O SENTIDO DO TRABALHO PARA HOMENS COM ANEMIA FALCIFORME E ÚLCERAS FALCÊMICAS

RESUMO

Objetivo:

analisar o sentido do trabalho para homens com anemia falciforme e úlceras falcêmicas e discutir os desafios que eles enfrentam para manterem-se no mundo do trabalho.

Método:

estudo qualitativo e descritivo, desenvolvido em dois cenários, um ambulatório de curativos de um hospital de grande porte e uma clínica de enfermagem em estomaterapia, ambos vinculados a uma universidade pública do Rio de Janeiro, Brasil. A coleta de dados ocorreu de agosto a novembro de 2019, por meio de entrevista semiestruturada, com 20 homens com úlceras falcêmicas. A análise lexical dos dados foi realizada a partir do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires.

Resultados:

verificou-se a penosidade física, social e psicológica que a ferida origina nos homens que atuam no mundo do trabalho. Além disso, constatou-se que o trabalho representa um valor importante para o homem, além de ser visto como refúgio para lidar com a dor imposta pela ferida.

Conclusão:

o trabalho representa utilidade e satisfação, pois possibilita prover materialmente o homem e suas famílias, reafirma sua virilidade e seu domínio nos contextos familiar e social, o faz sentir-se útil e produtivo. Mas, contraditoriamente, também produz sofrimento quando esses homens precisam se manter no trabalho com dor, cansaço, vergonha e frustração decorrentes de uma doença e de uma lesão que altera sua imagem corporal e sua produtividade, além de gerar sentimento de repulsa no seu coletivo profissional.

DESCRITORES:
Doença falciforme; Úlceras de pernas; Trabalho; Homens; Carga de trabalho

ABSTRACT

Objective:

to analyze the meaning of work for men with sickle-cell anemia and ulcers and to discuss the challenges they face to remain in the world of work.

Method:

a qualitative and descriptive study developed in two settings: an outpatient service specialized in dressings of a large-sized hospital and a Stomatherapy Nursing clinic, both linked to a public university from Rio de Janeiro, Brazil. Data collection took place from August to November 2018 by means of semi-structured interviews with 20 men who had sickle-cell ulcers. Lexical data analysis was performed in the Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires software.

Results:

the physical, social and psychological hardships caused by the wounds in men who are active in the world of work were verified. In addition to that, it was found that work is of important value for men, in addition to considering it as a shelter to deal with the pain imposed by the wounds.

Conclusion:

work represents usefulness and satisfaction, as it makes it possible to materially provide for men and their families and it reasserts their virility and their dominance in the family and social contexts, in addition to making them feel useful and productive. However, on the other hand, it also produces distress when these men need to stay at work with pain, tiredness, shame and frustration arising from a disease and an injury that alter their body image and productivity, in addition to generating feelings of disgust in their professional collective.

DESCRIPTORS:
Sickle-cell disease; Leg ulcers; Work; Men; Workload

RESUMEN

Objetivo:

analizar el sentido del trabajo para hombres con anemia falciforme y úlceras falcémicas y debatir los desafíos que afrontan para mantenerse activos en el mundo del trabajo.

Método:

estudio cualitativo y descriptivo desarrollado en dos escenarios: un servicio ambulatorio especializado en vendajes de un hospital de gran magnitud y una clínica de Enfermería especializada en Estomaterapia, ambos vinculados a una universidad pública do Río de Janeiro, Brasil. La recolección de datos tuvo lugar entre agosto y noviembre de 2019 por medio de entrevistas semiestructuradas realizadas con 20 hombres que tenían úlceras falcémicas. El análisis lexical de los datos se realizó sobre la base del programa software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires.

Resultados:

se verificaron los inconvenientes físicos, sociales y psicológicos que causan las heridas en los hombres activos en el mundo del trabajo. También se verificó que el trabajo representa un valor importante para los hombres, además de ser visto como un refugio para lidiar con el dolor generado por la herida.

Conclusión:

el trabajo representa utilidad y satisfacción, ya que permite cubrir las necesidades materiales de los hombres y de sus familias, reafirma su virilidad y su dominio en los contextos familiar y social, y los hace sentir útiles y productivos. Sin embargo, contradictoriamente, también genera sufrimiento porque estos hombres deben permanecer en el trabajo con dolor, cansancio, vergüenza y frustración como resultado de una enfermedad y de una lesión que alteran su imagen corporal y su productividad, además de generar un sentimiento de rechazo en su colectivo profesional.

