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Editorial

Esta edição da revista Serviço Social & Sociedade traz discussões e reflexões sobre os elementos fundantes dessa sociabilidade que tem agudizado de maneira extrema as desigualdades sociais e promovido, por meio do Estado, respostas ideologicamente orquestradas com o capital para viabilizar e justificar essa forma de vida. A partir da apreensão de diversos processos que estão em curso e das respostas do Estado por meio das políticas públicas, é possível colocar em pauta não só o significado e a funcionalidade dessas políticas, como também identificá-las como uma via que, ainda que capturada pela lógica capitalista, não se constituem como mão única, ou seja, são resultantes de processos contraditórios que não eliminam os sujeitos históricos e suas capacidades de desvelamento e ação de maneira a constituir, mesmo que de forma limitada, resistências em diversos níveis, ou, no limite, ações que permitem ampliar direitos sociais, políticos e civis.

O diálogo sobre a "consciência possível", resultado da materialidade da vida e da capacidade de o indivíduo assumir a sua condição de sujeito coletivo, descrito por Michael Löwy em seu artigo que trata de Lucien Goldman e sua definição do "materialismo genético", é, na realidade, uma temática recorrente a diversos textos. Esse debate em tempos de invasão pós-moderna na produção científica e sua consequente análise da realidade social é algo fundamental, pois como há muito já alertava Marx em sua polêmica contra Proudhon (Netto, 2011NETTO, José Paulo. Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez , 2011.): quem erra na análise, erra na ação. Se o Serviço Social não identifica as classes sociais em luta, não apreende as refrações da questão social como decorrentes desse embate e, a partir daí, irá alimentar ilusões que poderão levar os profissionais a uma atitude inicialmente messiânica e, depois, ao descrédito e desânimo permanentes, como já nos alertava Marilda Iamamoto (Iamamoto, 1992IAMAMOTO, Marilda Vilela. Renovação e conservadorismo no serviço social. São Paulo: Cortez , 1992.) nos anos de 1990.

Ao tratar das políticas, do Serviço Social, de experiência de formação e trabalho profissional, esta edição permite aos leitores e leitoras uma incursão para além do contexto brasileiro, trazendo aspectos da realidade espanhola, em que o debate sobre o Serviço Social se mistura à própria história do país em questão. O desemprego estrutural, resultado da forma de organização da produção, é uma realidade global, mas os níveis em que esse se expressa, incluindo um quarto da população na Espanha, é algo que merece reflexão, afinal, esse país compõe a comunidade europeia, em que o sistema de proteção social, até há pouco tempo, pressupunha, ainda que efetivamente não praticasse, o pleno emprego.

O amplo e rico conjunto de artigos disponíveis nesta edição poderá instrumentalizar o debate político e teórico, na medida em que trazem à tona leituras estruturantes da lógica do capital, mas também experiências concretas que evidenciam a participação dos sujeitos sociais nas tramas das realidades constituídas, criando e estabelecendo relações e análises de maneira a viabilizar a crítica ao instituído ou ações de defesa da cidadania e da qualidade da formação e trabalho profissional.

As condições atuais de claro retrocesso social, político e cultural resultantes do avanço da desumanização promovida pelo capital e por sua lógica predatória, que captura a natureza e a força de trabalho, explicam a grande ocorrência de atendimentos para aqueles que sofrem de transtornos mentais, destituindo sua condição de cidadãos. Da mesma forma, é possível compreender que o controle da vida de segmentos pauperizados seja feito em nome do acesso aos direitos humanos fundamentais, quando estes já deveriam ser parte da realidade de todos; ou ainda que a articulação entre as diversas ações e políticas públicas, prevista em lei e que deveria ser a própria lógica constitutiva das ações, na realidade resulta de esforços coletivos de equipes que a viabiliza como exceção, quando na realidade deveria ser a regra. Afinal, como intervir na trama complexa do real de maneira fragmentada e sem o compromisso com o resultado dos processos desencadeados?

O avanço do conservadorismo no Brasil e no mundo tenciona ainda mais a sociabilidade e permite a sustentação ideopolítica de diversas formas de violência, de precarização do trabalho e da vida de um grande contingente da classe trabalhadora. Esse quadro traz à tona novas expressões da questão social, cujos rebatimentos nas profissões são imediatos. Decifrar tais expressões no cotidiano da prática profissional e enfrentá-las nos limites impostos pelas institucionalidades continuam sendo desafios importantes aos trabalhadores que atuam nessas arenas.

O Serviço Social brasileiro, uma profissão que desde a década de 1980 vem construindo um conjunto de proposições teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas voltadas para ideais emancipatórios, vivencia esse processo de maneira bastante tensa, pois as requisições sociais sobre o trabalho profissional dificilmente estão em sintonia ou mesmo caminham na mesma direção desses ideais emancipatórios. Os desafios postos aos profissionais que apreendem as contradições essenciais desse modo de vida são de grande monta. Porém, nesse cenário de retrocessos sociais, até mesmo a defesa de algumas conquistas já pactuadas e que se pressupunham como certas para o conjunto da sociedade tem gerado tensões aos profissionais, como é o caso da defesa das políticas universais, em contraponto aos programas focalizados.

No âmbito da formação, a presença de uma entidade forte como a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) fez com que o Ministério da Educação, mesmo que parcialmente, incorporasse as propostas das diretrizes curriculares para a área. Recentemente, a entidade construiu a Política Nacional de Estágio (Abepss, 2010ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Política Nacional de Estágio, 2010.), e o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) lançou normativas para assegurar que o estágio em Serviço Social se efetive em determinadas condições e com uma direção ético-política (CFESS, 2008CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS) Resolução nº 533, de 29 set. 2008.). Dois artigos tratam do Serviço Social, da sua história e da formação; naquele que discute o estágio, é possível verificar as dificuldades que esse contexto tem trazido no sentido de assegurar o previsto nas normativas e, ao mesmo tempo, evidencia outro processo em curso nas universidades: a precarização da formação e do trabalho docente.

