Acessibilidade / Reportar erro

Decisão autônoma e o comportamento requerido em um ensaio clínico: estudo com uma população socioeconomicamente vulnerável

Resumos

Estudo quasi-experimental cujo objetivo foi avaliar os efeitos de uma intervenção educativa, baseada no Modelo Health Action Process Approach, para favorecer uma decisão autônoma e a adoção de comportamentos requeridos para participação em um ensaio clínico. Trata-se de um estudo de intervenção, realizado com participantes de um ensaio clínico desenvolvido em Minas Gerais, Brasil. Realizou-se uma intervenção baseada nas variáveis sociocognitivas do Health Action Process Approach, avaliada por um questionário aplicado antes e após a intervenção. A comparação entre os resultados foi realizada pelo Teste de McNemar. A intervenção educativa favoreceu o conhecimento sobre as expectativas dos resultados do ensaio clínico, os riscos de infecção por helmintíases intestinais, o desenvolvimento da habilidade de planejar os comportamentos requeridos pelo ensaio clínico e a confiança em realizá-los, mantê-los e recuperá-los. A intervenção educativa favoreceu a decisão autônoma e a adoção de comportamentos requeridos para a participação no ensaio clínico.

Autonomia pessoal; Ensaio clínico; Vulnerabilidade social; Ciências cognitivas


Quasi-experimental study conducted to assess the effects of an educational intervention based on the Health Action Process Approach Model, in which autonomous decision-making and behaviors required for the participation in a clinical study were favored. This is an intervention study involving participants in a clinical trial conducted in the State of Minas Gerais, Brazil. The intervention was based on the social and cognitive variables of the Health Action Process Approach model and assessed by applying questionnaires before and after intervention. The results were compared using the McNemar test. The educational intervention favored knowledge on both the expectations about the results of the clinical trial and risk of infection by intestinal helminths, development of the ability to plan the behaviors required by the clinical trial and the necessary confidence to lead, keep, and retrieve them. Analysis of the results showed that the educational intervention favored both autonomous decision-making and the behavior required by clinical trials.

Personal autonomy; Trial; Social vulnerability; Cognitive sciences


Estudio cuasi-experimental realizado para evaluar los efectos de una intervención educativa basada en el Modelo Health Action Process Approach, con el fin de proporcionar una decisión autónoma y adoptar comportamientos necesarios a la participación en un ensayo clínico. Se trata de una investigación de intervención realizada con participantes de un ensayo clínico desarrollado en Minas Gerais, Brasil. Hemos llevado a cabo la intervención basada en las variables socio cognitivas de Health Action Process Approach evaluadas por un cuestionario administrado antes y después de la misma. La comparación entre los resultados ha sido realizada con la Prueba de McNemar. La intervención educativa ha favorecido el conocimiento de las expectativas de los resultados del ensayo clínico, los riesgos de infección por helmintos intestinales, el desarrollo de la capacidad de planear los comportamientos requeridos por el ensayo y la confianza en hacerlos, mantenerlos y recuperarlos. La intervención educativa ha favorecido la decisión autónoma y la adopción de los comportamientos necesarios a la participación en el ensayo clínico.

Autonomía personal; Ensayo clínico; Vulnerabilidad social; Ciencias cognitivas


INTRODUÇÃO

Os Ensaios Clínicos Randomizados (ECRs) são considerados um padrão de referência dos métodos de pesquisa em epidemiologia, sendo a melhor fonte de evidência científica disponível para a determinação da eficácia de uma intervenção. Para que seus resultados sejam confiáveis e válidos, essas pesquisas devem ser realizadas sob condições controladas evitando-se, especialmente, vieses. Assim, faz-se imprescindível que essas pesquisas sejam conduzidas de acordo com o método estabelecido em seus protocolos clínicos.11. Escosteguy CC. Tópicos metodológicos e estatísticos em ensaios clínicos controlados randomizados. Arq Bras Cardiol. 1999 Jun; 72(2):139-43.

Considerando que os ECRs possuem como principal objeto de estudo os seres humanos, essas pesquisas não devem ser submetidas apenas aos cânones científicos e metodológicos da ciência experimental, mas também aos de outra instância julgadora, que deve dizer se elas são eticamente sustentáveis,22. Schramm FR, Palacios M, Rego S. O modelo bioético principialista para a análise da moralidade da pesquisa científica envolvendo seres humanos ainda é satisfatório? Ciênc Saúde Coletiva. 2008; 13(2):361-70. - 33. Kottow M. História da ética em pesquisa com seres humanos. In: Diniz D, organizador. Ética em pesquisa: temas globais. Brasília (DF): Ed. Letras Livres; 2008. p. 53-82. orientadas em diretrizes éticas universais para serem conduzidas.44. Helsinque. Associação Médica Mundial - 1964. 18 a. Assembleia Médica Mundial, Helsinki, Finlândia, 1964. [online] [Accessed: 2012 Nov. 29]. Available at: http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm
http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm...

5. CIOMS. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects [online]. Geneve: CIOMS, 2002 [Accessed: 2012 Nov 25]. Available at: http://www.cioms.ch/frame_guidelines_nov_2002.htm
http://www.cioms.ch/frame_guidelines_nov...
- 66. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012: aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 2012. Diante disso, o pesquisador se vê compromissado a atingir dois objetivos na prática científica: produzir conhecimento científico confiável e generalizável, e como garantir o respeito à dignidade humana dos participantes dessas pesquisas.77. Miller FG, Brody H. A critique of clinical equipoise. Therapeutic misconception in the ethics of clinical trials. Hastings Cent Rep. 2003; 33:19-28.

Uma das estratégias para se atingir esse duplo objetivo é o Consentimento Livre e Esclarecido, tendo em vista que nesse processo o potencial participante de pesquisa deve ser esclarecido sobre os riscos e benefícios de uma pesquisa, seus objetivos, procedimentos metodológicos e os direitos do participante de pesquisa.66. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012: aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 2012. Dessa forma, esse processo possui o desígnio de tratar o participante de pesquisa em sua dignidade e garantir o respeito pela autonomia individual do ser humano88. Hardy E, Bento SF, Osis MJD, Hebling EM. Consentimento informado na pesquisa clínica: teoria e prática. Rev Bras Ginecol Obstet. 2002; 24(6):407-12. e, ao mesmo tempo, informar aos participantes de pesquisa sobre os procedimentos estabelecidos no protocolo de pesquisa.

