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VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: PERCEPÇÕES DAS EQUIPES DA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE

RESUMO

Objetivo:

compreender como os profissionais das equipes de atenção primária percebem a violência contra a pessoa idosa.

Método:

estudo qualitativo, realizado a partir da realização de quatro grupos focais com um total de 30 profissionais da atenção básica, no município de Marília-SP. A coleta de dados foi realizada de novembro a dezembro de 2018. Para a análise dos dados, adotou-se a Hermenêutica-Dialética.

Resultados:

revelou que os profissionais suspeitam e identificam casos de violência física, financeira e principalmente a negligência, sendo o principal autor da agressão um membro da família. Reconhecem que os idosos se encontram em contextos de vida complexos e muitas situações estão além de suas capacidades de intervenção. Expressaram medo e insegurança na realização da denúncia e desconhecem o papel dos demais serviços, tornando a abordagem ainda mais complexa.

Conclusão:

os profissionais vivenciam situações de violência contra o idoso no seu cotidiano; no entanto, barreiras como o medo de realizar a denúncia, o desconhecimento dos papéis de diferentes profissionais e a falta de efetividade da rede de atenção dificultam as intervenções necessárias.

DESCRITORES:
Idoso; Envelhecimento; Violência; Atenção Primária à Saúde; Saúde da família

ABSTRACT

Objective:

to understand how the professionals working in primary care teams perceive violence against the older adult.

Method:

a qualitative study, carried out from the conduction of four focus groups with a total of 30 basic care professionals, in the municipality of Marília, São Paulo. Data collection was carried out from November to December 2018. For data analysis, Hermeneutics-Dialectics was adopted.

Results:

it was revealed that the professionals suspect and identify cases of physical and financial violence and mainly negligence, with the main perpetrator of the aggression being a family member. They recognize that older adults are in complex life contexts and that many situations are beyond their capacity for intervention. They expressed fear and insecurity in reporting the cases and are unaware of the role of the other services, making the approach even more complex.

Conclusion:

the professionals experience situations of violence against the older adult in their daily lives; however, barriers such as fear of reporting the cases, ignorance of the roles of different professionals, and the inefficiency of the care network hinder the necessary interventions.

DESCRIPTORS:
Aged; Aging; Violence; Primary Health Care; Family health

RESUMEN

Objetivo:

comprender cómo los profesionales de los equipos de atención básica de la salud perciben la violencia contra adultos mayores.

Método:

estudio cualitativo, realizado a partir de la creación de cuatro grupos focales, con un total de 30 profesionales de la atención primaria de la salud, en el municipio de Marília-SP. La recolección de datos se realizó entre noviembre y diciembre de 2018. Para el análisis, se adoptó la Hermenéutica-Dialéctica.

Resultados:

se revela que los profesionales sospechan y corroboran casos de violencia física, financiera y, principalmente, casos de negligencia, advirtiéndose que el principal autor de la agresión es un miembro de la familia. Se reconoce que los adultos mayores se hallan en contextos de vida complejos y que muchas situaciones van más allá de su capacidad de intervención. Los profesionales expresan miedo e inseguridad en la realización de denuncias y desconocen el rol de otras instituciones, hecho que torna el abordaje aún más complejo.

Conclusión:

los profesionales atraviesan situaciones de violencia contra el adulto mayor en su cotidianeidad, sin embargo, barreras como el miedo a realizar la denuncia, o el desconocimiento sobre el rol de otros profesionales, y la ineficacia de la red de atención dificultan las intervenciones necesarias.

DESCRIPTORES:
Adulto Mayor; Envejecimiento; Violencia; Atención básica de salud; Salud de la familia

INTRODUÇÃO

O envelhecimento populacional demanda estudos que visem contribuir para uma velhice mais saudável e de qualidade, essencialmente por meio de mudanças na visão sociocultural em relação a essa parcela da população. Diante do crescimento acelerado de idosos no cenário ocidental contemporâneo, verifica-se que este público vem sofrendo violências de diferentes tipos, uma vez que a sociedade não se encontra preparada para lidar com as questões demandadas por essas pessoas.11. Bittencourt P, Silva MA. Violência verbal contra idosos: palavras e silêncio marcados pela dominação. Rev Pretextos [Internet]. 2018 [cited 2020 Jan 31];3(6):622-40. Available from: http://periodicos.pucminas.br/index.php/pretextos/article/view/15938
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A violência contra o idoso pode ser definida como qualquer ação, única ou repetida, ou, ainda, a omissão de providência apropriada, ocorrida dentro de uma relação em que haja expectativa de confiança, que acarrete prejuízo ou aflição a uma pessoa idosa.22. World Health Organization. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva (CH): WHO; 2002.