DESCRIPTORES:
Anemia falciforme; Úlceras en las piernas; Trabajo; Hombres; Carga de trabajo

INTRODUÇÃO

O objeto deste estudo é o sentido do trabalho para homens com anemia falciforme e com úlcera falcêmica. Aqui, a definição do termo “sentido” envolve a estrutura afetiva do indivíduo, a qual é originada pela união de três componentes: o significado, a orientação e a coerência. Na perspectiva do trabalho, infere-se que seu sentido é percebido e influenciado pela socialização, pelas experiências no mundo do trabalho, por aspectos de personalidade e por fatores socioeconômicos mais amplos. Além disso, considera-se que o sentido do trabalho é oriundo de uma historicidade, ou seja, vincula-se a época vivida, a aspectos culturais e a maneira de relacionar-se com o mundo e de compreendê-lo1^-2.

O trabalho na sociedade contemporânea tem uma importância fundamental e é central na vida das pessoas, não apenas por permitir a manutenção financeira, mas também devido a aspectos psicossociais, tais como satisfação, valorização, envolvimento social, vinculação afetiva e utilidade. Ademais, o trabalho repercute na construção da identidade pessoal3.

Na perspectiva da doença falciforme (DF) e úlcera falcêmica (UF), sabe-se que um homem com essas patologias têm inúmeras dificuldades para inserir-se ou manter-se no mundo do trabalho. A presença de uma doença crônica associada à alteração de autoimagem torna o homem mais vulnerável, trazendo consequências para o desenvolvimento de suas atividades laborais, o que repercute no sentido que ele tem sobre o trabalho4^-5.

A DF é definida como um distúrbio genético autossômico recessivo que afeta a forma e a função das hemácias, levando a uma série de complicações sistêmicas e apresentando impacto significativo na vida das pessoas. Nessa patologia, as células sanguíneas denominadas hemácias apresentam alteração de formato, assumindo uma aparência de foice ou de uma meia lua. Com isso, elas ficam mais densas e perdem sua capacidade de moldar-se para fluir pela microvascularização, o que leva a isquemia, dano tecidual, anemia hemolítica, vaso-oclusão e inflamação. Esse bloqueio da circulação e, consequentemente, o impedimento de oxigenação a diversos órgãos são a causa das complicações decorrentes da DF6^-7.

Uma de suas complicações mais recorrentes é o desenvolvimento das UF, também denominada de úlceras de pernas ou úlceras crônicas. As UF são manifestações cutâneas localizadas comumente em membros inferiores, áreas com pouco tecido subcutâneo, e seu surgimento se dá após pequenos traumas ou de forma espontânea, em virtude de hipóxia tissular ocasionada por crises vaso-oclusivas6.

Essas ulcerações acometem com maior frequência as pessoas em idade produtiva, com prevalência de 8% a 10% em pacientes homozigotos, e registra-se incidência acima de 50% em indivíduos de áreas tropicais8^. Podem acarretar incapacidades nos homens e, normalmente surgem a partir da segunda década de vida, acompanhadas de dor intensa, crônica e contínua, além de alta predisposição à infecção5^-6.

Em grande frequência, além da dor, as úlceras de perna apresentam exsudação e odor fétido, comprometendo negativamente o cotidiano do indivíduo, com mudanças de vestuário e hábitos para evitar a exposição do curativo. Assim, espaços e atividades de socialização importantes, como educação, esportes, lazer e trabalho podem ser prejudicados ou abandonados, tendo implicações no desenvolvimento psicossocial e econômico9.

Estudos realizados nos pacientes com úlceras de perna em ambulatórios da rede pública de Niterói e em idosos atendidos em um ambulatório de feridas e na policlínica no Rio de Janeiro evidenciaram que o bem-estar desses pacientes pode estar afetado, justamente, pela repercussão causada pela presença da UF e, ainda, foi destacado que acarreta consequências no âmbito laboral10^-11.

Numa perspectiva de gênero, ressalta-se que há um modelo hegemônico de masculinidade impregnado na sociedade, no qual o homem ideal deve ser forte, invulnerável e provedor do lar, sendo moldado culturalmente para rejeitarem algumas práticas de promoção da saúde e prevenção de doenças. Exatamente por isso, os homens estão mais expostos aos fatores de riscos e são menos adeptos a adoção de cuidados de saúde, buscando por assistência principalmente em caráter emergencial12.