O duplo objetivo do processo de Consentimento Livre e Esclarecido pode, frequentemente, não ser garantido. Os voluntários da pesquisa, usualmente, não compreendem os riscos e benefícios, os objetivos da pesquisa, a confidencialidade dos dados, o direito de retirada do estudo e os procedimentos da investigação clínica.99. Fortun P, West J, Chalkley L, Shonde A, Hawkey C. Recall of informed consent information by healthy volunteers in clinical trials. QJM. 2008; 101(8):625-9.

10. Cheng JD, Hilt J, Koczwara B, Schulman KA, Burnett CB, Gaskin DJ, et al. Impact of quality of life on patient expectations regarding phase I clinical trials. J Clin Oncol. 2000; 18(2):421-8.

11. Sarkar R, Grandin EW, Gladstone BP, Muliyil J, Kang G. Comprehension and recall of informed consent among participating families in a birth cohort study on diarrhoeal disease. Public Health Ethics. 2009; 2(1):37-44.

12. Yoder PS, Konate MK. Obtaining informed consent for HIV testing: the DHS experience in Mali. Calverton (EUA): ORC Macro; 2002.

13. Kaewpoonsri N, Okanura K, Kitayaporn D, Kaewkungwal J, Vijaykadga S, Thamaree S. Factors related to volunteer comprehension of informed consent for a clinical trial. The Southeast Asian J Trop Med Public Health. 2006; 37(5):996-1004.

14. Minnies D, Hawkridge T, Hanekom W, Ehrlich R, London L, Hussey G. Evaluation of the quality of informed consent in a vaccine field trial in a developing country setting. BMC Med Ethics. 2008; 9(15):1-9.

15. Moodley K, Pather M, Myer L. Informed consent and participant perception of influenza vaccine trials in South Africa. J Med Ethics. 2005 April; 31(1):727-32.

16. Mandava A, Pace C, Campbell B, Emanuel E, Grady C. The quality of informed consent: mapping the landscape. A review of empirical data from developing and developed countries. J Med Ethics. 2012; 38(6):356-65.
- 1717. Lobato L, Souza V, Caçador B, Soares AN, Wingester ELC, Gazzinelli MF. Efeitos de intervenção educativa na qualidade ética do consentimento livre e esclarecido. Revista Bioética. 2012; 6(10):479-89. Essa conjuntura torna-se mais grave ao se considerar que o conhecimento dos participantes sobre os procedimentos metodológicos do ensaio clínico pode diminuir em intervalos mensais1818. Chaisson LH, Kass NE, Chengeta B, Mathebula U, Samandari T. Repeated assessments of informed consent comprehension among HIV-infected participants of a three-year clinical trial in Botswana. PLoS ONE. 2011; 6(10):1-10. e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pode não ser adequado ao perfil de escolaridade da população do estudo.1919. Lobato L, Caçador BS, Gazzinelli MF. Legibilidade dos termos de consentimento livre e esclarecido em ensaios clínicos. Rev. Bioética. 2013; 21(3):557-65.

Uma estratégia para atingir o duplo objetivo do Consentimento Livre e Esclarecido consiste na realização de intervenções educativas com os potenciais voluntários de um ensaio clínico.2020. Emanuel E, Flory J. Interventions to improve research participants' understanding in informed consent for research: a systematic review. JAMA. 2004; 292(13):1593-601. As intervenções, no entanto, não consideram determinados aspectos intervenientes na adoção de comportamentos necessários para participação em um ensaio clínico1111. Sarkar R, Grandin EW, Gladstone BP, Muliyil J, Kang G. Comprehension and recall of informed consent among participating families in a birth cohort study on diarrhoeal disease. Public Health Ethics. 2009; 2(1):37-44. , 2121. Gazzinelli MF, Lobato L, Matoso L, Avila R, Marques RC, Brown AS, et al. Health education through analogies: preparation of a community for clinical trials of a vaccine against hookworm in an endemic area of Brazil. PLoS Negl Trop Diseases. . 2010; 4(7):749-62. - 2222. Gazzinelli MF, Souza V, Araújo LHL, Costa RM, Soares NA, Maia CPC. Teatro na educação de crianças e adolescentes participantes de ensaio clínico. Rev Saúde Pública. 2012; 46(6):999-1006. e não empregam metodologias de ensino que ultrapassem o caráter informativo da educação.2020. Emanuel E, Flory J. Interventions to improve research participants' understanding in informed consent for research: a systematic review. JAMA. 2004; 292(13):1593-601.

Dessa forma, uma metodologia educativa que considere, além do conhecimento, os aspectos sociocognitivos e psicossociais do comportamento poderia minimizar a frequente incompreensão dos participantes, favorecendo, ao mesmo tempo, a autonomia na decisão de participar da pesquisa e a adesão quanto aos procedimentos metodológicos da investigação. A hipótese desse estudo é a de que os modelos explanatórios e preditivos de comportamento em saúde, em especial os modelos sociocognitivos, atendem à necessidade de se atuar nesta direção.

O Health Action Process Approach (HAPA)2323. Schwarzer R. Modeling health behavior change: how to predict and modify the adoption and maintenance of health behaviors. Appl Psychol. 2008; 57(1):1-29. - 2424. Schwarzer R. Response some burning issues in research on health behavior change. Appl Psychol. 2008; 57(1):84-93. fornece um modelo explanatório e preditivo útil para diversos comportamentos e intenções relacionados à saúde, incluindo dieta,2525. Scholz U, Ochsner S, Hormug R, Knoll N. Does social support really help to eat a low‐fat diet? Main effects and gender differences of received social support within the health action process approach. Appl Psychol Health Well Being. 2013 Jul;5(2):270-90. higiene alimentar,2626. Chow S, Mullan B. Predicting food hygiene: an investigation of social factors and past behaviour in an extended Model of the Health Action Process Approach. Appetite. 2010; 54(1):126-33. atividade física2727. Scholz U, Schüz B, Ziegelmann JP, Lippke S, Schwarzer R. Beyond behavioural intentions: planning mediates between intentions and physical activity. British J Health Psychology. 2008; 13(3):479-94. e tabagismo.2828. Radtke T, Scholz U, Keller R,Hornung R. Smoking is ok as long as I eat healthily: Compensatory Health Beliefs and their role for intentions and smoking within the Health Action Process Approach. Psychol Health. 2012 Oct;27 Suppl 2:91-107. O HAPA é empregado para predizer desfechos cognitivos e comportamentais, bem como auxiliar na compreensão dos mecanismos de mudança de comportamento em saúde. Este modelo contempla aspectos motivacionais e volitivos como variáveis intervenientes na adoção de um comportamento.