A Rede Internacional de Prevenção contra Maus-Tratos em Idosos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) elencaram sete tipos de violências: abuso físico ou maus-tratos físicos, em que há uso de força física provocando ferimentos, dor, incapacidades ou morte; abuso ou maus-tratos psicológicos, que corresponde a agressões verbais ou gestuais; a negligência, na qual ocorre a recusa ou omissão por parte do responsável pelo cuidado do idoso; a autonegligência, quando ocorre a negação ou fracasso em prover o cuidado adequado a si; o abandono, que consiste na ausência de assistência por parte do responsável; o abuso financeiro, em que ocorre a exploração não consentida ou ilegal de recursos do idoso; e o abuso sexual.33. Oliveira KSM, Carvalho FPB, Oliveira LC Simpson CA, Silva FTL, Martins AGC. Violence against the elderly: the conceptions of nursing professionals regarding detection and prevention. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 May 15];39:e57462. Available from: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.57462
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As situações de violência resultam em danos na capacidade funcional dos idosos, tentativas de suicídio, violação de direitos humanos, diminuição da qualidade de vida e elevadas taxas de mortalidade22. World Health Organization. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva (CH): WHO; 2002.,44. Cavalcante FG, Minayo MCS. Estudo qualitativo sobre tentativas e ideações suicidas com 60 pessoas idosas brasileiras. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2015 [cited 2020 May 15];20(6):1655-66. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.06462015
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. Apesar de configurar como um grave problema de saúde pública, a violência contra o idoso ainda é uma condição camuflada pela sociedade e pouco valorizada no contexto da atenção à saúde44. Cavalcante FG, Minayo MCS. Estudo qualitativo sobre tentativas e ideações suicidas com 60 pessoas idosas brasileiras. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2015 [cited 2020 May 15];20(6):1655-66. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.06462015
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Os idosos constituem um grupo populacional com alta vulnerabilidade aos maus-tratos, sobretudo quando são mulheres, solteiras, com idade avançada, com baixa escolaridade, possuem alguma dependência física ou psicológica e vivem com filhos, noras e netos55. Castro VC, Rissardo LK, Carreira L. Violência contra os idosos brasileiros: uma análise das internações hospitalares. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 May 27];71(Suppl 2):777-85. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0139
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. Por razões como vergonha, intimidação, culpa e medo de retaliação ou de institucionalização, os idosos não denunciam o abuso sofrido66. Castle N, Ferguson-Rome JC, Teresi JA. Elder abuse in residential long-term care: an update to the 2003 National Research Council report. J Appl Gerontol [Internet]. 2015 [cited 2020 Feb 3];34(4):407-43. Available from: https://doi.org/10.1177/0733464813492583
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-77. Câmara dos Deputados (BR). Brasil 2050: desafios de uma nação que envelhece [Internet]. Brasília, DF(BR); 2017 [cited 2017 Feb 23]. Available from: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ce/noticias/brasil-2050-desafios-de-uma-nacao-que-envelhece
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. Em um estudo realizado no Estado de Minas gerais, que analisou os casos notificados de violência contra mulher, observou que a letalidade foi maior entre mulheres com mais de 80 anos88. Andrade JO, Castro SS, Heitor SFD, Andrade WP, Atihe CC. Indicadores da violência contra a mulher provenientes das notificações dos serviços de saúde de Minas Gerais-Brasil. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2020 June 02];25(3):e2880015. Available from: https://doi.org/10.1590/0104-07072016002880015.
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As dificuldades que os idosos enfrentam diante da situação de violência decorrem essencialmente da falta de conhecimentos dos seus direitos ou da falta de acesso a uma delegacia para realizar a denúncia. Além disso, a maioria dos idosos tem dificuldades em tomar a decisão de denunciar a agressão ou o abuso sofrido, pois muitas vezes o agressor é um membro da própria família e/ou o único cuidador e, em outros casos, ele não se reconhece como vítima de violência99. Silva CFS, Dias CMSB. Violência contra idosos na família: motivações, sentimentos e necessidades do agressor. Psicol Cienc Prof [internet]. 2016 [cited 2020 Feb 5];36(3):637-52. Available from: https:/doi.org/10.1590/1982-3703001462014
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No Brasil, dada a importância da temática, ao ser promulgado o Estatuto do Idoso, tornou-se obrigatória a comunicação de suspeita ou confirmação de todas as formas de violência pelos profissionais de saúde, além de se propor o Plano de Enfrentamento da Violência Contra a Pessoa Idosa1010. Camacho ACLF, Alves RR. Mistreatment against the elderly in the nursing perspective: an integrative review. J Nurs UFPE online [Internet]. 2015 [cited 2020 Feb 5];9(Suppl 2): 927-35. Available from: https://doi.org/10.5205/reuol.6391-62431-2-ed.0902supl201520
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No tocante à saúde, a Atenção Básica (AB) se destaca na assistência à população idosa. Inserida no primeiro nível na rede de atenção, assume o papel primordial na implementação das ações de saúde para essa população e na coordenação do fluxo de usuários idosos no sistema de saúde, com destaque para situações de violência, visto que desenvolve as atividades em um território adscrito, na lógica da vigilância em saúde1111. Coelho LP, Motta LB, Caldas CP. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis [Internet]. 2018 [cited 2020 May 18];8(4):e280404. https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280404
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Os profissionais que atuam em proximidade com a população, aqui com destaque para a enfermagem, possuem um papel importante na divulgação e discussão deste problema na comunidade. Cabe lembrar que toda visita do idoso a um serviço de saúde trata-se de uma oportunidade de detectar tais situações1010. Camacho ACLF, Alves RR. Mistreatment against the elderly in the nursing perspective: an integrative review. J Nurs UFPE online [Internet]. 2015 [cited 2020 Feb 5];9(Suppl 2): 927-35. Available from: https://doi.org/10.5205/reuol.6391-62431-2-ed.0902supl201520
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. Para tanto, recomenda-se a observação atenta do comportamento, dos gestos e das expressões faciais do idoso, o que permitirá a identificação de situações de risco e a elaboração de estratégias de enfrentamento adequadas.