Nesse sentido, os homens com UF sofrem impactos em suas vidas e, principalmente, no mundo do trabalho, onde carecem da manutenção de seus empregos e onde suas vulnerabilidades ficam ocultas. Dessa forma, esses indivíduos são afetados tanto pelo estigma da doença quanto pelo contexto social em que estão inseridos9.

A presença e a contribuição do enfermeiro são indispensáveis na atenção primária e nos cuidados dispensados à pessoa com DF, devendo ser eficientes e eficazes na educação e saúde, assim como no processo assistencial, sobretudo devido ao fato de o enfermeiro representar a ligação do paciente e da família com os membros da equipe de saúde. Isso lhe confere uma posição-chave, especialmente, quando se apropria do uso da tecnologia educativa para auxiliar na prestação do cuidado, possibilitando um atendimento integral e adequadamente direcionado para a especificidade da pessoa acometida com UF.

Faz-se relevante aprofundar discussões sobre o sentido do trabalho para o homem com UF, pois envolvem temas pouco desenvolvidos na formação em enfermagem, especialmente a DF e as questões de gênero masculino. Além disso, salienta-se que o aprofundamento dessas discussões contribuirá para a prática assistencial de profissionais que cuidam de pacientes com feridas, como as úlceras de membros inferiores. Outrossim, contribuirá para destacar a importância de um cuidado integral a esses homens, pois não devem ser vistos apenas por causa da doença, mas em sua totalidade enquanto seres sociais e individuais. Ademais, cooperará com a produção do conhecimento, visto que a temática que envolve o objeto deste estudo ainda é incipientemente publicada em periódicos científicos.

Considerando a importância que o trabalho apresenta no mundo contemporâneo, ponderando também que pessoas com DF apresentam manifestações clínicas que causam limitações para a manutenção no trabalho, elaborou-se a seguinte questão de pesquisa: qual é o sentido do trabalho para os homens com UF, tendo em vista as dificuldades e as facilidades percebidas por esses homens para sua manutenção no mundo laboral?

Diante dessa problemática, apresentam-se como objetivos deste estudo: analisar o sentido do trabalho para homens com anemia falciforme e úlceras falcêmicas, e discutir os desafios que eles enfrentam para manterem-se no mundo do trabalho.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo e descritivo, que atendeu às recomendações dos Critérios Consolidados de Relato de Pesquisa Qualitativa (COREQ)13. Foi desenvolvido em dois cenários, um ambulatório de curativos de um hospital de grande porte e uma clínica de enfermagem em estomaterapia alocada em uma policlínica especializada, ambos vinculados ao complexo de saúde de uma universidade pública situada no município do Rio de Janeiro.

O ambulatório de curativos dispõe de três boxes para realização de procedimentos relacionados aos cuidados em estomaterapia. A equipe é composta por duas enfermeiras estomaterapeutas e uma técnica de enfermagem, recebendo também alunos de pós-graduação em estomaterapia, configurando-se, portanto, como local de estágio da Faculdade de Enfermagem vinculada à universidade. A clínica de enfermagem em estomaterapia possui quatro consultórios, dois destinados ao cuidado especializado a pessoas com lesão de pele, um destinado ao cuidado a indivíduos com incontinências anal e urinária e outro destinado ao atendimento a pessoas com estomas. A equipe nesse local é composta por cinco enfermeiras estomaterapeutas, uma técnica de enfermagem e uma funcionária técnica-administrativa.

Os enfermeiros estomaterapeutas dos cenários citados prestam cuidado a pessoas com UF e promovem educação em saúde com intuito de estimular e proporcionar o bem-estar envolvendo o paciente e seu familiar/cuidador no processo de cuidar. Tais ações ocorrem por meio da articulação de ações e saberes técnico-científicos e de recursos disponibilizados pela instituição durante a assistência prestada.

Os participantes do estudo foram homens com UF, os quais eram atendidos nos referidos campi. Estabeleceram-se como critérios de inclusão: (i) homens com UF que desenvolveram a lesão no período em que estavam trabalhando; e (ii) homens com idade entre 18 a 60 anos. Os critérios de exclusão foram: (i) homens que desenvolveram a lesão na fase da aposentadoria, (ii) homem com presença de algum déficit cognitivo, e (iii) homens que apresentavam limitação permanente para o trabalho.

