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CONVIVENDO COM O CÂNCER GESTACIONAL: UMA TEORIA FUNDAMENTADA NOS DADOS A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS DE FAMÍLIAS

RESUMO

Objetivo:

compreender a experiência de famílias diante do adoecimento de familiar por câncer gestacional.

Método:

trata-se de uma teoria fundamentada nos dados que teve como referencial teórico o interacionismo simbólico. Participaram do estudo doze famílias que tiveram entre seus membros uma mulher com diagnóstico de câncer gestacional. A coleta dos dados deu-se por formulário de identificação, genograma e entrevista, entre março de 2018 e março de 2019, e a análise seguiu as etapas da codificação substantiva e teórica.

Resultados:

a análise comparativa constante dos dados permitiu a elaboração de uma teoria substantiva “Convivendo entre fragilidades e motivações: experiências de famílias com o câncer gestacional” explicativa da experiência que teve como conceito central “Vivendo entre perdas que fragilizam e a chegada da criança que fortalece”, que representa as ações e estratégias simbólicas da família que se percebe em uma condição de dualidade.

Conclusão:

ao longo da experiência, a família movimenta-se de uma condição em que o adoecimento é identificado como um dificultador para a vivência da gestação e nascimento para outra em que a gestação e o nascimento são significados como motivadores para o tratamento oncológico.

DESCRITORES:
Neoplasias; Gravidez; Família; Teoria fundamentada; Enfermagem; Pesquisa em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

to understand the experience of families living with pregnancy-associated cancer.

Method:

grounded theory with symbolic interactionism as a theoretical reference. Twelve families with a woman diagnosed with pregnancy-associated cancer participated in the study. Data were collected by identification form, genogram and interview, between March 2018 and March 2019, and the analysis followed the stages of substantive and theoretical coding.

Results:

the constant comparative analysis of the data developed the substantive theory "Living between weaknesses and motivations: experiences of families with pregnancy-associated cancer" explaining the experience with the central concept "Living between losses that weaken and the arrival of the child who strengthens", which represents the symbolic actions and strategies of the family that perceives itself in a condition of duality.

Conclusion:

throughout the experience, the family moves from a condition in which illness is identified as a difficulty for the experience of pregnancy and birth to another in which pregnancy and birth are seen as motivators for cancer treatment.

DESCRIPTORS:
Cancer; Pregnancy; Family; Grounded theory; Nursing; Nursing Research

RESUMEN

Objetivo:

comprender la experiencia de familias frente a la enfermedad de un familiar por cáncer gestacional.

Método:

se trata de una teoría basada en datos que tuvo como marco teórico el interaccionismo simbólico. Doce familias participaron en el estudio que tenían una mujer diagnosticada con cáncer gestacional entre sus miembros. La recolección de datos ocurrió a través de ficha de identificación, genograma y entrevista, entre marzo de 2018 y marzo de 2019, y el análisis siguió las etapas de codificación sustantiva y teórica.

Resultados:

el constante análisis comparativo de los datos permitió la elaboración de una teoría sustantiva “Vivir entre fragilidades y motivaciones: experiencias de familias con cáncer gestacional” explicando la experiencia que tuvo como concepto central “Vivir entre pérdidas que debilitan y la llegada del niño que fortalece”, que representa las acciones y estrategias simbólicas de la familia que se percibe en una condición de dualidad.

Conclusión:

a lo largo de la experiencia, la familia pasa de una condición en la que la enfermedad es identificada como un impedimento para la experiencia del embarazo y del parto, a otra en la que el embarazo y el parto son pensados como motivadores para el tratamiento del cáncer.

DESCRIPTORES:
Neoplasias; Embarazo; Familia; Teoría fundamentada; Enfermería; Investigación en enfermería

