravo Leonardo. Conforme mencionado, ambos trabalhavam e dormiam na alfaiataria de Jacob Sião. Nesse local foram feitas as lesões no cativo após este não obedecer às ordens dadas por Alves, um livre pobre, para fechar a porta do estabelecimento.

Outra questão abordada pelas ações criminais envolvendo os escravos Leonardo e Antônio diz respeito à frágil relação existente entre livres e escravizados na sociedade juiz-forana oitocentista. Como foi possível observar, essas interações poderiam ser quebradas facilmente, bastando para isso uma palavra mal colocada ou uma quebra de acordo.

Além dessas questões a ação de ameaça movida conta o escravo Antônio evidencia uma suposta intervenção senhorial para o não cumprimento da sentença por parte de seu escravo. Conforme consta nos autos do processo o cativo não estava na cadeia quando o oficial foi promover o sumário de culpa para o cumprimento da pena pelo crime de ameaça, cometido em flagrante, feito contra o alemão Vistch.

Adriana Campos (2003CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003., p. 191-203), ao analisar a criminalidade escrava no Brasil durante o século XIX, aponta diversos episódios nos quais os senhores intervinham na justiça e no processo de investigação em prol da manutenção da propriedade de seus escravos e escravas. Na ação envolvendo Antônio há evidências dessa prática em Juiz de Fora.

Os processos crimes também permitem reconstruir e analisar parte do cotidiano dos envolvidos. A tentativa de homicídio contra o escravo Agostinho e contra Bernardo Martins Reis apresenta as ruas de Juiz de Fora como cenário do delito e revela algumas cenas da vivência entre escravos e livres.

O crime ocorreu em 2 de junho de 1878 na região central da cidade de Juiz de Fora.7 7 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de tentativa de homicídio, 2 jun. 1878. Nesse dia, o italiano Caiafa aproveitou o cortejo da procissão à Virgem Maria para atirar em Bernardo Martins Reis, que se encontrava em casa de Lucinda. Após o ocorrido, Caiafa foi perseguido pela polícia e por populares. Houve troca de tiros e o escravo Agostinho, que estava na perseguição, foi atingido por uma bala vinda do revólver do fugitivo.

A motivação dos disparos se deu pois Bernardo estava “amigado” com Maria Alexandrina Lopes, ex-mulher de Caiafa. Esta residia na casa de Lucinda, local onde ocorreram os disparos contra a primeira vítima.

Os disparos contra as vítimas, conforme o exame de corpo delito, não apresentaram risco de vida a Bernardo Reis e nem a Agostinho. Porém, o escravo ficaria impossibilitado de trabalhar por 30 dias, pois a bala havia atingido a região do cotovelo.

Após o ocorrido, Caiafa fugiu para a cidade de Santos (SP). Nessa localidade foi preso e encaminhado para Juiz de Fora, onde foi a júri popular, respondendo por tentativa de homicídio contra Agostinho e Bernardo. O réu foi absolvido, contudo, deveria pagar as custas do processo.

Para além da questão criminológica, o processo exposto apresenta o cotidiano de uma cidade escravista. Conforme os dados do censo de 1872, Juiz de Fora tinha uma população cativa de mais de sete mil almas (Brasil, 1872). Esses indivíduos estavam presentes nos diversos ambientes urbanos, como, por exemplo, nas ruas, festas populares e religiosas, nos bares e em outros locais públicos e privados. A presença do escravo Agostinho na procissão à Virgem Maria exemplifica essa afirmação; provavelmente havia outros indivíduos nas mesmas condições no cortejo.

Os crimes de roubo e furto, além de apresentarem cenas do cotidiano da sociedade escravista juiz-forana, demonstram que tais delitos eram motivados, em muitas ocasiões, para suprir as necessidades de escravizados evadidos ou eram uma alternativa para conseguir dinheiro, pois os objetos ou produtos subtraídos poderiam ser vendidos a terceiros. Contudo, vale salientar que furto e roubo são crimes diferentes.

Assim, de acordo com o Código Criminal do Brasil de 1830 em seu artigo 257, o primeiro delito era caracterizado por retirar coisa alheia para si ou terceiro e era punido com prisão e galés (trabalhos em obras públicas) de 2 meses a 4 anos e multa (Brasil, 1830). Conforme o artigo 269, caso ocorresse algum furto com violência a pessoas ou a coisas o delito causado seria o roubo e a pena seria de galés de 1 a 8 anos (Brasil, 1830BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Brasil, 1830. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm . Acesso em: 20 dez. 2022.
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).