Para determinar o quantitativo de participantes, levou-se em consideração que o número de participantes na pesquisa qualitativa deve refletir, em quantidade e intensidade, as múltiplas dimensões do fenômeno e das interações em todo o decorrer do processo, possibilitando, assim, a apreensão do objeto de estudo14.

A coleta de dados foi realizada de agosto a novembro de 2019, por meio de entrevista individual do tipo semiestruturada, com tempo médio de duração de 60 minutos. O roteiro da entrevista continha duas partes: a primeira abrangia questões fechadas referentes à caracterização socioeconômica e laboral dos participantes, além dos aspectos clínicos relacionados à lesão; a segunda contou com quatro questões abertas relacionadas ao objeto de estudo, a saber: a) Fale sobre como é ter uma ferida na perna por um longo período; b) Discorra sobre as repercussões da ferida no trabalho; c) Fale como você vê seu trabalho; d) Discorra como os profissionais da saúde, em especial os enfermeiros, podem ajudar a combater sua doença.

Os dados referentes à caracterização dos participantes foram organizados, tabulados e analisados a partir do programa informático Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0. Os dados provenientes do roteiro de entrevista foram transcritos e organizados em um único arquivo para, posteriormente, serem tratados pelo software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq), versão 7.2, o qual permite a realização da análise lexical dos dados.

Entre as vantagens do uso do Iramuteq, estão a rapidez de processamento dos dados, a possibilidade de utilizar várias análises sobre os textos e a confiabilidade de dados, por utilizar amparo estatístico15. Vale destacar, no entanto, que o software não substitui nem realiza o trabalho do pesquisador, que deverá, de posse dos resultados apresentados pelo programa, fazer as inferências e as interpretações dos mesmos, procurando torná-los significativos e válidos.

O Iramuteq possui cinco possibilidades de tratamento dos dados: (i) análises estatísticas (lexicográficas); (ii) especificidade e análise fatorial de correspondência; (iii) classificação hierárquica descendente (CHD), também conhecida como método de Reinert; (iv) análise de similitude, e (v) nuvem de palavras16.

Para fins deste estudo, optou-se por inicialmente utilizar a análise lexical por meio da CHD e, na sequência, processar a nuvem de palavras. A CHD utilizou a lógica de correlação para apresentar um esquema hierárquico de classes baseado nos segmentos de texto, ou seja, o texto (de cada entrevista) foi processado de modo a identificar as classes de vocabulário, permitindo que o pesquisador infira a ideia que uma classe transmite17.

Dessa forma, a CHD foi realizada com o intuito de verificar o sentido do trabalho para os homens com anemia falciforme e com UF, bem como os desafios enfrentados no mundo do trabalho. As classes geradas foram interpretadas pelos pesquisadores a partir dos achados da literatura, e buscaram consolidar os principais pontos no discurso dos entrevistados.

Por sua vez, a nuvem de palavras referentes a cada classe trouxe uma representação gráfica das palavras de acordo com sua frequência de aparição nos textos. Assim, as palavras de maior tamanho foram as que apareceram mais vezes nas classes analisadas, e as de menor tamanho, com menor frequência16. Vale destacar que a robustez da análise levou em consideração as palavras que apresentassem o valor do qui-quadrado de Pearson acima de 3,84 e a relevância estatística dada por p<0,0001.

No presente estudo, foram analisadas duas classes, explorando seus segmentos de texto, e, a partir delas, as nuvens de palavras processadas buscaram dar suporte à análise lexical, ao exibir os vocábulos mais frequentes nesses contextos. Ressalta-se que, conservadas as particularidades de cada abordagem, tanto a CHD como a análise de conteúdo partem de princípios semelhantes: a construção de classes com base no princípio de exclusão mútua; a garantia de homogeneidade da classe e temática; e a valorização da objetividade na descrição dos resultados. Por esse motivo, o método é frequentemente utilizado com o objetivo de identificar as temáticas que compõem um conjunto de textos15.

O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do cenário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e seguiu todos os princípios e normas pré-estabelecidos pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos. Garantiu-se o anonimato aos participantes por meio da criação de um código gerado após o processo de consentimento. Nesse sentido, utilizou-se a letra E, que representou a palavra entrevista, acompanhada de um número cardinal, o qual significou a ordem em que foram feitas as entrevistas (exemplo: E1, E2... E20).

RESULTADOS

Os resultados foram organizados, inicialmente, para descrever brevemente as características sociodemográficas dos participantes e, posteriormente, se organizou a apresentação dos resultados advindos da CHD e das nuvens de palavras.