No entanto, muitas vezes não querem se envolver no caso, alegando que preferem esperar que o próprio idoso tome iniciativa de denunciar, a realização de visitas domiciliares ou a tomada de atitude de algum colega profissional1111. Coelho LP, Motta LB, Caldas CP. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis [Internet]. 2018 [cited 2020 May 18];8(4):e280404. https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280404
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. Assim, preparar os profissionais de saúde para o acolhimento ao idoso vitimizado por agressões é um desafio que deve ser concretizado, pois é fundamental que o profissional de saúde saiba identificar o ocorrido, buscando soluções para o problema de maus-tratos e negligência1010. Camacho ACLF, Alves RR. Mistreatment against the elderly in the nursing perspective: an integrative review. J Nurs UFPE online [Internet]. 2015 [cited 2020 Feb 5];9(Suppl 2): 927-35. Available from: https://doi.org/10.5205/reuol.6391-62431-2-ed.0902supl201520
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Frente à relevância da violência contra a pessoa idosa, enquanto um problema de saúde pública e da equipe da atenção básica no enfrentamento dele, o presente estudo propõe-se a compreender como os profissionais das equipes de atenção primária percebem a violência contra a pessoa idosa.

MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa por meio de realização de grupo focal com profissionais da rede de atenção básica de um município de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Para a análise dos dados, optou-se por adotar a postura metodológica do pensamento Hermenêutico-Dialético (HD). Este artigo insere-se dentro de um projeto maior intitulado Idoso vítima de violência: a interface da assistência à saúde, jurídica e social para o desenvolvimento de intervenções.

A rede básica de saúde do município é constituída por 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 36 Unidades de Saúde da Família (USF). Para os atendimentos de urgência e emergência, o município conta com dois pronto-atendimentos, uma UPA, um Hospital de Clínicas e um hospital Materno-Infantil1212. Oliveira KSM, Carvalho FPB, Oliveira LC, Simpson CA, Silva FTL, Martins AGC. Violence against the elderly: the conceptions of nursing professionals regarding detection and prevention. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Feb 5];39:e57462. Available from: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.57462
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A coleta nas unidades foi realizada no período de novembro a dezembro de 2018 em três equipes de USF e uma UBS, as quais foram selecionadas a partir dos dados do geoprocessamento, considerando-se aquelas localizadas em regiões com maior proporção de registros de pessoas idosas que sofreram violência. Para realizar o grupo focal, inicialmente foi feita visita presencial com a responsável de cada unidade de saúde; ela explicou o estudo à equipe e verificou o interesse de participar da atividade.

Foram realizados quatro grupos focais, sendo que dois deles contaram com nove participantes e os demais com seis, totalizando 30 participantes. Os horários para sua realização foram definidos previamente de acordo com a disponibilidade de cada equipe, sendo que a totalidade dos grupos focais ocorreu no horário de uma reunião de equipe, que é realizada semanalmente em todas as unidades da Estratégia Saúde da Família do município.

Entre os participantes do estudo, quatro são auxiliares de enfermagem, 13 agentes comunitários de saúde, dois técnicos de enfermagem, um auxiliar de serviços gerais, dois dentistas, três enfermeiros, dois médicos, um agente de combate às endemias e dois auxiliares de escritório. A participação dos profissionais se deu de forma voluntária e, desta forma, não foi possível garantir a participação de todas as categorias profissionais em todas as unidades.

O critério de inclusão envolveu profissionais que estavam trabalhando no dia do grupo focal. O critério de exclusão era: estar afastado do serviço por qualquer motivo no período estabelecido com a equipe.

É válido ressaltar que, embora os auxiliares de serviços gerais e de escritório não se enquadrem no quadro de profissionais de saúde, eles compõem as equipes de atenção básica e também participam das reuniões da equipe, contribuindo com informações e reflexões a partir de suas vivências cotidianas.

O desenvolvimento dos grupos focais ocorreu em salas da própria unidade de saúde e contou com a participação de uma moderadora e duas observadoras, que são as próprias pesquisadoras. Foi responsabilidade da moderadora intermediar a discussão e utilizar estratégias que favorecessem o debate. Às observadoras coube a função de anotar a dinâmica do grupo e auxiliar a moderadora.