O vanguardismo deste estudo repousa na não utilização do HAPA em estudos realizados no Brasil e em avaliações de comportamento em ensaios clínicos. O que se conhece a respeito de intervenções educativas capazes de favorecer o aumento das variáveis desse modelo e, consequentemente, favorecer um comportamento vinculado à participação em um ensaio clínico pode ser implementado apenas por analogia a outros.2929. Payaprom Y, Bennett P, Alabaster E, Tantipong H. Using the Health Action Process Approach and implementation intentions to increase flu vaccine uptake in high risk thai individuals: a controlled before-after trial. Health Psychology. 2011 Jul; 30(4):492-500.

Neste contexto, o presente estudo possui dois objetivos: analisar os efeitos de uma intervenção educativa, baseada no modelo HAPA, no favorecimento de uma decisão autônoma para participação em um ensaio clínico (I) e na adoção de comportamento requerido nessa investigação clínica (II).

MÉTODO E CASUÍSTICA

Estudo quasi-experimental, com configuração longitudinal e abordagem quantitativa. É parte integrante do estudo "Preparo de comunidade para os estudos clínicos de um produto alimentar que tem qualidades antihelmínticas (ABS-00-01)", cujo objetivo foi o recrutamento de potenciais voluntários para o ensaio clínico "Estudo duplo-cego, randomizado, controlado da tolerabilidade do consumo regular de uma mistura de óleos, em adultos residentes numa área endêmica para helmintos (ABS-00-02)". O objetivo desse ensaio clínico foi avaliar a tolerabilidade de um alimento funcional, com qualidades antihelmínticas, em adultos residentes em uma comunidade endêmica para helmintíases no Nordeste de Minas Gerais, Brasil. Para participação nesse ensaio clínico, os voluntários deveriam assumir um novo comportamento diário: consumir um alimento funcional (Suco Tang(r)) por 42 dias consecutivos. Nesse sentido, esses participantes deveriam estabelecer um plano nesse período, em que o Suco Tang(r) deveria ser consumido no mesmo horário e sem intervalos de dia, apesar das rotinas diárias.

Esses estudos foram desenvolvidos no Vale do Mucuri, região Nordeste de Minas Gerais, Brasil, entre abril de 2010 e março de 2012.

Amostra e local do estudo

A amostra deste estudo foi constituída pelos participantes do estudo ABS-00-01, sendo esse o critério de inclusão estabelecido. O critério de amostragem foi intencional, vista a necessidade de que todos os participantes tivessem assinado o TCLE do estudo ABS-00-01. Buscou-se recrutar todos os participantes da investigação ABS-00-01, considerando a proposta desse grupo de pesquisa de que todos esses voluntários participassem de atividades educativas antes da assinatura do TCLE do ensaio clínico ABS-00-02.

Este estudo foi desenvolvido em quatro comunidades rurais, pertencentes aos municípios de Novo Oriente e Caraí, Vale do Mucuri da região Nordeste de Minas Gerais, Brasil, no período compreendido de julho a agosto de 2010.

Instrumento de medida e coleta de dados

Para avaliar os efeitos da intervenção educativa sobre as variáveis sociocognitivas foi elaborado um questionário estruturado, denominado Questionário Sociocognitivo (QSC). A formulação desse instrumento tomou por base o documento "Risk and health behaviors", sugerido pelo autor do modelo HAPA,3030. Schwarzer R, Sniehotta FK, Lipkke S, Luszczynska A, Scholz U, Schus B, et al. On the assessment and analysis of variables in the health action process approach: conducting an investigation, 2005 [Accessed: 2014 Mai 15]. Available at: http://userpage.fu-berlin.de/~health/hapa.htm
http://userpage.fu-berlin.de/~health/hap...
- 3131. Renner B, Schwarzer R. Risk and health behaviors. Documentation of the scales of the research project: "Risk Appraisal Consequences in Korea" (RACK) . Berlin (GE) : Freie Universität Berlin; 2003. para orientar a criação de escalas psicométricas, que mensurem variáveis sociocognitivas e de comportamentos em saúde. O QSC foi elaborado para avaliar a adoção de comportamentos requeridos no ensaio clínico ABS-00-02, considerando que os existentes abordam, especificamente, mudanças de comportamento concernentes aos temas dieta,2525. Scholz U, Ochsner S, Hormug R, Knoll N. Does social support really help to eat a low‐fat diet? Main effects and gender differences of received social support within the health action process approach. Appl Psychol Health Well Being. 2013 Jul;5(2):270-90. higiene alimentar,2626. Chow S, Mullan B. Predicting food hygiene: an investigation of social factors and past behaviour in an extended Model of the Health Action Process Approach. Appetite. 2010; 54(1):126-33. atividade física2727. Scholz U, Schüz B, Ziegelmann JP, Lippke S, Schwarzer R. Beyond behavioural intentions: planning mediates between intentions and physical activity. British J Health Psychology. 2008; 13(3):479-94. e tabagismo.2828. Radtke T, Scholz U, Keller R,Hornung R. Smoking is ok as long as I eat healthily: Compensatory Health Beliefs and their role for intentions and smoking within the Health Action Process Approach. Psychol Health. 2012 Oct;27 Suppl 2:91-107.

Para a formulação deste instrumento contou-se com a participação de especialistas em escalas psicométricas. O questionário foi aplicado como teste piloto com sujeitos da mesma região e faixa etária dos participantes deste estudo. Após esta etapa, foram realizados os ajustes e as modificações necessárias.

O QSC possuía dois grupos de questões, que mensuravam as características sociodemográficas (Grupo 1) e as sociocognitivas (Grupo 2), a saber: percepção de risco, expectativa com os resultados, autoeficácia de ação, autoeficácia de manutenção, autoeficácia de recuperação e planejamento. As variáveis do Grupo 1 foram coletadas por questões fechadas e as variáveis do Grupo 2 foram mensuradas por meio da Escala Likert de 3 pontos - "discordo", "não concordo nem discordo", "concordo".

No intuito de favorecer o entendimento das questões do QSC, considerou-se a utilização de termos e expressões comuns aos participantes e equivalentes aos conceitos científicos (ex.: "infecção por helmintose" foi substituída por "pegar vermes").

