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Articulação nacional de movimentos e práticas de educação popular e saúde no Estado de Santa Catarina: fortalezas e fragilidades

National articulation of movements and practices of popular education and health in Santa Catarina, Brazil: strengths and weaknesses

Articulación nacional de movimientos y prácticas de educación popular y salud en el Estado de Santa Catarina: fuerzas y debilidades

Resumos

Este artigo trata da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde do Estado de Santa Catarina, organizada em 2003 como fruto da aproximação entre profissionais de saúde e movimentos sociais, iniciada na década de 90. Tem como objetivo: identificar as fortalezas e fragilidades da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde no seu processo de construção histórica. Trata-se de um estudo do tipo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado entre maio e junho de 2006 por meio de entrevistas semi-estruturadas individuais, com questões abertas. A coleta de dados foi feita com os quatro principais membros da referida articulação no Estado de Santa Catarina. Os resultados sinalizam que a principal fragilidade foi a proposta não ter sido construída junto com as bases e, como principal potencialidade, a notória promoção da autonomia dos atores envolvidos.

Educação em saúde; Saúde; Organização social


This article discusses the "Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde" (National Articulation of Movements and Practices of Popular Education and Health) in the state of Santa Catarina, Brazil, organized in 2003. This experience results from an approximation between health professionals and social movements initiated in the 1990’s. Its general objective is to identify the strengths and fragilities the organization’s process of historical construction. The data for this descriptive study was attained through qualitative field research, performed between May and June 2006, which was based on individual semi-structured interviews with open questions. The data retrieval was made after interviews with the four main articulators of the organization in Santa Catarina. The results signal the main fragility being that the proposal was not built together with its bases; while its biggest potential attribute is the notorious promotion of autonomy for the agents involved, organizers, and participators alike.

Education in health; Health; Social organization


El presente artículo trata sobre la Articulación Nacional de Movimientos y Prácticas de Educación Popular y Salud del Estado de Santa Catarina, organizada en 2003 como resultado de la aproximación entre profesionales del área de la salud y movimientos sociales, la cual fue iniciada en la década de noventa. Su objetivo es identificar las fuerzas y debilidades de la Articulación Nacional de Movimientos y Prácticas de Educación Popular y Salud en su proceso de construcción histórica. Es un estudio de tipo descriptivo con abordaje cualitativo, realizado en los meses de mayo y junio del 2006, a través de entrevistas individuales, parcialmente estructuradas y con preguntas abiertas. La recolección de los datos se hizo con los cuatro principales miembros de la referida articulación en el Estado de Santa Catarina. Los resultados obtenidos muestran que la principal fragilidad encontrada fue el hecho de que la propuesta no fue construida junto a las bases, y su principal fuerza es la notoria promoción de autonomía de los actores involucrados.

Educación en salud; Salud; Organización social


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

Articulação nacional de movimentos e práticas de educação popular e saúde no Estado de Santa Catarina: fortalezas e fragilidades

National articulation of movements and practices of popular education and health in Santa Catarina, Brazil: strengths and weaknesses

Articulación nacional de movimientos y prácticas de educación popular y salud en el Estado de Santa Catarina: fuerzas y debilidades

Denise Osório SeveroI; Alexandre Pareto da CunhaII; Marco Aurélio Da RosIII

IFisioterapeuta. Especialista em Saúde Pública. Mestranda em Saúde Pública pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Educadora Popular do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

IIEnfermeiro. Especialista em Saúde Pública

IIIMédico. Mestre em Planejamento. Doutor em Educação. Professor do Departamento de Saúde Pública da UFSC

Endereço Endereço: Denise Osório Severo Rod. João Gualberto Soares, 17.332/08 88.058-300 - Barra da Lagoa, Florianópolis, SC. E-mail: deniseosorios@hotmail.com

RESUMO

Este artigo trata da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde do Estado de Santa Catarina, organizada em 2003 como fruto da aproximação entre profissionais de saúde e movimentos sociais, iniciada na década de 90. Tem como objetivo: identificar as fortalezas e fragilidades da Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde no seu processo de construção histórica. Trata-se de um estudo do tipo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado entre maio e junho de 2006 por meio de entrevistas semi-estruturadas individuais, com questões abertas. A coleta de dados foi feita com os quatro principais membros da referida articulação no Estado de Santa Catarina. Os resultados sinalizam que a principal fragilidade foi a proposta não ter sido construída junto com as bases e, como principal potencialidade, a notória promoção da autonomia dos atores envolvidos.

