CONCEPÇÕES E EXPRESSÕES DA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PROCESSO FORMATIVO DA RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL

RESUMO

Objetivo:

analisar a concepção e manifestação da promoção da saúde no processo formativo da residência multiprofissional em saúde.

Método:

estudo qualitativo ancorado na Teoria das Representações Sociais, realizado a partir da coleta de dados documental e da entrevista com 13 profissionais do colegiado docente de cinco programas de residências multiprofissionais em saúde do Ceará, no período de março a julho de 2017. Para análise dos dados realizou-se a análise lexical através do software ALCESTE, com ênfase na significância e na correlação dos termos, através do teste qui-quadrado.

Resultados:

o processo formativo da residência multiprofissional aponta para a superação do modelo biomédico, sendo a promoção da saúde compreendida como estratégia e objetivo da formação, uma vez que este se expressa de forma transversal em todo o processo formativo, por meio de atividades com ênfase, entre outros, na territorialização, planejamento em saúde, trabalho em equipe, educação popular, participação e controle social.

Conclusão:

há um alinhamento entre a concepção adotada e expressa de promoção da saúde no processo formativo da residência profissional, representando avanços nas práticas e formação em saúde.

DESCRITORES:
Competência profissional; Internato não médico; Promoção da saúde; Atenção primária à saúde; Educação continuada; Educação

ABSTRACT

Objective:

to analyze the conception and manifestation of health promotion in the training process of the multi-professional residency in health.

Method:

a qualitative study anchored in the Theory of Social Representations, carried out from the collection of documentary data and from interviews with 13 professionals from the faculty of five multi-professional residency programs in health in Ceará, from March to July 2017. For data analysis, lexical analysis was performed using the ALCESTE software, with emphasis on the significance and correlation of the terms, through the chi-square test.

Results:

the training process of the multi-professional residency points to the overcoming of the biomedical model, with health promotion being understood as a training strategy and objective, since it is expressed in a transversal manner in the entire training process, by means of activities with emphasis, among others, in territorialization, health planning, teamwork, popular education, participation and social control.

Conclusion:

there is an alignment between the adopted and expressed conception of health promotion in the training process of the professional residency, representing advances in health practices and training.

DESCRIPTORS:
Professional skills; Non-medical internship; Health promotion; Primary health care; Continuing education; Schooling

RESUMEN

Objetivo:

analizar la concepción y manifestación de la promoción de la salud en el proceso de formación de la residencia multiprofesional en salud.

Método:

estudio cualitativo anclado en la Teoría de las Representaciones Sociales, realizado a partir de la recolección de datos documentales y de la entrevista a 13 profesionales del equipo docente de cinco programas de residencia multiprofesional en salud en Ceará, de marzo a julio de 2017. Para el análisis de datos, se realizó el estudio lexical mediante el software ALCESTE, con énfasis en la significancia y correlación de términos, utilizando la prueba de chi-cuadrado.

Resultados:

el proceso de formación de la residencia multiprofesional apunta a la superación del modelo biomédico, entendida la promoción de la salud como estrategia y meta de la formación, dado que se expresa de manera transversal en todo el proceso formativo, a través de actividades con énfasis, entre otros aspectos, en la territorialización, planificación sanitaria, trabajo en equipo, educación popular, participación y control social.

Conclusión:

se advierte una alineación entre el concepto adoptado y expresado de promoción de la salud en el proceso de formación de la residencia profesional, lo que implica avances en las prácticas y en la formación en salud.

DESCRIPTORES:
Competencia profesional; Internado no médico; Promoción de la salud; Primeros auxilios; Educación permanente; Educación

INTRODUÇÃO

Transformar a formação e a atenção à saúde consiste em movimentos simultâneos e complementares que levam à conformação de um sistema integrado, socialmente organizado, que opere de forma contínua e proativa e que seja capaz de responder efetivamente e com qualidade as necessidades de saúde da população.1

No contexto brasileiro, a reorientação da atenção à saúde condiz com a adoção da promoção da saúde enquanto processo transformador, capaz de contribuir para a melhoria das condições de saúde e de vida e enfrentar o modelo biologicista dominante, agregando as ciências sociais na problematização e compreensão das condições objetivas e subjetivas de produção dos sujeitos.2