Buscando promover a reflexão entre os profissionais, no início do grupo focal foram apresentadas imagens de pessoas idosas vítimas de violência. Na sequência, foi utilizado um roteiro com as seguintes questões: como você se sentiu ao olhar essas imagens? Vocês já se depararam com situações semelhantes no seu trabalho? Se sim, como foi? O que foi feito? Qual a melhor forma de assistir um paciente idoso vítima de violência?

Ao final de todos os grupos, uma das observadoras realizou a leitura da síntese da discussão de forma a validar os dados coletados com os participantes. Posteriormente, os dados coletados foram validados por três pesquisadoras experientes.

Para a análise dos dados, optou-se por adotar a postura metodológica do pensamento Hermenêutico-Dialético, o qual analisa os dados fornecidos pelas narrativas dos sujeitos em busca dos significados subjacentes a elas, pela compreensão do sentido dos fatos que compuseram a dinâmica do processo vivenciado. Permite aproximação da realidade com a crença de que atingir a total realidade não é possível, uma vez que são os pontos de vistas e determinados fatores sociais que definem o real, não existindo um consenso1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Cidades. Marília (SP). Panorama [cited 2020 Feb 7]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/v4/brasil/sp/marilia/panorama
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Para interpretação dos dados na ótica da hermenêutica-dialética, é apresentado um caminho para o pesquisador buscar a compreensão do texto nele mesmo, considerando o depoimento como resultado de um processo social e de conhecimento, resultante de múltiplas determinações, mas com significado específico1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Cidades. Marília (SP). Panorama [cited 2020 Feb 7]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/v4/brasil/sp/marilia/panorama
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A análise de dados seguiu as etapas de organização, a classificação e a interpretação dos dados1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13th ed. São Paulo, Sp(BR): Hucitec; 2013.. Essa análise deve respeitar a temporalidade e a maturidade existente nas falas, e utilizar a Hermenêutica e a Dialética para compreensão dos dados.1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13th ed. São Paulo, Sp(BR): Hucitec; 2013.

A pesquisa levou em conta os preceitos éticos propostos na Resolução 466/2012 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Todos consentiram a sua participação após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para a preservação do anonimato, foram utilizados os códigos G1, G2, G3 e G4 e P1 a P9.

RESULTADOS

Os participantes encontram-se na faixa de idade entre 27 a 60 anos, sendo 26 do sexo feminino e quatro do sexo masculino, com tempo de atuação profissional de três meses a 17 anos. Os sentidos subjacentes às falas dos profissionais revelaram quatro eixos analíticos: vivência de diferentes tipos de violência; complexidade do contexto de vida; ameaça e insegurança na realização da denúncia; desarticulação intersetorial.

Vivência de diferentes tipos de violência

Os profissionais conseguem identificar ou suspeitar de diferentes tipos de violência, como a física, a negligência e a financeira, tendo como principal agressor o próprio familiar. Compreendem que os idosos se sentem abandonados e solitários e, mesmo assim, não querem fazer a denúncia. Os profissionais, por sua vez, experimentam o sentimento de indignação e tristeza.

É, teve um dia que eu fui fazer uma visita. [...] A mulher, ela ficava o tempo todo em uma poltrona na sala em frente à porta, aí tinha uma mesinha com um copo de água, uns comprimidos soltos na mesa, um prato de comida destampado com mosca, um copo com café. Ficava o tempo todo sem trocar a fralda e tinha muita mosca verde rodeando ela. Aquilo não sai da minha memória! É uma situação de desprezo, de abandono, de pouco caso (G2, P4).

Eu descobri assim que eles precisavam manter o pai lá, que no caso seria o filho e a nora, manter o pai lá por conta que o pai recebia o benefício. Eles usavam o benefício para pagar aluguel, para as coisas assim (G1, P5).

A agente que vai na visita domiciliar percebe que às vezes eles estão em um local diferente, mais no fundo da casa, um lugar pouco acessível aos cômodos dos familiares, mas também o idoso não quer denunciar nada, então é um caso muito difícil assim, dos tipos de violência é o que a gente consegue menos identificar claramente [...] (G3, P4).

Normalmente, o que a gente tem mais assim, que eu já peguei aqui ou em outras unidades, é filhos que já são de 40 anos de idade, não saem de dentro de casa, que são usuários de drogas, e aí acabam agredindo os pais, por essa questão de dinheiro para as drogas, então isso a gente tem bastante (G1,P6).

Complexidade do contexto de vida

Muitos idosos vivem em situações complexas, tanto sociais como familiares. Nesse contexto, alguns profissionais se depararam com idosos que são cuidados por pessoas também fragilizadas, como é o caso de filhos usuários de drogas. Além disso, esse cuidado representa uma sobrecarga aos familiares, especialmente aqueles de menor poder aquisitivo e que necessitam trabalhar. A sobrecarga de trabalho também pode gerar uma situação de violência.