INTRODUÇÃO

A família é o lugar em que a história de cada pessoa se origina, espaço privado de relações espontâneas, considerada o contexto primário do desenvolvimento humano, pois no ciclo de vida da família incide o ciclo de vida de cada um de seus membros.11. Walsh F. Loss in couples and families. In: Lebow J, Chambers A, Breunlin D. Encyclopedia of couple and family therapy [Internet]. Springer; 2017 [cited 2021 Aug 20]. p. 1-8. Available from: https://doi.org/10.1007/978-3-319-15877-8_469-1
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Nessa perspectiva, destaca-se que a família é um sistema aberto em constante transformação que se organiza a partir da maneira pela qual seus membros interagem.22. Stürmer TR, Marin AH, Oliveira DS. Compreendendo a estrutura familiar e sua relação com a parentalidade: relato de caso de um casal em terapia de abordagem sistêmica. Rev Bras Psicoter [Internet]. 2016 [cited 2020 Aug 22];18(3):55-68. Available from: http://rbp.celg.org.br/detalhe_artigo.asp?id=213
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Ao longo do seu ciclo vital, a família passa por diferentes estágios que estão relacionados a entradas e saídas de novos membros e tal organização tem por objetivo expandir a visão dos problemas que esse núcleo apresenta e dos pontos fortes que aparecem, em cada estágio do ciclo pelos quais passa, e que são específicos desse momento vivido pela família.33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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No contexto do ciclo vital da família, aqui com destaque o estágio do nascimento dos filhos, podem surgir eventos imprevisíveis, como o adoecimento de um de seus membros, o que intensifica a necessidade de adaptação diante das novas demandas familiares. O adoecimento por uma causa crônica como o câncer, independentemente do momento familiar vivido, provoca impacto e afeta não apenas o doente, mas a unidade como um todo, repercutindo, inclusive, nas interações e na dinâmica familiar.44. Ferraza A, Muniz RM, Pinto BK, Viegas AC, Matos MR. A sobrevivência ao câncer na perspectiva da família. Rev Enferm UFPE on line [Internet]. 2016 [cited 2020 Dec 7];10(3):1022-8. Available from: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/bde-29619
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-55. Oliveski CC, Girardon-Perlini NMO, Cogo SB, Cordeiro FR, Martins FC, Paz PP. Experience of families facing cancer in palliative care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2021 [cited 2021 Sep 26];30:e20200669. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2020-0669
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Tal impacto relaciona-se, comumente, com as representações do câncer para os indivíduos e para a sociedade a que pertencem, o que geralmente está associado à dor, à angústia, ao sofrimento e à morte.66. Bezerra NC, Martins VHS, Guisande TCCA, Santos TV, Carvalho MAB, Belfort LRM. Pregnancy-associated cancer: a literature review. Res Soc Dev [Internet]. 2019 [cited 2021 Sep 24];8(6):e40861075. Available from: https://doi.org/10.33448/rsd-v8i6.1075
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-77. Ziguer MLPS, Bortoli CFC, Prates LA. Sentimentos e expectativas de mulheres após diagnóstico de câncer de mama. Rev Saúde Púb Paraná [Internet]. 2016 [cited 2021 Feb 17];17(1):107-12. Available from: https://doi.org/10.22421/15177130-2016v17n1p108
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No que tange aos aspectos que são inerentes à gestação e nascimento, a família está imersa nesta vivência, juntamente com a gestante/puérpera, e compartilha das alegrias e medos que fazem parte desse processo, como também faz um movimento para se organizar com os cuidados da criança e da mulher. O diagnóstico de câncer, nesse contexto, possivelmente faz com que a família necessite se reorganizar para um outro tipo de cuidado, diferente daquele que estava visualizando e para o qual estava se preparando. O câncer associado à gestação é definido como a neoplasia maligna diagnosticada na gravidez e até um ano após o parto.88. Amant F, Berveiller P, Boere IA, Cardonick E, Fruscio R, Fumagalli M, et al. Gynecologic cancers in pregnancy: guidelines based on a trird international consensus meeting. Ann Oncol [Internet]. 2019 [cited 2022 Feb 26];30(10):1601-12. Available from: https://doi.org/10.1093/annonc/mdz228
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Considerando que o processo de nascimento habitual é visto como um desafio que desencadeia a necessidade de mudanças inerentes ao ciclo de vida e de desenvolvimento da família, o adoecimento por câncer gestacional vai representar outro tipo de perturbação, aquele que é inesperado e, portanto, constitui-se em problema emocional e social que se soma à realidade vivida. Há confusão de sentimentos e emoções, tais como alegria e tristeza, medo e coragem, vida e morte, desesperança e motivação. É comum a referência à gestação como vida e, em contrapartida, ao câncer como morte.99. Hammarberg K, Sullivan E, Javid N, Duncombe G, Halliday L, Boyle F, et al. Health care experiences among women diagnosed with gestational breast câncer. Eur J Cancer Care (Engl) [Internet]. 2017 [cited 2021 Nov 27];27(2):e12682. Available from: https://doi.org/10.1111/ecc.12682
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Em análise da literatura sobre as repercussões do câncer gestacional, evidencia-se que investigações conduzidas têm por objetivo trazer para a discussão impactos na perspectiva da mulher que o vivencia.99. Hammarberg K, Sullivan E, Javid N, Duncombe G, Halliday L, Boyle F, et al. Health care experiences among women diagnosed with gestational breast câncer. Eur J Cancer Care (Engl) [Internet]. 2017 [cited 2021 Nov 27];27(2):e12682. Available from: https://doi.org/10.1111/ecc.12682
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-1111. Rees S, Young A. The experiences and perceptions of women diagnosed with breast cancer during pregnancy. Asia Pac J Oncol Nurs [Internet]. 2016 [cited 2020 Nov 27];3(3):252-8. Available from: https://doi.org/10.4103/2347-5625.189814
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Dessa forma, percebe-se uma lacuna no conhecimento, já que ficam interrogações de como é, para o grupo familiar, receber a notícia de um câncer gestacional e de como seus membros absorvem e compreendem os desdobramentos que essa situação suscita.