A aplicação do QSC foi realizada em julho de 2010, em dois momentos distintos: antes e após a intervenção educativa, denominados Tempo 0 e Tempo 1, respectivamente. O Tempo 0 ocorreu uma semana após a assinatura do TCLE do estudo ABS-00-01, enquanto o Tempo 1 sucedeu uma semana após a intervenção educativa.

A aplicação do QSC foi realizada por meio de uma entrevista estruturada, realizada no domicílio dos participantes, sem a interferência de terceiros ou ruídos que desviassem a atenção do participante, tendo uma duração de aproximadamente 20 minutos. Os participantes foram informados, previamente, quanto ao objetivo do estudo e a voluntariedade de sua participação.

Intervenção educativa

A intervenção educativa consistiu em duas reuniões, realizadas em julho de 2010 em uma das Escolas Municipais que atendem os municípios de Caraí e Novo Oriente de Minas. Essas reuniões foram conduzidas por profissionais não vinculados à equipe do ensaio clínico ABS-00-02 e instrumentalizadas por dois recursos pedagógicos: o Jogo de Tabuleiro e o Lego(r), sendo cada um utilizado em uma das reuniões.

Na primeira reunião foi realizado o Jogo de Tabuleiro. Este consistiu na utilização de um tabuleiro de ampla dimensão (3m²), pinos coloridos (semelhantes aos pinos utilizados no boliche) de 30 cm de altura, utilizados para representar três diferentes grupos de jogadores, além de cartas que continham perguntas ou situações-problema. Nesse tabuleiro havia uma sequência de casas a serem percorridas, divididas em três ciclos: informações sobre helmintíases intestinais (modos de transmissão, prevenção e sintomatologia), objetivos do ensaio clínico ABS-00-02 e papel dos pesquisadores desse ensaio clínico nas comunidades de Caraí e Novo Oriente de Minas. Em cada ciclo havia 15 cartas que eram sorteadas à medida que um dos pinos avançasse no tabuleiro. Essas cartas continham perguntas sobre as informações específicas desses ciclos. Incluíam também situações-problema que colocavam o participante como protagonista de uma cena fictícia, na qual exercita o poder de decidir e de se reconhecer capaz de agir para a transformação de uma realidade. Essas situações se caracterizavam por possuírem cenário, personagens, circunstâncias, intercorrências próximas da realidade do participante e exigirem que a tomada de decisões fosse exercitada.

Na segunda reunião, utilizou-se o Lego(r), composto por diversas peças volumétricas e encaixáveis, que possibilitam a construção de inúmeras estruturas. O objetivo era montar uma casa semelhante às observadas em Caraí e em Novo Oriente de Minas, com o cumprimento de cinco etapas consecutivas: motivação, primeira tentativa, planejamento, segunda tentativa e conclusão. Os participantes, ao receberem uma casa modelo, foram convidados a montar livremente a sua réplica. Em seguida, receberam fotos desordenadas sobre o processo de montagem da casa modelo para organizá-la em uma sequência lógica. Posteriormente, reiniciaram a montagem da casa, seguindo as etapas por eles sequenciadas, exercitando o processo de planejamento.

Análise estatística

Para assegurar a confiabilidade foi realizada a dupla digitação independente dos dados. Quando houve discordância, o caso assinalado foi conferido no questionário original e corrigido. Os resultados foram tabelados e tratados pelo software Social Package Social Sciences 14.

Na análise descritiva, as variáveis contínuas foram expressas por meio de média aritmética e desvio padrão e as ordinais por frequência relativa e absoluta. A análise univariada foi realizada pelo Teste de McNemar. Considerou-se o nível de 5% para significância estatística.

Considerações éticas

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade George Washington e pelo Centro de Pesquisa René Rachou, assim como o estudo ABS-00-01 e o ensaio clínico ABS-00-02, aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. O estudo também foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (protocolo: 0342020300010) e seguiu todas as diretrizes éticas da Declaração de Helsinque (2008) e da Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil).

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 116 sujeitos, sendo que desse total a maioria era do sexo feminino (70,7%), possuía Ensino Fundamental (62,9%) e residia em comunidades rurais pertencentes ao município de Caraí (73,3%). A média de idade desses participantes era 31,4 anos, com mínimo e máximo de 18 e 45 anos, respectivamente.

Percepção de risco

Observou-se um aumento estatisticamente significativo de participantes que concordaram sobre: a assintomatologia das helmintíases intestinais, a necessidade de mudança de hábitos para evitar a contaminação por essas helmintíases e a maior probabilidade de infecção por essa patologia em residentes de área rural em relação aos de área urbana (p ≤0,05) (Tabela 1).

Tabela 1
Porcentagem de respostas acerca do conhecimento sobre o risco de contaminação por verminoses em Novo Oriente e Caraí no Tempo 0 e no Tempo 1. Minas Gerais, Brasil, 2010

Expectativa com os resultados do ensaio clínico ABS-00-02

Identificou-se um aumento estatisticamente significativo de voluntários que discordaram que a participação no ensaio clínico ABS-00-02 poderia oferecer tratamento médico para outras doenças; e que também poderia protegê-los de futuras infecções contra as helmintíases intestinais (p ≤0,05). Observa-se que, no Tempo 0, praticamente todos os participantes discordaram que o consumo de Tang(r) poderia ocasionar algum efeito adverso, situação semelhante à observada no Tempo 1 (Tabela 2).

Tabela 2
Porcentagem de respostas acerca da expectativa com os resultados do ensaio clínico ABS- 00-02 no Tempo 0 e no Tempo 1. Minas Gerais, Brasil, 2010

Autoeficácia de ação, manutenção e recuperação do ensaio clínico ABS-00-02

Detectou-se um aumento estatisticamente significativo de participantes, que após a intervenção educativa concordaram que estavam dispostos a participar de todas as reuniões com a equipe responsável pelo ensaio clínico (p ≤0,05). Em relação à autoeficácia de manutenção, a comparação antes e após a intervenção revelou um aumento estatisticamente significativo de participantes concordantes que poderiam permanecer na pesquisa, mesmo que seus procedimentos interferissem em sua rotina de trabalho. Em termos da autoeficácia de recuperação, observou-se um aumento estatisticamente significativo de participantes que concordaram que poderiam permanecer no ensaio clínico, mesmo esquecendo-se dos procedimentos estabelecidos no protocolo dessa pesquisa e que poderiam resolver quaisquer dificuldades para permanecer na investigação clínica (p ≤0,05) (Tabela 3).