Feitas essas ressalvas, as duas ações de furto presentes no Quadro 1 remetem a relações comerciais ilegais existentes entre escravos e negociantes em Juiz de Fora. O primeiro processo tramitou em 1859 quando foi feita uma denúncia contra Antônio Pereira de Sousa, vulgo Polania, por comprar couros de boi furtados pelo escravo Anastácio nos armazéns da Companhia União e Indústria.8 8 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de furto, 14 abr. 1859. A Companhia União e Indústria foi organizada em 1853 pelo cafeicultor Mariano Procópio Ferreira Lage, através de uma concessão imperial que dava à Companhia a responsabilidade de construir e conservar estradas entre a província de Minas Gerais e Rio de Janeiro pelo tempo de meio século. A principal estrada construída pela Companhia foi a Estrada União e Indústria, que liga Juiz de Fora a Petrópolis, cuja construção ocorreu entre 1855 e 1861. A Estrada União e Indústria, inaugurada em 1861, foi um grande marco para a época, principalmente para a região da Zona da Mata mineira, pois representou um sistema viário tecnologicamente avançado para o período, que permitiu uma ligação mais eficaz entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro, facilitando assim o escoamento da produção cafeeira da Zona da Mata para os portos da cidade fluminense. A abertura da estrada vai ser crucial também para o município recém-formado de Juiz de Fora. Em 1872 a companhia entra em crise econômica e encerra suas atividades. Além desses suspeitos, o diretor da Companhia desconfiava da participação de outros envolvidos no crime, porém não sabia seus nomes.

Polania, em seu interrogatório, informou ter adquirido os couros de alemães que, ao comprarem em seu estabelecimento, realizaram o pagamento com o produto. Anastácio, por sua vez, confessou ter vendido apenas cachaças furtadas das carroças da União e Indústria a Polania.

Dentre as sete testemunhas inquiridas, os depoimentos dos negociantes Francisco Ferreira da Silva e Daniel Gomes da Silva fazem crer que o escravo Anastácio vendia couros furtados da Companhia União e Indústria. Nesse sentido, conforme o primeiro depoente, o cativo havia lhe falado de uma dívida existente entre ele e Antônio Sousa (Polania), em decorrência da venda de couro, porém o negociante não queria pagar. Daniel da Silva também apresentou indícios da venda de couros por parte de Anastácio, pois havia visto o escravo praticando esse comércio na casa de Maurício José da Silveira.

Após a conclusão do inquérito a denúncia foi julgada procedente pelo delegado de polícia, sendo Anastácio enquadrado como autor e Polania como cúmplice. Também foi designada a prisão dos réus e o pagamento das custas do processo por eles. Os couros encontrados na casa de negócio de Polania foram devolvidos para a Companhia União e Indústria. Na ocasião, o presidente da Companhia União e Indústria retirou a queixa registrada na delegacia contra o comerciante e manteve a feita contra o escravo. Nos autos não constam as motivações para tal ato. A meu ver, a denúncia contra Anastácio foi mantida em decorrência de ele ser escravo.

Sendo assim, Anastácio, estando na condição de criminoso, poderia ser punido e servir de exemplo aos demais escravizados da cidade. Com isso, no imaginário da população livre e branca do Brasil, a “ordem” seria mantida (Azevedo, 1987AZEVEDO, Célia Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.). Todavia, não é possível saber o desfecho dessa história, pois o julgamento de Anastácio não consta nos autos do processo.

A segunda ação de furto envolve novamente a Companhia União e Indústria. Era 1º de julho de 1875 quando o diretor da instituição abriu queixa contra os negociantes portugueses José de Sousa Saraiva e Antônio Francisco de Oliveira Torres e os escravos Guirino e Emigdio. Todos eram residentes da cidade de Juiz de Fora.9 9 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de furto, 1 jul. 1875.

De acordo com a queixa, no dia 13 de junho, nos pátios da Companhia, ocorreram furtos de fardos de farinha, sacas de café e sacos de toucinhos. O crime havia sido cometido pelos escravos Emigdio e Guirino a mando dos negociantes Saraiva e Torres que compravam as mercadorias por preços baixos. A acusação se sustentou quando foram localizadas pela polícia, nas casas de negócios dos portugueses, algumas mercadorias da Companhia que haviam sido furtadas.

Ao ser interrogado, o negociante Torres afirmou que no dia 4 de julho soube do furto que ocorreu no rancho da Tapera (que pertencia à Companhia União e Indústria) e suspeitava que os autores fossem os escravos Emigdio e Guirino. De acordo com o negociante, no mesmo dia perguntou aos escravos se eles haviam praticado os furtos à União e Indústria e eles confirmaram a autoria. Após a confissão, os cativos disseram a Torres que os fardos estavam escondidos. Nesse momento, Emigdio foi para a casa de negócios de Saraiva; desconfiado, Torres pediu ao seu caixeiro, de nome José, para ir atrás do escravo. Ao voltar, José relatou a Torres que Saraiva havia pedido a Emigdio para levar os dois fardos de farinha para seu estabelecimento. Esse fato foi confirmado pelo caixeiro em seu depoimento à polícia.

Em relação às sacas de café encontradas em seu estabelecimento, Torres relatou não saber sua origem, pois haviam aparecido no quintal de sua residência, e por isso as guardou em sua casa de negócios. Por fim, o negociante informou não ter pagado as sacas de café a Emigdio.