Frente a sua construção histórica, com características próprias à época e contexto cultural, econômico e político, a promoção da saúde tem apresentado diferentes nuances ao longo dos anos. Na contemporaneidade, adota-se a concepção de promoção da saúde enquanto um campo teórico e prático com amplo espectro de atuação, traduzido em ações que buscam identificar e enfrentar os macrodeterminantes do processo saúde-doença-cuidado, bem como prover a transformação destes em favor da saúde.3 Esta concepção hodierna inclui os sujeitos com e sem evidências clínicas em seu rol de atenção, defendendo que estes podem ser fortalecidos com o objetivo de alcançar um maior potencial de saúde, sensações de bem-estar e desenvolvimento individual e da coletividade.4

Neste sentido, confirma-se a necessidade de promover processos formativos voltados à promoção da saúde, de modo a qualificar profissionais mais humanistas, críticos e generalistas, com potencial para mudar os processos de trabalho, ampliando o compromisso e o desenvolvimento de habilidades condizentes com o aperfeiçoamento humano para o Sistema Único de Saúde.2

Sob este prisma, a iniciativa da Residência Multiprofissional em Saúde tem como pressuposto uma formação pautada na educação permanente em saúde que substitui a lógica biologicista por um modo de pensar e conhecer capaz de apreender os objetos em seu contexto e sua complexidade. É a partir dessa formação que se espera que o residente, futuro trabalhador do Sistema Único de Saúde, seja um profissional empenhado na transformação das práticas de saúde, promovendo inovações e proporcionando atenção e gestão qualificada e integrada, a fim de consolidar o sistema de saúde.5

Nesta lógica, o processo formativo da Residência Multiprofissional em Saúde atende as mudanças na prática, no pensar e agir em saúde, ultrapassando os limites disciplinares, gerando espaços de articulação serviço-ensino-comunidade conectados com a vida e contexto social, permitindo a aplicação de conhecimentos teóricos, desenvolvimento de habilidades e atitudes e construção de valores juntos às experiências práticas. Na Residência Multiprofissional em Saúde aprende-se com o que está além da teoria e enfrenta-se a dicotomia entre teoria e prática, ainda presente nas instituições formadoras.6

Considerando a intencionalidade da Residência Multiprofissional em Saúde em formar profissionais capazes de atuar sobre a multicausalidade dos processos saúde-doença-cuidado e dos determinantes da saúde, faz-se fundamental compreender como a promoção da saúde tem sido concebida e expressa neste tipo de formação.

Desta forma, objetivou-se analisar a concepção e manifestação da promoção da saúde no processo formativo da residência multiprofissional em saúde.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório e abordagem qualitativa, com estratégia de triangulação concomitante, ancorado na Teoria das Representações Sociais em sua abordagem estrutural.7 A adoção desta teoria enquanto referencial alinha-se ao objeto de estudo, visto que possibilita reconhecer os sentidos atribuídos pelos indivíduos às suas ações, considerando os contextos nos quais estão inseridos e, além de auxiliar na apreensão da realidade, viabiliza uma visão ampliada sobre os dados investigados.

A pesquisa foi realizada de março a julho de 2017, junto a cinco programas de residência multiprofissional em saúde, conduzidos por duas instituições públicas de formação do estado do Ceará (Instituição A e Instituição B). A escolha do Ceará enquanto cenário macro deste estudo, justifica-se por este concentrar o maior programa de residências multiprofissionais em saúde, no que se refere ao número de vagas e de profissões envolvidas.

A Instituição A iniciou suas atividades junto a residência multiprofissional em 1999, com a proposta da Residência Multiprofissional em Saúde da Família, agregando, posteriormente, a Residência Multiprofissional em Saúde Mental. No período em questão, estavam em formação aproximadamente 80 profissionais, dos núcleos de enfermagem, educação física, serviço social, psicologia, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, odontologia e terapia ocupacional.

Em consonância, a Instituição B iniciou seu programa de residências integradas em saúde no ano de 2013, com dois componentes: o hospitalar, com oito ênfases concentradas nos hospitais de grande porte da capital cearense, Fortaleza; e o comunitário, interesse deste estudo, com as ênfases de Saúde da Família e Comunidade, Saúde Coletiva e Saúde Mental Coletiva. Cada turma deste programa oferta cerca de 327 vagas, distribuídas entre os dois componentes e nas cinco macrorregiões de saúde do estado do Ceará. Especializam-se nesses programas, profissionais dos mesmos núcleos destacados na Instituição A.