Tabela 3
Porcentagem de respostas acerca da autoeficácia de adesão, manutenção e recuperação no Tempo 0 e no Tempo 1 do ensaio clínico ABS-00-02. Minas Gerais, Brasil, 2010

Planejamento das atividades propostas no ensaio clínico ABS-00-02

Notou-se um aumento estatisticamente significativo de participantes que afirmaram já saberem planejar quando e como tomar o Suco Tang(r) diariamente, bem como possuírem um plano sobre como alterar sua rotina para consumirem diariamente esse alimento funcional (p ≤0,05) (Tabela 4).

Tabela 4
Porcentagem de respostas acerca do planejamento das atividades propostas no ensaio clínico ABS-00-02, observadas no Tempo 0 e no Tempo 1. Minas Gerais, Brasil, 2010

DISCUSSÃO

A realização de uma intervenção educativa pautada no modelo HAPA foi efetiva em favorecer a decisão autônoma de potenciais voluntários de um ensaio clínico e a validade e confiabilidade dos dados resultantes dessa investigação. Isso porque favoreceu o conhecimento dos participantes sobre as reais expectativas oferecidas por esse ensaio clínico e quanto aos riscos de se infectarem por helmintíases intestinais em sua região de residência. Além disso, promoveu o desenvolvimento da habilidade de planejar os comportamentos que deveriam ser realizados nesse ensaio clínico, a confiança em realizá-los, mantê-los e recuperá-los em caso de recidiva.

A ampliação da percepção do risco de contaminar-se por helmintíases intestinais nas áreas rurais de Novo Oriente de Minas e Caraí pode favorecer a decisão autônoma para participação no ensaio clínico ABS-00-02. A efetividade de uma intervenção educativa em ampliar a percepção de risco também foi observada em estudos intervencionistas realizados na região deste estudo, em que foram testadas intervenções baseadas em estratégias midiáticas e lúdicas.2121. Gazzinelli MF, Lobato L, Matoso L, Avila R, Marques RC, Brown AS, et al. Health education through analogies: preparation of a community for clinical trials of a vaccine against hookworm in an endemic area of Brazil. PLoS Negl Trop Diseases. . 2010; 4(7):749-62. - 2222. Gazzinelli MF, Souza V, Araújo LHL, Costa RM, Soares NA, Maia CPC. Teatro na educação de crianças e adolescentes participantes de ensaio clínico. Rev Saúde Pública. 2012; 46(6):999-1006. A ampliação da percepção acerca da suscetibilidade à infecção por helmintoses intestinais em regiões endêmicas é importante para o reconhecimento da magnitude dessas doenças, considerando que nessa região a helmintíase é vista, via de regra, como uma doença comum e normal.3232. Almeida CH, Marques RC, Reis DC, Melo JMC, Diemert D, Gazzinelli MF. A pesquisa científica na saúde: uma análise sobre a participação de populações vulneráveis. Texto & Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):104-11.

Ao reconhecerem a magnitude da doença, os potenciais voluntários do ensaio clínico ABS-00-02 podem voluntariar-se altruisticamente para esse ensaio clínico, o que reforça o caráter autônomo de suas decisões. Em situação de vulnerabilidade socioeconômica, os participantes apresentam a tendência de se motivar pela escassez de acesso a serviços de saúde.3333. Krosin MT, Klitzman R, Levin B, Cheng J, Ranney ML. Problems in comprehension of informed consent in rural and peri-urban Mali, West Africa. Clin Trials. 2006; 3(3):306-13. - 3434. Mystakidou K, Panagiotou I, Katsaragakis S, Tsilika E, Parpa E. Ethical and practical challenges in implementing informed consentin HIV/AIDS clinical trials in developing or resource-limited countries. J Social Aspects HIV/AIDS. 2009; 6(2):46-57.

O desenvolvimento da habilidade de planejamento também favoreceu a decisão autônoma do participante de pesquisa. De posse dessa habilidade, o potencial participante de pesquisa pode basear sua decisão em análise da viabilidade da inserção das atividades previstas em sua rotina diária.3535. Beauchamp TL, Childress J. Princípios da ética biomédica. São Paulo (SP): Ed. Loyola; 2002.

Essa habilidade desenvolvida também possui efeitos positivos para a validade dos dados produzidos pelo ensaio clínico. Ao adquirir a habilidade de planejar, o participante de pesquisa torna-se capaz de antecipar as possíveis barreiras potencialmente prejudiciais à adesão aos procedimentos determinados no protocolo do ensaio clínico. Em um estudo longitudinal para aderência a atividades de exercício físico, evidenciou-se que o planejamento dessas atividades foi considerado um importante preditor para a adoção desse comportamento. 3636. Barling NR, Lehmann M. Young men's awareness, attitudes and practice of testicular self-examination: a health action process approach. Hum Soc Sci Papers [online]. 1999 [Accessed: 2013 Jan 26]; 4(3):255-63. Available at: http://epublications.bond.edu.au/hss_pubs/43
http://epublications.bond.edu.au/hss_pub...
O achado deste estudo é expressivo ao se considerar que a não adesão ao protocolo estabelecido pelo ensaio clínico pode levar a vieses em seus resultados.11. Escosteguy CC. Tópicos metodológicos e estatísticos em ensaios clínicos controlados randomizados. Arq Bras Cardiol. 1999 Jun; 72(2):139-43.

O aumento da confiança do participante de pesquisa para a ação, manutenção e recuperação do comportamento estabelecido pelo ensaio clínico também possui implicações positivas para a validade dos dados produzidos por essa investigação, considerando que pode favorecer o comportamento de consumir diariamente o suco. Estudos apontam que a autoeficácia de ação e a de manutenção estão associadas positivamente à intenção para adquirir um comportamento e sua manutenção.3636. Barling NR, Lehmann M. Young men's awareness, attitudes and practice of testicular self-examination: a health action process approach. Hum Soc Sci Papers [online]. 1999 [Accessed: 2013 Jan 26]; 4(3):255-63. Available at: http://epublications.bond.edu.au/hss_pubs/43
http://epublications.bond.edu.au/hss_pub...