Estudo de revisão que objetivou analisar as tendências na construção do conhecimento da enfermagem brasileira acerca de estudos com famílias, os quais se utilizaram de teoria fundamentada em dados como referencial metodológico, conclui que as pesquisas estão centradas em situações de doenças e envolvem, principalmente, famílias de crianças, com ênfase nas situações de necessidades especiais de cuidado à saúde (cronicidade). Além disso, avalia que há importante espaço para investigações que se voltem a famílias que vivenciem momentos de transição do ciclo de seu desenvolvimento, como casamento, saída dos filhos de casa, gestação, nascimentos, divórcio e envelhecimento, como também o adoecimento nesses diferentes estágios, a citar, o câncer gestacional.1212. Gomes JS, Girardon-Perlini NMO, Coppetti LC, Dalmolin A. Teoria fundamentada nos dados como referencial metodológico para pesquisas com famílias na enfermagem brasileira. Cienc Cuid Saude [ Internet]. 2017 [cited 2020 Nov 27];16(4):1-9. Available from: https://doi.org/10.4025/ciencuidsaude.v16i4.39467
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Dessa forma, considera-se que compreender a experiência de famílias frente ao câncer gestacional e elaborar uma teoria substantiva contribuem para a construção do conhecimento no que tange às relações e à dinâmica familiar em uma situação específica como a gestação associada ao adoecimento por uma doença considerada grave. Além disso, possibilitam visibilidade àqueles que precisam enfrentar o adoecimento por câncer no momento em que se preparam para a chegada de um novo integrante na família e, portanto, manifestam a tendência de apresentarem dificuldades em conciliar demandas de dois eventos de vida diferentes.1313. Faccio F, Mascheroni E, Ionio C, Pravettoni G, Peccatori FA, Pisoni C, et al. Motherhood during or after breast cancer diagnosis: a qualitative study. Eur J Cancer Care (Engl) [Internet]. 2020 [cited 2021 Mar 20];29(2):e13214. https://doi.org/10.1111/ecc.13214
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Considerando a experiência da família frente ao adoecimento por câncer gestacional como um importante problema de pesquisa - já que 1) a família tem como particularidade experienciar dois eventos tidos como conflitantes e precisa adaptar-se a eles e que 2) o câncer gestacional, a partir do olhar da família, ainda não se mostra explorado na literatura -, tem-se como objetivo: compreender a experiência de famílias diante do adoecimento de familiar por câncer gestacional.

MÉTODO

Esta investigação tem como referencial teórico o Interacionismo Simbólico.1414. Charon JM. Symbolic interactionism: in introduction, as interpretation, an integration. 10th ed. New Jersey, NJ(US): Pearson Prentice Hall; 2010. 208 p. O referencial metodológico que a sustenta é a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), que possibilita estudar o comportamento humano e escrever teoria substantiva com base no conceito central que emerge dos dados e de seus conceitos relacionados.1515. Glaser B. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. San Francisco, CA(US): The Sociology Press; 1978.-1616. Glaser BG. Getting Started. The Grounded Theory Review [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 27];17(1):3-6. Available from: http://groundedtheoryreview.com/wp-content/uploads/2019/01/02-getting_started_Glaser_GTR_Dec_2018.pdf
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Para captação das famílias foram acessados, inicialmente, dois serviços especializados em oncologia, um na região noroeste e o outro na região central do Estado do Rio Grande do Sul. Com base na relação de mulheres com o perfil para o estudo e seus respectivos contatos, fornecidos pelos serviços, e pela utilização da estratégia bola de neve, as famílias foram localizadas em diversos municípios, extrapolando os limites geográficos atendidos pelos serviços, já que famílias foram contatadas a partir da indicação de outras famílias.1717. Naderifar M, Goli H, Ghaljaie F. Snowball sampling: a purposeful method of sampling in qualitative research. strides Dev Med Educ (Online) [Internet]. 2017 [cited 2022 Feb 25];14(3):e67670. Available from: https://doi.org/10.5812/sdme.67670
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A coleta dos dados ocorreu na residência da mulher com diagnóstico de câncer gestacional ou na casa dos pais, da amiga e da tia. Uma entrevista foi realizada a distância, via Google Meet. A coleta de dados ocorreu entre março de 2018 e março de 2019. Todas as famílias indicadas pelos serviços e pela estratégia bola de neve tiveram tentativas de contato, uma não aceitou participar e com outra não foi possível o contato telefônico.

Os participantes foram doze famílias, totalizando 31 pessoas. Como critérios de inclusão, definiu-se que os participantes deveriam ter idade superior a 18 anos, vínculo familiar (biológico, afetivo ou por afinidade) com a mulher com diagnóstico de câncer gestacional, tê-la acompanhado durante o processo de adoecimento e de tratamento e, no momento da entrevista, estarem presentes, no mínimo, duas pessoas adultas da família. Uma delas poderia ser a própria mulher. A decisão de quais membros da família participariam foi da própria família. Em todas as entrevistas, a mulher com diagnóstico de câncer gestacional foi uma das participantes. Todos os contatos foram realizados após o nascimento do bebê. O que diferenciou as famílias para a composição da amostragem teórica foi o momento do ciclo gravídico-puerperal em que a mulher foi diagnosticada com câncer. Quatro famílias passaram a conviver com o diagnóstico de câncer gestacional quando a mulher estava na primeira metade da gestação; cinco, na segunda metade da gestação; e três, no período pós-parto. Uma família residia no Estado do Paraná, uma no Estado do Rio de Janeiro e as demais, em diferentes regiões do Rio Grande do Sul.

O número de participantes foi definido pela saturação teórica, a partir da evidência da necessidade ou não de incidentes para compor e densificar os conceitos.1515. Glaser B. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. San Francisco, CA(US): The Sociology Press; 1978.