Assim, perfaziam a totalidade de programas com componente comunitário voltados à atuação prioritária na rede de serviços da atenção básica e foram escolhidos frente à compreensão de que este é um campo que oportuniza o desenvolvimento de ações de promoção da saúde. É mister ressaltar que estes programas formam cerca de 250 profissionais por turma com atuação voltada à atenção básica, em 22 cidades de todas as macrorregiões de saúde do estado, envolvendo ainda profissionais de estados circunvizinhos, como Pernambuco, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Norte.

Nesse contexto, a população de interesse engloba os profissionais engajados na condução pedagógica dos programas de residência em questão, por considerar que estes são responsáveis tanto pela organização dos componentes pedagógicos dos programas, quanto pela estruturação dos documentos norteadores, ao passo em que promovem, através da atuação docente, o desenvolvimento das competências e o alcance dos objetivos de aprendizagem estabelecidos.

Foram convidados a participar, por meio de amostra intencional não probabilística, os coordenadores dos programas e os tutores que atenderam aos critérios de elegibilidade, a saber: ser profissional vinculado à instituição formadora responsável pela residência multiprofissional e atuar diretamente no colegiado docente, por no mínimo três meses, pois estima-se que este período é suficiente para participação no planejamento e/ou execução das atividades pedagógicas, por exemplo, um módulo/ciclo; não estar afastado de suas atividades, por quaisquer motivos, durante o período de realização do estudo.

Dessa forma, participaram do estudo 13 profissionais do colegiado docente das duas instituições com oferta de programas de residência multiprofissional em saúde da área comunitária no Ceará. Destes, duas eram coordenadoras, uma exercia a coordenação pedagógica e outra acadêmica, sendo estas coordenações transversais e comuns a todos os programas ofertados. Os demais participantes eram tutores das categorias enfermagem, serviço social, psicologia, odontologia, fisioterapia e educação física. Os tutores eram pertencentes às ênfases de saúde da família (oito tutores) e saúde mental (três tutores).

Para a coleta dos dados, optou-se pela reunião do acervo documental dos programas de residência multiprofissional, com ênfase para o Projeto Pedagógico do Curso e currículo, e entrevista com os participantes. A avaliação documental teve como referência um formulário organizado pelos pesquisadores a partir dos domínios de competências do CompHP, abordando os aspectos essenciais característicos de cada domínio, dos valores éticos e dos princípios conceituais da promoção da saúde.

As entrevistas, conduzidas por um roteiro semiestruturado, foram viabilizadas através da aproximação dos pesquisadores com o campo, reconhecimento dos participantes e convite para participação. Estas foram realizadas em ambiente privado, gravadas em áudio digital com duração média de 45 minutos cada, norteadas por questões que versavam sobre a concepção de promoção da saúde adotada no processo formativo da residência multiprofissional e como esta é trabalhada na formação.

Os dados obtidos com as entrevistas foram transcritos integralmente no programa Microsoft Word 2013^®, constituindo um corpus processado pelo software ALCESTE versão 2015, que realiza análise lexical das palavras de um discurso, considerando função da palavra no texto, possibilitando sua quantificação e delimitação de classes a partir da ocorrência das palavras e sua função textual. Assim, o software reúne grupos de palavras com sentido semelhante e extrai as Unidades de Contexto Elementar (UCE), segmentos de algumas linhas originados da divisão textual e que corresponde ao material discursivo referente à formulação das classes. Cabe então aos pesquisadores identificar o sentido das classes formadas, nomeá-las e analisá-las conforme a distribuição e associação dos léxicos.

A interpretação das classes se deu sob a perspectiva de conteúdo, observando-se a lista de palavras e UCE específicas de cada classe, apoiando-se nos gráficos e dendrogramas gerados. A estratégia de triangulação concomitante deu-se pela análise das formas reduzidas de palavras plenas com maior significância, de acordo com o qui-quadrado (χ²) e seus contextos semânticos; do dendrograma da Classificação Hierárquica Ascendente; e do acervo documental dos programas de residência, para confrontar, aprofundar e validar os resultados.

Com vistas a atender aos padrões éticos da pesquisa científica, o presente estudo foi apreciado e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa. Está devidamente respaldado pelo uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e para garantir o sigilo dos participantes, a identificação se deu por meio da abreviação Part (correspondente a participante), seguido pelo número de cada entrevista, de acordo com sua ordem de realização.

RESULTADOS

O processamento das entrevistas destes profissionais pelo software Alceste revelou no corpus de análise um total de 13 Unidades de Contexto Inicial, correspondendo aos participantes do estudo e 11.551 palavras, sendo 1.882 formas distintas, com uma frequência média de 6 por forma. Foram estruturadas 285 UCE, das quais 203 foram elencadas como válidas para análise, representando um aproveitamento de 72% do corpus.