Palavras-chave: Educação em saúde. Saúde. Organização social.

ABSTRACT

This article discusses the "Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde" (National Articulation of Movements and Practices of Popular Education and Health) in the state of Santa Catarina, Brazil, organized in 2003. This experience results from an approximation between health professionals and social movements initiated in the 1990’s. Its general objective is to identify the strengths and fragilities the organization’s process of historical construction. The data for this descriptive study was attained through qualitative field research, performed between May and June 2006, which was based on individual semi-structured interviews with open questions. The data retrieval was made after interviews with the four main articulators of the organization in Santa Catarina. The results signal the main fragility being that the proposal was not built together with its bases; while its biggest potential attribute is the notorious promotion of autonomy for the agents involved, organizers, and participators alike.

Keywords: Education in health. Health. Social organization.

RESUMEN

El presente artículo trata sobre la Articulación Nacional de Movimientos y Prácticas de Educación Popular y Salud del Estado de Santa Catarina, organizada en 2003 como resultado de la aproximación entre profesionales del área de la salud y movimientos sociales, la cual fue iniciada en la década de noventa. Su objetivo es identificar las fuerzas y debilidades de la Articulación Nacional de Movimientos y Prácticas de Educación Popular y Salud en su proceso de construcción histórica. Es un estudio de tipo descriptivo con abordaje cualitativo, realizado en los meses de mayo y junio del 2006, a través de entrevistas individuales, parcialmente estructuradas y con preguntas abiertas. La recolección de los datos se hizo con los cuatro principales miembros de la referida articulación en el Estado de Santa Catarina. Los resultados obtenidos muestran que la principal fragilidad encontrada fue el hecho de que la propuesta no fue construida junto a las bases, y su principal fuerza es la notoria promoción de autonomía de los actores involucrados.

Palabras clave: Educación en salud. Salud. Organización social.

INTRODUÇÃO

O cenário da década de 1970 no Brasil evidenciava um país com sérios problemas sócio-econômicos, profundas desigualdades sociais e um imenso descontentamento dos cidadãos com as precárias condições de vida e saúde de grandes parcelas da população. Nesse contexto, ocorre uma efervescência dos movimentos sociais em saúde, quando intelectuais e educadores amparados pela Igreja católica se voltam para as questões populares, deflagrando todo um processo de articulação dos movimentos sociais.1-2

Com isso, cria-se um terreno fértil para o surgimento de novas abordagens metodológicas das práticas de educação popular em saúde, especialmente baseados na proposta de Paulo Freire. A participação dos profissionais de saúde nas experiências de educação popular trouxe para o setor saúde uma cultura da criação de vínculos com as classes populares que representou um rompimento com a tradição autoritária e normatizadora das políticas de educação em saúde.3-4

No entanto, a partir da abertura política ocorrida na década de 80 e a inclusão dos princípios da Reforma Sanitária na Constituição brasileira, os olhares se voltam para o processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Na década de 90, com os impactos das políticas neoliberais e com a capilarização do Movimento Sanitário nas esferas de constituição do SUS, ocorrem, como reação a esse processo, escassas tentativas de reativação dos movimentos sociais, surgindo iniciativas particulares na articulação entre os movimentos de educação popular no país e a área da saúde.

É dentro desse contexto que surge, em 1991, a proposta de criação de uma articulação nacional entre os movimentos de educação popular em saúde, a qual é aprofundada em 1996 e criada em 2003, denominada de Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação e Saúde (ANEPS), objeto desta pesquisa.

Estudar a ANEPS, portanto, justifica-se para o fortalecimento dos movimentos sociais em saúde, assim como para a implementação dos princípios do SUS, especialmente no que tange ao controle social, integralidade e equidade das ações em saúde − além da possibilidade da utilização da metodologia de educação popular pelas instituições.