Inicialmente, como parte da entrevista, por formulário, foram coletadas informações sociodemográficas e clínicas da mulher e, juntamente com a família, construído seu genograma. Mediante autorização, a entrevista foi gravada e iniciou com a questão norteadora: “Falem-me acerca da experiência da família de vocês em vivenciar o adoecimento de (nome da mulher) durante a gestação (ou pós-parto)”. Conforme o conteúdo das respostas, outras perguntas iam sendo formuladas e incluídas perguntas circulares no decorrer da entrevista. As perguntas circulares permitiram elucidar as diferenças entre os membros da família referentes a relacionamentos, ideias, crenças, pensamentos em relação ao adoecimento e ao futuro, assim como resgatar a história de vida da família.18-2918. Leahey M, Wright LM. Application of the calgary family assessment and intervention models: reflections on the reciprocity between the personal and the professional. J Fam Nurs [Internet]. 2016 [cited 2021 Apr 22];22(4):450-9. Available from: https://doi.org/10.1177/1074840716667972
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As entrevistas foram conduzidas por um único pesquisador e tiveram tempo entre 90 e 130 minutos.

A análise dos dados seguiu o Método Comparativo Constante da Teoria Fundamentada nos Dados, composto de quatro estágios: comparar incidentes aplicáveis para cada conceito, integrar os conceitos e suas propriedades, delimitar a teoria e escrever a teoria. O processo de codificação foi orientado pela proposta de Glaser1515. Glaser B. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. San Francisco, CA(US): The Sociology Press; 1978. e, portanto, organizada em codificação substantiva (aberta e seletiva) e em codificação teórica.

A codificação substantiva foi realizada concomitante à coleta dos dados, num processo constante de ir e vir aos dados e formular hipóteses, que dedutivamente contribuíram para direcionar a coleta e a análise. Destaca-se que no decorrer do tratamento e análise dos dados foram escritos memos, ferramentas de suporte para o desenvolvimento da Teoria Fundamentada nos Dados, como também diagramas, artifício que permitiu melhor visualização e compreensão das interações entre conceitos, além de auxiliar a chegar ao conceito central e à teoria substantiva.1616. Glaser BG. Getting Started. The Grounded Theory Review [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 27];17(1):3-6. Available from: http://groundedtheoryreview.com/wp-content/uploads/2019/01/02-getting_started_Glaser_GTR_Dec_2018.pdf
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No processo de organização dos dados, utilizou-se um software de apoio, o QSR Nvivo® Pro, versão 12.

A codificação teórica por meio do método comparativo constante mostrou relações presentes no código teórico seis Cs,1515. Glaser B. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. San Francisco, CA(US): The Sociology Press; 1978. o qual propõe que as ligações entre os conceitos no fenômeno estudado ocorrem por meio de causas, contexto, contingências, consequências, covariância e condição. Devido à inter-relação evidenciada nos conceitos que emergiram nesta investigação, foram eleitas quatro: - contexto, causa, condições e consequências.

A validação da teoria substantiva, como também de seu diagrama representativo foram realizadas com especialistas na utilização do método, durante reuniões de grupo de estudos e com famílias participantes do estudo às quais foram apresentados a teoria e o diagrama e solicitado que apontassem se representava a experiência em questão. A partir desses momentos, puderam ser feitos ajustes para a versão final.

A investigação foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa e conduzida tendo em vista os preceitos éticos referentes às pesquisas com seres humanos, conforme a Resolução 466/12.

RESULTADOS

As entrevistas, realizadas com doze famílias, tiveram a participação de doze mulheres que haviam tido diagnóstico de câncer gestacional, seis mães, nove esposos, um cunhado, uma amiga, um pai e uma tia. Duas dessas mulheres eram consideradas curadas e não realizavam mais nenhum tipo de tratamento, as demais encontravam-se em período de remissão e permaneciam com algum tipo de medicação ou ainda em terapia quimio ou radioterápica. A mais jovem tinha, na ocasião do diagnóstico, 26 anos e a mais velha, 41 anos. Quatro bebês nasceram a termo, houve cinco prematuros e em três famílias o diagnóstico aconteceu no pós-parto, quando as crianças estavam com menos de seis meses. Em relação ao estágio do ciclo de vida familiar, na ocasião do diagnóstico, duas famílias encontravam-se no estágio com filhos adolescentes, havendo três famílias com filhos pequenos e sete famílias em formação de casal.33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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Da codificação e análise realizadas organizaram-se seis conceitos: Em “Preparando-se para receber um novo membro na família”, tem-se o contexto em que ocorre a experiência, quando se apresenta a notícia e ocorre a organização da família para receber o novo membro, durante a gestação e após o nascimento da criança. Na sequência, “Sendo surpreendida pela descoberta do câncer na gestação” explicita a causa, o que levou à experiência familiar, pois compreende a etapa de como o diagnóstico aconteceu e as estratégias utilizadas pela família para o enfrentamento da doença. Os conceitos “Sofrendo pelas repercussões do câncer na gestação, no nascimento e na família” e “Reorganizando a dinâmica familiar para o cuidado” são as condições, as estratégias e as ações empreendidas pela família no decorrer da experiência. “Encontrando na gestação e na criança forças para enfrentar o câncer” e “Aprendendo a conviver com as (in)certezas do adoecimento” referem-se às consequências e permitem vislumbrar como se dá a continuidade da vida da família. Esses conceitos inter-relacionados e articulados sustentam e integram o conceito central “Vivendo entre perdas que fragilizam e a chegada da criança que fortalece”, que permite compreender a experiência da família no decorrer da experiência de adoecimento por câncer gestacional.