Ao fim das perguntas a Torres o delegado interrogou Saraiva. Ele negou a participação na compra de mercadorias furtadas e também relatou não possuir nenhum contato com os cativos Guirino e Emigdio. Em relação aos produtos da Companhia União e Indústria encontrados em seu estabelecimento, o negociante afirmou ter comprado os sacos de toucinho e outros gêneros de um grupo de tropeiros e que as sacas de café haviam sido vendidas por Luís Paulo.

Após interrogar os negociantes e o caixeiro de Torres o delegado intimou os escravos acusados a responderem a algumas perguntas. Guirino confessou ter ido com Emigdio, a mando de Saraiva, ao pátio da Companhia União e Indústria, na madrugada do dia 14 de junho de 1875, para furtarem fardos de farinha. Na ocasião também levaram sacos de toucinho e sacas de café. Essa mercadoria, de acordo com Guirino, foi vendida para Saraiva no valor de 7$000 (sete mil réis).

O escravo também informou que praticava furtos há cerca de dois anos e disse não se recordar de todos, pois havia se passado muito tempo. Contudo, confirmou terem sido as mercadorias subtraídas da Companhia União e Indústria vendidas aos negociantes Saraiva e Torres.

Em seu depoimento, Emigdio informou ter participado dos furtos por insistência de Guirino. De acordo com o escravo, houve uma série de subtrações, a mando de Torres e Saraiva, de mercadorias pertencentes à Companhia União e Indústria, e eram vendidas aos negociantes.

Com o fim dos interrogatórios o inquérito foi concluído. Os escravos Guirino e Emigdio foram acusados de praticarem furtos das carroças e armazéns da Companhia União e Indústria. As mercadorias oriundas desses crimes eram vendidas a Torres e a Saraiva. Ambos haviam sido cúmplices dos crimes.

Feita a conclusão, o delegado inquiriu cinco testemunhas. Todas confirmaram a prática de venda de mercadorias a preços mais baixos nos estabelecimentos de Torres e Saraiva. Ao término dos depoimentos das testemunhas, o réu Emigdio foi interrogado novamente.

Nesse depoimento, o escravo negou sua participação nos furtos, disse ter confessado anteriormente por estar preso na época do primeiro interrogatório e ter sofrido ameaças do delegado. Informou ainda não saber de nada a respeito dos furtos ocorridos na Companhia União e Indústria e que estava sendo acusado por andar com Guirino, o principal suspeito de cometer os crimes.

Após ouvir as testemunhas e os acusados, o juiz municipal conclui os autos dos processos no dia 16 de dezembro de 1873. Infelizmente não é possível saber se os escravos acusados sofreram punições, pois o processo encontra-se incompleto. A única sanção presente nesse documento são as multas aplicadas e pagas pelos negociantes Saraiva e Torres.

Além de promoverem furtos de mercadorias e as venderem para comerciantes, os escravizados de Juiz de Fora praticavam roubo e vendiam, em muitos casos, os objetos adquiridos por esse crime. O processo envolvendo os escravos Eduardo e João Batista exemplifica essa afirmação.

Na noite de 19 de maio de 1882 esses indivíduos pularam o muro da casa do doutor Antero José Barbosa Lage, localizada na cidade de Juiz de Fora, arrombaram sua residência e promoveram o roubo de objetos de prata, joias e brilhantes.10 10 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 26: Processo de crime de roubo, 21 maio 1881.

De acordo com o inquérito, o delito ocorreu quando o doutor Antero José Barbosa Lage se encontrava em sua fazenda. Após o crime, os ladrões dividiram o material roubado e o venderam a moradores de Juiz de Fora.

A polícia tomou conhecimento do delito e prendeu os cativos para promover as investigações. Inicialmente, Eduardo negou sua participação no crime, porém, em um segundo momento, confessou. João Batista, além de confirmar sua participação no delito, informou que estava fugindo de seus senhores e se escondia em uma residência vazia em Juiz de Fora.

Conforme as informações fornecidas pelos acusados, os objetos subtraídos foram vendidos a João de Sousa Assumpção, ao italiano Afonso Colluci e a Ignácio Alves de Sousa. Contudo, ao serem ouvidos, os compradores informaram ter adquirido os objetos de um indivíduo de cor parda chamado Guilherme. Somente Sousa informou conhecer Eduardo “de vista”, contudo, não sabia ser o mesmo escravo.

A ação se encerra com o julgamento dos envolvidos. Todos foram condenados e recolhidos à cadeia, contudo, os compradores dos brilhantes tiveram suas penas amenizadas, pois “não sabiam do mal que estavam fazendo”. Por esse motivo, teriam a prisão relaxada se pagassem as custas do processo.

Eduardo e João Batista sairiam da prisão após cumprirem a pena, no grau médio, pelo crime de roubo. Assim, Eduardo receberia oitenta e João Batista cem açoites. Além dessa punição, os cativos ficariam com ferros ao pescoço por 6 meses e seus senhores pagariam as despesas referentes à prisão de seus escravos.