A tensão permanente entre o instituído e o compromisso profissional do assistente social é destaque dos dois artigos que tratam da política de assistência social. No debate sobre o que está previsto na política de assistência social e as requisições postas ao trabalho profissional, é possível descortinar qualquer discurso ideologizado recorrente na política sobre o trabalho educativo e seu papel na reprodução social das famílias.

Requisições burocráticas de controle explicitam a tensão entre o instituído pela política pública, o compromisso ético-político profissional e a cultura institucional estabelecida, que, de fato, colocam em risco a efetivação dos direitos de cidadania das famílias atendidas. No entanto, e contraditoriamente, promovem acessos mínimos, porém, fundamentais à proteção social dos cidadãos, juntamente com outras políticas como educação e saúde. Esse aparente paradoxo, que é possível apreender na leitura e diálogo entre os artigos que tratam dessa temática, evidencia aquilo que o Serviço Social já há algum tempo tem discutido: as políticas públicas, especialmente as sociais, cumprem o papel de reprodução da sociabilidade do capital ao amenizar as diversas refrações da questão social, mas, contraditoriamente, e ao mesmo tempo, atendem às reivindicações da classe trabalhadora provendo alguns acessos a direitos sociais. No Brasil, os direitos sociais são extremamente incipientes, e ainda que tenham sido assegurados na Constituição Federal de 1988, resultado das lutas sociais do período nas últimas décadas, a política neoliberal tem promovido uma verdadeira contrarreforma do Estado (Behring, 2003BERHING, Elaine. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.), de maneira a recuar na efetivação dos direitos universais e investindo em programas focalizados de transferência de renda, como é o caso do Programa Bolsa Família.

A captura do Estado por parte do capital fica claramente expressa não só na efetivação dos programas de transferência de renda, mas também na própria forma de ocupação do território e das políticas voltadas para o desenvolvimento. No atual contexto, o entendimento do que se chama desenvolvimento é marcado, sobretudo, pelos interesses capitalistas, a ponto de serem considerados como sinônimos. Quando essa discussão se reporta à produção agrária, esse fato fica explícito: toda a forma de organização de produção é feita a partir do modelo do agronegócio, que, na realidade, nada mais é que a expressão do modelo capitalista de desenvolvimento voltado para a produção em larga escala de um único produto, utilizando de maquinário pesado e altas doses de agrotóxico; outros modelos produtivos são descartados e desqualificados, como se esses não fossem capazes de promover a segurança alimentar, quando na realidade é exatamente o inverso: eles é que poderiam promover alimento de qualidade, sem contaminação de agrotóxico e com diversidade, de maneira a promover a segurança alimentar da nação. Mas, para mudar o modelo produtivo, haveria de mudar a estrutura agrária extremamente concentrada, e isso não é interesse do capital e nem desse Estado transnacionalizado que atua em sintonia com esses interesses. O artigo que discute os arranjos produtivos locais explicita, escancara o simulacro dessa política e evidencia os determinantes de tal processo.

Este tema traz à tona o cenário brasileiro e as complexas tramas que envolvem esse modelo desigual de produzir cidades e, ao mesmo tempo, de tratar de forma homogênea suas diferenças e diversidades socioterritoriais e culturais, como os povos e comunidades tradicionais, as ruralidades, as grandes cidades e metrópoles (onde vivem cerca de 50% da população brasileira), e as cidades pequenas com menos de 20 mil habitantes, em contrapartida, que representam 70% das cidades brasileiras.

Todos esses temas e reflexões trazidos nesta 125ª edição da revista ­Serviço Social & Sociedade parecem se encadear e justificar a singela homenagem à professora Myrian Veras Baptista, que faleceu recentemente: uma assistente social que, junto a diversos coletivos, atuou em diferentes áreas, especialmente no campo dos direitos das crianças e adolescentes, e lutou para assegurar o compromisso do Serviço Social e seu legado emancipatório no âmbito da formação e do trabalho profissional. Graças a sujeitos individuais que se fizeram coletivos, como Myrian Veras, é que foi possível a essa profissão construir um projeto profissional que tem buscado assegurar capacidade de crítica e a construção de princípios emancipatórios e libertários. A defesa da liberdade como plena expansão dos indivíduos sociais, a defesa da democracia, o compromisso com a qualidade dos serviços prestados, com o constante aprimoramento profissional, pautas que com certeza Myrian Veras ajudou a construir e que nos deixa como legado, como tão bem e carinhosamente declarou Michael Löwy em sua mensagem autorizando a republicação de seu artigo nessa edição-homenagem:

E foi graças a Myrian que estabeleci uma relação estreita com os colegas do Serviço Social que dura até hoje. São muitas dívidas que tenho com ela...Myrian era não só uma grande professora e pesquisadora, mas também uma pessoa inspirada por um profundo compromisso social, uma profunda identificação com a causa dos explorados. Ela nos fará muita falta...

(Michael Löwy)

Referências

  • ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENSINO E PESQUISA EM SERVIÇO SOCIAL (ABEPSS). Política Nacional de Estágio, 2010.
  • BERHING, Elaine. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
  • CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS) Resolução nº 533, de 29 set. 2008.
  • IAMAMOTO, Marilda Vilela. Renovação e conservadorismo no serviço social São Paulo: Cortez , 1992.
  • NETTO, José Paulo. Marxismo impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez , 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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