A reflexão sobre educação popular em saúde, movimentos sociais e o papel destes na construção do SUS foi a intenção que determinou o objetivo desta pesquisa que é, portanto: identificar as fortalezas e fragilidades da ANEPS do Estado de Santa Catarina no seu processo de construção histórica.

História da ANEPS – Santa Catarina

Em virtude do pouco material bibliográfico disponível sobre a ANEPS e visando disponibilizar sua história, isto só foi possível a partir dos relatos dos entrevistados. É uma experiência recente, tem apenas três anos. Apesar do pouco tempo de existência, tem percorrido caminhos pouco trilhados. No ano de 2002, segundo relatos extraídos desta pesquisa, atores que compartilhavam da vontade de articular os diversos saberes e práticas em educação popular em saúde reuniram-se, durante o Congresso da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), para discutir formas de viabilizar aquela vontade. Desta reunião foram escolhidos representantes de cada Estado, com o objetivo de difundir as idéias da ANEPS.

Em Santa Catarina, segundo informações colhidas junto aos entrevistados do estudo, um grupo de discentes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) acatou a responsabilidade de iniciar o processo de difusão da proposta. Este grupo, apesar de seu pouco vínculo com os movimentos sociais do Estado, organizou nos dia 03 e 04 de outubro de 2003, no auditório do Cento de Filosofias e Humanas (CFH) da UFSC, o I Encontro Catarinense de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde. O Encontro tinha como um dos objetivos a escolha de cinco representantes de cada Estado para comporem um grupo de delegados para participar da 12ª Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, em dezembro de 2003. O intuito era fortalecer as propostas favoráveis ao SUS e, em paralelo, participar do I Encontro Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular.

Além disso, outro objetivo era reunir diversos atores que participavam de movimentos sociais e também estudantes e professores da UFSC. O objetivo foi contemplado, tendo a presença de representantes das pastorais da saúde, agentes comunitários, do Fórum Estadual Popular de Saúde, Organizações Não Governamentais, profissionais e residentes em Saúde da Família. O Encontro proporcionou uma aproximação entre o saber popular e o saber acadêmico, evidenciando uma possibilidade de uma articulação com diferentes matizes, porém, fortificados pelo método da educação popular que tem entre seus pressupostos a não negação do saber do outro.5

Em 2004, logrou-se a aprovação de um projeto junto ao Ministério da Saúde, com financiamento da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), cuja proposta era de estruturação da articulação dos Movimentos e Práticas para a consolidação do SUS por meio da participação popular em todas as instâncias da rede de saúde.5 A execução deste projeto foi iniciada no primeiro semestre de 2005. Embasado no Projeto Estruturante foram realizados cursos de formação em Chapecó, Criciúma, Lages e Florianópolis, e oficinas em Nova Itaberaba, Faxinal dos Guedes e Guatambu.

As temáticas dos momentos coletivos foram: Educação Popular, Educação Permanente, Concepção de Estado, Sociedade Civil e Políticas Públicas, Análise de Conjuntura, SUS, Participação Popular e construção do II Encontro Estadual.5 Com esses recursos possibilitou-se a expansão e divulgação da ANEPS pelo estado, nos municípios, nas meso e microrregiões com articuladores(as) municipais e regionais. Com uma Executiva que era formada pelas temáticas de: Agendas Comuns, Comunicação, Mobilização Social, Organização, Pesquisa, Práticas Tradicionais e Espirituais.6

O II Encontro Catarinense de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde aconteceu entre os dias 09 e 11 de junho de 2005, na cidade de Chapecó, no qual participaram mais de 100 pessoas de 50 organizações diferentes.6 Deste encontro se constituiu a Articulação Executiva Estadual, que seria responsável por dar encaminhamento às propostas resultantes do encontro. Após esse encontro, a ANEPS-SC entrou em um período de latência, tornando a encontrar-se somente em junho de 2006, com o intuito de analisar sua situação atual e colher propostas para reverter o quadro no qual se encontra.

PERCURSO METODOLÓGICO

A pesquisa foi realizada sobre o percurso da ANEPS do Estado de Santa Catarina no período 2003/2006, dado que a mesma apresenta particularidades que serão destacadas na análise dos dados. O estudo realizado foi do tipo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado entre maio e junho de 2006.