No processo criminal apresentado foi possível identificar a presença de um escravo fugido. Conforme as informações da fonte, João Batista estava nessa situação por volta de 1 ano. Contudo, ele não foi o único nessa situação localizado na documentação em análise. Outro processo de roubo registrado em Juiz de Fora na década de 1880 apresenta outro escravo fugido e mostra as dificuldades pelas quais passavam os indivíduos nessa situação.

Assim, na madrugada do dia 5 de março de 1884, o cativo Mizael arrombou a casa de negócios de Eduardo Pereira e Ricardo Pinchel, localizada em Juiz de Fora, e roubou dinheiro e alguns produtos.11 11 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci. Série 26: Processo de crime de roubo, 31 maio 1882. O cativo foi preso e confessou o crime.

Mizael, no seu depoimento, informou ter cometido o delito para aquisição de alimentos e dinheiro, pois estava foragido a mais de 50 dias e necessitava de recursos para sua subsistência. Segundo seu depoimento, o roubo teve a participação do também escravo fugido Caetano, que utilizava o nome de Raphael.

Nos depoimentos das sete testemunhas inquiridas foi confirmada a participação de Mizael no roubo na casa de negócios de Pereira e Pinchel. O delito, conforme todos os depoimentos, contou com a participação de outro indivíduo, porém, nenhum depoente soube informar quem era essa pessoa.

Mizael foi a julgamento e foi sentenciado, no grau médio, por roubo, sendo condenado a 9 anos de galés e a pagar uma multa referente a 25% do valor dos objetos roubados. O senhor de Mizael recorreu da sentença no tribunal da apelação de Ouro Preto e o recurso foi indeferido.

Os processos de furto e roubo apresentados anteriormente apontam para uma “alternativa” utilizada por muitos escravizados nas cidades brasileiras do século XIX para conseguir “dinheiro extra”. Roubar ou furtar objetos e mercadorias para a venda foi um dos delitos mais cometidos pela população escrava nos centros urbanos do Brasil oitocentista, e Juiz de Fora não fugiu à regra (Graham, 1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criados e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; Laurindo-Junior, 2012LAURINDO-JUNIOR, Luiz Carlos. A cidade de Camilo: escravidão urbana em Belém do Grão-Pará (1871-1888). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Pará. Belém, 2012.). Conforme o Quadro 1 o roubo foi o segundo crime a envolver cativos, ficando atrás do de ferimentos e outras ofensas físicas. A prática do roubo e furto, conforme observado por Luiz Carlos Soares (2007SOARES, Luiz Carlos. “O povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana do Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007., p. 246), se explica em parte, pois os cativos e as cativas, em muitas ocasiões, “procuraram suprir suas deficiências alimentares e de vestuário”.

Outra questão apresentada no processo criminal envolvendo o escravizado Mizael diz respeito à busca senhorial pela manutenção do direito à propriedade nos tribunais do Brasil do século XIX. Mesmo sendo condenado a 9 anos de galés na primeira instância, o proprietário de Mizael recorreu da decisão no tribunal de apelação de Ouro Preto. Contudo, seu pedido foi negado pelos juízes da então capital mineira. Talvez por ter cometido roubo, crime corriqueiro promovido pela população escravizada, a justiça achasse necessária a punição para servir de exemplo aos demais escravizados; sendo assim, esse interesse ultrapassava o direito à propriedade.

Além de cometerem roubos e furtos para adquirir gêneros para a subsistência, muitos escravizados urbanos promoviam tais delitos para conseguir mercadorias para serem vendidas aos comerciantes da cidade. Esse hábito era corriqueiro dentro da sociedade juiz-forana do período, prova disso foi a constante preocupação da municipalidade de coibir tal prática por meio de posturas municipais que buscavam inibir este comércio paralelo, prevendo multa e prisão aos compradores de “coisas das quais os escravizados não podem possuir”.12 12 As posturas que proibiam tais hábitos estão presentes os seguintes códigos: Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Código de Posturas da Câmara Municipal da vila de Santo Antônio do Paraibuna (1853). Artigo 63. AHJF. Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Paraibuna da Província de Minas Gerais. Artigos 157. AHJF, Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Cidade do Paraibuna de 1863. Artigos 153 e 154. As transações de venda entre escravos e comerciantes, em Juiz de Fora, apenas eram permitidas se o cativo portasse uma autorização escrita de seu senhor ou “pessoa de bem” autorizando a comercialização de mercadorias que estes indivíduos “não podiam possuir”.13 13 As posturas que proibiam tais hábitos estão presentes nos seguintes códigos: Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Código de Posturas da Câmara Municipal da vila de Santo Antônio do Paraibuna (1853). Artigo 63. AHJF. Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Paraibuna da Província de Minas Gerais. Artigos 157. AHJF, Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Cidade do Paraibuna de 1863. Artigos 153 e 154.