Em seu processo de seccionamento, o material de análise foi dividido em dois blocos que reúnem classes formadas por UCE com maior afinidade estatística e lexical, demonstrando assim uma ligação de significados entre os temas agrupados. O bloco 1 (Figura 1), formado pelas classes 1, com 14% das UCE (29 unidades), e a classe 2, com 43% das UCE (88 unidades), agrupam os discursos referentes às concepções de promoção da saúde e o modo como se expressam na formação da residência, sendo estas as classes de interesse do estudo.

Figura 1 -
Dendrograma das classes do Bloco 1 - Promoção da saúde na residência multiprofissional. Crato, CE, 2017

O dendrograma ilustra a divisão das classes, compostas por formas reduzidas representativas e a força de cada forma em meio a classe, figurada pelo qui-quadrado (χ²). Deste modo, adotando-se a análise por conteúdo, tratou-se cada classe enquanto categoria, apresentadas a seguir.

Promoção da Saúde na Residência Multiprofissional em Saúde: concepções e representações

Esta categoria, oriunda da classe 2, trata das concepções do colegiado docente sobre a promoção da saúde e as representações desta no processo formativo da residência multiprofissional. É constituída pelas formas saud (χ² 26), doença (χ² 14), sistema_unico_de_saude (χ² 14), promocao_da_saude (χ² 13), concepc (χ² 9), biomedic (χ² 9), conceito (χ² 9), sujeito (χ² 8), acoes (χ² 7), ampli (χ² 7), clínica_ampliada (χ² 7).

O processo formativo da residência multiprofissional, conforme menção desta classe e documentos avaliados, aponta para a superação do modelo biomédico ainda vigente nas práticas de saúde e, consequentemente, nas formações no campo da saúde. Reflete, deste modo, no potencial que a promoção da saúde possui para fragmentação e sobrepujamento deste paradigma com fortes influências no campo da saúde. [...] Utiliza um conceito de quebra de paradigma. A promoção da saúde ela vem para estruturar o conceito de saúde para além da doença. Sair desse modelo hegemônico, biomédico, de que saúde é o contrário de doença, ou ausência de doença, e vê a saúde como algo que perpassa aspectos de habitação, lazer... os determinantes sociais de saúde (Par03). [...] O conceito de promoção da saúde que a gente utiliza é o que está na política, que é o de articular a promoção da saúde dentro dos serviços do Sistema Único de Saúde, independente do nível de atenção e independente do ponto da rede que esse serviço esteja instalado. Então compreender um serviço de saúde de uma forma que a oferta de atenção à saúde seja para além da cura da doença (Par11). [...] Qualificação de profissionais para atuar sob um novo paradigma em saúde com ênfase na promoção (Documentos Instituição A). Promoção da saúde abordada sob a ótica da superação da ideia de nível de prevenção primária, considerando questões éticas, políticas, econômicas, culturais e biológicas (Documentos Instituição B).

Na residência multiprofissional, a promoção da saúde é compreendida, então, como estratégia e como objetivo, que ao fazer uso da clínica ampliada busca contemplar as necessidades de saúde de indivíduos e da comunidade a qual pertencem, considerando os determinantes sociais em saúde na produção de saúde-cuidado. Como estratégia, destaca-se como meio para atingir a melhoria da qualidade de vida e saúde, empoderar os indivíduos e atuar sobre os determinantes de saúde. Já como objetivo traduz-se como meta a ser atingida a cada ação desenvolvida. Os relatos a seguir ilustram esta ideia: [...] eles têm aquela concepção de que a saúde eles vão tratar clinicamente, enquanto a gente quer aquela clínica que seja para além do consultório, a clínica ampliada. Então aí a gente pensa em promover saúde (Par09). [...] Para estar promovendo a saúde das pessoas você precisa ver a questão da infraestrutura, do saneamento, da educação, do emprego, da alimentação, da escola, do transporte, da saúde. Então ela é bem abrangente (Par04).

Entretanto, para efetivar-se enquanto campo, reconhece-se um processo de desenvolvimento que necessita de elementos que afluam para uma clínica peripatética, que aconteça em um contexto real, compreendendo as múltiplas dimensões que influenciam o viver e o viver com qualidade, como aspectos sociais e ambientais.