Participaram do estudo 20 (100%) homens com UF, com média de idade de 42,25 anos e majoritariamente casados (n=12/60%, desvio padrão=13,29). Do quantitativo total de participantes, 13 (65%) se autodeclaram negros, 17 (85%) tinham renda familiar de um a três salários mínimos, e todos (100%) afirmaram possuir crença em uma religião. Em relação à formação dos participantes, 11 (55%) declararam possuir ensino fundamental incompleto, cinco (25%) registraram ensino fundamental completo ou médio incompleto, dois (10%) afirmaram ter cursado o ensino médio ou ensino superior incompleto e apenas dois (10%) concluíram o ensino superior.

Tendo em mãos a análise das nuvens de palavras e a apreciação dos segmentos de texto das duas classes geradas pela CHD, foi possível nomear tais classes: i) Homem com úlceras falcêmicas e a relação com o trabalho; e ii) O sentido do trabalho para homens com úlceras falcêmicas.

Homem com úlceras falcêmicas e a relação com o trabalho

Esta classe abrangeu 46 segmentos de textos, classificados para a análise relativa ao impacto do trabalho no homem com úlceras falcêmicas. A nuvem de palavras identificou os seguintes vocábulos mais recorrentes: ferida, ficar, dor, doença, casa, pessoa, sentir, vida, trabalhar. Ao analisar os segmentos de textos nos quais esses léxicos apareciam, foi possível verificar a penosidade física, social e psicológica da ferida para os homens que atuam no mundo do trabalho. Segue abaixo a nuvem de palavras a fim de caracterizar a aparição dos vocábulos (Figura 1).

Figura 1 -
Nuvem de palavras. Rio de Janeiro(RJ), Brasil, 2022.

As feridas crônicas geram para o homem inseguranças relacionadas à atividade laboral, pois se configura como um evento crítico e indesejável. Nessa vertente, constatou-se que os participantes continuavam trabalhando mesmo diante de situações dificultosas, como a presença de dor e cansaço e/ou peso nas pernas. Entretanto, foram identificados relatos sobre a importância do trabalho na vida pessoal, inclusive para a amenização psicológica dos sintomas clínicos da doença, ainda que haja sobrecarga de trabalho.

O trabalho me prova que eu posso continuar fazendo as coisas como outra pessoa qualquer, mesmo com esforço. O meu trabalho me exige ficar em pé e andar muito. Mas é ele que mantém minha cabeça ocupada e também me faz sentir útil (E11).

Eu vejo meu trabalho como uma forma de permitir que eu tenha independência para conseguir me tratar, me relacionar com outras pessoas, me fazer uma pessoa normal, de me dar autonomia. O trabalho me cria chance de me cuidar, me oferece a oportunidade de me situar na sociedade, na minha comunidade, de ser alguém. Tento esquecer da dor que a ferida me causa e sigo em frente (E18).

O trabalho representa um valor importante para o homem, além de ser visto como refúgio para lidar com a dor imposta pela ferida. Dessa forma, é evidente que o trabalho tem considerável influência sobre os participantes, quanto à satisfação pessoal, à socialização e à produtividade.

Independente da dor que sinto, vou para a rua trabalhar. É o jeito! Mas gosto muito do que faço, me faz bem. Ocupo a mente! (E07).

Gosto do meu trabalho. Encontro as pessoas. Penso em outras coisas que não a ferida ou a doença enquanto estou trabalhando. Me faz bem! (E05).

A ferida crônica e suas complicações podem se tornar um impeditivo laboral e acarretar, muitas vezes, dificuldades para manter um vínculo empregatício. Nessa perspectiva, há relatos de antecipação da aposentadoria e de necessidade da continuidade da permanência no mercado de trabalho de maneira precarizada. Em muitas circunstâncias, ainda existe a necessidade de omissão da lesão para os empregadores ou para os colegas de trabalho.

A gente aposenta; mas como ganha pouco, continua trabalhando, fazendo bico, sem contar que tenho doença falciforme e ferida na perna. Assim, eu vou aguentando a minha dor, mesmo em crise tenho que rir para as pessoas, mesmo com dor eu vou, porque, se eu não for, não ganho. Quando a dor está muito forte, eu vou ao banheiro para sentar, muitas vezes chorar de dor. Tudo escondido, porque ninguém sabe que tenho ferida (E4).