Entretanto, como foi possível verificar, tais práticas não deixaram de existir, pois eram lucrativas para ambas as partes. Para os escravizados, vender coisas roubadas ou furtadas foi uma alternativa para adquirir “dinheiro extra”. Esse capital, de forma geral, era utilizado para suprir as pequenas necessidades do dia a dia como, por exemplo, a compra de gêneros alimentícios, bebidas alcoólicas, fumo e vestuário (Soares, 2007SOARES, Luiz Carlos. “O povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana do Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007., p. 246). Para os compradores dessas mercadorias esse comércio paralelo era bastante lucrativo, pois ao saberem ou desconfiarem da origem ilícita dos produtos vendidos pelos escravos buscavam obter a máxima vantagem na transação. Nos processos de furto e roubo apresentados anteriormente essas questões ficaram explícitas nos autos.

Os processos de furto e roubo analisados também demonstram a busca do Estado imperial, representado pela Justiça, em manter “a ordem” dentro da sociedade escravista. No processo envolvendo Eduardo e João Batista, por exemplo, foi observada a conversão da pena de prisão em açoites. De acordo com Adriana Campos (2003CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo do século XIX. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003., p. 191), a comutação das penas de prisão simples em “castigos” representava, em parte, a pressão exercida pelos proprietários de cativos, já que tal pena poderia não significar um prejuízo irreparável para o proprietário.

Contudo, a justiça nem sempre atendia aos anseios senhoriais, pois, em alguns casos, era necessária uma punição mais severa. O processo do escravo Mizael apresenta essa questão, pois o mesmo foi condenado a 9 anos de galés. Sendo assim, seu proprietário não contaria com seu cativo por um longo período.

Nas ações envolvendo os escravos Anastácio, Eduardo, João Batista e Mizael também é possível observar o Estado impondo punições aos cativos. Como apresentado, esses indivíduos foram condenados ao açoitamento e, no caso de Mizael, às galés por 9 anos.

Contudo, os livres na condição de réus nos processos de furto e roubo apresentados tiveram tratamento diferenciado pela justiça. No caso do negociante Polania, o presidente da Companhia União e Indústria retirou a queixa registrada na delegacia contra ele após os esclarecimentos dos furtos. No caso dos negociantes Saraiva e Torres, mesmo ocorrendo a constatação de terem comprado mercadorias furtadas dos escravos Guirino e Emigdio, eles apenas pagaram multas pelo crime cometido. Por fim, para os compradores dos brilhantes roubados pelos escravos Eduardo e João Baptista as penas foram atenuadas, pois não sabiam do “mal que haviam cometido”.

Essa constatação evidencia as desigualdades existentes na sociedade escravista do século XIX. Também é possível observar a parcialidade judicial, dando tratamento diferenciado a escravizados e brancos livres enquanto réus.

Feitas essas ponderações darei continuidade à análise das fontes. Dois processos presentes no Quadro 1 mostram o ambiente doméstico como pano de fundo dos delitos e apresentam importantes informações sobre esse meio. Sendo assim, a primeira remete a 24 de março de 1857, quando o doutor Pedro Maria Halfeld foi à delegacia de Juiz de Fora abrir queixa contra o soldado do corpo policial João Baptista de Carvalho por ter entrado em sua casa sem a sua permissão.14 14 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 17: Processo de crime de entrada em casa alheia, 24 mar. 1857.

De acordo com a denúncia no dia 18 de março de 1857, período no qual o doutor Halfeld estava fora da cidade, o soldado Carvalho invadiu a sua residência portando uma pistola e ameaçou uma de suas escravas, e esta, assustada, gritou por socorro. Os demais escravos, ao chegarem “nos fundos” da casa, viram João Baptista de Carvalho, que os ameaçou com sua arma e fugiu.

Após o depoimento das sete testemunhas juramentadas e das três informantes a denúncia foi julgada improcedente pelo juiz. Sendo assim, a prisão de João Baptista foi relaxada e o processo, arquivado.

O processo de roubo iniciado pela família Ferreira também leva ao ambiente doméstico e demonstra outras atividades realizadas pelos escravos e escravas domésticos.

Era 3 de fevereiro de 1863 quando a família Ferreira foi à delegacia queixar-se contra João Ignácio Corrêa e seus camaradas Fernando Joaquim da Rocha, Antônio e, conforme apontado pela documentação, um “crioulo”, cujo nome não aparece no processo.15 15 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci. Série 26: Processo de crime de roubo, 3 fev. 1863. De acordo com a denúncia, a escrava Eva, pertencente aos queixosos, estava levando um jacá com frangos para Joaquim Vidal Ribeiro quando foi surpreendida por três camaradas armados de cacetes, a mando de João Corrêa, que levaram os frangos. Conforme a denúncia, os indivíduos pertencentes ao bando eram Fernando Joaquim da Rocha, Antônio Português e, conforme registrado no inquérito, um “crioulo”. Não é possível saber o desfecho do processo, pois encontra-se incompleto.