Promoção da Saúde na Residência Multiprofissional em Saúde: expressões no processo formativo

Esta categoria, proveniente da Classe 1, agrupa formas referentes ao modo como a promoção da saúde tem se apresentado em meio ao processo formativo da residência multiprofissional. É formada pelas formas enfase (χ² 44), especif (χ² 30), convers (χ² 24), modulo (χ² 21), formativo (χ² 21), transvers (χ² 21), estimul (χ² 19), componente (χ² 18), saude_coletiva (χ² 18), macrocompetencia (χ² 18), program (χ² 16), inici (χ² 14), teorico_prat (χ² 14) e constru (χ² 13).

Esta classe reúne, sob a ótica do colegiado docente dos programas de residência multiprofissional em estudo, os momentos nos quais a promoção da saúde é percebida nesta modalidade de formação. A abordagem da promoção da saúde na residência perpassa os diversos momentos de formação, estando presente nos momentos teóricos e teórico-práticos no intuito de ofertar embasamento teórico e reflexivo para implementação de práticas saudáveis nos momentos práticos, como pode ser observado nas falas e recortes dos documentos, a seguir: [...] Sobre promoção da saúde, muito do que a gente vem trabalhando, vem sendo disparado nos módulos presenciais, durante os momentos de atividade teórico-conceituais e também através das atividades disparadas nas rodas, nos momentos de atividade teórico-prática, que aí lá no cenário de prática junto com os preceptores do serviço vai fazer sentido (Par13). [...] Esse conteúdo teórico ele não fica separado da prática, ele vai funcionar, ele vai levar atividade, vai levar, disparar demandas pra que esse residente construa, e que dentro de um processo formativo vale nota (Par11). O processo formativo tem como pressuposto teórico-metodológico a promoção da saúde (Documentos Instituição A).

Neste sentido, conforme análise documental, cada um destes momentos da formação da residência é direcionado e especificado no projeto pedagógico do curso, destinado especificamente e com as particularidades postas de cada ênfase ou programa, e por um currículo que objetiva atender as propostas pensadas neste projeto pedagógico. Observa-se nos programas estudados a estruturação a partir de um processo que visa o desenvolvimento de competências por parte dos profissionais, sendo estas organizadas de acordo com a ênfase, com o núcleo profissional e com o programa.

A promoção da saúde materializa-se, então, nos documentos estudados enquanto estratégia pedagógica e macrocompetência a ser desenvolvida, o que diz respeito ao caráter transversal desta, transcorrendo todas as ênfases, tanto do componente comunitário, foco deste estudo, quanto do componente hospitalar. As falas dos participantes ilustram este pensamento: [...] a promoção da saúde ela acaba sendo um tema que é transversal à formação na residência. A promoção da saúde ela vai ser transversal aos programas da residência e vai sendo disparada para muitas categorias profissionais (Par11). [...] A teoria de promoção da saúde ela acontece em todos os momentos de uma forma mais transversal das ênfases (Par10).

Para que a promoção da saúde transpasse o componente teórico da formação e seja possível a relação teoria-prática, algumas estratégias são adotadas para efetivá-la enquanto prática profissional intrínseca a esta modalidade formativa. [...] Pensamos muito sobre aquele conceito bem mais amplo de promoção da saúde, abraçando a educação popular como estratégia, abraçando o estímulo à participação e ao controle social (Par13). [...] Ela leva numa dimensão muito maior, muito mais ampla, não é à toa que a gente adota a territorialização, o planejamento participativo na construção das ações (Par08).

Dentre as estratégias elencadas, os participantes pontuaram a territorialização; o planejamento em saúde; o trabalho em equipe, de forma multi e interprofissional; a educação popular; a participação e o controle social.

DISCUSSÃO

No campo da promoção da saúde e desenvolvimento de formações com foco no aperfeiçoamento e consolidação deste, tutores e coordenadores apresentam papel relevante na idealização e execução de momentos condizentes com a aprendizagem significativa, apoiando-se nas experiências dos residentes e preceptores e na busca constante por solução para os problemas cotidianos relacionados à promoção da saúde, melhorias das condições e qualidade de vida. Estes profissionais devem assegurar que todos os atores envolvidos compreendam o propósito da formação, os objetivos de aprendizagem e os resultados almejados no manuseio de situações, problemas e suas sínteses.2

A atuação de tutores e coordenadores em articulação com preceptores e residentes nos serviços de saúde ressignifica a práxis, transformando as relações com os usuários e estabelecendo novos fluxos entre gestão e assistência, representando uma interlocução entre a academia e os serviços de saúde, diminuindo o distanciamento entre o espaço de produção de conhecimento e o espaço de aplicação do conhecimento, unindo-os, integrando-os.8

Deste modo, é importante apropriar-se das concepções de promoção da saúde manifestadas, defendidas e propagadas por estes profissionais nos programas de residência multiprofissional, a fim de averiguar se suas expressões estão em consonância com o desejado para se promover saúde, conforme Carta de Ottawa e demais políticas do campo.