Acho que um idoso não poderia viver sob os cuidados de uma pessoa assim que está em situação também fragilizada, como esse filho usuário de droga [...]. Tem que ser um familiar assim, pelo menos com uma cabeça assim, saudável? Assim, mesmo que tenha dificuldade, mas uma pessoa saudável (G1, P2).

Hoje as famílias veem idosos como um peso, quem pode pagar, resolve fácil. Mas até que ponto pagar é bom? Lógico, resolve, ajuda, mas e aquela coisa de família, de pessoal, de amor, não importa mais? Quer dizer, foi útil pra mim os pais até um determinado momento da vida, agora não preciso mais deles, eu tenho a minha vida, a minha família, o meu trabalho, que é muito mais importante do que eles [...] (G3, P8).

A dificuldade é principalmente na classe mais baixa, porque o rico ele consegue pagar uma enfermeira, alguém para ficar lá o dia todo. O com menor poder aquisitivo não consegue, então é aquela pessoa que fica realmente mais jogada, fica ali o dia inteiro na cama, se alguém vier dar comida, dá, se não vier […] porque a pessoa tem que trabalhar também, ela não pode deixar de trabalhar [...] (G1, P6).

A filha agrediu o pai e a mãe. Ela é usuária e ela agrediu o pai e a mãe, tanto verbalmente, quanto fisicamente […] (G4, P4).

Ameaça e insegurança na realização da denúncia

Referindo-se à insegurança na realização da denúncia, os profissionais de saúde relatam que são ameaçados constantemente na área de abrangência, pois trabalham há muito tempo na unidade e muitos deles também moram nessa mesma área de abrangência. Além disso, os profissionais relataram insegurança em realizar as denúncias a outros serviços, pois esses acabam relatando às famílias quem realizou as denúncias. Assim, acreditam que os agressores sempre vão culpabilizar e se revoltar contra o profissional, deixando-o em condição de risco, especialmente quando realiza as visitas domiciliares. Por isso, muitos optam por realizar a denúncia apenas por meio do disque 100, que fica no anonimato. Algumas falas tratam desse conceito:

[...] A única coisa que a gente ficou sabendo que elas vieram aqui 'Ó, eles foram lá na minha casa e falaram que vocês fizeram denúncia! Que o médico fez a denúncia!'. 'Eu vou acabar com o carro dele!', 'Deixa ele na hora que ele estiver fazendo visita lá perto da minha casa'. Então tipo assim, a gente ficou um mês, vai acontecer alguma coisa? Não vai? [...] E a gente não teve um retorno do Conselho [...] (G4, P4).

[...] O problema é a unidade estar naquele lugar, os funcionários são fixos, sabe onde os funcionários moram. Dependendo da família que for, leva de um jeito, mas a gente lida às vezes com algumas áreas, não aqui somente, mas na cidade toda, algumas áreas de risco, então dependendo você cria um problema absurdo com o profissional que sai do âmbito profissional e entra já no pessoal, e aí é complicado (G2, P3).

Tem uns que até xingam a gente, utilizam palavras de baixo calão, ainda falam que a gente não tem o que fazer. 'Vem aqui cuidar da nossa vida, elas não têm o que fazer?', ainda xingam a gente! (G1, P8).

Com o Disque 100 já a gente se sente segura, não vai ter problema nenhum em estar denunciando [...] (G4, P3).

Desarticulação intersetorial

As relações desarticuladas na intersetorialidade, a falta de comunicação e de resolução dos casos são percebidas pela equipe limitando a qualidade do serviço. Manifestam que os profissionais da equipe não recebem contrarreferência dos casos que já foram denunciados e, assim, os usuários e equipe de saúde ficam sem respostas, dificultando a resolução das necessidades de saúde.

Mas acho que também falta um pouco do apoio intersetorial, que a gente não tem totalmente assim respaldo; existe, mas a gente não tem tão próxima, entendeu? Então, a saúde faz isso, a assistência social, o CREAS e o CRAS, o CRAS nem tanto, que já a gente consegue, mas dependendo da unidade que você, mais o CREAS, faz outra coisa e os dois não se conversam, não se juntam (G2, P6).

[...] Porque hoje nem contra referência de nada a gente recebe, então a gente realmente fica sem saber o que aconteceu e, muitas vezes, acho que até nesse caso que você relatou, o próprio paciente fica sem saber, o que resolveu, eles ficam esperando da gente uma resposta [...] (G4, P3).

O desconhecimento sobre as ações possíveis frente à situação de violência e do papel de outros serviços que também são responsáveis pelo atendimento ao idoso vítima de violência são dificuldades que os profissionais enfrentam, uma vez que ficam sem saber como agir. Além disso, existe a compreensão de que muitas situações não estão no rol de sua competência, não se sentem suficientemente amparados para a abordagem por se tratar de situação complexa, sentem desânimo frente às mesmas e sugerem uma rede de apoio.