Eu entrava e saía de licença várias vezes, até que me aposentaram. Eu vejo meus biscates hoje como uma coisa que me faz bem. Mas prefiro não contar sobre minha doença e minha ferida. Escondo mesmo (E20).

O sentido do trabalho para homens com úlceras falcêmicas

Esta classe contou com 32 segmentos de textos que revelam as dificuldades e as facilidades para os homens com doença falciforme e úlcera falcêmica manterem-se no mundo do trabalho. Por meio da nuvem de palavras (Figura 2), foi possível identificar a recorrência de alguns vocábulos, tais como não, doença, ferida, sentir, casa e perna. Dessa forma, os segmentos de textos revelaram a preocupação dos homens em realizar as atividades laborais mediante a presença da UF e o sentido do trabalho para esses participantes.

Figura 2 -
Nuvem de palavras. Rio de Janeiro (RJ), Brasil, 2022.

A presença da UF ocasiona dificuldades para a permanência no mundo laboral. Assim, foi possível identificar nos segmentos de texto a necessidade de adaptação da carga horária de trabalho ou mesmo a regulação do horário em que desenvolvem suas atividades laborais, em virtude dos sintomas acarretados pela doença, principalmente pela dor e urgência no tratamento da ferida.

Depois que me aposentei, saio para trabalhar quando a dor permite. Às vezes, a dor é tão grande que só consigo ficar quieto, parado. Isso só é possível porque sou autônomo. Faço meu horário (E07).

Hoje eu vendo alumínio reciclado para ajudar em casa, cato lata na rua. Todo dia saio andando por aí, mas tem dia que não consigo levantar da cama de tanta dor. Saio para trabalhar quando a dor e a ferida deixam (E1).

Todavia, o trabalho vai além da manutenção material da vida, já que se pode dizer que é uma condição preponderante para a realização humana. Além disso, é uma forma de exteriorizar a capacidade inventiva e criadora. Dessa forma, verificou-se que o trabalho é tido para os participantes como meio de contribuir para redução de sofrimento psíquico e promover a socialização, como é evidenciado nos segmentos de texto apresentados a seguir:

O meu trabalho é tudo para mim! Eu ganho dinheiro, eu brinco, eu converso, eu me divirto, eu me sinto importante. Eu gosto muito do meu trabalho! Eu mesmo falo: é o meu trabalho! É nele que eu esqueço, tento esquecer minhas angústias e minha doença (E5).

O meu trabalho me dá prazer, me dá dinheiro, me faz me sentir importante, me relaciono com pessoas, conheço gente e até esqueço até a ferida. Conheci minha mulher no trabalho (E19).

Mesmo diante de todos esses pontos positivos, especialmente na amenização do sofrimento psíquico causada pelo ato de trabalhar, ainda foi possível identificar que o trabalho exige que esses homens se adaptem às limitações impostas pelo tipo de trabalho e à presença da ferida para se manter em atividade laboral.

Hoje, eu trabalho na segurança. Faço ronda. Para equilibrar esse problema na circulação das pernas, eu ando, sento, uso meia elástica, movimento as pernas, coloco as pernas para cima. Cuido de mim (E08).

Faço meus biscates, de leve, em tipo de serviço que dá para fazer com minha ferida. Sem esforço físico. Não pego peso nem fico muito tempo em pé, fujo do calor. E aí meu humor até melhora (E14).

Em síntese, nota-se que as limitações ocasionadas pela doença em relação às atividades laborais estão muito presentes na vida cotidiana desses homens trabalhadores e, mesmo em meio a essas dificuldades, é perceptível que o trabalho, além de garantir o sustento material, é uma forma de gerar satisfação e se relaciona diretamente com a dignificação da vida, fazendo com que os acometidos pela doença se sintam úteis.

DISCUSSÃO

O trabalho é tido como fonte de sustento e como facilitador das relações sociais e da formação da identidade de cada um. A atividade laboral possui uma importância central no que tange tanto à garantia da subsistência material, quanto à construção e à reconstrução da subjetividade do ser humano, além de referenciar sua posição social. É carregado de significados que impactam a identidade e a definição de normas de vida, sendo necessário para o desenvolvimento pessoal, de modo a se constituir o meio social2.

Um aspecto importante que emergiu nos segmentos de texto foi a questão de sentir-se útil pelo fato de estar inserido no mundo do trabalho, pois o trabalho é considerado uma questão substancial para o indivíduo, além de possuir diversos sentidos para os participantes e de ser uma condição preponderante para a realização humana18.