O instrumento utilizado foi composto por entrevistas semi-estruturadas individuais, cujo roteiro foi composto por questões abertas. A coleta de dados foi realizada mediante entrevistas com quatro membros da ANEPS no Estado de Santa Catarina (ANEPS-SC), dos quais, três eram responsáveis pela articulação nos municípios de Florianópolis e Grande Florianópolis e um responsável pelo município de Criciúma. A definição desses entrevistados teve como critério de escolha a identificação dos principais articuladores da ANEPS no Estado de Santa Catarina.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, conforme protocolo número 144/06, tendo sido aprovada. Antes da realização das entrevistas foi explicado aos participantes os objetivos da pesquisa e os procedimentos que seriam utilizados na mesma, sendo oferecido a eles o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ficando os mesmos livres para desistir da participação na pesquisa a qualquer momento, tendo a garantia de que sua identidade seria preservada.

O tratamento dos dados foi feito por meio da análise de conteúdo, com referencial teórico em Laurence Bardin.7 As entrevistas foram gravadas, posteriormente transcritas, feitas leituras flutuantes desses textos construídos e notou-se que algumas questões eram induzidas pela própria forma que perguntávamos. A isso Bardin chama de categorias a priori.7

A pesquisa apresentou três categorias a priori, denominadas: 1) educação popular em saúde, 2) função da ANEPS, 3) desarticulação e rearticulação da ANEPS-SC. Na análise da categoria Educação Popular em Saúde identificou-se duas subcategorias: Construção da Autonomia e Forma de se Relacionar com o Mundo. Da mesma forma, a avaliação da categoria Função da ANEPS permitiu a identificação de uma subcategoria denominada: Afinal qual a função da ANEPS?

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Categoria educação popular em saúde

Construção da autonomia

O conceito de educação popular em saúde relatado nas entrevistas aponta para sua relação intrínseca com a construção da autonomia do sujeito. Este, a partir do momento em que se descobre sujeito, deixando para traz a ignorância sobre a sua situação de oprimido, torna-se ator de práticas realmente libertadoras. Os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação.8

Para mim é um conceito bastante amplo mas tem a ver com liberdade do sujeito [...] (Azaléia).

[...] educação popular seria uma forma de educação pra despertar a consciência crítica da classe que é oprimida [...] (Orquídea).

[...] a população começar a construir a autonomia dela, de ir atrás do que ela quer (Lírio).

Depreende-se das entrevistas a noção de que as ações libertadoras podem, por meio da reflexão e da ação, tornar a dependência em independência. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de "coisas".8 E, ao analisarmos, teremos na construção da autonomia um processo mediatizado pelo diálogo, na qual não há um que liberta o outro e sim dois que se libertam simultaneamente.8 "[...] a solução para os oprimidos [...] não está em, ‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se ‘seres para si’".8:61

A educação popular em saúde é aqui associada a uma forma de despertar a criticidade do indivíduo, a capacidade dos sujeitos perceberem-se, de fato, sujeitos na construção de seu processo histórico, de reagir às desigualdades sociais e assumir uma postura de luta por aquilo que lhes é mais apropriado. Relaciona-se então diretamente com a liberdade de ser sujeito e, como tal, poder fazer escolhas que lhe convenha e não simplesmente resignar-se e aceitar a diferença de classes como algo inexorável. Esse sentido nos remete à construção da autonomia e "[...] com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai preenchendo o ‘espaço’ antes habitado por sua dependência [...]".9:105

Forma de se relacionar com o mundo

Outro sentido de educação popular em saúde, que emergiu das falas, foi a visão desta como uma forma de relação com o mundo. O significado aqui atribuído, assume o processo pedagógico como algo naturalmente carregado de subjetividades e valores que se forjam e se revelam na interação social. Conforme se pode observar: depois que tu vira educador tu muda a forma como tu te relaciona com o mundo (Jasmim).

Ressaltam-se das falas a percepção de que a educação popular em saúde é antes de um método, um modo de se relacionar com o outro, uma forma de perceber, estar e atuar no mundo num dado momento histórico.

Categoria função da ANEPS

Afinal qual a função da ANEPS?