É, ou então de repente de saber até onde cada um pode ir. O que o CREAS realmente pode fazer, até onde eles podem ir? Será que eles sabem o que nós podemos fazer? Até onde nós podemos ir? O que cabe à saúde, o que cabe à assistência social? (G4, P2).

Sei lá, se tivesse um outro tipo de rede de apoio, […] só o posto intervir? Você tem que ter uma rede de apoio, tem que ter uma estrutura, mudar isso (G3, P8).

Igual essa denúncia que chegou ontem para mim desse pai, aí eu até li lá, falei veio para mim, agora não sei, eles querem que eu encaminhe o rapaz para o CAPES? [...] Como que vai fazer ele ir? Não tem como! O pai já faz acompanhamento médico, então assim, o que eu vou fazer ali? Não é uma parte que vai caber para enfermagem mais (G1, P6).

Porque no começo também, parece que tudo que a gente encontra de problema a gente quer trazer e ter uma solução, tudo vai ser resolvido, então a gente desanima (G1, P5).

DISCUSSÃO

Frente ao intenso dinamismo e constante transformação no contexto de saúde pública, há a necessidade da compreensão aprofundada da realidade em que essas ações são desenvolvidas. Para tanto, pauta-se na reflexão e indagação, com vistas a depreender essencialmente a contradição existente nesse processo, pois o contexto atual é de incertezas em relação à aparência dos fatos e às formas de agir e interagir frente aos mesmos. O presente estudo, portanto, foi pautado pela hermenêutica dialética com vistas a compreender a percepção dos profissionais da equipe de atenção básica envolvendo os casos de violência contra a pessoa idosa.

Neste contexto, depreende-se que os profissionais da atenção básica percebem a existência de diferentes tipos de violência, sendo bastante comum o abandono dentro da própria residência, onde o idoso é colocado em um quarto apartado da casa, e permanece em condições precárias de sobrevivência, faltando, inclusive, higiene e alimentação.

Associada aos diferentes tipos de violência, encontra-se a psicológica, sendo ainda considerada como um dos tipos de mais difícil identificação, uma vez que não fora reconhecida nas falas dos participantes do estudo.

Os idosos vítimas de violência psicológica sofrem de dor emocional, angústia e aflição. O agressor utiliza-se de ações que envolvem controlar, denegrir, privar, intimidar, ameaçar, manipular, culpar, assediar, enfurecer, infantilizar e mostrar indiferença1515. Oliveira MM. Metodologia Interativa: um processo hermenêutico dialético. Interfaces [Internet]. 2001 [cited 2020 Feb 7];1(1):67-78. Available from: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/interfaces/article/viewFile/6284/4372
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Muitos profissionais afirmam que conseguem identificar os casos de violência, estando entre os mais comuns o abandono e a negligência; porém, preferem que as denúncias sejam realizadas pela família ou pelo próprio idoso, pois a equipe tem medo da reação dos agressores1111. Coelho LP, Motta LB, Caldas CP. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis [Internet]. 2018 [cited 2020 May 18];8(4):e280404. https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280404
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. Acrescenta-se que os profissionais acreditam que a falta de apoio e de comunicação entre os setores responsáveis pelo atendimento do idoso vítima de violência prejudica diretamente o decorrer de todo processo de atenção a essas pessoas1616. Brownell P. A reflection on gender issues in elder abuse research: Brazil and Portugal. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2016 [cited 2020 Feb 15];21(11):3323-30. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-812320152111.23142016
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A violência contra a pessoa idosa se trata de uma prática contraditoriamente humana, presente na construção das relações interpessoais, que revela-se principalmente quando o idoso não percebe que está sendo negligenciado pelo próprio familiar ou cuidador. Modifica-se, assim, a regra presente e se impõem novas ordens e representações sociais, que tornam os idosos ainda mais vulneráreis 1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [Internet]. Cidades. Marília (SP). Panorama [cited 2020 Feb 7]. Available from: https://cidades.ibge.gov.br/v4/brasil/sp/marilia/panorama
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, por meio de relações de poder que influenciam comportamentos e permeiam as interações entre os grupos e as classes1717. Alcântara MCM, Souza RR, Caetano LGA, Louzada CF, Silveira RP, Lima JO, et al. Subnotificação e invisibilidade da violência contra a mulher. Rev Med Minas Gerais [Internet]. 2016 [cited 2020 Feb 15];26(Suppl 8):S313-17. Available from: http://rmmg.org/artigo/detalhes/2170
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Entretanto, embora existam políticas destinadas a essa parcela da população, cada vez mais são encontrados idosos abandonados por suas próprias famílias e com acesso precário à saúde, especialmente quando contam com uma condição socioeconômica desfavorável.