Vale ressaltar que a Carta de Ottawa propõe cinco campos de atuação para promoção da saúde, visando superar o modelo biomédico vigente nas práticas de saúde, a saber: desenvolvimento de políticas públicas, reorientação dos serviços de saúde, criação de habilidades pessoais, reforço da ação comunitária e ambientes favoráveis. Esta proposição compreende a determinação dos fatores sociais no campo da saúde, orientando a mobilização e reforços para intervenção em saúde e produção do cuidado.9

Sob este prisma, os programas de residência multiprofissional analisados apontam para a superação do modelo biomédico, pois geram e fortalecem posturas de questionamento e enfrentamento deste modelo, problematizando o campo de produção de cuidados e saúde, a partir da inserção do olhar crítico acerca da saúde e dos aspectos oriundos das ciências sociais, os quais interferem nesta. Contribuem ainda ao adotar práticas pedagógicas inovadoras e atuais, organizando a formação a partir de um processo que não é focado no ensino, mas na aprendizagem, centralizado no estudante e no desenvolvimento das competências necessárias para atingir os objetivos de aprendizagem; usando metodologias ativas e problematizadoras que auxiliam no desenvolvimento do espírito crítico e criativo, na capacidade de análise e resolução de problemas, na capacidade comunicativa, de liderança, de inovação, de adaptação à mudança, entre outros; no papel descentralizado do docente para além da sala de aula, permeando os diversos espaços de aprendizagem, dentre eles os campos de prática na realidade do território e dos serviços de saúde; e na flexibilidade dos currículos e momentos formativos.10

Nesta conjuntura, os tutores e coordenadores apresentam concepções de promoção da saúde alinhadas às políticas atuais, reconhecendo que os profissionais promotores de saúde devem atuar no auxílio de indivíduos para tornarem-se capazes de identificar aspirações, reconhecer necessidades e modificar o ambiente na busca pela melhor qualidade de vida e saúde. Nesse sentido, percebe-se um avanço nas representações destes profissionais quanto ao conceito de promoção da saúde, não sendo confundido com prevenção de doenças nos discursos dos participantes.

Este desalinho na compreensão de promoção da saúde ainda é comum no cotidiano dos profissionais de saúde e no imaginário da população, quando estes consideram promoção e prevenção como sinônimos, resultado de questões epistemológicas, linguísticas e/ou culturais.11 No entanto, a concepção de promoção da saúde, de acordo com as falas dos participantes, vai além de ações isoladas com ênfase na saúde, ao considerarem que os determinantes sociais são aspectos que estão diretamente relacionados à saúde e à qualidade de vida da população.

Consideram-se, pois, os determinantes sociais de habitação, lazer, renda, educação, saneamento básico, alimentação, transporte e acesso a bens e serviços essenciais, articulando-se de modo a transcender o setor saúde, pensando além de estilos saudáveis de vida, envolvendo o bem-estar da coletividade. Engloba ações políticas e sociais pautadas na advocacia, no empoderamento e na parceria, voltadas a mudanças nas condições sociais e ambientais, reconhecendo as políticas de outros setores e as tecnologias existentes destinadas a promover a equidade e a qualidade de vida, reduzindo as vulnerabilidades e riscos à saúde oriundos dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais.12

Trata-se, portanto, de uma promoção da saúde emancipatória que busca conhecer, discutir e atuar sobre os problemas socioambientais e sanitários do território, na iminência de transformar as políticas públicas e práticas institucionais com base em interesses legítimos e necessidades das populações.13

Reconhece-se, assim, convergência entre as propostas da residência e as representações de tutores e coordenadores sobre promoção da saúde e as premissas das iniciativas de promoção que se caracterizam, entre outras, por uma concepção holística, pela intersetorialidade, favorecimento do empoderamento comunitário e da participação social e pela busca da equidade por meio da ação sobre os determinantes sociais da saúde.14