37. Schwarzer R, Renner B. Social-cognitive predictors of health behavior: action self-effecacy and coping self-effecacy. Health Psychol. 2000 Sep; 19(5):487-95.
- 3838. Wiedemann AU, Lippke S,Reuter T, Ziegelmann JP, Schuz B. The more the better? The number of plans predicts health behaviour change. Applied Psychol: Health and Well Being. 2011; 3(1):87-106. Em relação à autoeficácia de recuperação, sua importância reside no fato de o participante retomar o hábito de ingerir o suco, mesmo após o esquecimento dessa atividade por um dia. A expressividade deste achado reside também na sua forte associação positiva com o comportamento desejado.3636. Barling NR, Lehmann M. Young men's awareness, attitudes and practice of testicular self-examination: a health action process approach. Hum Soc Sci Papers [online]. 1999 [Accessed: 2013 Jan 26]; 4(3):255-63. Available at: http://epublications.bond.edu.au/hss_pubs/43
http://epublications.bond.edu.au/hss_pub...

A ampliação da compreensão sobre as reais expectativas oferecidas pelo ensaio clínico ABS-00-02 pode favorecer a decisão autônoma do participante de pesquisa. A intervenção educativa possuiu expressiva relevância para a decisão autônoma do potencial voluntário da pesquisa, uma vez que contribuiu para amenizar o equívoco de que a participação no ensaio clínico ABS-00-02 poderia imunizá-lo contra futuras infecções por helmintíases. Esse crença equivocada poderia afetar ainda mais a decisão autônoma desses participantes, ao se considerar que os municípios em que será realizado esse ensaio clínico são regiões reconhecidas pela endemia para essas verminoses.3939. Fleming FM, Brooker S, Geiger SM, Caldas IR, Correa-Oliveira R, Hotez PJ, et al. Synergistic associations between hookworm and other helminth species in a rural community in Brazil. Trop Med Int Health. 2006; 11(1):56-64.

A fragilização da crença de que a participação no ensaio clínico ABS-00-02 proporcionaria tratamento para todas as doenças, também foi importante para favorecer a autonomia na decisão dos potenciais voluntários desse ensaio clínico. Ensaios clínicos realizados em países africanos mostraram que voluntários aceitaram participar dessas investigações devido à possibilidade de conseguirem tratamento médico para suas doenças ou pela precariedade do serviço de saúde em sua região.3333. Krosin MT, Klitzman R, Levin B, Cheng J, Ranney ML. Problems in comprehension of informed consent in rural and peri-urban Mali, West Africa. Clin Trials. 2006; 3(3):306-13.

A intervenção educativa, no entanto, pouco afetou a noção da maioria dos participantes de que é possível a ocorrência de efeitos adversos em consequência da ingestão do alimento funcional. A inserção em uma pesquisa sem a compreensão adequada destes riscos pode acarretar em violação dos direitos dos voluntários, na medida em que estão sujeitos a riscos que não foram identificados previamente. Em um estudo de revisão sobre a qualidade do consentimento livre e esclarecido, a compreensão do risco foi baixa tanto em países desenvolvidos quanto nos que estão em desenvolvimento.1616. Mandava A, Pace C, Campbell B, Emanuel E, Grady C. The quality of informed consent: mapping the landscape. A review of empirical data from developing and developed countries. J Med Ethics. 2012; 38(6):356-65. Na Tailândia, em uma pesquisa sobre drogas contra a malária, apenas 6,6% dos participantes lembraram o que foi dito a eles sobre os riscos de sua participação.1313. Kaewpoonsri N, Okanura K, Kitayaporn D, Kaewkungwal J, Vijaykadga S, Thamaree S. Factors related to volunteer comprehension of informed consent for a clinical trial. The Southeast Asian J Trop Med Public Health. 2006; 37(5):996-1004. Do mesmo modo, em uma investigação clínica sobre oncologia, realizada na Suécia, apenas 18% dos participantes compreenderam os riscos da pesquisa.4040. Bergenmar M, Molin C, Wilking N, Brandberg Y. Knowledge and understanding among cancer patients consenting to participate in clinical trials. European J Cancer. 2008; 44(17):2627-33.

Ocorre que, no presente estudo, aliado ao desconhecimento dos participantes dos possíveis efeitos adversos do alimento funcional, há o fato de que a quase totalidade dos participantes, antes mesmo de conhecer o estudo, respondeu positivamente quando indagada se tinha a intenção de participar do ensaio clínico ABS-00-02, mesmo se este se iniciasse na próxima semana. Esta prontidão em aceitar participar foi também encontrada em uma pesquisa realizada com voluntários de uma vacina contra a ancilostomíase, nesta mesma região. Os autores verificaram que estes se dispuseram, de imediato, a fazer parte da pesquisa sem uma reflexão prévia sobre suas implicações.3232. Almeida CH, Marques RC, Reis DC, Melo JMC, Diemert D, Gazzinelli MF. A pesquisa científica na saúde: uma análise sobre a participação de populações vulneráveis. Texto & Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):104-11. No estudo sobre a relação pesquisador-participante em ensaio clínico, que envolve indústrias farmacêuticas, os participantes também se mostraram preparados para assinar o Termo de Consentimento de inserção na pesquisa antes de lê-lo.4141. Fisher JA. Procedural misconceptions and informed consent: insights from empirical research on the clinical trials industry. Kennedy Inst Ethics J. 2006; 16(3):251-68.

Tal prontidão pode ser interpretada considerando-se a tendência da população de acreditar, incondicionalmente, na beneficência da ação médica, na competência do pesquisador, sem falar na dificuldade de ela discernir entre o papel do médico e o do pesquisador. Essas crenças aparecem, neste caso, como mais influentes na decisão de participar de pesquisas clínicas do que na própria compreensão do estudo.

O que se quer defender aqui é que o desejo incondicional de participar da pesquisa pode também ser influenciado por crenças dos participantes, e, consequentemente acarretar a valorização dos prováveis benefícios de um ensaio clínico em detrimento dos possíveis riscos, comprometendo o exercício de uma escolha autônoma.

Assim, durante o processo decisório, o potencial voluntário pode assumir uma posição de passividade ou de abdicação da sua responsabilidade de escolher. Recorre-se aqui ao entendimento de Kant sobre a menoridade autoimposta. Esta condição de menoridade refere-se à incapacidade do sujeito de se servir do próprio entendimento para pensar e agir por si só, sem a orientação do outro.4242. Kant I. O que é esclarecimento? Textos seletos. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes; 2005. p. 63-71.

Em todo processo de formação social, o ser humano em algum momento pode vivenciar a condição de menoridade. Neste caso, ela pode ser considerada natural, pois se confunde com a imaturidade decorrente da falta de esclarecimento. Kant também diz que há uma tendência das instituições sociais de querer manter os seres humanos nesta situação. Para isso, fazem uso, principalmente, do medo e do constrangimento para manter estes sujeitos em menoridade, embora eles já tenham condições de não mais estarem nessa condição.