Resgata-se que, frente aos dispositivos institucionais, o idoso recebe o status de cidadão, o que contempla o princípio da dignidade da pessoa humana e da proteção integral. Sequencialmente, outras legislações como Código Civil Brasileiro - Lei n. 10.406/2002, e as leis específicas - Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), Lei n. 8.842/1994 (Política Nacional do Idoso) e a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/1993), foram elaboradas com a finalidade de clarificar e direcionar a atenção que o idoso necessita no campo social, familiar e nas questões referentes ao atendimento à saúde1818. Foucault M. Microfísica do poder. 13th ed. Rio de Janeiro, RJ(BR): Graal; 1998..

Ainda, por afetividades ou dependência de cuidados, o idoso se submete a situações deploráveis que podem levar até mesmo à morte. Vale ainda ressaltar que a situação de violência também é agravada quando o idoso é cuidado por outro idoso ou pessoas que possuem transtornos mentais1919. Viegas CMAR, Barros MF. Abandono afetivo inverso: o abandono do idoso e a violação do dever de cuidado por parte da prole. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFRGS [Internet]. 2016 [cited 2020 Feb 16];11(3):168-201. Available from: https://doi.org/10.22456/2317-8558.66610
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Nas falas dos profissionais ressalta-se que eles se sentem receosos, ameaçados e amedrontados quando buscam identificar e comunicar os casos de violência contra a pessoa idosa, especialmente por vivenciarem aquelas situações que ocorrem dentro do domicílio e que contam com os próprios familiares como agressores. Frente a tal situação, muitas vezes não sabem como agir e evitam dar continuidade ao caso.

Por estar relacionado a um contexto em que o agressor pertence à família da vítima, além de estar vinculado ao tráfico ou uso de drogas ilícitas, tanto a pessoa idosa quanto os profissionais de saúde sentem-se com medo e coagidos a não denunciar ou interferir no caso de violência, tornando o assunto ainda mais complexo.

Nesta perspectiva, a violência é concebida pelos profissionais como um problema inerente à família e a notificação é percebida como uma possibilidade de desestruturação, tanto da ordem familiar como nas relações de vínculo entre equipe de saúde e usuários2020. Hohendorff JV, Paz AP, Freitas CPPde, Lawrenz P, Habigzang LF. Caracterização da violência contra idosos a partir de casos notificados por profissionais da saúde. Rev SPAGESP [Internet]. 2018 [cited 2020 May 27];19(2):64-80. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1677-29702018000200006&lng=en
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. Ao refletir sobre a violência contra a pessoa idosa vivenciada pelos profissionais da rede básica de atenção à saúde, observa-se inversão dos valores da vida, o que pode ser contraposto com a humanização das práticas, visto que a mesma evoca, na ação humana, valores morais como: respeito, compaixão, solidariedade, empatia e bondade. Coaduna-se, assim, o fato de que, mesmo cientes da relevância do campo da subjetividade para a melhoria do cuidado em saúde, permanece entre os profissionais o pensamento de que não é possível fazer da forma que deveria ser2121. Egry EY, Apostolico MR, Morais TCP. Reporting child violence, health care flows and work process of primary health care professionals. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2018 [cited 2020 Feb 16];23(1):83-92. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018231.22062017
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Descumpre-se, assim, o papel profissional e do exercício da cidadania, especialmente considerando que a atenção básica trabalha na lógica da vigilância em saúde das pessoas, das famílias e da comunidade. Na aparência objetiva de realidade, essa condição pode se manifestar como contraditória; entretanto, na lógica dialética, a contradição se manifesta como uma condição a ser superada, com vistas ao contínuo processo de desenvolvimento2222. Rios IC. Humanização: a essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2009 [cited 2020 Feb 12];33(2):253-61. Available from: https://doi.org/10.1590/S0100-55022009000200013
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. Compreende-se que a violência é uma situação difícil para a equipe de atenção básica, pois esses profissionais não sentem segurança para tal enfrentamento, uma vez que a formação fora centrada no modelo biomédico e, na maioria dos acontecimentos, não conseguem lidar com a singularidade do idoso e do agressor2323. Hegel GWF. Fenomenologia do espírito. 2nd ed. Petrópolis, RJ(BR): Vozes; 1992.. Além disso, mesmo que consigam identificar o ocorrido, faltam serviços de apoio e proteção da pessoa idosa, o que prejudica a consolidação da denúncia1111. Coelho LP, Motta LB, Caldas CP. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis [Internet]. 2018 [cited 2020 May 18];8(4):e280404. https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280404
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Nesta perspectiva, visa-se o acesso a uma rede de cuidados para tratar do tema de forma multidisciplinar e intersetorial1111. Coelho LP, Motta LB, Caldas CP. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis [Internet]. 2018 [cited 2020 May 18];8(4):e280404. https://doi.org/10.1590/s0103-73312018280404
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. Para resolução dos casos de violência de forma contundente, faz-se necessária a intersetorialidade, pois o apoio ocorre tanto para a família e vítima quanto para o profissional, o qual consegue desempenhar sua função de forma adequada e amparada por se tratar de uma operação integrada2424. Schenker M, Costa DH. Advances and challenges of health care of the elderly population with chronic diseases in Primary Health care. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2019 [cited 2020 Feb 16];24(4):1369-80. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232018244.01222019
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Entretanto, no presente estudo os profissionais relatam a dificuldade em não haver uma contrarreferência eficaz dos casos notificados, além de presenciarem a solicitação dos usuários para a resolução dos problemas que foram encaminhados para outros setores ou níveis de atenção.

