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História do tempo presente e os desafios ético-políticos da historiografia no século XXI (apresentação)

History of the present time and the ethical-political challenges of historiography in the 21st century

Resumo:

A articulação da pesquisa histórica com a proximidade temporal da geração a que pertence o historiador/a, e com as demandas recentes de passado e de memória, tem suscitado debates sobre os compromissos éticos e políticos do/a historiador/a com os sujeitos e problemas do presente. Sensível a esse momento histórico, o dossiê “História do tempo presente e os desafios ético-políticos da historiografia no século XXI” apresenta um conjunto de reflexões que pautam questões sobre arquivo e história, cultura popular e atuação midiática, pandemia e história imediata, história ambiental, negacionismos e revisionismos na atualidade. Em todos os casos os/as pesquisadores/as apresentam novos temas, abordagens inovadoras e articulações entre presente e temporalidade histórica e, com isso, expandem as reflexões, procedimentos de pesquisa e atuação sócio-política da comunidade historiadora nas lutas e abertura do mundo para o presente e o futuro.

Palavras-chave:
História do tempo presente; Giro ético-político; Memória e história

Abstract:

The articulation of historical research with the temporal proximity of the generation to which the historian be­longs, and with recent demands for the past and memory, has sparked debates on the ethical and political commitments of the historian with the subjects and problems of the present. Sensitive to this historical moment, the dossier “History of the present time and the ethical-political challenges of historiography in the 21st century” presents a set of reflections that address questions about archives and history, popular culture and the media, the pandemic and immediate history, environmental history, denialism and revisionism today. In all cases, the re­searchers present new themes, innovative approaches and articulations between the present and historical temporality and, with this, expand the reflections, research procedures and ­socio-political action of the historian community in the struggles and opening up of the world for the present and the future

Keywords:
History of the present time; Ethical-political turn; Memory and history

Resumen:

La articulación de la investigación histórica con la proximidad temporal de la generación a la que pertenece el historiador, y con las recientes reivindicaciones del pasado y la memoria, ha suscitado debates sobre los compromisos éticos y políticos del historiador con los temas y problemas del presente. Sensible a este momento histórico, el dossier “Historia del presente y retos ético-políticos de la historiografía en el siglo XXI” presenta un conjunto de reflexiones que abordan cuestiones sobre archivos e historia, cultura popular y medios de comunicación, pandemia e historia inmediata, historia ambiental, negacionismo y revisionismo en la actualidad. En todos los casos, los investigadores presentan nuevos temas, enfoques innovadores y articulaciones entre el presente y la temporalidad histórica, ampliando así las reflexiones, los procedimientos de investigación y las acciones sociopolíticas de la comunidad de historiadores en las luchas y la apertura del mundo para el presente y el futuro.

Palabras clave:
Historia del tiempo presente; Giro ético-político; Memoria e historia

Ultima catástrofe (Rousso, 2016ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016), história vivida (Arostegui, 2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: Sobre la historia del presente. Madrid: Alianza, 2004.) estar na crista da onda (Allier-Montaño, Vilchis Ortega, Vicente Ovalle, 2020ALLIER-MONTAÑO, Eugenia; VILCHIS ORTEGA César; VICENTE OVALLE, Camilo (eds.). En la cresta de la ola: debates y definiciones en torno a la historia del tiempo presente. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México/Instituto de Investigaciones Sociales; Bonilla Editores, 2020.), atuar na terceira margem do tempo (Rodrigues, Borges, 2021RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane Trindad`e(org.). História pública e história do tempo presente. São Paulo: Letra e Voz, 2021.), construir balizas móveis (Bédarida, 2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína(org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229.), eis algumas imagens recentes que historiadores e historiadoras têm formulado para apresentar, e defender, a história do tempo presente como área de estudo consolidado no campo historiográfico. Em todos os casos, o que aparece em evidência é a necessidade de repensar o tempo histórico, especialmente a emergência de se analisar como os passados históricos habitam e aquecem o presente. Mas também são destacadas a necessidade do(a) historiador(a) restabelecer os marcos e princípios da objetividade histórica, tão cara ao nascimento da história disciplinar no século XIX, bem como tomar posição diante das lutas dos sujeitos e movimentos coletivos estudados.

Hoje, talvez mais que antes, a comunidade historiadora é conclamada a se posicionar de forma responsável diante das questões mais candentes da humanidade: racismo, xenofobia, massacres, genocídios, manipulação, catástrofes ambientais, pandemias, misoginia, preconceitos e tantos outros problemas que afetam diretamente a sociedade e não deixam de atingir o próprio desenvolvimento da ciência.

É sobre tais bases que o presente dossiê foi proposto e agora é tornado público aos(às) leitores(as). A ideia foi assumir o risco de selecionar textos que analisam questões que estão na pauta política e social contemporânea.