Os dois processos apresentados anteriormente demonstram dois momentos distintos dos escravos e escravas no ambiente doméstico. No primeiro caso, os escravos do doutor Halfeld estavam desenvolvendo seus afazeres dentro da casa de seu senhor. No segundo processo, a cativa Eva foi roubada quando realizava uma entrega de frangos a mando de seus senhores.

Sobre essas questões Sandra Graham (1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criados e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 25), ao analisar o universo dos criados no Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XIX, afirma que no ambiente doméstico havia tanto criados livres quanto escravizados. Esses trabalhavam tanto dentro da casa quanto nas ruas da cidade. Contudo, conforme apontado pela pesquisadora, possuir um grande número de escravos para desenvolver serviços domésticos nas cidades era privilégio das famílias mais abastadas, pois tais serviços eram bastante onerosos (p. 25).

Conforme apontado por Graham (1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criados e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 25), em média, as famílias residentes nas cidades brasileiras oitocentistas possuíam de um a dois escravos. Esses indivíduos desenvolviam todos os serviços domésticos, como lavar, engomar e cozinhar e também os trabalhos fora das casas, como levar o lixo, os dejetos, fazer compras, levar recados, vender produtos e outros afazeres.

Os processos envolvendo os escravos do doutor Halfeld e da escrava Eva seguem as tendências apontadas por Graham, pois as duas ações analisadas dão evidências da baixa quantidade de escravos nas residências dos queixosos. Além dessa questão, no segundo caso fica evidente o acúmulo de funções por parte da cativa Eva.

No primeiro caso, o doutor Pedro Halfeld possuía ao menos três escravos. Para o processo iniciado pela família Ferreira é possível verificar a posse de uma escrava.

Além dessa questão, no processo de entrada em casa alheia envolvendo a escrava do doutor Halfeld, é possível verificar a busca de um senhor de escravos em legitimar seu direito à propriedade e a “manter a honra” de sua escrava assediada pelo soldado João Baptista. Sobre esse assunto Sandra Graham (1992GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criados e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 24) faz a seguinte observação “O chefe de família tinha o direito de castigar seu criado, discípulo, mulher, filho ou escravo. Ao mesmo tempo, esperava-se que ele guardasse a honra das mulheres de seu lar, incluindo as criadas”. Por mais que a escrava fosse uma propriedade, esses preceitos eram levados em consideração pela sociedade em análise, e no citado processo há evidências dessas características.

Todavia, no caso do roubo promovido à escrava Eva a denúncia foi realizada em decorrência do roubo dos frangos. Nos autos da ação não consta menção sobre tentativa de assédio à cativa por parte dos acusados.

Vale salientar que a escravidão doméstica existiu tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais. Além de trabalhar nas casas de seus senhores, os escravos de Juiz de Fora, assim como os de outras cidades, realizavam suas ocupações em outros locais como, por exemplo, as ruas.

Retornando à análise dos processos de ferimentos e outras ofensas físicas é possível verificar atos de resistência contra o sistema escravista e os maus-tratos promovidos pelos senhores contra seus escravos e escravas. Nesse sentido, em 1863, o escravizado José Mulato foi ferido com um tiro em decorrência de ter se aquilombado junto com outros cativos nas matas da fazenda de seu senhor, localizada nas imediações de Juiz de Fora.16 16 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos de Ferimentos e outras ofensas físicas, 6 jun. 1863. Em consequência do ferimento, o cativo teve seu braço amputado, o que motivou a abertura da ação.

Os ferimentos foram causados em decorrência do confronto entre os cativos aquilombados e os indivíduos que haviam sido convocados para promover a prisão deles. Após a troca de tiros, todos os escravos foram capturados.

Para além de um processo criminal, o presente documento apresenta um ato de resistência promovido pelos escravos, o “aquilombamento”. É imponte destacar que um “quilombo” nem sempre tinha grandes proporções e não necessariamente era formado com o objetivo de abalar o sistema (Amantino, 2007AMANTINO, Márcia Sueli. Quilombos em Macaé no século XIX. Caderno de Ciências Humanas: Especiaria, v. 10, n. 18, p. 623-647, 2007.).

Em Juiz de Fora houve aglomerações quilombolas. Conforme apontado por Elione Guimarães (2006bGUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora - MG, 1828-1928). São Paulo: Annablume, 2006b., p. 90) nessa localidade muitos cativos se aquilombavam para manter a fuga. A ação envolvendo o escravo José ilustra isso. Entretanto, em razão da falta de informações mais detalhadas, não é possível saber como ocorreu a formação deste quilombo na zona rural de Juiz de Fora.

Enquanto alguns cativos se aquilombavam, outros iam à delegacia de Juiz de Fora denunciar os seus senhores por maus-tratos. Este foi o caso da cativa Maria.17 17 Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processo de Ferimentos e outras ofensas físicas, 20 jun. 1873. De acordo com a queixosa, todos os dias a sua senhora a castigava de forma severa. Por esse motivo, a cativa pedia a troca de senhor.