Esta categoria surgiu das falas dos entrevistados, visto que se percebeu nas entrevistas que existe uma dúvida em relação ao seu papel.

[...] Uma outra questão que eu vejo, assim, que nunca ficou muito claro, muito definido, é difícil, o porquê veio a ANEPS, por que surgiu a ANEPS, sabe? Isso é uma pergunta que não tá bem respondida e que em cada lugar se entende de uma forma diferente. [...] E o que a gente quer com a educação popular em saúde? A gente quer revolucionar e derrubar todos os professores, fazer com que tenha só educação popular agora ou a gente não quer isso, quer ficar fazendo escolas ou quer só tá discutindo? Não se tinha muito definido isso. [...] (Jasmim).

Os relatos nos levam a perceber que, para os integrantes da ANEPS-SC, não há um limite rígido quanto às atribuições da ANEPS, uma vez que isso irá depender de como a mesma foi apropriada e percebida pelos seus atores em cada região do país, considerando-se seus aspectos históricos, sociais e culturais no que tange às práticas de educação popular em saúde bem como o próprio grau de organização dos movimentos sociais locais.

Se, por um lado, essa fluidez nas fronteiras de suas atribuições imprimem um caráter dialético à ANEPS, visto que ela se assume como uma proposta aberta à novas possibilidades e demandas que possam surgir no decorrer da práxis social, por outro sinaliza uma indefinição que pode apontar para uma das causas de sua desarticulação em Santa Catarina. "As pessoas precisam visualizar as bandeiras, sentir que são palpáveis e, de certo modo, alcançáveis mesmo na atual conjuntura".10:15

Essa afirmativa sinaliza a necessidade que as pessoas possuem hoje, diante do quadro atual de uma sociedade hegemonicamente pautada em princípios neoliberais e fundada no individualismo, a partir de questões mais concretas em suas lutas, questões que apresentem mais claramente vinculação com suas necessidades pessoais imediatas, visto que esse parece ser um potencial sensibilizador para que as mesmas se engajem e, a partir disso, com o tempo, ampliem suas bandeiras de luta. Isto se torna possível por meio da ação comunitária fundamentada na valorização das características e necessidades locais, ponto de partida para o processo de reflexão e promoção da autonomia dos sujeitos e dos coletivos, fomentando, dessa forma, a participação popular e o empoderamento.11

Categoria desarticulação e rearticulação da ANEPS-SC

Desarticulação

Analisando-se as entrevistas, destacam-se como um dos principais fatores atribuídos à desarticulação da ANEPS-SC, o fato da mesma não ter sido construída pelas bases, uma vez que a maioria de seus articuladores não estava inserida em movimentos sociais e nem conseguia estabelecer estratégias de aproximação com os mesmos, o que pode ser evidenciado na fala abaixo: [...] a primeira, que eu vejo assim, que a proposta ela não saiu direto da base, ela não foi construída pela base, ela foi construída por certos intelectuais orgânicos, né? [...] (Jasmim).

Essa questão aponta para a fragilidade das propostas de articulação social forjadas distantes do locus de origem das manifestações populares, visto que o processo de mobilização social tem como premissa a participação em seus cenários de luta. Nesse sentido, Mezzaroba coloca que, para Gramsci, o papel dos intelectuais orgânicos em relação à classe dominada é justamente o de servir como catalisador de mudanças à medida em que atua no sentido de unir as forças populares emergentes voltadas à mudança da ordem social instituída e à criação de uma nova ordem social.12

Esta afirmativa nos leva a questionar a respeito da atuação dos intelectuais orgânicos na origem da ANEPS e da percepção de seus integrantes a respeito disso. Tanto é possível haver aí uma incongruência na idéia do que seja o papel do intelectual orgânico, quanto é possível que os intelectuais que tenham participado da proposta de criação da ANEPS de fato não estivessem desempenhando seu papel. De uma forma ou de outra, isso só reforça a necessidade de haver uma construção conjunta com as bases para que se consiga realmente mobilizá-las em prol de uma luta maior.