Se o(a) historiador(a) pode ser traído(a) pelo movimento não acabado das histórias que estuda, se corre o risco de ser tragado(a) pelo ritmo dos acontecimentos em constante aceleração, tem como vantagem pôr-se em vigília e autorreflexão permanente; não temer tomar uma posição responsável, e bem fundamentada teórica e metodologicamente, diante das questões e problemas que levanta sobre o tema estudado. Essas foram as premissas básicas de orientação na confecção do dossiê.

Como nos recomendou François Bédarida (2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína(org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229.), uma das formas de evitar que a história do tempo presente se converta em uma bricolagem de assuntos e temas apartados, quando não, deslocados, do todo, é atuar na construção de uma história que formule problemas de pesquisa conectados com questões, movimentos e elementos mais amplos, tanto dos ritmos e transformações sociopolíticas e econômicas do contemporâneo, como também que estejam afinadas com as demandas de renovação e atualização da história da historiografia.

Os textos que compõem o presente dossiê são representativos do esforço que certos(as) pesquisadores(as) têm feito para analisar as transformações políticas, sociais e culturais do presente. Esforço realizado com rigor teórico e metodológico próprio do campo historiográfico em suas múltiplas tradições e transformações.

Dos negacionismos à pandemia, da cultura do hip-hop na periferia aos dilemas pós-guerra fria, o que encontramos nos artigos em tela são análises que não temem anunciar de que lugar social emerge a pesquisa, tampouco que desejos e projetos de futuro portam seus(suas) autores(as).

O volume e a diversidade de fontes é elemento marcante da história do tempo presente. O profissional que assume os riscos e vantagens de atuar nesse campo geralmente aguarda, pacientemente, a liberação de fontes e arquivos para que possa retomar suas análises, rever suas hipóteses e fazer avançar as discussões sobre determinado assunto.

Esse é o caso do artigo sobre as querelas da Rússia com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no contexto da Guerra Fria. O autor, Angelo Segrillo, anuncia, logo na introdução: “Este artigo visa analisar a controvérsia com base nos diversos documentos primários que têm sido liberados ao longo dos anos, concernentes a esta questão (juntamente com depoimentos dos atores políticos envolvidos), e mostrar como muitas dessas diferenças de percepção têm contribuído para a deterioração da relação Rússia-Ocidente em relação à expansão da Otan ao longo do tempo”.

O risco de escrever sobre o imediato aparece contemplado nas reflexões incluídas no ­artigo: “Modulando o tempo pandêmico: a ciência e a urgência da Covid-19”, de Simone Kropf et al. As(os) autoras(es) ressaltam como cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foram convocadas(os) a tomar posição sobre a eficácia das vacinas e os dilemas do avanço da pandemia em contexto de muitas incertezas, além de forte pressão midiática e política.

No cerne da argumentação foi acompanhada a reflexão de Mateus Pereira e Valdei Araújo (2019PEREIRA, Mateus H. F.; ARAUJO, Valdei L. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Milfontes, 2019.), de que tais demandas e posicionamentos tensionaram a concepção de tempo e de história: “A pandemia, ao se constituir como evento disruptivo na experiência histórica, contribuiu, como outros antes dela, para pôr em evidência a relevância de uma história do tempo presente na compreensão das sociedades contemporâneas, para além do registro noticioso do imediato e do efêmero”.

Outro elemento importante do debate contemporâneo sobre a emergência da história do tempo presente no campo historiográfico tem sido complexificar as concepções de temporalidade histórica, explorar as conexões do presente com o passado e atuar politicamente nos debates públicos, especialmente nos fóruns científicos e na mídia.

Mais do que garantir certezas absolutas em contexto de crise, a perspectiva da comunidade historiadora sobre questões do imediato contribuem para ampliar os horizontes e as expectativas de possibilidades de reflexão e de intervenção intelectual em debate público. Como bem formulado pelas(os) autoras(es) do artigo, no caso da pandemia, “a ciência foi acionada como instância de ancoragem e modulação da própria ideia de tempo, com vistas a imprimir-lhe ordenamento e estabilidade”.

Outro aspecto emergencial do presente que demanda a análise e o instrumental do(a) historiador(a) é a iminência de uma catástrofe ambiental. O artigo “A última catástrofe planetária: história ambiental e história do tempo presente, uma aproximação necessária”, analisa a emergência da história ambiental e da história do tempo presente propondo conexões e aproximações entre os dois campos de estudo. Elenita Malta Pereira e Alfredo Ricardo Silva Lopes destacam como a história do tempo presente reabriu o problema da temporalidade histórica e defendem que a história ambiental tem feito o mesmo ao conclamar a comunidade historiográfica a incorporar em suas reflexões o mundo biofísico em sua relação com as transformações do e no presente: “o mundo natural não pode mais figurar como plano de fundo da ação humana, é preciso considerar que seres humanos e natureza se condicionam mutuamente”.