Entretanto, em algumas situações, o trabalho pode ser adoecedor, principalmente em virtude de certas características físicas, como no caso da UF. A UF é uma das complicações mais recorrentes desenvolvidas por indivíduos com DF19 e requer um olhar diferenciado20. Esse dado pode ser confirmado em alguns países, cuja frequência de surgimento de UF é de 30% a 40%, sendo que no continente americano evidenciou de 8% a 10% dos indivíduos com pelo menos uma lesão durante a vida21^. Além disso, as úlceras podem ter recidivas, com variações e agravamentos, a depender de fatores individuais e das especificidades das UF. Portanto, exigem prevenção e tratamento adequados22.

A presença da ulceração, frequentemente associada à dor intensa, compromete o bem-estar, resultando em problemas emocionais, sociais e profissionais, pois muitas vezes a ulceração limita o indivíduo, levando-o ao afastamento social e laboral, devido à sua cronicidade. Além disso, isso acaba despertando sentimentos de inutilidade, pela incapacidade fazer frente às demandas sociais, culturais e econômicas da unidade familiar23.

Apesar dessas limitações, muitos homens sentem a necessidade da inserção no mundo de trabalho, por questões financeiras ou de gênero, ou mesmo por satisfação pessoal. Dessa forma, o trabalho é considerado uma maneira de refúgio para lidar com a dor da ferida, pois a presença da ferida crônica exige enfrentamento emocional constante, como manifestações de tristeza, choro, incapacidade, incômodo, vergonha, insegurança, mudança na relação interpessoal, ansiedade e depressão24.

Além disso, a inserção e a localização dos indivíduos no meio social são determinadas pelo estilo de vida e pelas condições de saúde. O próprio comportamento sofre influência do seu estado de saúde/doença, interferindo no seu dia a dia, pois há a necessidade de adaptar às limitações da carga horária de trabalho. Essa necessidade de regulação do horário para desenvolver as atividades laborais de acordo com a doença e seus cuidados também perpassa pela obrigatoriedade de os acometidos pela lesão terem de trabalhar para garantir o mínimo indispensável para as necessidades materiais e para o custeio do tratamento, seja da ferida e/ou da DF24^-25.

A posição masculina é vista como viril no contexto social e isso exige que o homem tenha um papel de provedor da família, o que denota uma questão de gênero. Logo, existem certas barreiras, tanto sociais quanto culturais, que traduzem que o homem é caracterizado como um ser forte, que não pode demonstrar fraqueza nem insegurança. Uma consequência dessa visão é a diminuta procura pelos serviços de saúde, o que os torna mais vulneráveis26.

Desse modo, constata-se que há, nesse contexto, uma imposição originada socialmente, que prejudica esses homens, pois, mesmo doentes, com dor e com limitação para mobilização, eles se sentem pressionados a se manterem ativos no trabalho. Em função disso, os homens não procuram tratamento, e é frequente a utilização de medicações compradas em farmácias por indicação de balconistas; percebem-se ainda outras estratégias, como a religião, para aplacar as manifestações da doença, piorando o quadro clínico27.

Sabe-se que o trabalho não é somente um meio de garantir suporte material numa sociedade capitalista. Ele representa status social e contribui para o sentimento de utilidade e de pertencimento a um grupo; porém, na vigência de dor e de outras manifestações limitantes, permanecer no trabalho não figura algo positivo23.

Um ponto relevante a ser destacado é que a maioria dos indivíduos com DF apresenta baixa escolaridade, fator que pode se refletir em desemprego na fase adulta, ou em baixa remuneração. Além disso, o atual modelo econômico vigente - neoliberal - é excludente, uma vez que quem não se qualifica não tem espaço no mercado de trabalho. Essa situação provoca a informalidade laboral ou a aceitação de empregos sob condições e salários precários, impactando no bem-estar dessas pessoas. A vulnerabilidade da condição socioeconômica causada pela presença da doença pode acarretar alterações psicológicas e dificultar a adesão à escola e ao trabalho28.

Ademais, a UF expõe o indivíduo à situação de vulnerabilidade, uma vez que as condições socioeconômicas influenciam negativamente na evolução da patologia e dificultam o tratamento. Assim, há a necessidade de permanecer trabalhando de maneira precarizada, mesmo tendo aposentadoria ou benefício social, justamente em prol da manutenção do sustento, pois os acometidos pela UF sentem-se na obrigação de complementar a renda, ajudarem nos gastos com a doença e quitarem as despesas familiares24.