A grande dificuldade de comunicação com os movimentos sinaliza que, para a ANEPS-SC, faltou o estar com, ir até a base, conhecer sua realidade de forma um pouco mais aproximada. A questão do tempo é um fator que muitas vezes "picota" a ação libertadora em fragmentos, tornando truncado o diálogo e conseqüentemente levando a um entendimento parcial da mensagem. Com o estar com, há a possibilidade de se problematizar a partir das realidades que vivenciam, tornando a possibilidade de incorporação da causa da ANEPS maior, na medida em que se dá a oportunidade de associação das necessidades locais à proposta da ANEPS.

Ainda em relação à comunicação, o veículo utilizado prioritariamente pela ANEPS-SC: a comunicação virtual, constituiu-se num fator que corroborou ainda mais para o distanciamento entre os articuladores em questão dos movimentos populares. Conforme se observa na fala a seguir: [...] a comunicação que a gente tem é por e-mail, só que é difícil fazer essa articulação de movimentos sociais porque nem todo mundo tem acesso a e-mails, né? (Lírio).

Dado que a atuação social se faz tanto mais presente e efetiva quanto mais se desenvolve uma relação de proximidade com as pessoas e os cenários de luta, isso nos leva a pensar na possibilidade da comunicação virtual não se caracterizar como a melhor opção para este tipo de proposta, tanto porque a Internet pode caracterizar-se, muitas vezes, como um meio excludente de comunicação, visto que distancia as pessoas de um contato pessoal direto, quanto porque, de fato, grande parcela da população ainda não tem acesso a esse veículo.

Outra causa da desarticulação ressaltada nas entrevistas foi a falta de uma fonte estável de financiamento que garantisse a continuidade do projeto. A falta de garantia de dotação orçamentária para políticas sociais não constitui fato esporádico na política brasileira. Contudo, não pode ser avaliado sem considerar-se a influência do modelo neoliberal na sociedade atual, o qual preconiza a diminuição da intervenção do Estado nessas políticas.13

Especialmente no setor saúde, essa é uma questão que vem sendo intensamente discutida por todos atores sociais envolvidos, justamente por tratar-se do comprometimento da implementação e manutenção das políticas de saúde.

No caso da ANEPS, percebe-se que a falta de suporte financeiro para manutenção do projeto vem ao encontro do modelo citado, dado que uma estratégia básica para desmantelar toda e qualquer organização social contra-hegemônica é justamente cortar verbas que possibilitem uma estrutura mínima financeira capaz de instrumentalizar as forças de luta.

Um terceiro elemento que apareceu nas entrevistas como causa de desarticulação em Santa Catarina, já comentado anteriormente em outra categoria, foi a falta de clareza pelos próprios integrantes acerca do papel da ANEPS. Destaca-se aqui que, mesmo para os movimentos sociais organizados e com bandeiras de luta bem definidas, a dificuldade de mobilização e de sensibilização das comunidades no que tange à participação em processos de luta social é o hoje o grande desafio a ser superado, o que indica que esse seja um obstáculo ainda maior quando não se tem bem definido os objetivos de uma organização como a ANEPS.10

Por outro lado, há que se considerar que existem diversas formas de conectar as práticas populares em saúde, bem como essas práticas têm peculiaridades que tornam suas experiências singulares. Sendo assim, separar ou dar preferência para uma forma ou outra de luta poderia se caracterizar como um mecanismo de exclusão.

Sob essa ótica, querer que diferentes atores que lutam em seus respectivos movimentos por causas distintas, de uma hora para outra passem a lutar por uma única causa pré-determinada, é também negar um dos pressupostos da educação popular, que se caracteriza pela possibilidade de partir da realidade que é comum ao sujeito da prática.

Rearticulação

Em relação a essa categoria, existem fatos recentes que apontam para uma rearticulação com os quadros da ANEPS em nível nacional, além de uma aproximação que está ocorrendo com o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão Participativa. Não obstante, na análise dessa categoria se destacaram como possibilidades de rearticulação a inserção dos atores que participam da articulação da ANEPS-SC junto às bases dos movimentos sociais. Um sonho que eu tinha era de que as pessoas se unissem e formassem um grupo forte aqui no município e que a gente construísse tudo em conjunto [...] (Lírio).