Assim, para que sua complexidade seja considerada, a formação voltada à promoção da saúde traduz-se enquanto processo formativo, visto que não deve ser fixa e pontual, sendo adaptada à realidade contextual dos territórios e, portanto, adequada a estes. Julga-se crucial atentar-se a três aspectos que devem ser considerados para esse processo formativo a partir do território: a) os cinco campos de ação - a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis, o reforço da ação comunitária, b) as três estratégias - advocacia, mediação e capacitação; e c) as prioridades para a ação a serem construídas locoregionalmente com os participantes dos indivíduos e coletividade em seus territórios.2^,9

Deste modo, a promoção da saúde materializa-se na formação da residência de modo transversal aos momentos da formação, estando presente em meio ao território vivo e às demandas que dele emergem, considerando não só os aspectos biológicos dos sujeitos que nele vivem, mas indo além e agregando os aspectos sociais, psicológicos, culturais, ambientais, bem como o cotidiano dos indivíduos, não se restringindo aos espaços físicos dos serviços de saúde.

No contexto estudado, o processo formativo contempla momentos teóricos, teórico-práticos e práticos. Os momentos teóricos compreendem os módulos/ciclos, estações de encontro entre os residentes, preceptores, tutores e um profissional ou equipe de profissionais com expertise em determinada área do conhecimento com o intuito de discutir sobre uma temática específica e promover o desenvolvimento de um processo de ensino-aprendizagem. Compreende ainda os momentos destinados a estudo individual e de educação à distância. Ainda firmam sua relevância para atuação voltada à promoção da saúde ao valorizar a construção de capacidades que auxiliem na formulação e implementação de práticas convergentes com os princípios teóricos e metodológicos da promoção da saúde, o que requer adoção e conhecimento de marcos teóricos que sustentem e deem significado à prática cotidiana.2

Já os momentos teórico-práticos, em ambas as instituições, são conduzidos na forma de rodas - rodas de núcleo/de categoria, de campo, de docentes, de discentes, entre outras conformações. Caracterizam-se como espaços de problematização do processo de trabalho e do território que acontecem no próprio território. Volta-se para transformar o ser e o fazer, alinhando a teoria com a prática a partir das reflexões e diálogo sobre o que se materializa nas vivências diárias.

Deste modo, os momentos teórico-práticos resultam de avanços na mudança do paradigma educacional que vem reforçar a importância da educação centrada no aluno, considerando que, nestes momentos, os tutores e preceptores abandonam o papel conservador de docente transmissor do conhecimento e assumem papel de facilitadores, com funções de aconselhamento, orientação e motivação direcionadas a aquisição de competências.10

As rodas demonstram relevância ainda ao considerar que a produção do cuidado enquanto objeto da formação, pode ser enfraquecida quando não são instituídos espaços pedagógicos de problematização, nos quais há reflexão e análise das práticas dos discentes.15

E, por fim, os momentos práticos consistem naqueles executados in loco, no território junto à comunidade, à equipe e aos serviços de saúde. A parte prática compreende a maior parte da carga horária da residência e, portanto, necessita de embasamento teórico concreto para realização e efetivação das ações.

A inserção dos residentes nos contextos reais de produção de cuidado nos momentos práticos contribui para a compreensão do significado das teorias aplicadas na prática, visto que uma deve dar sustentação a outra, estando conectadas.16

Para nortear estes momentos que constituem o processo formativo da residência, esta lança mão do Projeto Pedagógico de Curso e currículo voltados para o desenvolvimento de competências e com percurso formativo com ênfase na atuação na atenção primária. Currículos que prezam por ampla abordagem no contexto da atenção primária possibilitam uma interação direta dos discentes com o território vivo e sua comunidade, progredindo no desenvolvimento atitudinal no contexto das relações interpessoais e na estima das tecnologias leves de cuidado, aproximando a universidade dos serviços e do próprio território.15

Em cursos orientados por competências, os conteúdos explícitos no currículo só fazem sentido quando emergem da prática e são direcionados para enriquecer esta, atribuindo funcionalidade ao enfrentamento de situações e problemas complexos comuns no meio social, tal como acontece na formação da residência.2

O ensino da promoção da saúde assenta-se, assim, numa abordagem de integração das diversas áreas do saber, constituindo uma oportunidade de aprofundamento, de reflexão e integração de conhecimentos dos residentes.10 Dessa forma, consolida-se como eixo transversal do ensino na saúde que tem como foco a saúde coletiva, a superação do modelo biomédico, e preza pela melhoria das condições e modos de vida, considerando os determinantes sociais e a participação da população na construção da saúde e do cuidado.