De acordo com os autos, Maria apresentava evidências de castigos corporais. Para apurar os fatos o delegado designou o recolhimento da queixosa à cadeia pública. Os senhores de Maria negaram os maus-tratos e informaram que a denúncia foi realizada, pois “[Maria] era casada com homem forro e por isso queria ser livre também”. Ao final das investigações não foram encontradas provas suficientes para incriminar os senhores de Maria, por esse motivo a denúncia foi arquivada.

Esse processo aponta para algumas transformações ocorridas no sistema escravista brasileiro a partir da segunda metade do século XIX. Dada a proibição do tráfico atlântico em 1850, as escravarias passaram a ser compostas de indivíduos oriundos, principalmente, do tráfico interno. Esses escravos e escravas traziam consigo a experiência do cativeiro. Esse fator ocasionou a reestruturação das relações entre escravos e senhores (Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 67).

Com isso, novos elementos foram inseridos no processo do cativeiro. Dentro desse contexto, os escravos conseguiam de seus senhores “concessões”, como a formação de família, a permissão de “morar sobre si”, trabalhar para terceiros em dias de folga, dentre outras permissões. Também foi desenvolvida a ideia de “cativeiro justo”. O processo de Maria apresenta essa questão. Autores como Hebe Mattos (1997MATTOS, Hebe Maria da Costa. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.) História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 337-387., p. 360) argumentam que essa ressignificação desenvolveu um “código geral de direitos dos cativos”.

Além disso, o Estado passava a reconhecer alguns direitos aos mancípios, nas décadas de 1870 e 1880, como, por exemplo, a compra da liberdade a partir da Lei do Ventre Livre, de 1871.18 18 Brasil. Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871. Todo esse cenário favoreceu o fortalecimento da ideia de “cativeiro justo”. Nela inseriam-se questões como boa alimentação, vestuário suficiente e adequado, dias livres, castigos moderados, entre outros fatores (Mattos, 2013MATTOS, Hebe Maria da Costa. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. 3ª ed. Campinas: Editora Unicamp, 2013.; Salles, 2008SALLES, Ricardo. E o vale era o escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.).

Na denúncia de Maria feita contra seus senhores existem alguns desses elementos, pois o processo foi iniciado após a escrava se queixar de excesso de castigos por parte de seus senhores. A escravidão aos poucos ia perdendo sua legitimidade no Brasil e os senhores poderiam responder pelo “excesso de castigos” em seus escravos e escravas. Ademais, é possível observar algumas características do “cativeiro justo”. Como consta na ação, Maria era casada com um homem livre.

Todavia, não é possível pensar em uma perda de legitimação da escravidão no Brasil durante as décadas de 1870 e 1880. Como foi possível observar no caso de Maria, mesmo tendo denunciado supostos maus-tratos de seus senhores, ela foi devolvida a eles por falta de provas. É importante lembrar que a sociedade do Brasil oitocentista tendeu a favorecer o direito à propriedade dos senhores de escravos. No caso em análise, essa questão ficou clara.

Os processos apresentados no decorrer deste artigo demonstram a justiça brasileira agindo, dentro do possível, para manter a “ordem” dentro da sociedade escravista do século XIX. Mesmo tendo ocorrido a intervenção senhorial em muitas ocasiões, durante o andamento da ação o poder judiciário aplicava, sempre que possível, as penas dos crimes previstas em lei. Todavia, como foi possível observar, escravizados e livres não eram tratados de forma igualitária perante a lei.

Além da questão criminológica, os processos analisados permitem reconstruir parte do cotidiano dos escravizados envolvidos nas ações. Assim, foi possível verificar os momentos de tensão vivenciados entre livres e escravos, os atos de resistência, as formas ilegais para conseguir “dinheiro extra”, a ideia de “cativeiro justo”, entre outros aspectos presentes na sociedade escravista do Brasil oitocentista.

Por fim, não foi possível apresentar todas as ações contidas no Quadro 1 e promover uma análise aprofundada e detalhada das fontes, pois isso deixaria o texto extenso e cansativo. Contudo, novos textos poderão ser produzidos a partir dos 24 processos utilizados nessa pesquisa, de forma separada, o que permitirá uma melhor exposição e análise de cada um deles.. Por ora, gostaria de deixar registrada a importância dos processos criminais para o estudo da escravidão urbana em Juiz de Fora durante o século XIX.

Considerações finais

Ao final deste artigo é possível verificar a importância dos processos criminais para a compreensão da sociedade escravista do Brasil no século XIX. Essa documentação, além de apresentar a visão jurídica sobre os escravizados enquanto vítimas, réus e/ou testemunhas informantes ao cometerem, sofrerem e/ou presenciarem uma transgressão aponta para outros aspectos presentes no escravismo brasileiro oitocentista.