A teoria substantiva

A relação do conceito central com os demais conceitos é apresentada na Figura 1 e representa a teoria substantiva “Convivendo entre fragilidades e motivações: experiências de famílias com o câncer gestacional”, que explicita os conceitos e suas propriedades em uma condição que evidencia o movimento da família ao longo de sua experiência, com base nas relações de contexto, causa, condições e consequências.1515. Glaser B. Theoretical sensitivity: advances in the methodology of grounded theory. San Francisco, CA(US): The Sociology Press; 1978.

Figura 1-
Diagrama representativo da teoria substantiva convivendo entre fragilidades e motivações: experiências de famílias com o câncer gestacional. Santa Maria/RS, Brasil, 2020.

O conceito central Vivendo entre perdas que fragilizam e a chegada da criança que fortalece expressa a experiência da família frente aos adoecimentos por câncer gestacional, a qual é apreendida a partir das contingências que surgem e colocam esse núcleo em uma situação de dualidade, pois vive um momento que contém em si dois princípios. Um deles, o câncer, definido pelas possibilidades de perdas, e o outro, a gestação e o nascimento, significados como vida, uma vez que trarão um novo membro para a família.

A experiência da família acontece, inicialmente, identificando a gestação como um complicador para enfrentar o adoecimento por câncer, pois, além daquelas preocupações inerentes ao processo de diagnóstico e de tratamento da doença, existe o receio relativo à criança, já que pode sofrer importantes repercussões da terapia oncológica e também ser afastada do convívio materno por curto ou longo tempo. O contrário também acontece, o câncer é representado como um complicador para a vivência da gestação, pois seus desdobramentos distanciam a família das ações, bem como das alegrias e das expectativas experienciadas durante a espera pela criança.

Por outro lado, a gestação é o fator que mobiliza forças para o enfrentamento do câncer e para a luta pela vida da mulher. No decorrer da experiência familiar, a gestação e o nascimento são ressignificados e passam a ocupar também espaço de estímulo para a realização do tratamento, um motivo importante para buscar a cura, desejar a vida, apesar das dificuldades e dos medos decorrentes do adoecimento por câncer gestacional.

As perdas são entendidas tanto na perspectiva de sua efetivação como em sua concretude, gerando desconforto, medo e ansiedade à família. Essas estão para além do que pode representar a morte, possibilidade que parece mais próxima na vivência de uma doença grave como o câncer. Elas se referem à autonomia, à possibilidade de viver a gestação em toda a sua potencialidade e a momentos importantes da maternidade, como cuidar da criança e amamentá-la. A perspectiva do que poderá ser vivido e não vivido ameaça e fragiliza a estabilidade da unidade familiar.

“Preparando-se para receber um novo membro na família” é o contexto em que a experiência da família com o câncer gestacional ocorre e se refere tanto ao período que compreende a gestação, quanto àqueles em que receberam o diagnóstico no pós-parto, ou seja, no estágio do ciclo vital da família de nascimento dos filhos ou filhos pequenos. Considera-se que a família se prepara para receber o bebê durante a gestação lidando com alegrias e medos - organizando a casa, pensando sobre o parto, sobre a chegada da criança e planejando seu cuidado -, bem como continua a preparar-se no pós-parto, na concretude das necessidades que se apresentam. Receber uma criança na família requer uma continuidade da preparação realizada durante a gestação, ou seja, refere-se a um continuum.

É na perspectiva desse contexto, apresentado por um conjunto de significados partilhados socialmente, que a família interage, age e atribui significado à experiência da gestação, do nascimento, dos cuidados com o recém-nascido e, nesse ínterim, também à do câncer gestacional. Nesse processo interacional, cada membro da família, a partir de experiências anteriores e de suas perspectivas de futuro, interpreta, define e age, com vistas a conduzir as situações decorrentes do adoecimento por câncer gestacional.

A experiência da família inicia “sendo surpreendida pela descoberta do câncer na gestação”, o que coloca em evidência a causa do fenômeno estudado e as experiências familiares ao conviver com o câncer gestacional. Aborda-se aquilo que movimenta a família de uma situação vivencial própria do seu ciclo de vida - a chegada dos filhos e a formação de um novo núcleo familiar - para uma outra, inesperada, que é o adoecimento por câncer.

O adoecimento por câncer na família faz com que esse grupo se mobilize para reconhecer os elementos simbólicos presentes na situação e, a partir de uma atividade mental processada individualmente, mas que reflete e se reflete na unidade familiar, busque elementos para interpretar o vivido e para definir a realidade. Em decorrência disso e das repercussões do câncer sentidas na vivência da gestação, a família passa a definir sua experiência como “sofrendo pelas repercussões do câncer na gestação, no nascimento e na família”. Essa é a condição em que a família percebe o adoecimento como situação que a desorganiza e, por isso, tem dificultada a vivência da gestação, da maternidade e dos cuidados relativos à perinatalidade. Assim, diante desse contexto, a família ora se sente otimista e confiante, ora temerosa e insegura.

Em um primeiro momento, existe a dificuldade de compreender como enfrentar um câncer durante a gestação, de transpor-se de uma situação em que medicações de uso habitual eram proibidas por possível ação no feto, para outra, em que há necessidade de prescrição de quimioterápicos e procedimentos cirúrgicos durante o referido período.