Salienta-se que a precarização do trabalho representa uma situação laborativa distinta em suas dimensões, predominantemente caracterizada pela falta de capacidade de controle sobre as tarefas, pela desproteção e pela baixa remuneração do trabalhador, levando a prejuízo para a saúde do trabalhador e, em diversas ocasiões, para a tarefa laboral executada. Ou seja, implica ausência ou redução de direitos e garantias do trabalhador29.

Destarte, acredita-se que seja primordial o incentivo e o apoio às pessoas com UF, a fim de minimizar as dificuldades frente à doença, pois o indivíduo sem suporte social, econômico e familiar tende a apresentar maiores problemas oriundos da doença e maiores dificuldades para ajustar-se à rotina doméstica e ao mundo do trabalho23.

Entende-se como limitação do estudo a coleta de dados em um microuniverso, especialmente em duas unidades assistenciais da região metropolitana do Rio de Janeiro. Portanto, os resultados podem não ser generalizáveis, ou seja, devem ser compreendidos como expressão de determinado contexto econômico, social, cultural e de saúde que espelha a região em questão.

No entanto, estes resultados permitem ressignificar o cuidado de enfermagem a homens com DF e UF, no sentido de relevar a complexidade que permeia as necessidades dessa população. Assim, é importante introduzir elementos do mundo do trabalho na anamnese e no histórico de enfermagem, para, a partir dessa perspectiva, traçar ações que permitam minimizar o sofrimento psicofísico advindos da vivência laboral.

Os resultados também indicam a necessidade de fortalecer as orientações de enfermagem que promovem saúde e previnem agravos, principalmente na perspectiva de evitar que lesões voltem a recidivar e limitem as atividades de vida diária, sobretudo as laborais. Outrossim, há de fortalecer a atuação interdisciplinar, pois as necessidades de saúde desses homens são multifacetadas e complexas; desse modo, é evidente a necessidade de agregar outros saberes e outras práticas de saúde, para garantir bem-estar a tal população.

CONCLUSÃO

Verificou-se que o sentido do trabalho para os homens com doença falciforme e úlcera falcêmica é dialético, pois representa algo que os mantém produtivos, úteis, e permite que alivie o impacto psicossocial da doença. Entretanto, em contrapartida, causa penosidade por conta das demandas laborais, o que potencializa as manifestações da doença e da úlcera.

Nesse sentido, o trabalho representa produção e satisfação quando possibilita prover materialmente o homem e suas famílias, quando reafirma sua virilidade e domínio nos contextos familiar e social, quando o faz sentir-se útil e produtivo. Mas, contraditoriamente, também produz sofrimento quando esses homens precisam se manter no trabalho com dor, cansaço, vergonha e frustração decorrentes de uma doença e de uma lesão que altera a imagem corporal e a produtividade, além de gerar sentimento de repulsa no seu coletivo profissional.

São inúmeros os desafios enfrentados pelos homens com doença falciforme e úlcera falcêmica para manterem-se no mundo do trabalho, destacando-se (i) o estigma da doença; (ii) a configuração androcêntrica da sociedade contemporânea, a qual incute no homem o sentimento de invulnerabilidade e obstaculiza que ele exponha seus medos e fragilidades, fazendo com que ele procure tardiamente atendimento de saúde; (iii) a dor durante a jornada de trabalho; (iv) ao mesmo tempo, a necessidade de esconder a lesão na perna; e (v) a submissão a trabalhos precarizados a fim de garantir melhores condições materiais de vida.

Considera-se que o cuidado à população masculina que possui doença falciforme e úlcera falcêmica precisa ser visto de forma abrangente e profunda, numa perspectiva integral da assistência, relevando o contexto social em que os homens estão inseridos e a subjetividade que permeia esses indivíduos, indo além de cuidados centrados na dimensão física do ser humano.

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído da tese - O sentido do trabalho para homens com úlceras falcêmicas, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2021.

• APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

  Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, parecer n. 3.292.609/2019, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 10523919.3.0000.5259.

Editado por

EDITORES

Editores Associados: Gisele Cristina Manfrini, Monica Motta Lino. Editor-chefe: Elisiane Lorenzini

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  06 Jan 2023
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  14 Set 2022
• Aceito
  03 Nov 2022