As práticas de falsificação e manipulação do passado fazem parte do problema de pesquisa do artigo escrito por Walderez Ramalho e Mariana Joffily. Atentos a emergência e crescimento dos negacionismos e dos revisionismos no Brasil e no mundo, autora e autor cunharam a categoria distorcionismo - que aparece no título do artigo - como elemento de modulação da discussão contemporânea sobre os usos políticos perniciosos de falsificações e disseminação de mentiras envolvendo o passado histórico. Conforme aparece no texto: “propomos o uso da categoria distorcionismo para nomear operações deliberadas de abuso do passado que, aparentando servir-se de procedimentos metodológicos do campo da historiografia, são destituídos de comprometimento com o conhecimento histórico, manipulando e falseando a análise das fontes, dados de pesquisa ou interpretações historiográficas com as quais simulam dialogar”.

A empreitada de colocar em debate uma categoria de análise é indicativa da aposta política e ética dos historiadores no campo historiográfico contemporâneo, mas também nos sugere o desejo de intervenção social e política sem abrir mão dos procedimentos caros da pesquisa histórica: arquivo, observação, sistematização de dados e informações da realidade, metodologia, argumentação e interpretação.

Outro texto a destacar nesse dossiê e que congrega com a proposta de repensarmos a relação da história do tempo presente e a virada ética e política do momento é o que analisa o papel do hip-hop nas comunidades contemporâneas. Guilherme Muniz Sadadi analisa a forma como a mídia, esse meio de comunicação tão decisivo e importante para os trabalhos em história do tempo presente, constrói uma imagem distorcida e pejorativa das periferias, e como, por outro lado, o hip-hop produzido por homens e mulheres dessas periferias, não apenas questiona tais imagens, como atua diretamente na reconfiguração das comunidades em sua vida cotidiana, seus desejos e projetos políticos.

Além de apresentar e confrontar as representações, há no texto do autor um posicionamento aberto sobre a questão e sobre os sujeitos envolvidos nesse debate, especialmente quando escreve: “O crime não tem uma fronteira definida. A oposição não ocorre entre crime e lei, mas entre ‘quem morre todo dia’ e ‘dono de aeroporto’ e avião. Se o crime e a violência fazem parte do cotidiano periférico não é porque eles são engendrados pela periferia, mas porque é nela que se vivenciam seus efeitos mais brutais, como a morte e a prisão que fazem parte de um dia a dia em que se busca sobreviver”.

O dossiê também inclui uma resenha feita por Igor Moreira sobre o mais recente livro de Diana Taylor, ¡Presente!: The politics of presence. Soma-se, ainda, a entrevista que Samantha Quadrat fez com o historiador Francisco Carlos Teixeira. Tanto este como Taylor fazem uma notável contribuição para as reflexões teóricas, metodológicas e de intervenção política no campo da história do tempo presente. Diana Taylor por seu olhar sensível sobre o papel do corpo e da performance como elementos de posicionamento e intervenção na história, e Teixeira, entre outras coisas, por sua participação regular na mídia, demonstrando como a análise do(a) historiador(a) pode fazer diferença no conjunto de ações, insurgências e movimentos do presente, desde que feita de forma contextualizada e comprometida tanto com os recursos do processo de sua formação quanto com as regras, sempre atualizadas, do ofício.

Desejamos que os(as) leitores(as) reconheçam nesses textos tanto o rigor teórico e metodológico de se fazer história à quente como também a autorreflexão da comunidade historiadora que não teme construir moradas provisórias, expressão tecida por Bédarida (2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína(org.). Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229.), para a historiografia contemporânea. Moradas temporárias, mas fortes o suficiente para somar-se às lutas e construções de projetos de futuro. Ao que parece certas áreas da história da historiografia no Brasil e no mundo têm se dado conta de que qualquer omissão diante dos acontecimentos em curso será avaliada como fraqueza e insegurança diante dos clamores sociais e políticos que têm desafiado certa concepção de história, de objetividade, de ciência e de participação política.

Referências

  • ALLIER-MONTAÑO, Eugenia; VILCHIS ORTEGA César; VICENTE OVALLE, Camilo (eds.). En la cresta de la ola: debates y definiciones en torno a la historia del tiempo presente Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México/Instituto de Investigaciones Sociales; Bonilla Editores, 2020.
  • ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: Sobre la historia del presente Madrid: Alianza, 2004.
  • BÉDARIDA, François. Tempo presente e presente da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína(org.). Usos & abusos da história oral 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 219-229.
  • PEREIRA, Mateus H. F.; ARAUJO, Valdei L. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI Vitória: Milfontes, 2019.
  • RODRIGUES, Rogério Rosa; BORGES, Viviane Trindad`e(org.). História pública e história do tempo presente São Paulo: Letra e Voz, 2021.
  • ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo Tradução de Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2024
  • Aceito
    16 Mar 2024
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