O adoecimento, condição que dificulta a vivência da gestação e dos cuidados para com a criança, é visualizado como aquele que conduz a família por um caminho diferente do que estava sendo percorrido a partir da notícia da gestação. Um caminho em que, constantemente, a família vê-se invadida por inquietações em relação ao desfecho desta gestação e passa a perceber dificuldades para que a mulher viva a maternidade que um dia planejou.

A família, ao mesmo tempo em que percebe as dificuldades e os desafios contingentes ao conviver com o câncer gestacional, precisa trazer para o presente o que construiu simbolicamente sobre câncer e sobre a gestação ao longo de sua trajetória. A partir da interação social, torna possível a troca de informações, o que possibilita o alinhamento de ideias, a ressignificação da situação vivida, para poder aceitar, encorajar e apoiar a mulher para a efetivação das orientações e prescrições recebidas em relação à terapêutica oncológica. A partir disso, vão “reorganizando a dinâmica familiar para o cuidado”, movimento em que a família constrói condições para acompanhar e cuidar da mulher durante o tratamento, como também da criança e dos demais filhos, atendendo integralmente suas demandas.

As ações da família, nesse momento da experiência, são construídas e resultam das definições estabelecidas coletivamente, por todos os envolvidos, cada um identificando suas potencialidades para agir colaborativamente nos cuidados necessários e assumir tarefas com base nessas definições, procurando se organizar a partir das necessidades da mulher e da criança e priorizando o bem-estar de ambas. Tais atitudes revelam que o funcionamento da família tem como alicerce tanto sua capacidade de interação, quanto a de se colocar no lugar do outro para agir conforme as necessidades familiares, o que se reflete no dedicar-se a cuidar da mulher, acompanhá-la no tratamento, cuidar do bebê, da casa e das demais crianças. Existe um movimento interno individual e coletivo na família de cooperação na solução dos problemas.

Assim, é com o desenvolver da experiência e pela forma como a família mobiliza sua capacidade de se reequilibrar nas adversidades que se tem, como consequência do vivido, “encontrando na gestação e na criança forças para enfrentar o câncer”. A gestação/criança passa a ter potencial para também ser estímulo ao tratamento e à cura do câncer, já que a mulher e a família desejam e precisam que ela fique bem para cuidar de si e da criança, desempenhando atividades que socialmente são inerentes à maternidade e entendidas pela família como necessárias à criança.

Dessa forma, a gestação e a vinda da criança deixam de ser experienciadas pela família apenas como situações que, agregadas ao câncer, potencializam as dificuldades e os sentimentos negativos em relação ao seu enfrentamento e desfecho. São também percebidas como elementos que motivam e que trazem a possibilidade de aprendizagem e de valorização da vida, da família e de todos os momentos vividos.

Também, como consequência da vivência do câncer gestacional, a família vai “aprendendo a conviver com as (in)certezas do adoecimento”. A partir de interações, vai aprendendo a lidar com as incertezas geradas por preocupações como as possibilidades de recidiva do câncer e do aparecimento de complicações na criança pela exposição intraútero à quimioterapia.

Apesar dos medos, a família ou define que é necessário viver para além do adoecimento, valoriza o que vive a cada dia, projeta um futuro sem a doença, se essa ação proporciona tranquilidade, ou, simplesmente, não pensa no futuro, caso as possibilidades do que ele representa lhe causem medo. Também resgata planos de qualidade de vida e de bem-estar que possam ter sido postergados em períodos de desorganização e de desestabilidade familiar.

Seguir em frente após ou durante o adoecimento por um câncer gestacional requer de cada membro da família importantes reflexões e interações consigo, com a família, com profissionais e com circunstâncias outras que contribuem para desencadear estratégias. Essas, por sua vez, devem contribuir tanto para ampliar e potencializar recursos para manejar a situação, quanto para permitir a continuidade da experiência, seja convivendo com as dificuldades que são consequentes do adoecimento, seja enfrentando as preocupações que permanecem, apesar de sua remissão.

DISCUSSÃO

A incipiência de estudos acerca da experiência de famílias frente ao adoecimento por câncer gestacional é evidente na literatura,99. Hammarberg K, Sullivan E, Javid N, Duncombe G, Halliday L, Boyle F, et al. Health care experiences among women diagnosed with gestational breast câncer. Eur J Cancer Care (Engl) [Internet]. 2017 [cited 2021 Nov 27];27(2):e12682. Available from: https://doi.org/10.1111/ecc.12682
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-1111. Rees S, Young A. The experiences and perceptions of women diagnosed with breast cancer during pregnancy. Asia Pac J Oncol Nurs [Internet]. 2016 [cited 2020 Nov 27];3(3):252-8. Available from: https://doi.org/10.4103/2347-5625.189814
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o que torna o tema atual e relevante para o universo científico e prático. Diante dessa questão, visualiza-se a emergência de discussões que transcendam as perspectivas terapêuticas e de desfechos em relação ao câncer gestacional. Embora existam estudos, principalmente, em âmbito internacional, em que são analisados aspectos emocionais e sociais da mulher que vivencia tal condição, eles pouco se voltam à família e, se o fazem, pontuam-na como contexto e consideram-na como um fenômeno individual.