Neste sentido, potencialmente, todos podem também sair de sua condição de menoridade e esclarecer-se, já que possuem capacidade de pensar, mas nem todos conseguem ultrapassar essa condição. O filósofo é categórico ao dizer o quão confortável é ser menor, pois sempre haverá outro que decida, pense e tenha consciência sobre o que decidir.4242. Kant I. O que é esclarecimento? Textos seletos. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes; 2005. p. 63-71.

É como se, ao dizer incondicionalmente sim à pesquisa, o voluntário, em sua condição de menoridade, remetesse ao pesquisador o ato de decidir pelo melhor para a sua saúde. Neste caso, o participante abre mão da sua autonomia, sobrepondo seu desejo imperativo de participar da pesquisa. Uma forma de permitir o exercício da autonomia e indicar uma saída para a maioridade é a educação emancipatória. Nesta concepção de educação, a autonomia é um processo de decisão e de humanização que se constrói na experiência de inúmeras decisões que vão sendo tomadas ao longo da existência.4343. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 39ª ed. São Paulo (SP): Paz e Terra; 1996.

Admite-se que, ao se integrar aos tradicionais preditores - percepção de risco, expectativa com os resultados, autoeficácia e planejamento -, o componente do exercício da autonomia, pode-se conseguir desvincular a decisão do participante de quaisquer crenças que estejam impedindo o esclarecimento necessário, a sua saída da comodidade em direção ao pensamento próprio, não estabelecido, que vem de si mesmo.

O estudo, embora contribua para demonstrar a pertinência do uso do modelo HAPA no contexto de ensaios clínicos, tendo em vista que assegura o duplo objetivo do TCLE - produzir conhecimento científico confiável e generalizável, bem como garantir o respeito à dignidade humana dos participantes dessas pesquisas - apresenta limitações. Tais limitações se devem ao fato de ter sido desenvolvido em municípios distintos, embora com características socioeconômicas semelhantes. Além disto, devem-se considerar as possíveis variáveis modificadoras de efeito, tendo em vista o intervalo entre o Tempo 0 e o Tempo 1, em relação às avaliações das variáveis sociocognitivas.

Para os profissionais de saúde que atuam em pesquisas clínicas, sobretudo médicos e enfermeiros, este estudo sinaliza para a importância de associar intervenções educativas ao processo de consentimento livre e esclarecido, não limitando este processo apenas à assinatura do TCLE. Ao se considerar o crescente número de ensaios clínicos no Brasil e na América Latina, a realização de intervenções educativas com potenciais participantes de ensaios clínicos surge como um campo de atuação para a enfermagem, uma vez que historicamente a profissão está intimamente ligada à prática de atividades educativas e ao cuidado integral do ser humano. Além disso, para o desenvolvimento de intervenções de educação em saúde que fazem parte do trabalho do enfermeiro, este profissional pode adotar como referência as estratégias educativas empregadas neste estudo, caracterizadas por ultrapassarem o caráter meramente informativo e hegemônico nas práticas de educação em saúde.