Por mais que exista no Brasil a proposta de aproximar o serviço de saúde da comunidade por meio do vínculo e longitudinalidade, falhas no processo de referência e contrarreferência interrompem as relações de confiança e a continuidade do cuidado2525. Carmo ME, Guizardi FL. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad Saúde Pública [Internet]. 2018 [cited 2020 Jan 31];34(3):e00101417. Available from: https://doi.org/10.1590/0102-311x00101417
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Há o entendimento de que, tanto na esfera federal como estadual e municipal, as ações de combate à violência encontram obstáculos na operacionalização da rede de atenção à saúde, a qual carece de serviços assistenciais em quantidade e organização, recursos financeiros e pessoas capacitadas para lidar com as situações de violência. Avanços nessa direção demandam a compreensão ampliada do fenômeno, uma gestão envolvida com o estabelecimento dos fluxos e definição de estratégias diversificadas de reconhecimento e enfrentamento2626. Neto FJ, Bracciali DAL, Correa EM. Comunicação entre médicos a partir da referência e contra referência: potencialidade e fragilidade. Atas - Investigação Qualitativa em Saúde [Internet]. 2018 [cited 2020 Feb 18];2:101-10. Available from: https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2018/article/view/1769
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No campo intersetorial as dificuldades perpassam por questões ainda mais complexas, uma vez que os profissionais que atuam na atenção básica à saúde até mesmo desconhecem o papel de outros setores em relação à violência contra a pessoa idosa.

Visando preencher a lacuna na impulsão da assistência ao idoso, em 2002 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, com a finalidade de fortalecer a articulação intersetorial e a participação social dos atores relevantes para a proteção social aos idosos. Porém, em análise da atuação desse conselho, no período de 2002 a 2016, em relação à proposição de estratégias de implementação e de acompanhamento da Política Nacional do Idoso (PNI) e do Estatuto do Idoso no país, foram constatadas dificuldades na relação entre os atores sociais e pouco envolvimento de alguns órgãos governamentais2727. Egry EY, Apostólico MR, Albuquerque LM, Gessner R, Fonseca RMGS. Understanding child neglect in a gender context: a study performed in a Brazilian city. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2015 [cited 2020 Feb 18];49(4):556-63. Available from: https://doi.org/10.1590/S0080-623420150000400004
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-2828. Brasil. Decreto no 9.893, de 27 de junho de 2019. Dispõe sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa [Internet]. Diário Oficial da União. 2019 Jun 27 [cited 2020 Feb 20]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9893.htm#art
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Portanto, este estudo limita-se à visão de profissionais de saúde atuantes na atenção primária, sendo realizado em quatro unidades de saúde de um único município. Mesmo assim, acredita-se que os dados aqui apresentados contam com o potencial de produzir reflexões frente à realidade que se revela multideterminada, contraditória e complexa.

Ademais, sugere-se que sejam realizados novos estudos com foco mais abrangente a respeito das percepções e vivências dos profissionais de diferentes áreas de atuação, além de aprofundar as concepções dos familiares relacionados aos casos de violência, a fim de que se possa obter dados para uma compreensão mais ampla sobre a temática, visando a redefinição dos papéis dos diferentes serviços e a efetividade do fluxo de atendimento.

CONCLUSÃO

Referindo-se à percepção dos profissionais da atenção básica acerca da violência contra a pessoa idosa, o presente estudo revelou que eles suspeitam e identificam casos de violência física, financeira e principalmente a negligência, sendo o principal autor da agressão um membro da família. Reconhecem que as vítimas não realizam a denúncia e demonstram sentimentos de abandono e de solidão. Pelo fato de residirem na mesma área de abrangência ou trabalharem na unidade por muito tempo, sentem-se ameaçados pelos agressores, levando à insegurança, o que dificulta a realização da denúncia e de outras intervenções necessárias. Tais fatos levam ao sentimento de indignação e tristeza entre os profissionais e a realizarem as denúncias por meio do Disque 100, o qual possibilita o anonimato.

A desarticulação, falta de comunicação e de contrarreferência entre os serviços responsáveis pela atenção ao idoso vítima de violência, bem como o desconhecimento do papel dos demais serviços limitam a resolução dos casos e, consequentemente, a qualidade do serviço.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído de um projeto maior - Idoso vítima de violência: a interface da assistência à saúde, jurídica e social para o desenvolvimento de intervenções. Universidade do Estado de São Paulo Júlio de Mesquita Filho, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Botucatu, Brasil, 2020.
  • FINANCIAMENTO

    Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) processo nº 2017/17562-2.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília, parecer n. 2.253.887, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 73664417.1.0000.5413.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2020
  • Aceito
    15 Jun 2020
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