Para que a promoção da saúde se efetive em todos os momentos da formação, enquanto eixo transversal, os tutores e coordenadores apontam estratégias marcadas pela intersetorialidade, educação permanente, monitoramento, avaliação e estimula à participação popular, de modo a possibilitar mudanças positivas na saúde da população.17

Detalhando cada estratégia apontada pelos participantes do estudo, a territorialização refere-se ao processo de reconhecimento do território e suas peculiaridades. Consiste em um dos princípios fundamentais de atuação da Estratégia Saúde da Família, sendo base para a organização das ações voltadas à comunidade com parcerias em potencial para a promoção da saúde.18

O planejamento em saúde possui a finalidade de garantir uma resposta efetiva do Sistema Único de Saúde às demandas e necessidades de saúde da população, sendo o ponto inicial para a programação das ações de saúde.19

Já o trabalho em equipe diz respeito à formação de parcerias internas no ambiente de trabalho para atender as mudanças no perfil epidemiológico, agregando saberes distintos de modo complementar, traduzindo a teoria política e a pesquisa em ações que apresentem um bom desempenho nas práticas de saúde.20

A educação popular compreende uma educação política da classe trabalhadora, numa perspectiva tanto de emancipação como de conformação do status quo, reconhecendo o território como espaço legítimo de educação.21

Por fim, a participação social, defendida no conceito de promoção da saúde de Ottawa, refere-se à iniciativa dos cidadãos em monitorar, fiscalizar, avaliar e interferir na gestão estatal e na organização e implementação das ações e serviços de saúde.22

Estas estratégias somam-se no complexo processo de ensinar e aprender da residência multiprofissional de saúde que busca envolver diversos recursos tecnológicos e pedagógicos na condução do desenvolvimento de competências. Esse novo contexto de ensino-aprendizagem, condizente com as transformações e inovações no campo da educação, exige uma compreensão mais eficaz da busca de procedimentos úteis e realizáveis, bem como da relação residentes-docentes, para proporcionar um aprendizado que seja condizente com a realidade social, e neste caso específico com a promoção da saúde.23

Em suma, a promoção da saúde é reconhecida como estratégia para romper e superar o paradigma biomédico, colocando-se transversalmente aos níveis de assistência e enxergando o processo saúde-doença-cuidado de modo ampliado, considerando as singularidades individuais, coletivas e os determinantes da saúde, perpassando o processo formativo da residência multiprofissional transversalmente nos momentos de teoria e prática.

A realização do estudo englobando apenas os programas com componente comunitário de atuação pode ser pontuado enquanto uma limitação, o que implica na sugestão de realização de novos estudos envolvendo também o componente hospitalar.

Destarte, a residência multiprofissional em saúde firma-se como processo formativo com contribuições potentes para a formação de profissionais de saúde com competências para atuação no campo da promoção da saúde, instigando o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes pertinentes a este campo.

CONCLUSÃO

Este estudo consolidou as representações de tutores e preceptores de processos formativos de residência multiprofissional sobre promoção da saúde e como esta se expressa nesta modalidade de formação. No contexto estudado, a concepção de promoção da saúde permeia os conceitos e premissas das cartas das conferências sobre promoção da saúde, em especial a de Ottawa, enquanto estratégia de capacitação da população para atuar sobre seus modos de viver e ter saúde, incluindo maior participação neste processo.

Paralelamente, expressa-se em todos os momentos formativos, teóricos, teórico-práticos e práticos, e nos modos como estes são estruturados e organizados, estando presentes nos Projetos Pedagógicos de Curso e currículos dos programas de residência.

Infere-se que há um alinhamento entre a concepção adotada e expressa de promoção da saúde no processo formativo da residência profissional, representando avanços nas práticas e formação em saúde que condizem com a superação do modelo biomédico, consolidação do campo da saúde coletiva e capacitação de profissionais para atuarem frente aos novos modos de produzir saúde e necessidades de saúde dos territórios.

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído da dissertação - Competências em promoção da saúde no processo formativo da residência multiprofissional: um olhar sob a perspectiva do CompHP, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Regional do Cariri, em 2017

• FINANCIAMENTO

  À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientídico e Tecnológico, pelas bolsas de mestrado.

• APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

  Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Cariri, parecer n. 1.973.784/2017, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 65520617.0.0000.5055.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Maio 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  29 Abr 2020
• Aceito
  26 Jun 2020