REFERENCES

  • 1
    Escosteguy CC. Tópicos metodológicos e estatísticos em ensaios clínicos controlados randomizados. Arq Bras Cardiol. 1999 Jun; 72(2):139-43.
  • 2
    Schramm FR, Palacios M, Rego S. O modelo bioético principialista para a análise da moralidade da pesquisa científica envolvendo seres humanos ainda é satisfatório? Ciênc Saúde Coletiva. 2008; 13(2):361-70.
  • 3
    Kottow M. História da ética em pesquisa com seres humanos. In: Diniz D, organizador. Ética em pesquisa: temas globais. Brasília (DF): Ed. Letras Livres; 2008. p. 53-82.
  • 4
    Helsinque. Associação Médica Mundial - 1964. 18 a. Assembleia Médica Mundial, Helsinki, Finlândia, 1964. [online] [Accessed: 2012 Nov. 29]. Available at: http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm
    » http://www.ufrgs.br/bioetica/helsin1.htm
  • 5
    CIOMS. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects [online]. Geneve: CIOMS, 2002 [Accessed: 2012 Nov 25]. Available at: http://www.cioms.ch/frame_guidelines_nov_2002.htm
    » http://www.cioms.ch/frame_guidelines_nov_2002.htm
  • 6
    Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução n. 466 de 12 de dezembro de 2012: aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 2012.
  • 7
    Miller FG, Brody H. A critique of clinical equipoise. Therapeutic misconception in the ethics of clinical trials. Hastings Cent Rep. 2003; 33:19-28.
  • 8
    Hardy E, Bento SF, Osis MJD, Hebling EM. Consentimento informado na pesquisa clínica: teoria e prática. Rev Bras Ginecol Obstet. 2002; 24(6):407-12.
  • 9
    Fortun P, West J, Chalkley L, Shonde A, Hawkey C. Recall of informed consent information by healthy volunteers in clinical trials. QJM. 2008; 101(8):625-9.
  • 10
    Cheng JD, Hilt J, Koczwara B, Schulman KA, Burnett CB, Gaskin DJ, et al. Impact of quality of life on patient expectations regarding phase I clinical trials. J Clin Oncol. 2000; 18(2):421-8.
  • 11
    Sarkar R, Grandin EW, Gladstone BP, Muliyil J, Kang G. Comprehension and recall of informed consent among participating families in a birth cohort study on diarrhoeal disease. Public Health Ethics. 2009; 2(1):37-44.
  • 12
    Yoder PS, Konate MK. Obtaining informed consent for HIV testing: the DHS experience in Mali. Calverton (EUA): ORC Macro; 2002.
  • 13
    Kaewpoonsri N, Okanura K, Kitayaporn D, Kaewkungwal J, Vijaykadga S, Thamaree S. Factors related to volunteer comprehension of informed consent for a clinical trial. The Southeast Asian J Trop Med Public Health. 2006; 37(5):996-1004.
  • 14
    Minnies D, Hawkridge T, Hanekom W, Ehrlich R, London L, Hussey G. Evaluation of the quality of informed consent in a vaccine field trial in a developing country setting. BMC Med Ethics. 2008; 9(15):1-9.
  • 15
    Moodley K, Pather M, Myer L. Informed consent and participant perception of influenza vaccine trials in South Africa. J Med Ethics. 2005 April; 31(1):727-32.
  • 16
    Mandava A, Pace C, Campbell B, Emanuel E, Grady C. The quality of informed consent: mapping the landscape. A review of empirical data from developing and developed countries. J Med Ethics. 2012; 38(6):356-65.
  • 17
    Lobato L, Souza V, Caçador B, Soares AN, Wingester ELC, Gazzinelli MF. Efeitos de intervenção educativa na qualidade ética do consentimento livre e esclarecido. Revista Bioética. 2012; 6(10):479-89.
  • 18
    Chaisson LH, Kass NE, Chengeta B, Mathebula U, Samandari T. Repeated assessments of informed consent comprehension among HIV-infected participants of a three-year clinical trial in Botswana. PLoS ONE. 2011; 6(10):1-10.
  • 19
    Lobato L, Caçador BS, Gazzinelli MF. Legibilidade dos termos de consentimento livre e esclarecido em ensaios clínicos. Rev. Bioética. 2013; 21(3):557-65.
  • 20
    Emanuel E, Flory J. Interventions to improve research participants' understanding in informed consent for research: a systematic review. JAMA. 2004; 292(13):1593-601.
  • 21
    Gazzinelli MF, Lobato L, Matoso L, Avila R, Marques RC, Brown AS, et al. Health education through analogies: preparation of a community for clinical trials of a vaccine against hookworm in an endemic area of Brazil. PLoS Negl Trop Diseases. . 2010; 4(7):749-62.
  • 22
    Gazzinelli MF, Souza V, Araújo LHL, Costa RM, Soares NA, Maia CPC. Teatro na educação de crianças e adolescentes participantes de ensaio clínico. Rev Saúde Pública. 2012; 46(6):999-1006.
  • 23
    Schwarzer R. Modeling health behavior change: how to predict and modify the adoption and maintenance of health behaviors. Appl Psychol. 2008; 57(1):1-29.
  • 24
    Schwarzer R. Response some burning issues in research on health behavior change. Appl Psychol. 2008; 57(1):84-93.
  • 25
    Scholz U, Ochsner S, Hormug R, Knoll N. Does social support really help to eat a low‐fat diet? Main effects and gender differences of received social support within the health action process approach. Appl Psychol Health Well Being. 2013 Jul;5(2):270-90.
  • 26
    Chow S, Mullan B. Predicting food hygiene: an investigation of social factors and past behaviour in an extended Model of the Health Action Process Approach. Appetite. 2010; 54(1):126-33.
  • 27
    Scholz U, Schüz B, Ziegelmann JP, Lippke S, Schwarzer R. Beyond behavioural intentions: planning mediates between intentions and physical activity. British J Health Psychology. 2008; 13(3):479-94.
  • 28
    Radtke T, Scholz U, Keller R,Hornung R. Smoking is ok as long as I eat healthily: Compensatory Health Beliefs and their role for intentions and smoking within the Health Action Process Approach. Psychol Health. 2012 Oct;27 Suppl 2:91-107.
  • 29
    Payaprom Y, Bennett P, Alabaster E, Tantipong H. Using the Health Action Process Approach and implementation intentions to increase flu vaccine uptake in high risk thai individuals: a controlled before-after trial. Health Psychology. 2011 Jul; 30(4):492-500.
  • 30
    Schwarzer R, Sniehotta FK, Lipkke S, Luszczynska A, Scholz U, Schus B, et al. On the assessment and analysis of variables in the health action process approach: conducting an investigation, 2005 [Accessed: 2014 Mai 15]. Available at: http://userpage.fu-berlin.de/~health/hapa.htm
    » http://userpage.fu-berlin.de/~health/hapa.htm
  • 31
    Renner B, Schwarzer R. Risk and health behaviors. Documentation of the scales of the research project: "Risk Appraisal Consequences in Korea" (RACK) . Berlin (GE) : Freie Universität Berlin; 2003.
  • 32
    Almeida CH, Marques RC, Reis DC, Melo JMC, Diemert D, Gazzinelli MF. A pesquisa científica na saúde: uma análise sobre a participação de populações vulneráveis. Texto & Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):104-11.
  • 33
    Krosin MT, Klitzman R, Levin B, Cheng J, Ranney ML. Problems in comprehension of informed consent in rural and peri-urban Mali, West Africa. Clin Trials. 2006; 3(3):306-13.
  • 34
    Mystakidou K, Panagiotou I, Katsaragakis S, Tsilika E, Parpa E. Ethical and practical challenges in implementing informed consentin HIV/AIDS clinical trials in developing or resource-limited countries. J Social Aspects HIV/AIDS. 2009; 6(2):46-57.
  • 35
    Beauchamp TL, Childress J. Princípios da ética biomédica. São Paulo (SP): Ed. Loyola; 2002.
  • 36
    Barling NR, Lehmann M. Young men's awareness, attitudes and practice of testicular self-examination: a health action process approach. Hum Soc Sci Papers [online]. 1999 [Accessed: 2013 Jan 26]; 4(3):255-63. Available at: http://epublications.bond.edu.au/hss_pubs/43
    » http://epublications.bond.edu.au/hss_pubs/43
  • 37
    Schwarzer R, Renner B. Social-cognitive predictors of health behavior: action self-effecacy and coping self-effecacy. Health Psychol. 2000 Sep; 19(5):487-95.
  • 38
    Wiedemann AU, Lippke S,Reuter T, Ziegelmann JP, Schuz B. The more the better? The number of plans predicts health behaviour change. Applied Psychol: Health and Well Being. 2011; 3(1):87-106.
  • 39
    Fleming FM, Brooker S, Geiger SM, Caldas IR, Correa-Oliveira R, Hotez PJ, et al. Synergistic associations between hookworm and other helminth species in a rural community in Brazil. Trop Med Int Health. 2006; 11(1):56-64.
  • 40
    Bergenmar M, Molin C, Wilking N, Brandberg Y. Knowledge and understanding among cancer patients consenting to participate in clinical trials. European J Cancer. 2008; 44(17):2627-33.
  • 41
    Fisher JA. Procedural misconceptions and informed consent: insights from empirical research on the clinical trials industry. Kennedy Inst Ethics J. 2006; 16(3):251-68.
  • 42
    Kant I. O que é esclarecimento? Textos seletos. 3ª ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes; 2005. p. 63-71.
  • 43
    Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 39ª ed. São Paulo (SP): Paz e Terra; 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2013
  • Aceito
    13 Maio 2013
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: textoecontexto@contato.ufsc.br