A compreensão da experiência e a elaboração da teoria substantiva revelam que as famílias são surpreendidas pelo diagnóstico do câncer no momento em que se preparam para receber um novo membro no grupo. Tal situação impacta, de forma expressiva, na maneira como passam a experienciar tanto a gestação/nascimento, quanto o câncer, pois esses eventos, per se, possuem significados contraditórios: vida e morte, respectivamente. Tanto um quanto o outro demandam alterações no seu cotidiano e fazem com que o grupo precise lançar mão de novas estratégias para conviver com o cenário que se apresenta.

Com a transição para a parentalidade, a família torna-se um sistema permanente pela primeira vez, pois, mesmo em situações de divórcio, seus membros continuam conectados pelos laços estabelecidos por seus filhos, os quais também permanecem vinculados às duas famílias de origem. Dessa forma, simbolicamente, é considerada uma “transição-chave” no ciclo vital da família,33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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condição também representada em estudo que objetivou identificar formas de promover a transição da parentalidade na família.2020. Tralão F, Rosado AF, Gil E, Amendoeira J, Ferreira R, Silva M. Family as a promoter of the transition to parenting. Rev UIIPS [Internet]. 2020 [cited 2021 Apr 20];8(1):17-30. Available from: https://doi.org/10.25746/ruiips.v8.i1.19874
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Tal transição representa, ao mesmo tempo, uma das alegrias mais intensas e uma das mudanças mais significativas e estressantes que ocorrerá durante a vida. No entanto, isso não acontece simplesmente porque se recebe um novo membro na família, mas porque esse momento significa importantes mudanças na vida, sejam elas esperadas ou não pelos indivíduos, pela família e suas relações.2121. Soares B, Colossi PM. Transições no ciclo de vida familiar: a perspectiva paterna frente ao processo de transição para a parentalidade. Barβorói [Internet]. 2016 [cited 2021 Apr 22];48:253-76. Available from: https://doi.org/10.17058/barbaroi.v0i48.6942
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Em razão de a parentalidade ser uma transição esperada no ciclo vital da maioria das famílias, os estressores desencadeados por ela são nominados como desenvolvimentais, ou seja, estão relacionados com as fases de desenvolvimento da família.33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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Assim, é neste contexto de alegrias, conflitos, necessidades de autoconhecimento, definições de papéis, de abrir-se e preparar-se para receber um novo membro que as famílias participantes deste estudo receberam a notícia de que a mulher foi diagnosticada com câncer gestacional. Diante disso, passaram também a viver estressores denominados de imprevisíveis,33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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aqueles não esperados, principalmente, em um momento de intensas mudanças na vida familiar, como bem ilustra o nascimento de uma criança.

A presença de uma doença repercute sobremaneira nas relações intrafamiliares, porque a família pode ter dificuldade em dimensionar as mudanças que ocorrerão em seu cotidiano, principalmente, quando não conhece muito sobre a doença,2222. Santos CA, Costa KSR, Dantas MJ, Morais C. Factors influencing the adaptation of families, as systems and clients, to cancer: a scoping review. Rev Enfermagem Referência [Internet]. 2021 [cited 2022 Feb 26];5(8)e20149. Available from: https://doi.org/10.12707/RV20149
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sobre os cuidados a serem realizados e sobre como cuidar e amparar seu familiar doente. Os processos que envolvem o câncer levam a várias adaptações na vida da família, decorrentes de um novo significado atribuído a ela, caracterizado pela inserção de hábitos e rotinas antes pouco praticados ou pouco valorizados em seu cotidiano e/ou pela reavaliação de alguns conceitos pré-existentes.55. Oliveski CC, Girardon-Perlini NMO, Cogo SB, Cordeiro FR, Martins FC, Paz PP. Experience of families facing cancer in palliative care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2021 [cited 2021 Sep 26];30:e20200669. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2020-0669
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A teoria substantiva apresentada neste estudo parte da experiência da família frente ao adoecimento de um de seus membros por câncer gestacional e retrata a vivência familiar como um processo dinâmico e sistêmico no qual todos os integrantes assumem uma situação ativa. A partir de um entendimento interacionista, o modo como a família age diante da situação da gestação/nascimento e câncer é resultado da interação simbólica compartilhada entre as pessoas, em que a interpretação e a definição da situação levam a uma perspectiva que é comum, e, a partir disso, ocorre o alinhamento das ações individuais para que, cooperativamente, todos ajam na resolução do problema.1414. Charon JM. Symbolic interactionism: in introduction, as interpretation, an integration. 10th ed. New Jersey, NJ(US): Pearson Prentice Hall; 2010. 208 p.,1919. Girardon-Perlini NMO, Ângelo M. The experience of rural families in the face of cancer. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [cited 2021 Apr 22];70(3):550-7. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0367
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As famílias participantes deste estudo conseguiram trazer para a discussão tanto experiências anteriores de diagnóstico e de tratamento de um câncer, quanto percepções da situação atual de adoecimento no contexto da gestação e do nascimento da criança. Permitiram-se, em um processo interacional, permeado de medos e de inseguranças, definir a gestação e a criança como motivo para o tratamento e sentido para o viver, e aprenderam a conviver em família com as (in)certezas do adoecimento.