Outra possibilidade que surgiu das falas foi o estabelecimento de uma parceria com o meio acadêmico, objetivando uma melhor estrutura física e organizacional no intuito de viabilizar espaços contra-hegemônicos de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos inicialmente que a educação popular em saúde está intrínseca ao viver dos participantes deste estudo, visto que os relatos revelam uma grande afinidade com os princípios que regem este método. Apesar de estarem imbuídos dessa missão, na luta pela educação popular em saúde, percebemos que há a necessidade de aprofundamento teórico e prático deste fazer por parte dos entrevistados. Mesmo assim, foi notória a promoção da autonomia dos atores envolvidos, tanto dos organizadores quanto dos participantes, trazendo a percepção da sua relação com o mundo de forma crítica e ativa, objetivando a transformação do entorno.

Por outro lado, é importante apontar que a principal fragilidade da ANEPS-SC identificada no estudo foi o fato dela não ter sido construída de forma articulada com as bases, uma vez que seus articuladores não tinham uma história de vinculação com os movimentos sociais e a interlocução estabelecida com os atores envolvidos não foi suficiente para conferir sustentabilidade ao projeto.

Essa falta de representatividade dos principais organismos cuja articulação se propunha a fortalecer, sinaliza a presença de um conflito existencial comum às ações de intelectuais orgânicos quando na implementação de propostas de vanguarda, que acabam desta maneira distanciando-se do cotidiano da população, o que parece ter sido a causa determinante da vulnerabilidade da ANEPS no estado de Santa Catarina. É portanto necessário revisitar os conceitos implícitos na proposta.

Além disso, a forma de comunicação adotada pela ANEPS-SC, comunicação virtual, também parece ter corroborado para que a mesma não prosperasse, visto ser este um veículo de comunicação que tem se mostrado pouco eficaz quando se almeja um processo de mobilização social, justamente pela necessidade que esse processo exige do contato direto com os atores envolvidos e com seus lócus de origem. Faltou o estabelecimento de uma comunicação mais inclusiva, mais horizontal, mais "corpo a corpo". No entanto, se corrigida (e nas entrevistas percebe-se esta vontade), acredita-se que poderá fortalecer sobremaneira os movimentos populares em saúde no estado.

Por outro lado, a indefinição da função da ANEPS pelos atores que a compõem pode servir, se oportunamente utilizada, de estímulo a novas discussões e a nova(s) definição(ões). Esta discussão associada à participação das bases na articulação poderá proporcionar a apropriação da ANEPS pelos atores que dela participarem, propiciando a introdução das características culturais, históricas e sociais estaduais, tornando-a assim, construção da base, onde cada ator possa estar com e, deixando de atuarem solitários em suas causas particulares, possam lutar juntos e de forma mais fortificada.

Essa reenergização da articulação em Santa Catarina, passa pela busca de apoio institucional, pela necessidade de se ter uma estrutura física básica, de se ter um local para reuniões e para a realização de atividades onde seja possível, de certa forma, dispor de apoio financeiro e logístico. Para isso, há a proposição de estabelecer vínculos com as instituições de ensino, o que provavelmente possibilitaria uma maior integração entre os movimentos populares em saúde e o meio acadêmico, sinalizando um caminho para a vocalização popular e para a promoção da participação política dos estudantes.

Estas considerações sobre o percurso histórico-político-social da ANEPS-SC trazem a análise final do diálogo entre pesquisadores que fizeram parte da articulação e que fazem parte da divulgação dos princípios da educação popular e que, por isso, trazem essas contribuições para que se possa dar maior visibilidade, maior oportunidade de participação e maior estruturação ao trabalho de articulação dos movimentos populares em saúde.

Ao evidenciar as fortalezas e fragilidades da ANEPS-SC segundo os atores sociais que nesse período a construíram, se buscou identificar elementos que pudessem servir de subsídios para avaliar a trajetória de construção e, dessa forma, contribuir para a rearticulação da mesma, assim como refletir sobre os caminhos adotados na implementação de propostas de articulação social.

Recebido em: 16/11/2006.

Aprovação final: 10/04/2007.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Recebido
      16 Nov 2006
    • Aceito
      10 Abr 2007
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