Nesse sentido, por meio dos processos criminais analisados é possível reconstruir parte do cotidiano dos escravizados envolvidos, seus laços sociais e as motivações dos crimes que cometeram ou dos quais são acusados. Em outras ocasiões esses documentos permitem verificar como a justiça no Brasil imperial desenvolveu uma jurisprudência favorável à propriedade escrava, tratando de forma diferenciada escravos e livres. Em outros casos o Poder Judiciário buscou “castigar de forma a dar o exemplo” ou punir com açoites os escravizados que transgrediam as leis. Contudo, o direito à propriedade prevalecia.

Os processos criminais apresentados também demonstram aspectos da resistência de escravos e escravas ao sistema escravista ao apresentar, por exemplo, o “aquilombamento” e a manutenção da fuga. Dito isso, a partir do exposto neste artigo é possível verificar que os processos criminais são de grande importância para a compreensão da sociedade escravista oitocentista. Além deste aspecto, esse tipo de fonte também revela sua relevância ao apresentar as injustiças presentes em nosso país durante o período imperial (1822-1889), injustiças que ainda permeiam o Brasil atual.

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  • SOARES, Luiz Carlos. “O povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana do Rio de Janeiro do século XIX Rio de Janeiro: Faperj; 7 Letras, 2007.
  • VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça, Minas Gerais - século XIX São Paulo: Edusc, 2004.
  • 1
    De acordo com o Código do Processo Criminal de 1832 em seu artigo 89 os escravos somente poderiam ser ouvidos como “testemunha informante”, ou seja, essa informação poderia ser ou não levada em consideração pelo juiz (Brasil, 1832).
  • 2
    Arquivo Histórico de Juiz de Fora, doravante AHJF. Os processos estão listados no Inventário Sumário do Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci.
  • 3
    Para melhor detalhamento dos crimes enquadrados nesses três grupos consultar o Código Criminal do Brasil de 1830 (Brasil, 1830). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 20 dez. 2022.
  • 4
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: Arquivo Histórico de Juiz de Fora, doravante AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos relativos a ferimentos e outras ofensas físicas, 24 abr. 1865.
  • 5
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos relativos a ferimentos e outras ofensas físicas, 6 jan. 1887.
  • 6
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 16: Processo de crime de ameaças, 2 out. 1875.
  • 7
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de tentativa de homicídio, 2 jun. 1878.
  • 8
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de furto, 14 abr. 1859. A Companhia União e Indústria foi organizada em 1853 pelo cafeicultor Mariano Procópio Ferreira Lage, através de uma concessão imperial que dava à Companhia a responsabilidade de construir e conservar estradas entre a província de Minas Gerais e Rio de Janeiro pelo tempo de meio século. A principal estrada construída pela Companhia foi a Estrada União e Indústria, que liga Juiz de Fora a Petrópolis, cuja construção ocorreu entre 1855 e 1861. A Estrada União e Indústria, inaugurada em 1861, foi um grande marco para a época, principalmente para a região da Zona da Mata mineira, pois representou um sistema viário tecnologicamente avançado para o período, que permitiu uma ligação mais eficaz entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro, facilitando assim o escoamento da produção cafeeira da Zona da Mata para os portos da cidade fluminense. A abertura da estrada vai ser crucial também para o município recém-formado de Juiz de Fora. Em 1872 a companhia entra em crise econômica e encerra suas atividades.
  • 9
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 14: Processo de crime de furto, 1 jul. 1875.
  • 10
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 26: Processo de crime de roubo, 21 maio 1881.
  • 11
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci. Série 26: Processo de crime de roubo, 31 maio 1882.
  • 12
    As posturas que proibiam tais hábitos estão presentes os seguintes códigos: Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Código de Posturas da Câmara Municipal da vila de Santo Antônio do Paraibuna (1853). Artigo 63. AHJF. Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Paraibuna da Província de Minas Gerais. Artigos 157. AHJF, Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Cidade do Paraibuna de 1863. Artigos 153 e 154.
  • 13
    As posturas que proibiam tais hábitos estão presentes nos seguintes códigos: Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Código de Posturas da Câmara Municipal da vila de Santo Antônio do Paraibuna (1853). Artigo 63. AHJF. Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Paraibuna da Província de Minas Gerais. Artigos 157. AHJF, Fundo Câmara Municipal do período imperial. Série 163. Subsérie 163/1. Código de Posturas da Cidade do Paraibuna de 1863. Artigos 153 e 154.
  • 14
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 17: Processo de crime de entrada em casa alheia, 24 mar. 1857.
  • 15
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci. Série 26: Processo de crime de roubo, 3 fev. 1863.
  • 16
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processos de Ferimentos e outras ofensas físicas, 6 jun. 1863.
  • 17
    Para evitar notas repetitivas, todas as vezes em que me referir a esse processo levar em consideração essa referência: AHJF. Fundo Criminal do Fórum Benjamim Colluci, Série 15: Processo de Ferimentos e outras ofensas físicas, 20 jun. 1873.
  • 18
    Brasil. Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2023
  • Aceito
    24 Abr 2023
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