Cada família tem a sua forma de se relacionar com as questões da existência humana, entre elas, a doença e a morte.33. Dupont S. The family life cycle: an essential concept for looking at contemporary families. Ther Fam [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 20];39(2):169-81. Available from: https://doi.org/10.3917/tf.182.0169
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Compreender como a família se organiza para lidar com uma doença como o câncer em determinado momento de seu ciclo vital - e, neste estudo, em especial, no processo de nascimento - pode colaborar para a elaboração de estratégias que possibilitem maior cuidado à família, contribuindo para que ela disponha de recursos para proporcionar suporte adequado a seu membro doente e aos demais integrantes da família envolvidos.

Nesse sentido, o cuidado integral da mulher com câncer na gestação e de sua família representa desafio para a enfermagem e demais componentes da equipe de saúde. Destaca-se a importância de cuidados emocionais frente ao diagnóstico de uma doença potencialmente fatal, em especial, na situação em que a família celebra o início de uma nova vida, como também a garantia de canais contínuos de comunicação e diálogo franco, instrumentalizando essas mulheres para a expressão de seus pensamentos e necessidades de informação.2323. Kozu M, Masujima M, Majima T. Experience of Japanese pregnant women with cancer in decision-making regarding cancer treatment and obstetric care. Jpn J Nurs Sci [Internet]. 2020 [cited 2021 Feb 20];17(2):e12300. Available from: https://doi.org/10.1111/jjns.12300
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Considera-se como limitação do estudo o fato de que não foi possível incluir famílias em que a mulher tenha ido a óbito pelo câncer gestacional, para que se pudesse também compreender essa dimensão da experiência em que enfrentaram, para além do adoecimento, também a morte e a responsabilidade de seguir em frente e cuidar da criança sem a presença materna, o que não foi possível concretizar no presente estudo.

Diante dos achados deste estudo, o reconhecimento por parte da enfermagem das particularidades da experiência de famílias com o câncer gestacional pode contribuir para o delineamento de planos de cuidados que sejam singulares a cada família no enfrentamento dessa condição, em uma perspectiva da longitudinalidade da atenção em saúde. Dessa forma, a enfermagem também tem importante espaço para ocupar na atenção à saúde da mulher, em especial, na prevenção do câncer de mama e colo uterino, no pré-natal, parto e puerpério, bem como no atendimento hospitalar em situação de adoecimento por câncer - cirurgia, quimioterapia e radioterapia -, cuidando não apenas da mulher gestante/puérpera ou daquela com diagnóstico de câncer, mas também da família como uma unidade com demandas específicas e particulares.

O estudo proporciona ainda visibilidade ao grupo estudado, já que, no cotidiano das interações profissionais daqueles que assistem mulheres, gestantes ou puérperas, o câncer geralmente não é tema de discussão e avaliação, porque o consideram distante na dimensão profissional em que atuam. Este estudo traz a temática para o debate e mostra que é uma realidade vivida pelas famílias e, portanto, precisa ser pontuada e levada em consideração na avaliação clínica da gestante no pré-natal e da puérpera, bem como de mulheres em fase reprodutiva que tenham doença oncológica. Diante disso, os resultados deste estudo reforçam o compromisso de contribuir para o avanço no cuidado às famílias em distintos espaços: da assistência, do ensino e da própria pesquisa.

CONCLUSÃO

O diagnóstico do câncer gestacional é definido pela família como uma situação de dualidade, que a coloca entre a vida - nascimento da criança - e a morte, representada pelo câncer. O adoecimento é identificado como um dificultador para a vivência da gestação e nascimento, condições estas, em contrapartida, definidas como desfavoráveis para o enfrentamento do câncer. No decorrer da experiência, a gestação e o nascimento são significados como motivadores para o tratamento. As ações da família e os significados atribuídos à experiência são constituídos a partir das interações consigo mesma e com a rede de apoio.

Emerge a compreensão de que a experiência das famílias frente ao adoecimento de um de seus membros por câncer gestacional é singular, aprendida e transformadora. É singular porque tem relação com as características de cada família e de cada um de seus membros; existem comportamentos que parecem ser padrão nas famílias participantes do estudo, mas a experiência de cada uma é própria. Aprendida, porque as interações que se estabelecem na família e os significados atribuídos às situações fazem com que se aprenda sobre ela, como um grupo, e sobre as potencialidades individuais de seus membros. Transformadora, porque passam a ter diferentes perspectivas sobre o presente e o futuro.

Portanto, a prática da enfermagem, necessariamente, precisa estar centrada nos elementos de positividade presentes nas interações familiares e em seu contexto, ou seja, naquilo que seus membros são capazes de fazer bem, apesar dos desafios que enfrentam. Não se trata de negar as dificuldades, os riscos, as perdas, mas, sim, de reconhecer que, em um mesmo contexto, coexistem perdas, fraquezas, recursos e possibilidades. Da mesma forma, é interessante que os enfermeiros reconheçam que as capacidades das famílias podem ser desenvolvidas ou reforçadas por meio de ações implementadas tanto no âmbito profissional, como no do não profissional. Isso implica reconhecer as competências para tal finalidade, não apenas nos profissionais, mas também na família e na rede de suporte social informal.

Os resultados deste estudo reforçam ainda a necessidade da busca cotidiana pela ampliação do cuidado interdisciplinar à família, e não focalizado somente naquele que adoece.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído da tese - Convivendo entre fragilidades e motivações: experiências de famílias com o câncer gestaciona, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade Federal de Santa Maria, em 2020.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, parecer n. 2.435.385/2017, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 80694517.3.0000.5346.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2021
  • Aceito
    31 Mar 2022
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